Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
123/13.6TBGRD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: RECURSO
ADMISSIBILIDADE
INVENTÁRIO
INCIDENTE
RECLAMAÇÃO
RELAÇÃO DE BENS
Data do Acordão: 12/10/2013
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 644º, Nº 3, DO NCPC; 1348º E 1349º DO CPC.
Sumário: Considerando o actual regime de recursos, as decisões tomadas no interior do incidente de reclamação contra a relação de bens em processo especial de inventário (previsto nos artigos 1348º e 1349º do Código de Processo Civil), só podem ser impugnadas nos termos do n.º 3 do art.º 644.º do NCPC, isto é com o recurso que venha a ser interposto da decisão final do incidente, ficando acautelado ao reclamante, o direito de ver definido por outra instância judicial, todas as questões levantadas – recorríveis – durante a instância incidental.
Decisão Texto Integral: (Reclamação do artigo 643.º do Código do Processo Civil).

I – Relatório
J… reclama para este Tribunal do despacho proferido pelo Sr. Juiz do 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, proferido nos autos, em 28.10.2013, com a referência n.º …, por não lhe ter admitido o recurso interposto de tal decisão.
Para nos convencer da bondade da sua razão, conclui assim:
...
O Sr. Juiz da Guarda proferiu a seguinte decisão:
“Vistos os requerimentos trazidos aos autos pelo reclamante J… e pela cabeça-de-casal, G…, respectivamente com as referências n.º … e n.º …, entendemos que assiste plena razão à cabeça-de-casal.
Com efeito, na tramitação do incidente de reclamação contra a relação de bens em processo especial de inventário prevista nos artigos 1348º e 1349º do Código de Processo Civil vigente à data de entrada dos presentes autos em juízo (e ainda aqui aplicável, embora estranhamente, por via do estabelecido no artigo 29º da Portaria n.º 278/2013, de 26 de Agosto), não se encontra prevista a possibilidade de o reclamante responder à resposta trazida pelo cabeça-de-casal.
Com efeito, notificado da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, qualquer outro interessado dela pode reclamar.
Em seguida, o cabeça-de-casal responderá à reclamação.
Efectuada esta resposta, não pode o reclamante vir ainda responder à resposta do cabeça-de-casal, o que aliás bem se compreende, sob pena de o processado se poder tornar num emaranhado tortuoso e potencialmente interminável de requerimentos contra requerimentos, argumentos e contra-argumentos, que o Tribunal não pode nem deve estar sujeito a ter de dilucidar e deslindar.
O objecto do presente incidente é balizado pela relação de bens, pela reclamação e pela resposta do cabeça-de-casal, e nada mais.
Assim, pelo que se acaba de dizer, por inadmissibilidade legal, determina-se o desentranhamento dos autos e a total desconsideração do requerimento trazido pelo reclamante J… com a referência n.º ...
Como bem sabe o reclamante, a questão que importa sindicar, nesta reclamação, é tão só a de saber se o despacho de não aceitação de subida imediata do recurso deve ou não ser mantido, não estando em causa a apreciação do mérito da decisão recorrida.
Ora, a 1.ª instância, para não lhe aceitar o recurso, escreve assim:
“Visto o requerimento de interposição de recurso interposto no presente apenso (em separado) por parte do interessado J…, coloca-se questão relativa à sua admissibilidade.
Com efeito, os momentos em que se pode recorrer (ou apelar) autonomamente de cada decisão são os previstos no artigo 644º do actual Código de Processo Civil.
Os respectivos n.os 1 e 2 desta norma indicam as decisões de que se pode apelar de imediato, e os n.os 3 e 4 estabelecem as regras aplicáveis para os casos em que não se pode apelar de imediato, sendo o recurso forçosamente remetido para o momento em que se recorra de decisão que (essa sim) seja imediatamente recorrível ou para momento posterior à decisão final.
Visto o nosso caso concreto, verifica-se que o despacho recorrido claramente não se enquadra no n.º 1 do aludido artigo 644º do Código de Processo Civil, nem o recorrente o invoca.
Na verdade, o recorrente invoca o n.º 2, al. h), do preceito, o qual estabelece que cabe recurso imediato “das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil”.
Trata-se aqui, em tese, de casos em que o despacho de que se pretende recorrer produza um resultado irrevogável e irreversível na ordem jurídica, assim se justificando que dele se recorra de imediato, a fim de se evitar a hipótese de o recurso mais tarde vir a ser procedente, mas inútil (nomeadamente para o recorrente), por esse resultado entretanto já se haver produzido e já não ser de todo possível revertê-lo.
Não se pretende aqui tutelar ou prevenir casos em que a procedência do recurso possa obrigar à anulação de actos processuais entretanto já praticados.
Ora, no nosso caso concreto, e salvo o devido respeito por opinião diversa, não vemos que o despacho aqui pretensamente recorrido produza efeitos tais que exijam um recurso imediato sob pena de tal recurso se poder tornar absolutamente inútil, pelo que não vemos que tenha aqui aplicação o estabelecido no artigo 644º, n.º 2, al. h), do Código de Processo Civil, que vem invocado pelo recorrente.
Da mesma forma, não vemos que colha cabimento qualquer dos restantes casos previstos em qualquer das restantes alíneas do mesmo preceito legal, assim como já vimos que o caso não cabe de todo no n.º 1 do mesmo artigo 644º.
Assim, em face de tudo quanto se acaba de dizer, tem de se concluir no sentido de que o recurso aqui interposto pelo recorrente J… não é processualmente admissível neste momento processual, apenas o sendo nos termos previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 644º do Código de Processo Civil, e que neste momento não se verificam.
Assim, pelo exposto, decide-se não admitir o recurso interposto nos presentes autos pelo recorrente J...”.
Com todo o respeito, pelo ilustre advogado do reclamante, entendemos que a “razão” está do lado do Sr. Juiz da Guarda.
De facto, o regime processual de recursos é o resultante das profundas alterações introduzidas no Código do Processo Civil pelo Dec. Lei nº 303/2007, de 24/08 - mantida no essencial nas normas da Lei n.º 41/2013, aqui aplicável -, com vista à sua simplificação, celeridade processual e racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
Mais, enquanto na sua redacção anterior à reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, o art.º 688º, n.º 2, 2ª parte, do Código de Processo Civil, impunha ao reclamante o ónus de expor “…as razões que justificam a admissão (…) do recurso”, nada se refere a propósito na redacção do mesmo art.º 688º, após tal alteração – filosofia esta mantida pelo actual artigo 643.º -, pelo que, o Tribunal deverá conhecer, na sua plenitude, das razões da reclamação, pois só assim se concebe a alteração de redacção que o legislador introduziu no nº 2 do art.º 688.º através do Decreto-Lei nº 303/2007 de 24.08.
Com tal regime foi adoptado um regime dito monista de recursos cíveis, com eliminação da distinção entre recurso de apelação e recurso de agravo e com a introdução da regra geral de impugnação de decisões interlocutórias apenas com o recurso que vier a ser interposto da decisão que põe termo ao processo, além da concentração em momentos processuais únicos dos actos processuais de interposição de recurso e apresentação de alegações e dos despachos de admissão e expedição do recurso.
Como ressalta do regime legal, a ideia fundamental é a de restringir a recorribilidade às decisões que ponham termo aos procedimentos em causa, possibilitando a impugnação das decisões interlocutórias apenas no recurso que vier a ser interposto da decisão final, ou em recurso autónomo após essa decisão.
Donde resulta que, nos termos dos actuais artºs 644º a 651.º, apenas são recursos ordinários os recursos de apelação e de revista, e o primeiro cabe, em princípio, da decisão do tribunal de 1ª instância que ponha termo ao processo.
Porém, é também admissível recurso de apelação de outras decisões do tribunal de 1ª instância, conforme nº 2 do citado art.º 644º.
Este n.º 2 elenca um certo número de despachos que são impugnáveis por apelação autónoma, ao contrário do que acontece nos casos residuais abrangidos pelo n.º 3.
Fora destes, todas as decisões intercalares que, reunindo os pressupostos gerais de recorribilidade, não admitam recurso imediato terão que ser impugnadas no âmbito do recurso que venha a ser interposto da decisão final, se mantiverem interesse para a parte.
Assim se compreende o regime legal vigente, que prefere aguardar pela decisão que seja final para então, se for caso disso, conhecer das diversas questões conhecidas no processo e que poderiam conduzir a solução diferente da alcançada.
Ora, como refere a 1.ª instância, “…visto o nosso caso concreto, verifica-se que o despacho recorrido claramente não se enquadra no n.º 1 do aludido artigo 644º do Código de Processo Civil, nem o recorrente o invoca.
Na verdade, o recorrente invoca o n.º 2, al. h), do preceito, o qual estabelece que cabe recurso imediato “das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil”.
Mas, quanto a estas, podemos considerar pacífico que o uso do advérbio “absolutamente”, marca bem o nível de exigência imposto pelo legislador, em termos idênticos ao que anteriormente se previa no art.º 734º, nº 1, alínea c), para efeitos de determinar ou não a subida imediata do agravo.
Deste modo, não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final.
Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso não passará de uma “vitória de Pirro”- como todos sabemos, vitória pírrica ou vitória de Pirro é uma expressão utilizada para expressar uma vitória obtida a alto preço, potencialmente acarretadora de prejuízos irreparáveis -, sem qualquer reflexo no resultado da acção ou na esfera jurídica do interessado.
De facto, a inutilidade tem de produzir um resultado irreversível quanto ao recurso, retirando-lhe toda a eficácia dentro do processo, não bastando, por isso, uma inutilização de actos processuais para justificar a subida imediata do recurso, que, tal como concluiu a 1.ª instância, não é o caso destes autos.
Resta-nos a alínea d).
Aí, mandou escrever o legislador, que cabe ainda recurso de apelação, do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado - esta hipótese é nova em relação ao anterior regime de recursos - ou meio de prova.
A definição de articulado está no artigo 147º – que corresponde parcialmente ao anterior 151º -, sendo “…peças em que as partes expõem os fundamentos da acção e da defesa e formulam os pedidos correspondentes…”.
Nos autos, está em causa o incidente de reclamação à relação de bens, que configura um incidente, a processar nos próprios autos.
O artigo 1334º manda aplicar à tramitação dos incidentes de inventário, o disposto nos artigos 302º a 304º (agora 292º a 295º), que falam de “requerimento” em que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida.
Atrevemo-nos a dizer que, atenta a ideia fundamental de restringir a recorribilidade às decisões que ponham termo aos procedimentos em causa - possibilitando a impugnação das decisões interlocutórias apenas no recurso que vier a ser interposto da decisão final, ou em recurso autónomo após essa decisão -, a expressão “articulados”, só poderá ter a ver com o requerimento inicial (exposição dos fundamentos da acção) e com a oposição (fundamentos da oposição).
Todo o mais será apreciado noutro momento processual.
Também o Professor Alberto dos Reis, no seu Comentário ao Código do Processo Civil, vol. 2, pág. 99, continua a ensinar que “…a definição actual (de articulado) dá à palavra um sentido mais restrito. Articulados são as peças em que se expõem os fundamentos da acção e da defesa e se formulam os pedidos correspondentes. Tem-se em vista, pois, a acção propriamente dita: os incidentes estão excluídos…”.
Por outro lado, no n.º 1 do artigo 644º o legislador “apenas” permite recurso de apelação da decisão proferida em 1.ª instância que ponha termo a incidente processado autonomamente, que não é o caso dos autos.
Todavia, no caso presente não estamos perante despacho que ponha termo a incidente processual.
Estamos portanto face a uma decisão intercalar, ordenatória, inserida na marcha do incidente, e que de modo algum lhe deu fim.
Entendemos por isso que, considerando o actual regime de recursos, as decisões tomadas no interior deste incidente, só podem ser impugnadas nos termos do n.º 3 do art.º 644º do CPC, isto é com o recurso que venha a ser interposto da decisão final do incidente, ficando acautelado ao reclamante, o direito de ver definido por outra instância judicial, todas as questões levantadas – recorríveis – durante a instância incidental.
Não se admite, por isso, a reclamação apresentada pelo interessado J…, mantendo-se o despacho reclamado.
Custas devidas pelo reclamante.

Coimbra, 10 de Dezembro de 2013

(José Avelino Gonçalves - Relator -)