Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
174/08.2TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: DIVÓRCIO
DEVER DE RESPEITO
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1672, 1777, 1781, 1782 DO CC
Sumário: Tendo-se provado que o autor e a ré passaram a viver separados no ano de 2005 e que em 2007 a ré fez publicar num jornal a declaração: «Eu (….), portadora do Bilhete de Identidade n.º (….) arquivo de Santarém 23/01/2001, declaro que não me responsabilizo por alguma e qualquer dívidas contraídas ou a contrair pelo meu marido (…), por motivo do divórcio em curso», tal declaração não constitui, por si só, uma violação do dever de respeito susceptível de, pela sua gravidade ou ofensa, comprometer a possibilidade da vida conjugal, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 1777.º do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
F (…), residente (…), Tomar, intentou contra, M (…) residente em (…) EUA, acção especial de divórcio litigioso, pedindo a dissolução do seu casamento, com fundamento na violação por parte da ré, dos deveres de respeito e de fidelidade.
Alega para tanto e em síntese: que casaram um com o outro em 12 de Julho de 1980 no Convento de Cristo em Tomar; que do casamento nasceram dois filhos S (…), nascida a 21 de Fevereiro de 1985 e M (…), nascido a 14 de Março de 1991; a ré tinha um carácter conflituoso e o autor sempre actuou de modo a manter o equilíbrio conjugal; os cônjuges tiveram residência nos EUA e em 2005 o autor regressou a Portugal; o autor vai anualmente visitar os filhos aos EUA. Desde que o autor veio para Portugal a ré deixou de cooperar no sustento dos encargos de habitação, alimentação, vestuário, educação e lazer; sempre que se dirigia ao marido era em tom de ameaças ou ofensas verbais ou físicas; estas deram lugar à instauração de um processo crime que correu termos pelo Tribunal de Tomar com o n.° 449/07.8PBTMR; a ré fez publicar num jornal local a declaração que consta de fls. 11; a ré mantém “indiscretas relações extraconjugais”.
Foi designado dia para a tentativa de conciliação, tendo sido a ré citada para comparecer (fls. 118 e 19).
Na sequência da referida citação, a ré deduziu a excepção dilatória de incompetência material do tribunal, através do articulado junto aos autos a fls. 21, não comparecendo na tentativa de conciliação.
Notificada para contestar, a ré veio apresentar o articulado de fls. 50, no qual reitera a invocação da excepção de incompetência do tribunal, impugna os factos e deduz reconvenção.
Foi proferido despacho saneador no qual se julgou improcedente a excepção dilatória deduzida, tendo sido determinado o desentranhamento da contestação e reconvenção, por extemporaneidade.
A ré interpôs recurso do despacho saneador, admitido por despacho de fls. 182.
O autor requereu o depoimento de parte da ré, o que foi admitido por despacho do M.º Juiz do tribunal a quo, tendo a ré interposto recurso do referido despacho, através do requerimento de fls. 191.
No despacho de fls. 203, ao abrigo do disposto nos artigos 666.º e 667.º do CPC, com fundamento em manifesto lapso do despacho anterior, indeferido o recurso do despacho saneador interposto pela ré, face à não apresentação da respectiva motivação.
No mesmo despacho e com os mesmos fundamentos, foi indeferido o recurso interposto do despacho de admissão do depoimento de parte.
Designada data para a audiência de julgamento, foi a mesma adiada face à falta da mandatária da ré, e à justificação apresentada.
Designada nova data, realizou-se a audiência de julgamento, apesar da ausência da ré e da sua mandatária.
Na sequência da realização do julgamento, o tribunal decidiu a matéria de facto, nos termos que constam da respectiva acta, a fls. 341, sem reclamações.
Foi proferida sentença na qual se julgou improcedente o pedido formulado pelo autor.
Não se conformando, o autor interpôs recurso de apelação, deduzindo alegações que culminam com as seguintes conclusões:

1.ª Tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto em discussão, que aqui vai para os devidos efeitos impugnada.

2.ª Da conjugação de todos os depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, jamais poderia ter sido dada como não provada, a violação do dever de respeito, pelos factos constantes da petição inicial.

(…)

21. Em suma, a decisão recorrida, ao decidir como decidiu, violou por erro de interpretação e/ou aplicação, entre outros cujo douto suprimento desde já se requer, os preceitos legais contidos nos artigos 3.ºA, 655º nº 1 e 668 nº 1 al. c) e d) do Código de Processo Civil e artigos 1672º, 1779º, 1781º (com a redacção da Lei 47/98 de 10 de Agosto), 1782º e 1787º do Código Civil com a redacção dada pelo DL 496/77 de 25 de Novembro.
A ré contra-alegou, preconizando a manutenção do julgado, tendo apresentado recurso subordinado.
O recurso apresentado pela ré não foi admitido, com os fundamentos que constam do despacho de fls. 449, tendo-se a ré conformado com o referido despacho.
Resta assim para apreciação, apenas o recurso interposto pelo autor.

II. Do mérito do recurso

1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões. i) apreciação do recurso da matéria de facto; ii) saber se, face à factualidade provada, o tribunal deveria ter decretado o divórcio com culpa da ré; saber se o tribunal deveria ter decretado o divórcio com fundamento na separação de facto.

2. Recurso da matéria de facto

(….)

3. Fundamentos de facto
É a seguinte a factualidade provada nos autos:
3.1. Autor e ré casaram no dia 12 de Julho de 1980 no Convento de Cristo em Tomar.
3.2. Deste casamento nasceram dois filhos: S (…) nascido a 21 de Fevereiro de 1985 e M (…) nascido a 14 de Março de 1991.
3.3. Pouco tempo após o casamento os cônjuges fixaram residência nos Estados Unidos.
3.4. Em 2005 o autor deixou os Estados Unidos e fixou-se em Portugal, em Santa Marta, concelho de Tomar.
3.5. Há cerca de 20 anos, em dia e mês não apurados, a ré arremessou com uma cadeira na direcção do autor daqui resultando consequências que se não apuraram.
3.6. Em 11.12.2007 o MP deduziu contra autor e ré acusação imputando à ré a prática de dois crimes: um de ofensas à integridade física simples p. p. pelo art.º 143 n.º 1 do CP e um de dano p. p. pelo art.º 212 n.º 1 do CP ambos na pessoa do autor e ao autor a prática de um crime de ofensas à integridade física simples p. p. pelo art.º 143 n.º 1 do CP na pessoa da ré.
3.7. A ré fez publicar num jornal a seguinte declaração: «Eu (….), portadora do Bilhete de Identidade n.º (…) arquivo de Santarém 23/01/2001, declaro que não me responsabilizo por alguma e qualquer dívidas contraídas ou a contrair pelo meu marido (….), por motivo do divórcio em curso».

4. Fundamentos de direito
4.1. Regime legal aplicável
Começamos por definir o regime legal aplicável in casu, face ao regime do divórcio introduzido pela Lei número 61/2008, de 31 de Outubro.
Dispõe o artigo 9.º da citada lei, que o regime por ela introduzido não se aplica aos processos pendentes em tribunal.
Ora, tendo presente que a acção deu entrada em juízo a 8 de Fevereiro de 2008, conclui-se que na resolução da questão acima definida será aplicável o regime do divórcio litigioso anteriormente em vigor.
4.2. A alegada violação do dever de respeito
O artigo 1672º, do Código Civil enuncia como deveres conjugais, os deveres de respeito, de fidelidade, de coabitação, de cooperação e de assistência.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[1], o dever de respeito que recai sobre cada um dos cônjuges perante o outro abrange, em primeiro lugar, os direitos inerentes à personalidade (quer como pessoa humana, quer como cidadão) que a comunhão conjugal não afecta, e estende-se ainda aos direitos inerentes à situação de casado, que cada um dos cônjuges adquire com a celebração do casamento. A partir do casamento, o cônjuge passa a não estar só na vida social, mas solidariamente ligado, numa parte essencial da sua personalidade, ao seu consorte, e cada um dos cônjuges, na sua vida futura, passa não só a responder pela sua honra e pelo seu bom nome, mas também pela imagem que a sua conduta projecta sobre a pessoa do outro cônjuge.
Não bastará, no entanto, uma qualquer violação dos deveres conjugais para se considerar verificada uma causa de divórcio, constituindo a violação dos deveres conjugais causa de divórcio se, pela sua gravidade ou ofensa, comprometer a possibilidade da vida conjugal, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 1777.º do Código Civil.
O comprometimento da possibilidade da vida conjugal representa assim um requisito suplementar, a aferir pelo Tribunal, ponderando, através do uso de regras de experiência e de critérios sociais, os factos provados sobre a violação do dever conjugal, os condicionalismos em que se verificou essa violação e a sua repercussão no ambiente familiar, sendo certo que apenas será de considerar comprometedora da viabilidade a conduta dos cônjuges de que resulte uma ofensa grave de qualquer dos deveres conjugais, isto é, quando o comportamento do cônjuge se mostra especialmente lesivo da convivência conjugal e a continuação da vida conjugal representa um sacrifício desrazoável para o cônjuge ofendido (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 16 de Junho de 1988, BMJ, 378, 786).
Para além do comprometimento da vida em comum, a violação do dever conjugal como causa do divórcio, terá ainda que se traduzir na prática de um facto ilícito e culposo do cônjuge infractor.
Vejamos agora se, face à factualidade provada nos autos, o tribunal poderia concluir pela violação do dever de respeito por parte da Apelada/ré, susceptível de, pela sua gravidade ou ofensa, comprometer a possibilidade da vida conjugal, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 1777.º do Código Civil.
Com relevância, provou-se apenas: que a ré fez publicar num jornal a seguinte declaração: «Eu (….), portadora do Bilhete de Identidade n.º (….) arquivo de Santarém 23/01/2001, declaro que não me responsabilizo por alguma e qualquer dívidas contraídas ou a contrair pelo meu marido (….), por motivo do divórcio em curso».
Este facto vem alegado no artigo 14.º da petição inicial, mais uma vez, sem qualquer referência à sua data, que também não consta da fotocópia da página do jornal (fls. 11)[2].
Será possível, no entanto, face ao anúncio de “convocatória” inserido no espaço adjacente à comunicação em causa, localizar a data no mês de Novembro de 2007.
Provou-se que o autor e a ré passaram a viver separados no ano de 2005 (3.4. Em 2005 o autor deixou os Estados Unidos e fixou-se em Portugal, em Santa Marta, concelho de Tomar.), o que retira relevância à declaração em causa.
Com efeito, seria inquestionavelmente mais grave tal declaração, se emitida e publicada durante o período de coabitação.
Face à factualidade provada, considerando que o autor abandonara a residência do casal, havia cerca de dois anos, não vislumbramos nesta declaração uma violação do dever de respeito susceptível de, por si só, pela sua gravidade ou ofensa, comprometer a possibilidade da vida conjugal, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 1777.º do Código Civil.
Quanto às agressões genericamente alegadas, conforme se fundamentou supra, não se provaram, não estando assim demonstrada a causa de divórcio invocada pelo Apelante nas suas alegações, pelo que improcedem também as conclusões 18.ª e 19.ª.
4.3. A invocada separação de facto como fundamento do divórcio
Alega o Apelante, na conclusão 20.ª: «Lamentavelmente, o Tribunal a quo, apesar de ter considerado provado que Autor e Ré estão separados de facto desde 2005, não tomou esse facto em consideração para efeitos de decretamento do divórcio de ambos, não obstante ter o Autor peticionado o divórcio inclusivamente com fundamento em tal separação de facto, vide artigos 09.º e 19.º da petição inicial.».
Vejamos o teor dos artigos em causa:
Artigo 9.º: «O que veio a suceder no ano de 2005 quando o Autor regressou a Portugal, a fim de construir o seu actual posto de trabalho, a residência de Santa Marta, tendo estabelecido aí a sua residência habitual, permanecendo a ré na residência comum sita nos EUA».
Artigo 19.º: «A reiteração e gravidade de comportamentos tais comprometeu irremediavelmente a vida em comum entre as partes, tanto mais que actualmente não mais vivem em comunhão de leito, mesa e habitação, dado que o Autor optou por viver definitivamente em Portugal».
Mais alegou o autor no artigo 20.º, que: «Com o seu desempenho conjugal doloso, a Ré violou grave e reiteradamente os deveres conjugais de respeito, fidelidade e lealdade, previstos nos artigos 1672.º e ss. do Código Civil.».
E conclui no artigo 22.º: «Violações que fundamentam o pedido de divórcio litigioso que deve ser decretado com culpa exclusiva da Ré»[3].
Finalmente, na formulação do pedido, refere: «… deve a presente acção merecer provimento e, em consequência, ser decretado o divórcio entre Autor e Ré, com culpa exclusiva desta…».
Nos termos do n.º 1, alínea a) do artigo 1781.º do Código Civil, na redacção conferida pela Lei 47/98, de 10/08 (regime aplicável a estes autos), é ainda fundamento do divórcio litigioso, a separação de facto por três anos consecutivos[4].
O decurso deste período é um elemento constitutivo do direito potestativo ao divórcio, constituindo uma “causa objectiva”, não fundada na culpa de qualquer dos cônjuges[5], justificada como solução aplicável a casos em que, sem culpa de nenhum dos cônjuges, ou com culpa de ambos, o casamento fracassou definitivamente[6].
 Acontece que o autor (ora Apelante) não pediu o divórcio com fundamento em causa objectiva (separação de facto), mas em causa subjectiva (violação culposa por parte da ré, dos deveres conjugais).
No sentido da inviabilidade da ampliação da causa de pedir (violação culposa de deveres conjugais), de forma a englobar a separação de facto, veja-se o acórdão desta Relação, de 20.06.2006[7]
No mesmo sentido, lapidarmente decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 22.04.1999[8]: «Não tendo a simples separação de facto sido exigida como causa de pedir do divórcio, não pode, em recurso, o interessado prevalecer-se dela».[9]
Mas acresce uma razão que sempre inviabilizaria a procedência do pedido com base na separação de facto nos termos do n.º 1, alínea a) do artigo 1781.º do Código Civil.
Exige o referido normativo como requisitos do divórcio: i) a separação de facto por três anos consecutivos; ii) a inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges, havendo da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer (definição legal de separação, nos termos do art. 1782.º).
Ora, in casu, o autor (ora Apelante), mais uma vez não alegou a data concreta (vide artigo 9.º da petição), limitando-se a referir o “ano de 2005”.
Considerando que a acção deu entrada em 8 de Fevereiro de 2008, não se encontra alegado nem provado (como incumbia ao autor, nos termos do artigo 342.º do CC), um facto essencial: a separação por três anos consecutivos (não sabemos se o autor veio para Portugal antes ou depois de 8 de Fevereiro de 2005).
Improcede, face ao exposto, a conclusão 20.º.
Conclui-se, em consequência, pela total improcedência do recurso, pelo que se deverá manter a decisão recorrida, que não merece qualquer censura.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual se nega provimento, mantendo em consequência a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
                                                         *
Carlos Querido (Relator)
Emídio Costa
Gonçalves Ferreira

[1] Código Civil Anotado, 2.ª edição, Vol. IV, pág. 256, 257.
[2] A alegação da data é essencial, face ao disposto no artigo 1786/1 do CC, já que a caducidade é apreciada oficiosamente – F. Brandão Ferreira Pinto, Causas do Divórcio, Livraria Almedina, pág. 23.
[3] Sublinhado nosso.
[4] O Código Civil prevê duas modalidades de divórcio litigioso: o divórcio-sanção, fundado numa causa subjectiva, consistindo na violação culposa dos deveres conjugais (art.º 1779), e o divórcio-remédio, fundado numa causa objectiva, independente de culpa, ruptura da vida em comum (art.º 1781).
[5] F. Brandão Ferreira Pinto, Causas do Divórcio, Livraria Almedina, pág. 111 e seguintes.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2.ª edição, Vol. IV, pág. 540.
[7] Proferido no Processo n.º 1576/06, acórdão acessível em http://www.dgsi.pt.
[8] Proferido no Processo n.º 99B259, acórdão acessível em http://www.dgsi.pt.
[9] Ainda no mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 1.02.2007, proferido no Processo n.º 10337/2006-2.