Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1593/08.0TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
PRAZO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
MORTE
INDEMNIZAÇÃO
CUMULAÇÃO
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 685º, Nº 7 DO CPC; 496º CC.
Sumário: I – Usando a recorrente do prazo alargado de 40 dias, ao abrigo do disposto no art.º 685.º n.º 7 do C. P. Civil, e resultando do conteúdo das conclusões que manifestam inequivocamente o propósito de ver reapreciada matéria de facto, o recurso é tempestivo, mesmo que o Tribunal da 2.ª instância venha a rejeitar tal impugnação.

II. A morte raramente é um acontecimento instantâneo, havendo sempre momentos que a antecedem, por mais fugazes que sejam, designadamente em eventos de cariz traumático - como o sofrido por condutor interveniente em acidente de viação -, em que a vítima sofre angústia pelo irremediável e inelutável fim que consegue antever.

III. Constitui jurisprudência firme do STJ que no regime de concorrência de responsabilidades por acidente de viação e de trabalho prevalece a responsabilidade subjectiva do terceiro sobre a responsabilidade objectiva patronal, assumindo esta última um carácter subsidiário ou residual – neste sentido, por ex., os Acórdãos do STJ de 24-01-2002, de 11-05-2011 e de 11-10-2011, ambos publicados no site www.dgsi.pt.

IV. Como as duas indemnizações não se cumulam, a questão tem de ser resolvida, entre as partes, por via extra-judicial ou judicial.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

Não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal da Figueira da Foz , a autora H…, por si e em representação da sua filha menor G…, e a ré M… Seguros, interpuseram os adequados recursos  de apelação.

Eis o resumo da acção:

H… e sua filha menor (por si representada) G…, ambas com residência na Rua …, propuseram a presente acção com processo ordinário contra “M… Seguros, S.A.”, com sede na …, nos termos e com os fundamentos constantes da douta petição inicial (ora dados por reproduzidos), por via dos quais pediram a condenação da demandada no pagamento da quantia total de € 309.034,26 – sendo € 30.000 à A. H… a título de danos não patrimoniais próprios, € 90.000 à A. G… relativos a danos não patrimoniais da vítima e à perda do direito à vida, € 30.000 à mesma demandante G… a título de danos não patrimoniais próprios, e € 159.034,26 a ambas as AA. por conta de alimentos devidos pela vítima-, quantia total acrescida da actualização em função do decurso do tempo e da desvalorização da moeda que entretanto ocorra, tudo em consequência do acidente em questão nos autos.

No essencial, alegaram as demandantes ter sido o companheiro da A. H… e pai da A. G…, N…, vítima de um acidente de viação (devidamente descrito na douta petição inicial, e que ora se tem por reproduzido no respectivo teor), o qual teve como único causador o condutor do veículo seguro na Ré, que actuou de forma totalmente contrária às mais elementares regras de direito estradal.

Em resultado do acidente, o referido N… sofreu diversas lesões que lhe determinaram a respectiva morte, com todas as consequências (devidamente descritas na douta petição inicial) que quer do ponto de vista não patrimonial quer do ponto de vista patrimonial daí advieram para as demandantes.

Em suma, e perante o conjunto de danos sofridos por ambas as AA., deverá ser a Ré condenada nos termos exactamente peticionados.

A demandada contestou nos autos.

Em síntese, disse ter ficado o acidente a dever-se (nos termos que explanou no seu douto articulado, ora dados também por reproduzidos) à conduta negligente e descuidada do próprio falecido, que desrespeitou regras essenciais de direito estradal e determinou a triste sorte que o vitimou.

No mais, a existirem danos por causa do embate, entende a demandada ser manifestamente exagerada a respectiva liquidação operada pelas AA.

Em conclusão, pugnou a demandada por que a presente acção seja julgada improcedente, com a sua consequente absolvição dos pedidos formulados pelas demandantes.

Ainda disseram as AA. dever a causa ser decidida nos exactos termos peticionados ab initio, tanto mais que o acidente se deu de acordo com a descrição factual contida na douta petição inicial.

O Tribunal da 1.ª instância – pela pena do Sr. Juiz do Círculo – proferiu a seguinte decisão:

«Pelo exposto, e sem outros considerandos, julga-se a presente acção parcialmente provada e procedente e, em consequência:

“Condena-se a Ré “M… Seguros, S.A.” a pagar à A. H… a quantia de € 15.000 (quinze mil euros) a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados da notificação da presente sentença até efectivo e integral pagamento; Condena-se a Ré “M… Seguros, S.A.” a pagar à A. G… o montante de € 35.000 (trinta e cinco mil euros) a título de compensação pela perda do direito à vida do falecido N…, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados da notificação da presente sentença até efectivo e integral pagamento; Condena-se a Ré “M… Seguros, S.A.” a pagar à A. G… a quantia de € 15.000 (quinze mil euros) a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados da notificação da presente sentença até efectivo e integral pagamento; Condena-se a Ré “M… Seguros, S.A.” a pagar às AA. H… e G… o montante de € 62.500 (sessenta e dois mil e quinhentos euros) a título de alimentos a elas devidos pelo falecido N…, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados da notificação da presente sentença até efectivo e integral pagamento;

No mais, vai a Ré “M… Seguros, S.A.” absolvida do contra si peticionado pelas demandantes H… e G...

2.O Objecto da instância de recurso

Nos termos do art. 684°, n°3 e 685º - A do Código do Processo Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações dos recorrentes.

H…, por si e em representação da sua filha menor G…, AA. nos autos à margem referenciados que movem contra M… SEGUROS, S.A., apresentaram as suas ALEGAÇÕES:

...

M… Seguros, S.A., Ré nos autos junta as respectivas Alegações:

...

H…, por si e em representação da sua filha menor G…, apresentaram as suas CONTRA-ALEGAÇÕES, que aqui reproduzimos.

3. Direito

As questões a decidir são as seguintes:

I. A matéria dos Pontos 1º, 3º e 8º da Base Instrutória deveriam ter sido dados como não provados e, pelo contrário, deveria o artigo 45º da Base Instrutória ter sido dada como provado?

II. Ao condutor do motociclo não pode ser assacada qualquer responsabilidade pela produção do acidente?

III. Caso assim se não entenda, mesmo a constatar-se eventual culpa do condutor do motociclo VH, atendendo à dinâmica do acidente e face aos factos provados supra expostos, a concorrência de culpa a ambos os condutores na produção do acidente, deverá ser fixada na proporção 5% para o condutor do motociclo VH e 95% para condutor do veículo JD?

IV. Deve ser julgado procedente a indemnização peticionada pelos danos morais sofridos pela própria vítima em quantia não inferior a € 15.000,00.

V. Deve ser alterado o valor indemnizatório fixado a título de alimentos – fixado em 125.000,00€ pela 1.ª instância?

VI. Deve ser alterada a quantia arbitrada a título de perda do direito à vida – fixada em € 60.000,00 pela 1.ª instância?

VII. Devem ser alteradas as quantias arbitradas às autoras a título de danos não patrimoniais?

VIII. Não podem ser cumuladas as duas indemnizações – remissão da pensão atribuída no âmbito do direito laboral e a pensão de alimentos aqui fixada?

IX. Ainda que assim não se entenda, a indemnização recebida pelas autoras, no âmbito do processo de acidente de trabalho, teria de ser necessariamente deduzida à quantia que viesse a ser arbitrada no âmbito do presente processo a título de perda de alimentos?

I.A recorrente M… entende que foi incorrectamente julgada a matéria constante dos artigos 1º, 3º, 8º e 45º da Base Instrutória.

...

II. Ao condutor do motociclo/veículo automóvel não pode ser assacada qualquer responsabilidade pela produção do acidente?

III. Caso assim se não entenda, mesmo a constatar-se eventual culpa do condutor do motociclo VH, atendendo à dinâmica do acidente e face aos factos provados supra expostos, a concorrência de culpa a ambos os condutores na produção do acidente, deverá ser fixada na proporção 5% para o condutor do motociclo VH e 95% para condutor do veículo JD?

Como fenómeno dinâmico que é um qualquer acidente de viação, o seu processo causal não é, muitas vezes, de fácil apreensão e compreensão, impondo-se ao julgador uma tarefa mental de recreação ou de reconstituição a partir de todos os elementos disponíveis, carreados ao processo, não já para atingir a evidência ou a certeza integral, mas para chegar àquele grau de probabilidade bastante para fundar uma convicção, para consentir a crença quanto às causas do evento.

 Nesta tarefa, os dados objectivos disponíveis têm de ser analisados e valorados à luz das regras do direito estradal vigentes ao tempo do acidente, que condicionam e disciplinam a actuação dos intervenientes – as que estavam em vigor à data da colisão (7 de Junho de 2005) e que se mostram contidas no Código da Estrada publicado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, tinham sido modificadas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.

Para demonstrar a “riqueza” dos acontecimentos factuais relacionados com o caso dos autos, passamos a citar alguns acórdãos dos Tribunais Superiores, dos quais resulta que a chamada divisão de culpas tem, sempre, algo de “subjectivo”, no sentido de que os casos de vida trazidos aos Tribunais não representam simples equações matemáticas.

A especificidade do evento em causa decorre do facto de se ter localizado na faixa de rodagem de uma estrada localizada em zona de entroncamento entre um veículo automóvel ligeiro de passageiros, que ia a mudar de direcção para o seu lado esquerdo, e um motociclo que vinha no mesmo sentido e que vinha em manobra de ultrapassem.

“Provando-se que o autor, que circulava a uma velocidade superior à que era permitida para o local, iniciou uma ultrapassagem a um tractor que seguia, pelo menos, 35,10 m à sua frente, tendo este iniciado já uma manobra de mudança de direcção para a esquerda, tendo feito o respectivo sinal luminoso, a culpa na eclosão do acidente é exclusivamente do autor. Concluindo pela culpa exclusiva do autor no acidente, não há lugar ao risco que só se pode equacionar quando não se prova a culpa de qualquer dos intervenientes no acidente - Acórdão da Relação de Coimbra de 4.2.2003;

“Há concorrência de culpas na produção do embate dos veículos, na proporção de 1/4 para o condutor do ciclomotor e de 3/4 para o do auto-ligeiro, quando aquele inicia ultrapassagem ao ligeiro num cruzamento de estradas e o ligeiro, para virar à esquerda, encostou-se mais à direita em vez de se aproximar do eixo da via (desconhecendo-se se ligou ou não sinais de mudança de direcção) para depois tomar a esquerda, o que fez repentinamente e quando o ciclomotor vinha com o pisca ligado à esquerda a uma distância do carro inferior a 10 metros - Acórdão da Relação do Porto  de 2.5.2002.

“Se o condutor do IS desrespeitou a proibição de ultrapassar em cruzamentos, e o condutor do FQ não só não sinalizou a mudança de direcção para a esquerda, como ainda sinalizou a manobra inversa de mudança de direcção para a direita, enganando o condutor que o seguia, não tendo, igualmente, tido a preocupação de certificar-se da presença de outros veículos, por forma a realizar a manobra sem perigo, parece patente que o grau de inconsideração do condutor do FQ é consideravelmente superior à do IS.A velocidade a que circulava o IS, de 80 Km/h, não se demonstra exceder o limite estabelecido para o local, muito embora a lei (art.° 25.°, n.° 1, do Código da Estrada) prescreva que a velocidade deve ser especialmente reduzida nos cruzamentos, sem, contudo, quantificar tal redução. Consequentemente, deve ser fixada em 80% para o condutor do FQ e 20% para o condutor do veículo IS a contribuição de cada um na produção do acidente de viação - Acórdão da Relação do Porto de 28.10.2008.

“Conclui-se que o condutor do veículo HF cumpriu as normas estradais referentes à realização da manobra de ultrapassagem e que o sinistro ocorreu por culpa exclusiva do recorrente pois, violando as norma estradais e as mais elementares regras de prudência, mudou de direcção para a esquerda inesperadamente, sem accionar o sinal de pisca para a esquerda e sem verificar se não estava a ser ultrapassado por qualquer veículo - Acórdão da Relação do Porto de 6.2.2012;

“Age com culpa o condutor do velocípede com motor que efectuou uma manobra de ultrapassagem em local expressamente proibido, transpondo a linha longitudinal contínua existente no pavimento da via, praticando desse modo uma manobra perigosa e indo embater frontalmente no veículo que, circulando à frente e no sentido do referido velocípede, saiu da faixa de rodagem em que se encontrava, mudando de direcção para a esquerda - Acórdão da Relação de Coimbra de 23.5.2000.

 “I – As regras do Código da Estrada sobre a mudança de direcção para a esquerda visam a protecção de quem circula atrás do que quer mudar de direcção e de quem circula em sentido contrário: 1º) sinal para a esquerda – para os que vêm atrás, poderem adequar a velocidade a eventual desaceleração, abrandamento ou travagem; se preparem para passar pela direita, caso tenham espaço para isso; para os que circulam em sentido contrário ou em sentido que conflua para o entroncamento poderem adequar a sua manobra à daquele, por exemplo, prosseguindo-a por não entrarem em “rota de colisão” ou terem prioridade, ou parando se a não tiverem; 2º) aproximar-se o mais possível do eixo da via – para os que vêm atrás poderem prosseguir a sua marcha passando pela direita daquele e, quando não têm espaço para o fazer, ganharem visibilidade, reiniciando a marcha com mais segurança; 3º) com a necessária antecedência – tem a mesma função do sinal e evitam-se manobras bruscas, o que protege, ainda, os que vêm atrás; 4º) de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação – para os que vêm na estrada onde aquele está a entrar e possam virar à direita sem chocarem. II - As regras do Código da Estrada sobre a ultrapassagem visam a protecção dos condutores que circulam em sentido contrário e no mesmo sentido, mas também do condutor que, à frente do ultrapassante, num entroncamento, vai mudar para a esquerda” - Acórdão da Relação de Coimbra de 23.2.2004.

 “Quando se apure uma concorrência de culpas na produção de um sinistro cumpre determinar civilmente a respectiva proporção. No caso, estando em causa um veículo automóvel e um motociclo, tendo este agido em excesso de velocidade e aquele em violação da regra de mudança de direcção, entende-se que a respectiva culpa deve ser fixada em 70% e 30%, respectivamente” -Acórdão da Relação de Guimarães de 14.12.2010.

“A dificuldade da manobra num entroncamento por virtude do respectivo ângulo de cento e cinquenta graus não constitui causa justificativa da omissão pelo condutor do veículo automóvel de aproximação do eixo da via antes da mudança de direcção para a esquerda. A omissão daquela aproximação antes de entrar na estrada de entroncamento, não constitui causa adequada do embate no veículo automóvel pelo ciclomotorista que iniciou, com excesso de velocidade, a sua ultrapassagem pela esquerda em faixa de rodagem delimitada por uma linha contínua na altura em que aquele veículo se encontrava a mudar perpendicularmente de direcção, já com a dianteira a cerca de um metro da estrada onde pretendia seguir.

 Incumbia aos autores a prova dos factos envolventes da omissão de olhar à retaguarda, de sinalizar de pisca-pisca e de a manobra de mudança de direcção à esquerda ter sido efectuada sem a certificação pela condutora do veículo da ausência de perigo para os restantes utentes da via dela derivada. Os condutores de veículos automóveis não têm de prever a imprevidência alheia, nem à condutora do veículo automóvel era razoavelmente previsível que o ciclomotorista realizasse uma manobra de ultrapassagem pela esquerda, utilizando a hemi-faixa de rodagem contrária, próximo do entroncamento, transpondo uma linha contínua. A censura ético-jurídica ou culpa só recai sobre o acto de condução automóvel do ciclomotorista, porque empreendido nas referidas circunstâncias, pelo que deve ser considerado o exclusivo causador do evento infortunístico em causa. A interpretação conjugada do disposto nos artigos 505º e 570º, nº 1, ambos do Código Civil não permite a conclusão de haver concurso entre a culpa exclusiva do lesado e a responsabilidade pelo risco de circulação do titular da direcção efectiva do veículo automóvel -  Acórdão do STJ de 6.11.20008.

“Inexistindo sinalização, vertical ou horizontal, a interditar a manobra de ultrapassagem ou a indicar a aproximação de outra circunstância impeditiva da mesma, o condutor que executa a ultrapassagem a dois veículos automóveis que, atempadamente, anunciou, precavendo-se do seu êxito, nas imediações de um entroncamento, e que foi surpreendido pela inopinada mudança de direcção para a sua esquerda, por parte da segunda viatura ultrapassada, quando aquele se encontrava, lado a lado, com a mesma, com a sua frente a começar a passar a frente deste, não dá causa ao embate, o qual é, porém, ocasionado por este último que, apesar de ter accionado o sinal de pisca do lado esquerdo, fê-lo, tardiamente, não se tendo aproximado, com a necessária antecedência e o mais possível, do eixo da faixa de rodagem -  Acórdão do STJ de 19.11.20009.

“Pela via por onde circulava o motociclo conduzido pela vítima, o trânsito de veículos automóveis seguia numa única fila, com muitos carros seguidos até aos semáforos, antes de um entroncamento e depois dele, ora parados, ora em marcha muito lenta, no fenómeno, tipicamente urbano, que se designa comummente por “pára – arranca”. O motociclo conduzido pela vítima foi ultrapassando, de uma só vez, todos esses veículos e fê-lo apesar de existir o entroncamento com outra via. Não se diga, como faz a Relação, que o condutor do motociclo estava a observar o disposto no n.º 3 do art.º 41.º do C. da Estrada, onde se diz que não é aplicável o disposto nas alíneas a) a c) e e) do n.º 1 [designadamente, a proibição de ultrapassagem imediatamente antes e nos cruzamentos e entroncamentos] sempre que na faixa de rodagem sejam possíveis duas ou mais filas de trânsito no mesmo sentido, desde que a ultrapassagem se não faça pela parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido oposto. Com efeito, por onde seguia o motociclo não existiam duas faixas de rodagem no mesmo sentido, mas apenas uma e, portanto, não é pelo facto do motociclo “caber” fisicamente no mesmo espaço da faixa de rodagem por onde circula um automóvel que se “criam” artificialmente duas ou mais faixas de rodagem. A vantagem comparativa das motorizadas em relação aos automóveis no trânsito dentro das cidades, de poderem «furar» por entre o trânsito, não está ao abrigo de qualquer disposição legal, pois o facto de circularem pela direita ou pela esquerda por entre os automóveis que estão a aguardar em fila ou que estão no pára – arranca é proibido pelo C. da Estrada, já que a demarcação da faixa de rodagem (“via de trânsito”, na terminologia legal) existe para que cada veículo circule em segurança na sua via e não para que dois veículos circulem a par dentro desses limites (cf. art.º 1º-t, do CE). Atribuiu-se, em face de todas as circunstâncias do acidente que vitimou mortalmente o condutor do motociclo, uma percentagem de 20% de culpa para a condutora do automóvel e de 80% para a vítima” - Acórdão do STJ de 7.12.2011.

Em acórdão de 19.10.2010, esta Relação de Coimbra, em caso muito similar ao destes autos – o embate ocorreu entre um veículo automóvel e um motociclo que ultrapassava vários veículos e seguia a velocidade não inferior a 90 Km/hora (a velocidade máxima permitida para o local era de 60 quilómetros por hora); a diferença situa-se no facto provado de que o condutor do veículo automóvel fez o sinal de mudança de direcção, sendo que a manobra de ultrapassagem era aí permitida -, decidiu que :“É de imputar a responsabilidade pelo acidente de viação aos dois condutores dos veículos que embateram entre si, no circunstancialismo em que um deles efectua uma ultrapassagem a velocidade muito superior à permitida para o local e o outro muda de direcção para a esquerda já depois de aquele ter iniciado a ultrapassagem. Tendo em conta a similar gravidade das infracções e o facto de ambos os condutores poderem ter evitado o embate, se agissem com as cautelas que a lei impõe, é de fixar a proporção de culpas em 50% para cada qual” - todos os acórdãos foram retirados do site wwww.dgsi.pt.

O princípio básico da lei estradal, aplicável à condução automóvel e aos peões, é no sentido de as pessoas deverem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias - artigo 3º, nº 2, do Código da Estrada.

A primeira regra estradal que se impõe aos condutores de veículos automóveis é a de que devem utilizar a parte direita das faixas de rodagem, o mais próximo possível das bermas ou passeios, a distância que permita evitar qualquer acidente - artigo 13º, nº 1, do Código da Estrada.

Mas quando for necessário, pode ser utilizado o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de direcção - artigo 13º, nº 2, do Código Estrada.

Quando o condutor pretender reduzir a velocidade ou mudar de direcção ou iniciar alguma ultrapassagem deve assinalar a sua intenção com a necessária antecedência, mantendo o sinal enquanto se efectua a manobra, e fazendo-o cessar logo que ela esteja concluída - artigo 21º, nºs 1 e 2 do citado diploma.

Relativamente à problemática da velocidade a que os veículos automóveis podem rodar, a regra é a de que a devem regular de modo a que, atendendo às características e ao estado da via e do veículo, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possam, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente - artigo 24º, n.º 1, do Código da Estrada.

A regra de que o condutor deve especialmente fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente significa que ele deve assegurar-se, no exercício da condução automóvel, de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso de necessidade, o fazer parar.

Ela rege especialmente para o caso de os condutores circularem com veículos automóveis à sua vanguarda e pressupõe a não verificação de condições anormais ou obstáculos inesperados, não lhes sendo exigível que contem com eles, sobretudo os derivados de imprevidência alheia.

O dever geral de regulação da velocidade dos veículos automóveis em conformidade com as respectivas características, estado da via, condições meteorológicas ou ambientais, intensidade do trânsito e outras circunstâncias relevantes é um corolário do dever objectivo de cuidado, com base na ideia de que a acção ou a omissão inadequada do agente implica o aumento da probabilidade do dano, naturalmente para além do risco permitido em função das exigências da vida em sociedade.

A par dele, estabelece a lei a obrigatoriedade de os condutores de veículos automóveis circularem de harmonia com limites máximos de velocidade que existam, e com velocidade especialmente moderada nas curvas, entroncamentos e nos locais de visibilidade reduzida - artigo 25º, nº 1, do Código da Estrada.

Os condutores só podem efectuar as manobras de ultrapassagem, em regra pela esquerda, mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito - artigos 35º, nº 1 e 36º, nº 1, do Código da Estrada.

Ademais, quando pretendam realizar alguma ultrapassagem - passagem de um veículo para além de um outro -, devem assegurar-se previamente de que a podem efectuar sem perigo de colidirem com qualquer veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário  - artigo 38º, n.º 1, do Código da Estrada.

À data do acidente o número 4 do artigo 41º do Código da Estrada havia sido alterado por força do Dec.- Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro.

A norma alterada preceitua que: 1—É proibida a ultrapassagem: a) Nas lombas; b) Imediatamente antes e nas passagens de nível; c) Imediatamente antes e nos cruzamentos e entroncamentos; d) Imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões; e) Nas curvas de visibilidade reduzida; f) Em todos os locais de visibilidade insuficiente; g) Sempre que a largura da faixa de rodagem seja insuficiente. 2—É proibida a ultrapassagem de um veículo que esteja a ultrapassar um terceiro. 3—Não é aplicável o disposto nas alíneas a) a c) e e) do n.º 1 e no n.º 2 sempre que na faixa de rodagem sejam possíveis duas ou mais filas de trânsito no mesmo sentido, desde que a ultrapassagem se não faça pela parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido oposto. 4.Não é, igualmente, aplicável o disposto na alínea c) do n.º 1 sempre que a ultrapassagem se faça pela direita nos termos do n.º 1 do artigo 37.º.

A anterior redacção prescrevia, no seu nº 4, não ser a dita proibição aplicável, se o condutor transitar em via que lhe confira prioridade nos cruzamentos e entroncamentos e tal esteja devidamente assinalado (aln a), que seria o caso dos autos se, entretanto, não surgisse a nova redacção aplicável por força do Dec.- Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro .

Com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei acima referido, ficou expressamente proibida a a ultrapassagem em cruzamentos e entroncamentos com a excepção do nº 4 do artigo 41º do Código da Estrada, isto é, se tal ultrapassagem for possível pela direita do veículo ultrapassado, que, não é o caso em análise.

Tal alteração legislativa teve como intenção a redução da sinistralidade automóvel. De facto o álcool, o excesso de velocidade e as ultrapassagens são as causas mais comuns da sinistralidade automóvel – pode ler-se no preâmbulo de tal diploma.

Assim sendo, ao contrário do decidido pelo Sr. Juiz da 1.ª instância: “Pois bem [e abstraindo da regra da ultrapassagem nos cruzamentos, já que in casu a matéria fáctica provada parece confortar a ideia da verificação da permissão de ultrapassagem contida no n.º 4-a) do art. 41º C.E.” - atenta a matéria de facto assente - Pontos 3,7, 8 e 10 –“, o condutor do motociclo violou tal norma, porquanto era proibida a ultrapassagem naquele local.

Mais, efectuava uma ultrapassagem em local proibido – após sucessivas ultrapassagens a outros veículos conforme resulta dos Pontos 7 e 8 dos factos provados -, a uma velocidade superior a 100 KMS/hora, num local de boa visibilidade e com limitação de velocidade de 50 KMS/hora.

Também ficou assente nos autos que: 9 – quando o condutor do motociclo VH iniciou a realização da manobra referida no ponto 8 (dos presentes factos provados) não circulavam quaisquer veículos na hemi-faixa da esquerda (considerando o sentido Figueira da Foz-Tocha); 10 – o condutor do motociclo VH pretendia continuar a sua marcha pela hemi-faixa de rodagem do lado esquerdo (atento o sentido Figueira da Foz-Tocha), por forma a também ultrapassar o veículo JD; 11 – alguns instantes antes de o motociclo VH se aproximar do local onde se encontrava o automóvel JD, o condutor deste mesmo JD iniciou a manobra de mudança de direcção à esquerda, em direcção à Rua das Cavadas, direccionando o seu veículo para a hemi-faixa esquerda da via (considerando o sentido Figueira da Foz-Tocha). 12 – assim, ao chegar ao cruzamento aludido no ponto 3 (destes factos provados) o condutor do veículo JD abrandou a sua marcha porque pretendia virar à esquerda em direcção à Rua das Cavadas; 13 – ao executar a manobra mencionada no ponto 11 (da presente matéria factual assente), o condutor do veículo JD abrandou e guinou para a sua esquerda e entrou em diagonal na hemi-faixa esquerda da via (considerando o sentido Figueira da Foz-Tocha); 14 – o ângulo de visão do veículo JD permitia ao seu condutor ver que o motociclo VH, momentos antes, circulava atrás do mesmo; 15 – o motociclo VH encontrava-se equipado com uma ponteira de nome “LEOVINCE SBK” (aparelho destinado a potenciar o ruído emitido pelo dito motociclo); 16 – alguns instantes após o facto referido no ponto 13 (destes factos provados) deu-se, na hemi-faixa esquerda da via (considerando o sentido Figueira da Foz-Tocha), por onde se vinha aproximando o motociclo VH, o embate entre a frente deste motociclo e a parte lateral esquerda do automóvel JD; 17 – mais exactamente, quando cerca da metade dianteira do veículo JD se encontrava na hemi-faixa esquerda da via (considerando o sentido Figueira da Foz-Tocha), ocorreu o embate entre a parte da frente do motociclo VH e a parte lateral esquerda (mais exactamente a zona da porta dianteira lateral esquerda) daquele automóvel JD.

Ou seja, também o condutor do veículo automóvel não andou bem na sua manobra de mudança de direcção.

 Efectuou tal manobra de mudança de direcção à esquerda de forma grosseiramente descuidada - sem utilizar qualquer sinalética -, invadindo o corredor de circulação da esquerda por onde circulava já o motociclo.

Este condutor infringiu assim, também, regras básicas da circulação rodoviária, sendo a sua actuação, tal como a do lesado, causa do acidente e, consequentemente, dos danos cuja indemnização é pedida na presente acção.

Com efeito, ambos os intervenientes no acidente violaram regras de trânsito destinadas a proteger terceiros, e em circunstâncias que revelam que era exigível que tivessem agido de outra forma, evitando o resultado danoso ocorrido ou seja, que agiram com culpa.

Atentas as razões supra referidas, - incluindo as decisões dos Tribunais citados -, visto a matéria de facto em causa e as normas estradais violadas pelos condutores, entendemos ser adequado e justo fixar em 70% para o condutor do motociclo e 30% para o condutor do veículo automóvel, a contribuição de cada um na produção do acidente de viação.

IV. Deve ser julgado procedente a indemnização peticionada pelos danos morais sofridos pela própria vítima em quantia não inferior a € 15.000,00?

Entendeu o Tribunal da 1.ª instância que “ (…) não ficou provado o conjunto factual alegado pelas AA. segundo o qual o N… se apercebeu da iminência do seu trágico destino, restando em agonia durante o período de tempo que mediou o embate e o momento em que o seu óbito foi certificado pela autoridade médica competente” e, consequentemente, decidiu pela improcedência do peticionado a este título pelas Recorrentes.

Salvo o devido respeito, também, não se sufraga tal entendimento.

Conforme consta dos factos provados, designadamente da dinâmica do acidente, instantes antes do embate, o N…, em fracções de segundo, apercebeu-se perfeitamente que o veículo no qual seguia ia ser embatido.

Pese embora não se constate prova directa, resulta do senso comum e experiência neste tipo de situações versus acidente que a vítima tem perfeita noção do impacto que se aproxima e da iminência do seu trágico destino. Basta atentar à conjugação dos pontos 16 e 21 da factualidade provada nos autos – em que na sequência do embate o condutor do motociclo VH foi projectado por cima do veículo JD até colidir num poste de iluminação pública que se encontrava em terreno contíguo à berma do lado esquerdo -.

 Como escrevem as autoras, “…manifesto é que, o período de tempo decorrido imediatamente antes do embate – com uma “descarga de adrenalina” que se sofre neste tipo de situações a antever o choque, entre o momento do embate – do choque do N… contra o veículo JD e consequente PROJECÇÃO por cima do mesmo até colidir no poste de iluminação pública – e o momento em que veio a falecer, a malograda vítima apercebeu-se, obviamente, da violência do sinistro e da “antecâmara” do seu infeliz destino” – fim de citação -.

Para além de que, tal como tem sido decidido pela nossa Jurisprudência “é de presumir, mesmo nos chamados morte súbita por acidente de viação e independentemente de prova palpável nesse sentido, que os ferimentos gravíssimos sobrevindos à vítima lhe tenham causado sofrimento” – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 11.03.1998, BMJ nº 475, fls. 782, citado pelas recorrentes.

A morte raramente é um acontecimento instantâneo, havendo sempre momentos que a antecedem, por mais fugazes que sejam, e designadamente em eventos de cariz traumático - como o sofrido por condutor interveniente em acidente de viação -, em que a vítima sofre angústia pelo irremediável e inelutável fim que consegue antever, sofrendo também, ainda que por nanosegundos, dores físicas.

Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 22.5.2012, retirado do site www.dgsi.pt, “Justifica-se indemnizar os danos morais sofridos pelo lesado entre o e o momento da morte, ainda que não demonstrado que em tal período estava consciente e sofreu dores físicas, angústia e desespero, pois se pode concluir, pelo menos, que ele se apercebeu da eminência do embate e das sua consequências fatais.

A justiça tem ínsita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade; é tudo isto que no seu conjunto origina o sentimento de segurança, componente essencial duma sociedade assente em bases sólidas.

Ponderando a gravidade do dano a compensar, as especificidades do caso concreto e os critérios jurisprudenciais de valorização de tal concreto dano, entende-se como adequada, justa e equitativa a quantia de € 15.000,00 para “aconchegar” este dano.

V. Deve ser alterado o valor indemnizatório fixado a título de alimentos – fixado em 125.000,00€ pela 1.ª instância?

O Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando - a título de exemplo, os acórdãos de 28 de Outubro de 1999, proc. nº 09B717, de 7 de Fevereiro de 2002, proc. nº 01B3985, de 25 de Junho de 2002, proc. nº 02A1321, de 27 de Novembro de 2003, proc. nº 03B3064, de 15 de Janeiro de 2004, proc. nº 03B3g926, de 8 de Março de 2007, proc. nº 06B4320 ou de 14 de Fevereiro de 2008, proc. nº 07B508, disponíveis em www.dgsi.pt -, que a equidade desempenha um papel corrector e de adequação da indemnização decretada às circunstâncias do caso, nomeadamente quando, como é frequente, os tribunais recorrem a “cálculos matemáticos e a tabelas financeiras”.

Esse recurso à equidade não afasta, todavia, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade.

Escreveu, a propósito, a 1.ª instância:

“Sabemos que o mencionado N… auferia mensalmente, por conta do seu trabalho, a quantia líquida de € 435, com a qual pagava todas as despesas da casa, sustentando-a economicamente, e suportava os custos da aquisição da roupa e dos demais bens de que a sua filha e ora demandante G… necessitava.

E sabemos, também, que o mesmo N… aspirava a ser sócio-gerente na empresa do pai, sua entidade patronal. Em Julho de 2005 a A. H… começou a trabalhar, auferindo a quantia mensal de € 374,70, embora à data da propositura da presente causa se encontrasse já desempregada. Socorrendo-se do art. 495º/n.º 3 C.C., peticionaram as demandantes a atribuição da quantia indemnizatória de € 159.034,26 a título de alimentos a elas devidos pela vítima. Está em causa, pois, aquilo que o N… continuaria a prestar ao longo da sua vida às AA. até ao momento em que tal seria expectável e exigível, e caso não tivesse (obviamente) ocorrido o acidente de que tratamos e a consequente vitimação do companheiro e pai das demandantes.

De acordo com o citado art. 495º/n.º 3 C.C., «têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural».

Como bem se defendeu no Ac. S.T.J. de 13/2/91 (in A.J. n.os 15 e 16, pág. 6), a norma acabada de citar não concede às pessoas que podiam exigir alimentos ao lesado o direito de indemnização de todos e quaisquer danos patrimoniais que lhes hajam sido causados, mas apenas o direito de indemnização do dano da perda dos alimentos (que o lesado, se fosse vivo, teria de prestar-lhes); por outro lado, a concessão desta indemnização depende da prova de que os requerentes foram privados de alimentos a que teriam direito se o lesado fosse vivo ou que o lesado lhes prestasse alimentos no cumprimento de uma obrigação natural, isto é, fundada em um dever moral ou social específico entre as pessoas determinadas, cujo cumprimento seja imposto por uma recta composição de interesses ou ditames de justiça (art. 402º C.C.).

Estão aqui em causa, pois, neste último caso, apenas os danos advenientes da perda dos alimentos, e não quaisquer outros.            Por alimentos deve ser entendido «(...) tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário», compreendendo «(...) também a instrução e educação do alimentando no caso de este ser menor» (n.os 1 e 2 do art. 2003º C.C.).

Pois bem, já acima ficámos a saber que o falecido N… era o sustento do lar que compunha com as AA..

Ora, ao analisarmos a situação das demandantes, importará perceber que o cálculo a alcançar do quantum da prestação de alimentos a elas devidos pelo falecido N… deve ter em conta o chamado “trem de vida” a que as mesmas estavam (e estariam, na normalidade do acontecer) habituadas na dinâmica existencial quotidiana que mantinham com o seu companheiro e pai (cfr. Ac. S.T.J. de 8/2/2000, in C.J. – Acs. S.T.J. – Ano VIII, tomo 1, pág. 74).

In casu, as demandantes referiram que a A. H… iria carecer dos alimentos prestados pelo companheiro ao longo do resto da sua vida (e não esqueçamos que tal A. contava 21 anos à data do acidente), enquanto relativamente à A. G… seria expectável que dependesse a mesma do sustento do seu pai até, pelo menos, os 21 anos de idade.

E parece-nos esta última uma asserção perfeitamente razoável.

Ainda para mais quando, tal como se afirmou no Ac. Rel. Porto de 12/12/2006 (in www.dgsi.pt), o auxílio paterno não se extingue, por via de regra, quando os filhos atingem a maioridade, até pela simples razão de que não constitui essa idade, para muitos jovens, a meta normal de finalização dos seus estudos (para além da consideração que poderíamos fazer acerca do constrangimento que cada vez mais o actual mundo em crise económica em que vivemos provoca em termos de dependência fundamental dos filhos em relação aos seus pais).

Importará calcular agora, então, o quantum de prejuízos sofridos pelas AA. a título de alimentos em falta pelo falecido N... Desde logo, é preciso tentar saber qual seria o normal tempo de vida da vítima e qual a variação dos rendimentos que por ela seriam auferidos durante o período previsível de vida activa, caso não ocorresse o seu decesso.

Diga-se entender o Tribunal como algo de perfeitamente plausível, na normalidade do acontecer, vir o N… a desenvolver uma vida produtiva até, pelo menos, aos 65 anos de idade (a propósito dos 70 anos como média de vida dos portugueses, hoje em dia, e da justeza – que o Tribunal apoia – da sua consideração para o nosso problema, cfr. Ac. S.T.J. de 28/9/95, in C.J. – Acs. S.T.J. – Ano III, tomo 3, pág. 36). Contando ele 22 anos quando faleceu, operaremos com 43 anos de vida activa.

Auferindo € 435 mensais no desenvolvimento da sua actividade profissional, ao longo (como é normal) de 14 vezes ao ano, obteremos o montante de € 6.090 como o rendimento anualmente percebido pelo N…

Se quisermos saber qual o capital necessário para, com a taxa de juro anual (de referência) de 4%, se obter o rendimento de € 6.090, teremos de formular a regra seguinte: € 609.000 : 4 = € 152.250.

Mas teremos agora de perceber que se pretende, em termos de justiça, a obtenção de uma quantia em dinheiro que procure produzir o rendimento mensal (e anual) fixo perdido pelas AA. a título de alimentos futuros, mas que, ao mesmo tempo, não propicie um rendimento injustificado à custa do lesante, ou seja, é necessário que na data final do período considerado se ache esgotada a quantia atribuída (a propósito, e em tese geral, cfr. Ac. S.T.J. de 6/7/2000, in C.J. – Acs. S.T.J. – Ano VIII, tomo 2, pág. 144).

Nesta conformidade, o capital da indemnização «(...) não pode ser aquele que produza rendimento igual ao dos provenientes do lesado, devendo sofrer redução, sob pena de este ficar injustamente enriquecido. Esta redução destina-se a evitar que o lesado receba os juros sem dispêndio de capital, já que este ficaria intacto no termo do período para que foi estimado. Este desconto vai depender do nível de vida do país, do custo de vida e até da sensibilidade do próprio juiz (...)» (Dr. Joaquim José de Sousa Dinis, in “Dano corporal em acidentes de viação; cálculo da indemnização; situações de agravamento” citado, pág. 15).

Tendo-se tudo isto em mente, e não se esquecendo a faculdade concedida pelo n.º 3 do art. 566º C.C. («se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados»), entende-se ser de computar os alimentos devidos às AA., em consideração à especificidade do caso concreto (com previsíveis melhorias de rendimentos pela circunstância de o N… aspirar a ser sócio-gerente na empresa do pai, sua entidade patronal), no montante total de € 125.000 (não fazendo o Tribunal distinção entre o que seria especificamente devido a uma e a outra das AA., por mero respeito pelo modo como o pedido, nesta particular matéria, foi exposto pelas demandantes na acção) “– fim de citação -.

Considerou bem.

Usou, criteriosamente a equidade. Por isso, mantemos o decidido.

Conforme, se refere no Acórdão desta Relação de 6.11.2012 – no site www.dgsi.pt – “na apreciação, em sede de recurso, de indemnizações por danos não patrimoniais, estando em causa critério de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas/aumentadas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida”.

Diga-se, ainda, que a recorrente M… Seguros não esclarece por que motivo dele discorda – bem como das outras parcelas atribuídas a título de danos morais.

 Alegar não é só apresentar um requerimento com a forma de alegação, mas sim atacar a decisão recorrida e dizer das razões por que se discorda dela, para serem apreciadas no tribunal superior” – neste sentido o Acórdão desta Relação de 2.12.1992, sumariado no BMJ, n.º 422, pág. 441.

VI. Deve ser alterada a quantia arbitrada a título de perda do direito à vida – fixada em € 70.000,00 pela 1.ª instância?

VII. Devem ser alteradas as quantias arbitradas às autoras a título de danos não patrimoniais?

No que respeita ao dano morte, que representa o bem mais valioso da pessoa e simultaneamente o direito de que todos os outros dependem, a compensação atribuída pelo STJ tem oscilado, nos últimos anos, entre € 50 000 e € 80 000, com ligeiras e raras oscilações para menos ou para mais – no acórdão do STJ de 31.1.2012 no site www.dgsi.pt.

O Tribunal da Relação do Porto em acórdão muito recente, de 15.10.2012, decidiu que “ Quanto ao dano morte afigura-se equitativa a importância fixada em €60.000,00 – artº 496º, n. 2 do Código Civil – mesmo considerando uma eventual imprudência da vítima considerando fundamentalmente que tinha então 27 anos de idade”.

Não podemos olvidar que, além da sua idade, era o falecido N… quem, na maior parte das ocasiões, brincava com a sua filha, a ora A. G…, lhe dava banho, lhe dava o almoço e preparava a hora da sesta. Era uma pessoa com grande vontade de viver, alegre, divertida, saudável e prestável.

Assim, fixar em € 70.000 a compensação pelo dano da morte – como o fez a 1.ª instância - está de acordo, por um lado, com a extrema gravidade do dano infligido - “A vida é o bem supremo, a fonte de todos os direitos”, escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de 24 de Outubro de 2006, disponível em www.dgsi.pt - e, por outro, com os valores que vêm sendo considerados adequados pelos Tribunais Superiores.

Conforme refere a 1.ª instância “a morte do N… deixou uma marca indelével e irreversível em seu redor. E a ponderação das circunstâncias acabadas de referir não pode deixar de ser feita de modo realista, descomplexado e humanista. Assim, entende o Tribunal como adequada a compensação de € 70.000 pela perda do direito à vida do referido N…”.

Assim como não merece objecção o valor de € 30.000 como compensação pelos aludidos danos de cariz não patrimonial da A. H... Afigura-se, aos olhos do Tribunal, atento o acervo fáctico carreado para estes autos, claramente adequado, bem como, ser razoável computar também nos peticionados € 30.000 o valor da compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela menor G… em consequência do falecimento do seu pai.

VIII. Não podem ser cumuladas as duas indemnizações – remissão da pensão atribuída no âmbito do direito laboral e a pensão de alimentos aqui fixada?

IX. Ainda que assim não se entenda, a indemnização recebida pelas autoras, no âmbito do processo de acidente de trabalho, teria de ser necessariamente deduzida à quantia que viesse a ser arbitrada no âmbito do presente processo a título de perda de alimentos?

As indemnizações (danos patrimoniais) por acidente que seja simultaneamente de viação e de trabalho não são cumuláveis, mas sim complementares até ao ressarcimento total do prejuízo sofrido, pelo que o lesado não poderá receber as duas indemnizações integral e autonomamente, dado que tal equivaleria a reparar duas vezes o mesmo dano, com o consequente enriquecimento ilegítimo.

Pode ler-se no Acórdão do STJ de 23.2.2012, retirado do site www.dgsi.pt, que “ constitui jurisprudência firme do STJ que no regime de concorrência de responsabilidades por acidente de viação e de trabalho prevalece a responsabilidade subjectiva do terceiro sobre a responsabilidade objectiva patronal, assumindo esta última um carácter subsidiário ou residual – neste mesmo sentido, os Acórdãos do STJ de 24-01-2002, de 11-05-2011 e de 11-10-2011.

Neste regime de concorrência de responsabilidades há que distinguir entre o plano das relações externas - relações entre cada um dos responsáveis e o lesado - e o domínio das relações internas - relações entre os dois ou mais responsáveis pela reparação dos danos.

No quadro das relações externas o lesado pode exigir a reparação dos danos causados pelo acidente quer da entidade patronal, quer do condutor ou detentor do veículo. Mas se é o detentor do veículo quem paga a indemnização devida, não lhe assiste nenhum direito em relação à entidade patronal. E se a indemnização for paga, no todo ou em parte, pela entidade patronal, esta fica subrogada nos direitos do sinistrado. O facto de o sinistrado de acidente de viação ter recebido da seguradora da entidade patronal € 23 810,24, a título de remição, nenhuma consequência tem no plano da obrigação da seguradora recorrente o indemnizar pelos danos patrimoniais futuros. E se no “reembolso” efectuado pela recorrente à seguradora por acidentes de trabalho já se compreende essa verba, essa “antecipação” nenhum efeito tem quanto à fixação da indemnização devida.

Como as duas indemnizações não se cumulam, a questão tem de ser resolvida, entre as partes, por via extra-judicial ou judicial, mas não neste processo” – fim de citação.

Comungamos do sentido desta decisão, pelo que improcede, neste particular, o recurso da ré seguradora.

Assim, temos os seguintes valores indemnizatórios:

Tudo ponderado, obtemos o montante compensatório e indemnizatório global de € 270.000 (€ 70.000 + € 30.000 + € 30.000 + € 125.000 + € 15.000) para as AA..

Todavia, é fundamental chamar agora à colação o princípio ínsito ao art. 570º/n.º 1 C.C., relativo à concorrência da culpa dos condutores (30% para o condutor do automóvel JD e 70% para o malogrado N…) na produção do acidente e danos daí advindos, o que fará reduzir aquela quantia global em 70%.

Consequentemente, só poderá ser considerado o valor compensatório e indemnizatório global de € 81.000 para as demandantes.

Passemos ao sumário:

 I. Usando a recorrente do prazo alargado de 40 dias, ao abrigo do disposto no art.º 685.º n.º 7 do C. P. Civil, e resultando do conteúdo das conclusões que manifestam inequivocamente o propósito de ver reapreciada matéria de facto, o recurso é tempestivo, mesmo que o Tribunal da 2.ª instância venha a rejeitar tal impugnação.

II. A morte raramente é um acontecimento instantâneo, havendo sempre momentos que a antecedem, por mais fugazes que sejam, e designadamente em eventos de cariz traumático - como o sofrido por condutor interveniente em acidente de viação -, em que a vítima sofre angústia pelo irremediável e inelutável fim que consegue antever.

III. Constitui jurisprudência firme do STJ que no regime de concorrência de responsabilidades por acidente de viação e de trabalho prevalece a responsabilidade subjectiva do terceiro sobre a responsabilidade objectiva patronal, assumindo esta última um carácter subsidiário ou residual – neste sentido, por ex., os Acórdãos do STJ de 24-01-2002, de 11-05-2011 e de 11-10-2011, ambos publicados no site www.dgsi.pt.

IV. Como as duas indemnizações não se cumulam, a questão tem de ser resolvida, entre as partes, por via extra -judicial ou judicial, mas não neste processo.

4. A Decisão

Pelas razões expostas, na procedência parcial das instâncias recursivas:

1.Condenamos a ré M… SEGUROS, S.A. a pagar às autoras a quantia global de € 81.000 (oitenta e um mil euros), a título de danos (não) patrimoniais.

2.No mais, mantemos a decisão da 1.ª instância.

3.Custas pelos recorrentes na proporção do decaimento.

 (José Avelino - Relator -)

 (Regina Rosa)

(Artur Dias)