Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3988/15.3T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
PRESCRIÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
CRIME
RESPONSÁVEIS CIVIS
Data do Acordão: 01/09/2017
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.498 CC, LEI Nº98/2009 DE 4/9
Sumário: 1. O prazo de prescrição fixado no n.º 3 do art.º 498º do Código Civil aplica-se às situações previstas nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, designadamente à do direito de regresso entre os responsáveis - se o facto gerador do direito de indemnização constituir crime para o qual se ache fixado prazo de prescrição mais longo, é este o prazo aplicável ao exercício do direito de regresso.

2. O instituto jurídico da prescrição tem como fundamento a reacção da lei contra a inércia ou o desinteresse do titular do direito, que o torna não merecedor de protecção jurídica, visando assim sancionar o credor pouco diligente, no interesse da clarificação, estabilização e segurança das relações jurídicas, quando não exerça o seu direito dentro de determinado prazo fixado por lei.

3. Tratando-se de um acidente de trabalho de que resultou a morte da vítima, por inobservância das regras de segurança por parte da entidade patronal, cuja responsabilidade veio a ser apurada no foro criminal (e não no foro laboral - em virtude do acordo quanto às indemnizações e pensão devidas), após o que a autora/seguradora concretizou a intenção de exercer o direito de regresso contra o tomador do seguro, será de concluir que foi salvaguardado o “interesse da lei na rápida definição da situação” e não ocorreu “inércia da seguradora” que deva ser sancionada.

Decisão Texto Integral:          



  
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Em 30.11.2015, L (...) - Companhia de Seguros, S. A., instaurou a presente acção declarativa comum contra M (…), Lda., pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 82 890,87 e respectivos juros moratórios, para além do montante que vier ainda a despender com a regularização do sinistro objecto dos autos.

            Alegou, em síntese: no exercício da sua actividade celebrou com a Ré um contrato de seguro do Ramo Acidentes de Trabalho; recebeu uma participação de sinistro da Ré, datada de 21.6.2010, referente a acidente de trabalho ocorrido no dia 18.6.2010, com o trabalhador e sinistrado J (...); o evento que vitimou o trabalhador ao serviço da Ré, e que determinou a sua morte, foi consequência da falta de condições de segurança no trabalho; na tentativa de conciliação no Tribunal do Trabalho de Leiria, em 27.4.2011, com a presença da Ré, a A. e a viúva da vítima chegaram a acordo quanto à pensão anual e vitalícia a pagar, despesas de funeral, subsídio de morte e despesas com transportes, remetendo a apreciação sobre a atribuição de responsabilidade, com fundamento na existência, ou não, de inobservância das normas de segurança no trabalho, para fase posterior; no processo-crime em que foram arguidos a sociedade Ré e outros (163/10.7GGCBR), a Ré foi condenada como autora material de um crime de violação de regras de segurança, p. e p. pelo art.º 152º-B, n.º 4, alínea a) conjugado com o n.º 1 do mesmo art.º e o art.º 11º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, decisão transitada em julgado em 21.9.2015; em cumprimento do fixado no Tribunal do Trabalho de Leiria pagou as quantias mencionadas no art.º 24º da petição inicial (p. i.), no valor total de € 32 715,30 e constituiu uma provisão matemática no valor de € 50 175,57; assiste-lhe o direito a obter o reembolso das quantias despendidas e a despender com a regularização do sinistro, à luz da apólice de acidentes de trabalho (art.º 21º da Apólice Uniforme do Seguro Obrigatório de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores por Conta de Outrem), sobre a Ré/responsável, conforme carta que lhe enviou em 30.10.2014 e a notificação judicial avulsa de 31.01.2015.

            Contestou a Ré excepcionando a prescrição do direito da A., concluindo que “parte dos montantes reclamados pela A. estão prescritos nos termos do art.º 498º do CC”, e, no mais, impugnando os factos descritos na p. i..

            No despacho saneador (de 27.4.2016), o Mm.º Juiz a quo julgou improcedente a invocada excepção, com a seguinte fundamentação:

            «A Ré M (…), Lda., invoca a prescrição o direito da Autora pelo decurso do prazo de três anos previsto no art.º 498º, do Código Civil.

            A Autora respondeu alegando essencialmente que a conduta do responsável configura crime, de acordo com sentença de condenação, já transitada, cujo prazo de prescrição é de 10 anos.

            Conjugando o disposto no art.º 498º, n.º 3, do Código Civil com o disposto nos artigos 152º-B, n.º 4, al. a) e 118º, n.º 1, al. b), do Código Penal, o prazo de prescrição é de 10 anos e não de três, por isso, atenta a data dos factos e a data da satisfação da indemnização, o direito da Autora não está prescrito.

            Termos em que improcede a invocada excepção peremptória de prescrição

            Inconformada, a Ré apelou formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

            1ª - A decisão recorrida padece de nulidade por FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO de facto e de direito, violando o disposto nos art.ºs 154º do Código de Processo Civil (CPC) e 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

            2ª - A decisão em crise não foi fundamentada na forma prevista na lei, pecando por simples adesão sumária ao alegado pelas partes sem que as razões que sustentam a decisão sobre a prescrição alegada decorram de uma análise e ponderação jurídica do instituto jurídico em causa.

            3ª - A delicadeza da matéria (qual o prazo de prescrição a que esta sujeito o direito de regresso da seguradora contra o tomador do seguro) atenta a panóplia de interpretações jurídicas distintas e diferentes entre si, quer do ponto de vista doutrinal quer do ponto de vista jurisprudencial exigiam uma digna e séria fundamentação.

            4ª - Caberá à apelada fazer prova da deslocação patrimonial dos montantes liquidados ao sinistrado e seus familiares e das despesas que teve decorrentes do acidente de trabalho cuja responsabilidade possa ser imputada à apelante. E nos termos por aquela alegados liquidou por conta do sinistro ocorrido em 18.6.2010 (antes de proceder à Notificação Judicial Avulsa) um total de € 12 361,09 e respectivos juros de mora.

            5ª - A apelante invocou que tais montantes se encontravam prescritos à data da NJA conforme excepcionado em sede de contestação.

            6ª - A extensão do prazo vertido no n.º 3 do art.º 498º do Código Civil (CC) apenas se aplica ao prazo de prescrição fixado no n.º 1 - nos casos de direito de indemnização do lesado e não (também) no caso do direito de regresso da seguradora (que satisfaça indemnizações decorrentes de acidente de viação), entendimento que tem sido partilhado por grande parte da jurisprudência.

            7ª - O direito de regresso da A./Seguradora contra a apelante (exercido nos termos do art.º 21º da Apólice Uniforme de Acidentes de Trabalho por conta de outrem) apenas surge com a satisfação da indemnização, com a deslocação patrimonial, e é então que se inicia a contagem do prazo prescricional, tratando-se de um direito nascido ex novo que não pode de modo algum fugir ao prazo previsto no art.º 498º[1], n. 2 do CC.

            8ª - O prazo mais longo a que alude o n.º 3 do art.º 498º do CC, apenas e só se aplica em sede de indemnização aos lesados, às vítimas do dano e não ao direito de regresso.

            9ª - Incorreu assim o tribunal a quo em erro de interpretação e de aplicação do direito, violando o disposto nos art.ºs 9º, n.º 1 e 498º, n.ºs 1 a 3 do CC, 154º; 613º, n.º 3 e 615º, n.º 1, b) do CPC e art.º 205º, n.º 1 da CRP.

            Remata pugnando pela procedência da dita excepção ou pela revogação do despacho recorrido, “declarando-se a sua nulidade por falta na falta ou insuficiência de fundamentação bastante” (sic).

            A A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar: a) nulidade da decisão; b) se o direito de regresso invocado pela A. se encontra prescrito e, neste contexto, se é aplicável às acções de regresso o alongamento do prazo previsto no art.º 498º, n.º 3 do Código Civil.


*

            II. 1. Para a decisão do recurso relevam a factualidade e a tramitação aludidas no antecedente “relatório”, e ainda o seguinte:[2]

            a) No exercício da sua actividade, a A. celebrou com a Ré um contrato de seguro do Ramo Acidentes de Trabalho, titulado pela apólice n.º 6658815, na modalidade de prémio variável, de acordo com as folhas de férias, conforme consta das Condições Particulares e Gerais reproduzidas a fls. 7 verso e seguintes.

            b) A A. recebeu uma participação de sinistro da sua segurada, datada de 21.6.2010, nos termos da qual a Ré comunicava a ocorrência de um acidente de trabalho, no dia 18.6.2010, com o trabalhador e sinistrado J (...), em Taveiro, Coimbra.

            c) A viúva do sinistrado reclamou, enquanto lesada, ao abrigo da apólice de seguro dita em II. 1. a), a reparação dos danos sofridos.

            d) Na tentativa de conciliação no Tribunal do Trabalho de Leiria, em 27.4.2011, com a presença da sociedade Ré, a A. e a viúva chegaram a acordo quanto à pensão anual e vitalícia a pagar, despesas de funeral, subsídio de morte e despesas com transportes a Tribunal.

            e) Mencionou-se no mesmo auto que a A. e a Ré não se conciliaram quanto à factualidade que deu causa ao evento dos autos, referindo a Seguradora que “não aceita (…) a responsabilidade pela reparação do sinistro, uma vez que o mesmo ficou a dever-se a falta de observação das regras de segurança por parte da Entidade Patronal”, e que “aceita, porém, nos termos do disposto no artigo 79º, n.º 3 da Lei n.º 98/2009 de 04 de Setembro [que estabelece o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais][3] satisfazer o pagamento das prestações requeridas pela (…) beneficiária legal, conciliando-se com a mesma nos termos que reclamou, sem prejuízo do exercício do direito de regresso em relação à Entidade Patronal”, enquanto a Entidade Patronal disse que “Não aceita conciliar-se porque entende que os motivos invocados pela seguradora não se verificam, considerando que não houve violação das regras de segurança (…)”.

            f) Esta conciliação parcial foi julgada válida por decisão do Tribunal do Trabalho de Leiria de 02.5.2011.

            g) Em consequência do evento dos autos correu seus termos, com o n.º 163/10.7GGCBR, um processo-crime em que foram arguidos a sociedade M (…), Lda., e outros.

            h) A final, foi proferido acórdão, a 16.5.2014, que condenou aquela sociedade como autora de um crime de violação de regras de segurança, p. p. pelo art.º 152º-B, n.ºs 1 e 4, alínea a) e o art.º 11, n.º 2, alínea a), do Código Penal, conjugado com os art.ºs 3º, 4º e 10º do DL n.º 324/95, de 29.11 e 3º, 8º, 24º e 32º da Portaria n.º 198/96, de 04.6, decisão confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado em 21.9.2015.

            i) Nesse acórdão ficou provado que a morte do sinistrado se deveu à violação das regras de segurança pela Ré – que deu início e mandou executar os trabalhos em causa, sendo que não tinha serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho organizados, não tinha procedido à avaliação dos riscos, nem elaborado as fichas de procedimento de segurança para a execução dos trabalhos que decorriam, os quais envolviam riscos elevados de derrocada, não tendo nunca dado formação no âmbito da segurança, higiene e saúde no trabalho à vítima.

            j) Foi efectuada a notificação judicial avulsa da Ré, reproduzida a fls. 53 e seguintes, requerida pela A. a 31.01.2015.

            k) A A. pagou, no âmbito das suas obrigações contratuais, os montantes cuja prescrição a Ré invoca na sua contestação.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Relativamente à pretensa nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, atento o preceituado nos art.ºs 613º, n.º 3 e 615º, n.º 1, alínea b) do CPC, dir-se-á, em primeiro lugar, que a Ré/recorrente não deixa de afirmar, por um lado, que o Tribunal a quo considerou, sumariamente, os elementos juntos aos autos e as posições das partes (quanto ao prazo de prescrição) e, por outro lado, que “é permitido concluir que o Tribunal recorrido quando articula o preceituado no art.º 498 n.ºs 1, 2 e 3 do CC com o disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 118º e 152º-B, n.º 4, alínea a), ambos do Código Penal, entende ser de aplicar o prazo, prescricional alargado, do n.º 3 do art.º 498º do CC ao seu n.º 2”, perspectiva de que aquela discorda e que terá justificado o presente recurso.

            Sufragando o entendimento de que “a possibilidade de proferir uma decisão de mérito nessa fase [em sede de despacho saneador] baseia-se na circunstância da matéria de facto relevante para a decisão da causa já se encontrar definida ao findar a fase de apresentação de articulados, pelo que, nesses casos, para que a fundamentação de facto esteja completa, é suficiente indicar-se os factos que integram essa matéria[4], e bem assim que “o dever de fundamentar as decisões (…) pelo que respeita ao direito, não implica que o julgador aprecie todas as razões invocadas pelas partes, todos os seus fundamentos, mas apenas que indique a razão jurídica que serve de fundamento à decisão, podendo esta indicação ser feita de forma sucinta[5], afigura-se, pois, que a decisão sob censura não padece do invocado vício.

            Não tendo esta Relação que se substituir à 1ª instância para proceder à fundamentação de facto e de direito da decisão impugnada (art.º 665º do CPC), resta-lhe, assim, a reapreciação do decidido e que se antolha suficientemente fundamentado. 

            3. O sinistro dos autos ocorreu a 18.6.2010, pelo que importa considerar os normativos então vigentes em matéria laboral e as demais normas que regulavam a relação contratual das partes.

            Assim, além da Lei n.º 98/2009, de 04.9 (que no seu art.º 81º remete para a “Apólice Uniforme”), referida supra, releva também a Apólice Uniforme para trabalhadores por conta de outrem, aprovada pelo REGUL/ISP 27/99 (Norma 12/99-R), de 30.11, ao prever que após a ocorrência de um acidente de trabalho, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o tomador do seguro pelo valor das indemnizações ou pensões legais e dos demais encargos, quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observância das regras sobre a higiene, segurança e saúde no trabalho [art.º 21º, n.º 1, alínea b), sob a epígrafe “direito de regresso”]. Nesses casos, a seguradora responde subsidiariamente, depois de executados os bens do tomador de seguro, apenas pelas prestações a que haveria lugar sem os agravamentos legalmente estipulados para essas situações, e sempre tomando por base a retribuição declarada (n.º 2).[6]

            E nos termos da cláusula 27ª (sob a epígrafe “direito de regresso do Segurador”) das “Condições Gerais” do contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho celebrado entre as partes (que abrangia a vítima), “Após a ocorrência de um acidente de trabalho, o segurador tem direito de regresso contra o tomador do seguro, relativamente à quantia despendida: a) Quando o acidente tiver sido provocado pelo tomador do seguro ou seu representante, ou resultar de falta de observância das regras sobre a higiene, segurança e saúde nos locais de trabalho (…)” (n.º 1).

            Por último, preceitua o art.º 498º do CC (normativo que encerra a subsecção da “responsabilidade (civil) por actos ilícitos”): O direito à indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso (n.º 1). Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis (n.º 2). Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável (n.º 3).

            4. A nossa lei prevê a regra de que todos os direitos estão sujeitos a prescrição e admite a distinção entre prescrição e caducidade, ao dispor, designadamente, que estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição (art.º 298º, n.º 1 do CC).

            Não importando aqui considerar as diferenças de regime entre os referidos institutos, dir-se-á ainda que a prescrição extintiva dirige-se fundamentalmente à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade e, diversamente da caducidade, parte, também, da ponderação de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo e que se conjuga com o interesse objectivo numa adaptação da situação de direito à situação de facto, ao passo que, na caducidade, só o aspecto objectivo da certeza e segurança é tomado em conta.[7]

            5. No caso em análise, importa saber qual o prazo prescricional a que estão sujeitos os créditos que as seguradoras hajam pago por força da sua responsabilidade no âmbito dos acidentes laborais.

            A recorrente considera que o prazo mais longo a que alude o n.º 3 do art.º 498º do CC, apenas e só se aplica em sede de indemnização aos lesados, às vítimas do dano e não ao direito de regresso.

            Sabendo-se que a questão não é isenta de dificuldades e que a jurisprudência há muito se mostra dividida, também aqui importa ter em atenção o ensinamento de que “Nenhum direito (…) admite uma paralisação no tempo: mesmo que as normas não mudem, muda o entendimento das normas, mudam os conflitos de interesses que se têm de resolver, mudam as soluções de direito, que são o direito em acção[8]; “toda a interpretação jurisdicional de uma lei implica uma correcção ou um aperfeiçoamento do direito[9]; “o objecto problemático da interpretação jurídica não é a norma como objectivação cultural (…), mas o caso decidendo, o concreto problema prático que convoca normativo-interpretativamente a norma com seu critério judicativo (…), o que significa, evidentemente, que é o caso e não a norma o ´prius` problemático-intencional e metódico[10]; o intérprete deverá “adaptar a norma jurídica ao ambiente social, económico e jurídico do tempo presente, no respeito pela sua ´ratio` e pela unidade do direito[11].

            Assim se prosseguirá e materializará a pretensão de realizar uma concreta justiça material, cientes de que “verdadeira justiça só será a que se recusa a cobrir com o equilíbrio aparente das justificações formais, as manifestas injustiças dos desequilíbrios reais”.[12]

            6. Na busca de uma solução com adequado enquadramento jurídico e que dê uma resposta razoável e materialmente justa aos interesses em presença, afigura-se que se deverá acolher perspectiva diversa da sufragada pela Ré.

            7. Na verdade, estamos com a perspectiva que, partindo do elemento sistemático da interpretação, defende que a norma do n.º 3 do art.º 498º do CC, não distingue se tem aplicação apenas à hipótese prevista no n.º 1 do mesmo artigo ou se se aplica às situações dos n.ºs 1 e 2, sendo certo que, nada sendo dito, e encontrando-se este n.º 3 na parte final da norma, tem que se considerar que se aplica aos dois números anteriores, não existindo qualquer razão para se considerar que apenas se aplica ao n.º 1 - a inserção da disposição do n.º 3 depois do estabelecimento do prazo prescricional de três anos para o exercício do direito de regresso só pode significar que o alongamento do prazo vale, tanto para o lesado, como para quem se apresente a exercer o direito de regresso; de contrário, isto é, se o legislador pretendesse aplicar a disposição do n.º 3 apenas à hipótese do n.º 1, então tê-la-ia incluído logo a seguir a este número e deixaria a do actual n.º 2 para último lugar.

            Tratando-se de um caso de mera política legislativa [o legislador é que sabe qual o prazo dentro do qual entende que, não exercido um direito, considera de presumir tal falta de diligência, sancionável com a prescrição], nenhum motivo existe para se dizer que se quis diferenciar as situações dos n.ºs 1 e 2 do art.º 498º do CC, quando o estabelecimento do prazo mais longo vem depois delas e não entre elas.

            Por conseguinte, e tendo por outro lado em conta que o legislador há-de ter sabido exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9º, n.º 3, do CC), não podia o mesmo ignorar que a interpretação segundo a qual o prazo de prescrição mais longo se aplicava, também, ao direito de regresso, era a que imediatamente ressaltava da inserção sistemática dos diversos n.ºs do artigo 498º; se tivesse sido outro o seu intuito (maxime, se quisesse que o exercício do direito de regresso estivesse sempre sujeito a um prazo de prescrição de apenas três anos), certamente que teria o cuidado de o esclarecer, seja através da colocação do actual n.º 3 depois do n.º 1 e da colocação do actual n.º 2 em último lugar, seja mediante uma qualquer outra fórmula que não deixasse dúvidas acerca da vontade de destrinçar uma situação da outra.

            8. Não se trata aqui de uma argumentação puramente formal ou com recurso a elementos puramente literais, mas da busca do sentido que o legislador quis logicamente transmitir e consagrar mediante a utilização de determinada fórmula por que conscientemente optou, procurando-se assim encontrar na fórmula e sistematização por ele utilizada a própria essência desse pensamento, tanto mais que nada obsta a que, mesmo considerando a natureza do direito de regresso, resultante de forma directa da celebração de um contrato de seguro e só indirectamente do facto ilícito porventura determinante do sinistro, tenha pretendido garantir de forma mais eficaz a aplicação de uma sanção de carácter civil na hipótese de o causador do sinistro que acabaria por indirectamente gerar o direito de regresso ter praticado um ilícito criminal.

            9. Assim, o único requisito para aplicação desse n.º 3 é o que decorre do facto ilícito constituir crime, sujeito a prazo de prescrição mais longo do que o dos n.ºs 1 e 2 da mesma disposição, sendo irrelevante a circunstância de ter havido ou não procedimento criminal contra o causador do acidente.[13]

            10. Como se referiu, a razão de ser da prescrição prende-se com a ideia da inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo; serão, pois, a inércia e a negligência que lhe anda associada a determinar e a justificar as consequências que a lei prevê.

            O instituto jurídico da prescrição tem como fundamento a reacção da lei contra a inércia ou o desinteresse do titular do direito, que o torna não merecedor de protecção jurídica, visando assim sancionar o credor pouco diligente, no interesse da clarificação, estabilização e segurança das relações jurídicas, quando não exerça o seu direito dentro de determinado prazo fixado por lei.[14]

            11. In casu, relevando a presunção estabelecida no art.º 623º do CPC, só a partir de 16.5.2014 viu a A. “reforçada” a posição manifestada na audiência conciliatória laboral, concretizando, depois, a intenção de exercer o direito, sendo certo que, no foro laboral, nada se efectivara no sentido de um cabal apuramento da responsabilidade pela produção do sinistro [cf. II. 1. alíneas d) a f), h) e j), supra].[15]

            Inexiste, assim, na situação dos autos - e independentemente da referida opção do legislador [cf. II. 7., supra] -, fundamento bastante para afirmar ou fazer prevalecer um qualquer “interesse da lei na rápida definição da situação e na consequente punição da inércia da seguradora num lapso de tempo mais curto” (o do n.º 2 do art.º 498º do CC).[16]

            12. Ficou provado que o sinistrado faleceu em consequência do acidente, ocorrido em 18.6.2010, por culpa da sua entidade patronal/Ré, que havia transferido a responsabilidade para a A./seguradora.

            E a Ré já foi condenada como autora de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelo art.º 152º-B, n.ºs 1 e 4, alínea a), do Código Penal, cujo procedimento criminal prescreve no prazo de dez anos, nos termos do art.º 118, n.º 1, alínea b) do mesmo Código.

            O prazo de prescrição do direito de regresso é de dez anos, a contar do pagamento efectuado pela A. - art.º 498º, n.º 3, do CC.

            Como a acção foi proposta em Nov./2015 é manifesto que o direito da A. não prescreveu.[17]

            13. Improcedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Ré/apelante.


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09.01.2017


           

Fonte Ramos ( Relator ) ( com a declaração de que revi a posição assumida como ajunto na apelação nº 100/12.4TBTMR.C1 )
Maria João Areias
Vítor Amaral


[1] Rectifica-se lapso manifesto.
[2] Atendendo, sobretudo, aos documentos de fls. 7 verso, 8, 14 verso, 15, 18 verso, 19, 34 e seguintes, 39 verso e seguintes e 100.
[3] Normativo que estabelece o seguinte: Verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18º, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso.
   E segundo o art.º 18º da mesma Lei (com a epígrafe “actuação culposa do empregador”), “quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais (n.º 1); o disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade criminal em que os responsáveis aí previstos tenham incorrido (n.º 2); se, nas condições previstas neste artigo, o acidente tiver sido provocado pelo representante do empregador, este terá direito de regresso contra aquele (n.º 3); no caso previsto no presente artigo, e sem prejuízo do ressarcimento dos prejuízos patrimoniais e dos prejuízos não patrimoniais, bem como das demais prestações devidas por actuação não culposa, é devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, fixada segundo as regras seguintes: a) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, ou incapacidade temporária absoluta, e de morte, igual à retribuição; (…) (n.º 4); (…)”.

[4] Cf. o acórdão da RC de 16.9.2014-processo n.º 1655/10.3TBVNO.C1, publicado no “site” da dgsi.

[5] Cf. o acórdão do STJ de 28.10.1999, in CJ-STJ, VII, 3, 66, publicado no “site” da dgsi.

[6] Idêntico ao regime actual, previsto na Cláusula 28ª (sob a epígrafe “Direito de regresso do segurador”) da «Apólice de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem/Condições gerais», aprovada pela Portaria n.º 256/2011, de 05.7.
[7] Vide C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3ª edição, 1985, páginas 373 e seguintes e Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Almedina, 1974, páginas 445 e seguintes.
    Cf. ainda, de entre vários, o acórdão do STJ de 09.7.1998, in BMJ, 479º, 572.
[8] Vide Orlando de Carvalho, “para uma teoria da relação jurídica civil – I – a teoria geral da relação jurídica - «seu sentido e limites»”, 2ª edição, Centelha, 1981, pág. 50.
[9] Becker, apud António Pinto Monteiro, Interpretação e o protagonismo da doutrina, RLJ, 145º, 67.

[10] Vide A. Castanheira Neves, O Actual Problema da Interpretação Jurídica, in RLJ, 118º, págs. 257 e seguinte.
[11] Vide António Pinto Monteiro, estudo cit., RLJ, 145º, 67.
[12] Vide A. Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, ed. policopiada, Coimbra, 1968-69, pág. 79.
[13] Cf., neste sentido e sobre este ponto e os anteriores, entre outros, os acórdãos do STJ de 01.6.1999-processo 99A305, 03.11.2009-processo 2665/07.3TBPRD.S1, 09.3.2010-processo 2270/04.6TBVNG.P1.S1 e 07.7.2010-processo 142/08.4TBANS-A.C1.S1, da RC de 31.10.2006-processo 1208/05.8TBTMR.C1, 16.12.2009-processo 4811/07.8TBAVR.C1 e 12.7.2011-processo 444/07.7TBFVN.C1 e da RL de 25.10.2012-processo 10237/11.1T2SNT.L1-2, publicados no “site” da dgsi [o terceiro e o penúltimo, também publicados na CJ-STJ, XVIII, 1, 106 e CJ, XXXVI, 3, 59].

   Noutro sentido, apesar de reconhecer a admissibilidade da interpretação contrária, em face da redacção da lei, mas apelando ao princípio da adesão da dedução da indemnização civil no processo criminal, do qual decorreria a incompreensibilidade de o direito à indemnização civil se extinguir enquanto não decorresse o prazo de prescrição criminal, e, bem assim, à autonomia do direito de regresso em relação ao direito do lesado, cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 04.11.2010-processo 2564/08.1TBCB.A.C1.S1 [situação de direito de regresso baseado na alínea c) do art.º 19º do DL n.º 522/85, de 31.12], 29.11.2011-processo 1507/10.7TBPNF.P1.S1 [idem] e 22.9.2015-processo 255/14.3T8SCR.L1.S1 e da RC de 26.4.2016-processo 25/15.1T8FIG.C1 [num caso em que a responsabilidade pela produção do evento ficou definida em sede laboral, cerca de 4 anos e meio após o acidente de trabalho], publicados no “site” da dgsi.
[14] Cf., entre outros, o cit. acórdão do STJ de 07.7.2010-processo 142/08.4TBANS-A.C1.S1.

[15] E, veja-se, a jurisprudência que afasta o alargamento do prazo prescricional do n.º 2 do art.º 498º do CC, dá especial relevância à circunstância de na hipótese de exercício do direito de regresso só estar em aberto o direito da seguradora ao reembolso do que pagou ao lesado e não a determinação da responsabilidade extracontratual do lesante, ponto já assente e indiscutido nesse momento/está suposto no surgimento do direito de regresso que a discussão e o apuramento da medida da responsabilidade civil estão feitos” - cf., por ex.º, os acórdãos do STJ de 27.10.2009-processo 844/07.2TBOER.L1, 29.11.2011-processo 1507/10.7TBPNF.P1.S1, 07.5.2014-processo 8304/11.0T2SNT-AL1.S1 e 19.5.2016-processo 645/12.6TVLSB.L1.S1 e da RC de 12.4.2011-processo 1372/10.4T2AVR.C1, publicados no “site” da dgsi.
[16] Não havendo assim lugar para actuar a perspectiva exposta, v. g., no cit. acórdão do STJ de 29.11.2011-processo 1507/10.7TBPNF.P1.S1.
[17] Existiu ainda o acto interruptivo dito em II. 1. j), supra – cf. os art.º 323º e 326º do CC.