Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
156/09.7TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: CLÁUSULA PENAL
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
RELAÇÃO TRIBUTÁRIA
IMPOSTO
Data do Acordão: 04/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 397º E 811º, Nº 2 DO C. CIVIL.
Sumário: I – Nos termos do art. 811º, n.º 2 do Código Civil o estabelecimento da cláusula penal obsta a que o credor exija indemnização pelo dano excedente, salvo se outra for a convenção das partes. Trata-se de uma liquidação convencional antecipada dos prejuízos, visto não se saber ainda qual o valor real dos prejuízos nem mesmo se eles virão a produzir-se.

II. O valor fixado será aquele que o devedor haverá de pagar e o credor de exigir, se se preencher a condição de que depende a obrigação de indemnizar.

III. Não tendo sido acordado entre os contraentes – em moldes a não deixar quaisquer duvidas -, a relação tributária do imposto, propriamente dita, gera-se exclusivamente entre o vendedor do bem ou transmitente do serviço, por um lado, e a administração fiscal, pelo outro, com o significado de o vínculo debitório do imposto devido incidir na esfera jurídica - tão-só - daquele, perfeitamente alheada à do seu adquirente ou transmissário - ver, também, a norma do artigo 397.º.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

“C…, Lda.”, sociedade comercial com sede em …, propôs a presente acção contra “L…, S.A.”, sociedade comercial com sede na …, nos termos e com os fundamentos constantes da douta petição inicial (ora aqui dados por inteiramente reproduzidos no seu exacto teor), por via dos quais impetrou a condenação da demandada no pagamento da quantia global de € 42.500, correspondente ao valor da cláusula penal contratualmente estipulada entre A. e Ré, já reduzida dos montantes creditícios de que a demandada é titular.

Em síntese, alegou a demandante que por contrato celebrado em 1 de Maio de 2004 com a Ré – contrato esse válido pelo período de um ano mas com renovação automática por iguais e sucessivos períodos temporais, a menos que algum dos outorgantes o denunciasse com a antecedência mínima de 90 dias – foram reciprocamente assumidas as obrigações constantes desse mesmo instrumento contratual, maxime a obrigação, pela A., de produção de certas quantidades de coelhos vivos para abate destinados à Ré, e a obrigação, por esta demandada, de os comprar à A.; do mesmo passo, obrigou-se também a A. a consumir em exclusivo os produtos comercializados pela demandada, nomeadamente rações, coelhas reprodutoras para reposição e inseminação artificial.

Não havendo qualquer dúvida ou necessidade de esclarecimento entre ambas as partes, obrigaram-se as mesmas, e de modo recíproco, a uma cláusula penal de € 48.000 para as situações de incumprimento, designadamente por rescisão antecipada do contrato.

Sem que nada o fizesse prever ou justificasse, no entanto, a Ré cessou, a partir de 27 de Setembro de 2007, a aquisição de animais à demandante, assim quebrando a obrigação que pelo aludido acordo havia assumido, e incorrendo, portanto, em uma situação de manifesto incumprimento contratual.

No quadro fáctico acabado de descrever, e não obstante a totalidade dos prejuízos a si causados ascenderem a € 50.064,70 a título de danos emergentes e € 15.000 de lucros cessantes, em 9 de Outubro de 2008 a A. interpelou a demandada no sentido de esta vir a proceder voluntariamente ao pagamento da quantia indemnizatória devida (que, nos termos referidos pela demandante, terá de ser reduzida a € 42.500), por considerar encontrar-se legitimamente accionada a cláusula penal respectiva.

Acontece que a Ré nada fez quanto ao solicitado pagamento, antes se limitando a remeter à A. uma nota de débito datada de 31 de Dezembro de 2008, com vencimento em 15 de Fevereiro de 2009, imputando à demandante uma suposta situação de incumprimento contratual e exigindo da mesma, concomitantemente, o pagamento de € 48.000.

Perante a persistência da atitude inadimplente da demandada, à A. nada mais restou do que proceder, em 3 de Fevereiro de 2009, à denúncia do contrato.

Em suma, inexistindo justificação para uma qualquer diferente decisão, concluiu a A. pela condenação da demandada nos exactos termos peticionados na causa.

Citada, a Ré contestou, arguindo, desde logo, a excepção de representação irregular da A. em juízo (nos termos que ora se têm por integralmente reproduzidos).

No mais, e por impugnação, disse, em síntese, que o âmbito do acordo estabelecido por si e pela demandante impunha que a Ré fornecesse à A. rações e o mais definido no contrato acima referido, enquanto a A. fornecia à Ré coelhos.

Ora, em cumprimento do legalmente estabelecido, em cada fornecimento de coelhos a demandante emitia e entregava à Ré a correspondente factura na qual, e para além do valor da mercadoria comercializada, fazia acrescer a quantia inerente ao imposto sobre o valor acrescentado (I.V.A.), pagando a Ré à A., portanto, para além do preço da mercadoria, o I.V.A. que lhe cabia satisfazer, tendo em vista a posterior dedução desse mesmo I.V.A. junto do Fisco.

Em fins de Novembro de 2006, a Ré foi notificada pelos serviços tributários no sentido de lhe serem fornecidos documentos e informações sobre a A., vindo depois, em meados de 2007, a dar conhecimento à demandada de que o reembolso de I.V.A. – no valor total de € 7.176,51 – por esta pretendido em consequência das facturas emitidas e a si entregues pela A. não seria realizado, uma vez que as mesmas facturas diziam respeito a um sujeito passivo que havia já cessado a sua actividade, em termos fiscais, desde 31 de Dezembro de 2001.

Completamente surpreendida com a questão, a demandada solicitou à A., através do envio de uma carta de 22 de Maio de 2007, a devolução do apontado valor de € 7.176,51 que a Ré havia pago a título de I.V.A. e a A. alegadamente não entregara ao Fisco.

A situação acabada de descrever consubstancia um caso de incumprimento do contrato por banda da A. e a só esta última imputável, pois que, nos termos acordados, a Ré só estava obrigada a comprar os coelhos produzidos pela demandante desde que por esta legalmente comercializados.

A última entrega de coelhos tinha sido efectuada em 27 de Setembro de 2007, e em 17 de Outubro do mesmo ano a Ré recebeu uma notificação dos serviços fiscais dando conta de ter sido penhorado, e até ao montante de € 28.664,56, o saldo credor que a A. pudesse ter sobre a Ré.

Ao saber do acabado de expor, e estando previsto o fornecimento de outros coelhos para o dia 19 de Outubro de 2007, a A. propôs à Ré a realização dessa entrega mas sem a emissão de qualquer factura, algo com que a demandada não concordou nem podia concordar, vindo então, e por isto mesmo, a ser a própria A. a recusar-se a entregar novos coelhos à Ré, fazendo-o a uma outra empresa do ramo.

Por outro lado, e para além de a Ré, ao contrário do que pretendia, se ver impossibilitada de continuar a comprar coelhos à A., deixou também, desde a referida altura (27 de Setembro de 2007), de receber as compras da demandante quanto aos produtos pela Ré comercializados.

Acresce, finalmente, que a A. nunca apresentou à Ré qualquer comprovativo de, junto do Fisco, haver regularizado a sua situação, nem mais lhe comunicou pretender retomar o fornecimento dos coelhos com emissão de factura.

Tomando em conta a invocada situação de incumprimento contratual por parte da  A., deduziu então a Ré pedido reconvencional por via do qual pretendeu a responsabilização da reconvinda no pagamento do montante de € 48.000 decorrente da cláusula penal estipulada pelas partes no contrato em questão nos autos, acrescido dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até efectivo e integral pagamento.

No caso de improcedência da excepção arrimada, pugnou a Ré pelo naufrágio da acção, com a sua absolvição do pedido formulado pela A., tudo sem prejuízo da procedência do pedido reconvencional, com a inerente condenação da reconvinda no pagamento da quantia de € 48.000 referente à cláusula penal prevista no contrato, acrescida dos juros moratórios, à taxa legal, contados desde a notificação do pedido reconvencional à A. até efectivo e integral pagamento.

Replicando, e em síntese, retorquiu a A. dever ser julgada a excepção totalmente improcedente (nos termos e com os doutos fundamentos ora tidos por reproduzidos no respectivo teor).

Já quanto à reconvenção, disse que o problema da falta de cumprimento da entrega ao Fisco dos créditos de I.V.A. foi resolvido logo que a reconvinda, através do seu sócio-gerente, dele tomou conhecimento.

E da resolução do problema acabado de referir foi também a Ré sabedora, que, todavia, não modificou a sua atitude inadimplente de não aquisição de coelhos à reconvinda a partir de 27 de Setembro de 2007.

Terminou, assim, a A. (e uma vez mais) pela procedência da acção, mais invocando a necessidade de improcedência do pedido reconvencional contra si deduzido pela Ré.

O Sr. Juiz da 1.ª instância decidiu assim:

“Por todo o exposto, julgando-se a acção totalmente não provada e improcedente:

Absolve-se a Ré “L…, S.A.” do contra si peticionado nestes autos pela A. “C…, Lda.”.

Custas da acção pela A.

No mais, julgando-se a reconvenção totalmente não provada e improcedente: 

Absolve-se a reconvinda “C…, Lda.” do contra si peticionado nestes autos pela reconvinte “L…, S.A.”.

Custas da reconvenção pela reconvinte.

Registe e notifique”.

2.O Objecto da instância de recurso

Nos termos do art. 684°, n°3 e 685º, do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente.

São as seguintes as conclusões que apresenta a apelante C…, Ldª.:

...

L…, S.A., Recorrida, ao recurso de apelação da sentença, apresenta assim as suas contra alegações:

...

3. A Decisão

A matéria de facto dada como provada pela 1ª Instância – que as partes nesta instância de recurso não censuram - é a seguinte:

...

Pede a autora/apelante que a ré/reconvinte seja condenada no pagamento da quantia global de € 42.500,00, correspondente ao valor da cláusula penal contratualmente estipulada entre A. e Ré, já reduzida dos montantes creditícios de que a demandada é titular.

Logo, como o fez a 1.ª instância – no sentido de que na perspectiva da Ré, a A. não deu exacto e fiel cumprimento ao ditame ínsito à cláusula 2ª do contrato entre demandante e demandada acordado, na parte em que – para o que ora nos interessa – obrigava a Ré a produzir os coelhos de acordo com os critérios legais de comercialização - importa perceber se em cada caso concreto existe ou não uma situação de incumprimento contratual para daí se extraírem as consequências jurídico-civis pertinentes - haverá que verificar se alguma das partes incumpriu a (s) obrigação (ões) a que estava vinculada contratualmente, pois que, nos termos da norma do artigo 798.º do Código Civil – será o diploma a citar sem menção de origem - “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.

A 1.ª instância classificou, assim, o contrato celebrado pelas partes:

“Crê-se que o contrato de fornecimento recíproco entre A. e Ré constituiu, ao cabo e ao resto, a fonte a partir da qual ambas as partes se comprometeram a comprar e a vender entre si os bens definidos no dito contrato, mediante os termos e as condições ali expostos.

Assim, a A. obrigou-se a consumir em exclusivo os produtos comercializados pela Ré, nomeadamente rações, coelhas reprodutoras para reposição e inseminação artificial.

Por outro lado a A. obrigou-se a vender a totalidade dos coelhos produzidos à Ré e esta a comprá-los, desde que tivessem sido legalmente produzidos e comercializados, de acordo com os critérios de qualidade e a calendarização requeridos pela Ré.

A Ré comprometeu-se a pagar à demandante por cada quilo de coelho produzido o preço resultante do cálculo da média aritmética de oito semanas (exactamente as sete semanas anteriores à carga e a semana seguinte à carga), sendo adoptado o preço semanal da Bolsa de Madrid.

O preço dos coelhos reformados era de € 0,50/kg. (peso vivo), e a A. obrigou-se a produzir coelho com o peso vivo médio entre 2,2 e 2,4 kgs. para o coelho standard e 2,6 e 3,0 kgs. para o coelho pesado. Mais se obrigou a mesma A. a produzir e a vender à Ré por cada período de 21 dias um mínimo de 1000 coelhos e um máximo de 1600 coelhos, salvo problemas técnicos ou de força maior antecipadamente constatados pelos técnicos da Ré, constituindo obrigação da A. transmiti-los à sua co-contratante.

Mais sabemos que o contrato estabelecido entre A. e Ré datou de 1 de Maio de 2004, a valer pelo período de um ano, embora com renovações automáticas por iguais e sucessivos períodos temporais a menos que algum dos outorgantes o denunciasse com uma antecedência mínima de 90 dias relativamente à data de renovação (através de carta registada com aviso de recepção enviada à contraparte).

No entanto, a verdade é que a última entrega de coelhos efectuada entre as partes ocorreu em 27 de Setembro de 2007, data a partir da qual não mais procedeu a Ré à recolha de coelhos na exploração da demandante.

Portanto, e como se compreenderá, absolutamente incontornável é a importância, no caso, da celebração de compras e vendas entre A. e Ré – fim de citação.

Analisando.

Decorre do art. 810º do Código Civil que a cláusula penal consiste no acordo celebrado entre as partes do montante da indemnização exigível.

Nos termos do art. 811º, n.º 2 o estabelecimento da cláusula penal obsta a que o credor exija indemnização pelo dano excedente, salvo se outra for a convenção das partes.

Trata-se, de uma liquidação convencional antecipada dos prejuízos, visto não se saber ainda qual o valor real dos prejuízos nem mesmo se eles virão a produzir-se.

É “a estipulação em que as partes convencionaram antecipadamente uma determinada prestação, normalmente uma quantia em dinheiro, que o devedor terá de satisfazer ao credor em caso de não cumprimento, ou de não cumprimento perfeito (maxime, em tempo) da obrigação - Carlos Alberto Mota Pinto “Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. pág. 589 -.

O valor fixado será aquele que o devedor haverá de pagar e o credor de exigir, se se preencher a condição de que depende a obrigação de indemnizar.

Foi o que as partes – na sua quase absoluta liberdade contratual – acordaram, ao escreverem que “É atribuída ao presente contrato uma cláusula penal de € 48.000 (euros) por qualquer situação de incumprimento por parte da primeira ou segunda outorgante, nomeadamente por rescisão antecipada do presente contrato”.

Tal cláusula, reveste assim uma função, fundamentalmente, ressarcitiva e tarifada, de natureza compulsória, actuando como meio de pressão sobre o devedor, mediante a ameaça de uma sanção pecuniária, com vista ao cumprimento pontual das obrigações que assumiu, mas cujos danos advenientes do seu incumprimento ou mora, em consequência da inexecução da obrigação ou da violação do contrato, não importa averiguar, nem determinar o seu montante, na hipótese da sua verificação, e bem assim como, igualmente, o respectivo nexo causal - Acórdão do STJ de 24.4.2012, retirado do site ww.dgsi.pt.

Porém, não pode valer como um simples pacto de simplificação probatória favorável ao credor.

Destinando-se a substituir a indemnização que seria arbitrada pelo juiz, não pode deixar de ser exigível a verificação dos mesmos pressupostos em que essa indemnização poderia ser reclamada, pressupondo, por conseguinte, em termos gerais, a inexecução da obrigação e a culpa do devedor, o que significa que só pode ser efectivada se este, culposamente, não tiver cumprido o contrato.

O que nos mostram os autos:

(Ponto 4.) Em cada fornecimento de coelhos, a A. emitia e entregava à Ré a correspondente factura, na qual, para além do valor da mercadoria comercializada, fazia acrescer o correspondente montante a título de I.V.A.

Mais, (Ponto 5.) entre os anos de 2004 a 2006, a Ré deduziu o referido I.V.A., no montante total de € 7.176,51, nas declarações que apresentou ao Fisco.

Em meados de 2007 (Ponto 8.) a Ré foi notificada de um relatório produzido pela Direcção de Finanças de Coimbra, onde se lê que a A. cessou a sua actividade, em termos fiscais, desde 31 de Dezembro de 2001, facto que a Ré, até então, desconhecia.

(Ponto 9.) A última entrega de coelhos efectuada entre as partes ocorreu em 27 de Setembro de 2007, não mais procedeu a Ré à recolha de coelhos na exploração da autora, com estava contratualmente acordado.

Como refere a 1.ª instância, no seu escrito, “…por um lado, destaque-se a circunstância – normal no comércio jurídico legítimo de um Estado com regras fiscais claras – de, em cada fornecimento de coelhos, a A. emitir e entregar à Ré a correspondente factura, na qual, para além do valor da mercadoria comercializada, fazia acrescer o correspondente montante a título de I.V.A…”

Por isso, entre os anos de 2004 a 2006, a Ré deduziu o referido I.V.A., no montante total de € 7.176,51, nas declarações que apresentou ao Fisco.

Só que em meados de 2007 a Ré foi notificada de um relatório produzido pela Direcção de Finanças de Coimbra, onde se lê que a A. cessou a sua actividade, em termos fiscais, desde 31 de Dezembro de 2001.

Ora, não mais procedeu a Ré à recolha de coelhos na exploração da A., após o dia 27 de Setembro de 2007, porque não enviou esta última àquela – como a Ré pretendia – o acima aludido valor de € 7.176,51 referente ao I.V.A. que a demandada pagara à A. em diversos fornecimentos de coelhos (efectuados da A. à Ré) nos anos de 2004, 2005 e 2006, e que o Fisco não reembolsou à Ré alegando ter a A. cessado a sua actividade, para efeitos fiscais, no período a que dizia respeito tal reembolso pretendido pela Ré.”

Em consequência destes factos, conclui assim, o Sr. Juiz do Círculo Judicial da Figueira da Foz: “… Percebe-se, do conjunto de factos assentes na presente causa, o evidente “emaranhado” de “complicações” fiscais da demandante – que, no tocante à posição da Ré, implicaram que esta última se visse impossibilitada de reaver do Estado as quantias que a título de I.V.A. foi desembolsando nos referidos anos de 2004 a 2006 a propósito das compras de coelhos que efectuou à A..

 Dito de outro modo, porventura mais impressivo, tudo se foi encaminhando para que a demandada não pudesse reapossar-se de algo (reembolso do I.V.A.) a que, nos termos do art. 22º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (C.I.V.A.), teria direito.

Daí que, segundo se crê, não possamos escapar à ideia de que, na perspectiva da Ré, a A. não deu exacto e fiel cumprimento ao ditame ínsito à cláusula 2ª do contrato entre demandante e demandada acordado, na parte em que – para o que ora nos interessa – obrigava a Ré a produzir os coelhos de acordo com os critérios legais de comercialização. Efectivamente, bastará ter uma noção (ainda que incipiente) do papel da (ir)regularidade fiscal de cada ente no circuito comercial – ainda para mais quando essa (ir)regularidade fiscal pode afectar a contraparte nas respectivas relações fiscais com o Estado – para perceber os efeitos perniciosos que o não cumprimento (e sejamos benévolos na análise…) de um dever acessório de conduta (como deter uma situação regular perante o Fisco…) comporta no programa contratual global estabelecido entre as partes…”

Como é sabido, a resolução "é uma das formas de extinção dos contratos - ou "a destruição da relação contratual", como lhe chama Antunes Varela, pág. 265 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4.ª Edição - por vontade unilateral vinculada (a um fundamento legal ou convencional) de um dos contraentes, sendo, em princípio, os seus efeitos retroactivos, isto é, tudo se passando como se o contrato resolvido tivesse sido declarado nulo ou anulado."

Ora, desde logo, salvo o devido respeito por entendimento diferente, parece-nos que da cláusula inserta no contrato - A segunda outorgante – leia-se autora - obriga-se a vender a totalidade dos coelhos produzidos à primeira outorgante – leia-se ré - e esta a comprá-los, desde que tenham sido legalmente produzidos e comercializados, de acordo com os critérios de qualidade e a calendarização requeridos pela primeira outorgante – não resulta claro que as partes aí tenham inserido, como cláusula de resolução, o não pagamento do IVA por parte da ora autora – e depositária de tal imposto, já que sendo o IVA um imposto sobre o consumo, cabe, em regra, ao vendedor ou ao prestador de serviços liquidar tal imposto e substituir-se ao Estado na sua cobrança – não permite a interpretação que dela fez a 1.ª instância.

O que daí resulta é que esta – a ora ré/reconvinte - tinha a obrigação de produzir e comercializar os ditos coelhos, vendendo-os à ora autora, de acordo com os critérios de qualidade e a calendarização requeridos pela primeira outorgante, cuja legislação aplicável a estes contratos é muito exigente e pormenorizada – por isso o conteúdo das cláusulas 3.ª e 4.ª -.

Em momento algum as partes aí colocam que é essencial, – note-se na relação entre as partes e não já com o Estado como arrecadador de impostos – para o bom desenvolvimento da relação contratual que a autora pague atempadamente os seus impostos.

Não o colocando, a não entrega do IVA por parte da autora ao Estado só a estes dizem respeito.

Ou seja, não tendo sido acordado entre os contraentes – em moldes a não deixar quaisquer duvidas -, a relação tributária do imposto, propriamente dita, gera-se exclusivamente, entre o vendedor do bem ou transmitente do serviço, por um lado, e a administração fiscal, pelo outro, com o significado de o vínculo debitório do imposto devido incidir na esfera jurídica - tão-só - daquele, perfeitamente alheada à do seu adquirente ou transmissário.

A sua incidência subjectiva comporta-se, em geral, na pessoa que opere o acto comercial como transmitente do bem ou prestador do serviço tributável, sendo que a exigibilidade do imposto gera-se com o respectivo facto gerador que, se importar obrigação de emitir factura, tem lugar com a emissão dela.

É naturalmente ao respectivo sujeito passivo que compete a obrigação de entregar na administração fiscal o montante do imposto exigível. A importância do imposto liquidado é, por regra, adicionada ao valor da factura, para efeitos da sua repercussão no preço final e exigência aos adquirentes das mercadorias ou utilizadores dos serviços.

Por isso, esta obrigação fiscal do autor não tem a virtualidade de “resolver” o negócio celebrado com a ré/reconvinte – ver a norma do artigo 397.º do Código Civil e o primado do efeito não externo das obrigações -, não podendo esta instância concordar com a decisão em crise – que a recorrida naturalmente acompanha.

Como escreve a apelante, “…a falta de cumprimento de uma obrigação acessória da apelante (sendo a mesma toda ela externa, tal como azeite e água e não passando uma natureza meramente fiscal...).”Obrigação acessória” essa que até poderia mesmo figurar no contrato incumprido pela apelada, mas que realmente não figura, de todo.”

Mas, mesmo que se entendesse que as partes teriam acordado tal obrigação, o valor desta - entre os anos de 2004 a 2006, a Ré deduziu o referido I.V.A., no montante total de € 7.176,51, nas declarações que apresentou ao Fisco – que a ré utilizou para colocar fim ao contrato – (Ponto 20) A situação descrita no ponto 10 (dos presentes factos provados) ficou a dever-se ao facto de a A. não ter enviado à Ré – como esta pretendia – o valor de € 7.176,51 relativo ao I.V.A. que a Ré pagara à A. em diversos fornecimentos de coelhos (desta A. àquela Ré) nos anos de 2004, 2005 e 2006, e que o Fisco não reembolsou à Ré alegando ter a A. cessado a sua actividade, para efeitos fiscais, no período a que dizia respeito tal reembolso pretendido pela Ré -, não justificaria, só por si e na sua simplicidade colocar termo ao contrato celebrado, em que as partes fixaram a sua cláusula penal em € 48.000.

Mais, a A. enviou à Ré – que a recebeu e da qual tomou conhecimento antes de 26 de Junho de 2007 – a carta, de 31 de Maio de 2007, cuja cópia consta de fls. 263 dos autos (e cujo teor ora se tem por reproduzido), na qual refere, além do mais, que “de facto a “C…” encontrou-se indevidamente com a situação de “cessação de I.V.A.” com data de 31/12/2001, segundo constatámos pela consulta da informação ao cadastro fiscal. Esta anomalia já foi corrigida por nós no dia 9 de Março, facto que já é do vosso conhecimento, conforme fax enviado oportunamente a V. Ex.as. O I.V.A. dos períodos que constam da relação do indeferimento do vosso reembolso encontram-se todos pagos. Aliás, a “C…” não está devedora ao Estado, pelo que não compreendemos como os serviços do I.V.A. ainda não actualizaram o respectivo ficheiro”.

Provou-se, ainda, que a A. não esteve com a actividade cessada, em termos fiscais, desde 31 de Dezembro de 2001 até 31 de Dezembro de 2007.

Por isso, não pode este Tribunal concordar com a decisão da 1.ª instância – que a apelada naturalmente acompanha – quando escreve:” Assim (e, note-se, não obstante o muito que terá ficado por provar nas “entrelinhas” da presente causa…), percebe-se a legitimidade da atitude de não continuação da compra de coelhos, pela Ré à A., no contexto acima exposto [contexto esse que configurou, como se deu já a entender, na perspectiva da Ré, uma verdadeira situação de incumprimento contratual da A., na feição de realização de uma prestação (rectius, de várias prestações) defeituosa (s), porque supostamente desconforme(s) com as regras fiscais a que se encontrava vinculada como sujeito tributário normal].

 Ou seja – e é a terceira nota (aqui sob a forma de interrogação) a frisar –, surgiria compreensível e aceitável, do ponto de vista de uma ideia de boa-fé e probidade norteadora das relações obrigacionais (art. 762º/n.º 2 C.C.), exigir a continuação da recepção dos fornecimentos de animais na perspectiva (já demonstrada pelo Fisco) de não ocorrer a posterior compensação tributária por via do I.V.A. a que – em uma lógica comercial e fiscal verdadeiramente sã – uma empresa comercial adquirente sempre teria direito? Crê, pois, o Tribunal não assistir razão à pretensão da A. de, através da presente acção, accionar contra a Ré a cláusula penal prevista no contrato entre ambas celebrado”.

Até, porque, como escreve esta, para fundamentar a não atribuição da referida cláusula, agora à ré/reconvinte, “…mas também a Ré – agora nas suas vestes de reconvinte – pretende extrair consequências contratuais da cláusula penal em causa, mormente pedindo a declaração judicial de que ocorreu um incumprimento definitivo do contrato pela A. e a esta exclusivamente imputável, tornando-se a mesma responsável pelo pagamento da quantia de € 48.000 decorrente da dita cláusula penal (a tal acrescendo juros de mora, à taxa legal, até integral pagamento, contados desde a notificação do pedido reconvencional à reconvinda).Pensa-se que a resposta à questão já ficou subentendida em tudo o até aqui explanado.

Com efeito, vimos que em meados de 2007 a Ré-reconvinte foi notificada de um relatório produzido pela Direcção de Finanças de Coimbra, onde constava que a A.-reconvinda cessara a sua actividade, em termos fiscais, em 31 de Dezembro de 2001.

Mas, na realidade – e para o que ora interessa –, a A.-reconvinda foi sujeito tributário no período temporal, para efeitos fiscais, entre 1 de Janeiro de 2001 e 31 de Dezembro de 2007, altura em que cessou a sua actividade para efeitos de I.V.A. (mantendo-se, todavia, inscrita em I.R.C.).

Se assim é, percebe-se mal o não reembolso do I.V.A. pelo Fisco à Ré-reconvinte…”

Estando provado que o valor de € 7.176,51 relativo ao I.V.A. que a Ré pagara à A. em diversos fornecimentos de coelhos (desta A. àquela Ré) respeita aos anos de 2004, 2005 e 2006, e que o Fisco não reembolsou à Ré alegando ter a A. cessado a sua actividade, no período a que dizia respeito tal reembolso, situação fiscal essa que de facto não existia, só a estes serviços poderão ser exigidas “tais contas” – quanto aos valores do reembolso a que a ré tinha direito -.

Até porque, sendo os pedidos de reembolso indeferidos - quando, não forem facultados pelo sujeito passivo elementos que permitam aferir da legitimidade do reembolso; O imposto dedutível for referente a um sujeito passivo com número de identificação fiscal inexistente ou inválido; O imposto dedutível for referente a um sujeito passivo que tenha suspendido ou cessado a sua actividade no período a que se refere o reembolso (Despacho Normativo n.º 18-A/2010 de 1 de Julho) -, destas decisões de indeferimento cabe recurso hierárquico, reclamação ou impugnação judicial.

Mais, não se provou a matéria de facto dos Pontos 17.º a 21.º, 23.º e parte do Ponto 22.º, cuja alegação e prova pertencia à ora apelada.

Avançando.

Mostrando-se provado que, (Ponto 9.) a última entrega de coelhos efectuada entre as partes ocorreu em 27 de Setembro de 2007 e que a partir da data referida no ponto 9 (da presente matéria factual provada) não mais a Ré procedeu à recolha de coelhos na exploração da demandante, sendo que o fundamento da extinção contratual - ficou a dever-se ao facto de a A. não ter enviado à Ré – como esta pretendia – o valor de € 7.176,51 relativo ao I.V.A. que a Ré pagara à A. em diversos fornecimentos de coelhos (desta A. àquela Ré) nos anos de 2004, 2005 e 2006 -, como supra já dissemos, não pode justificar a resolução contratual e o accionamento, por parte da ré/reconvinte, da cláusula contratual, dando, por isso, razão à apelante e à instância recursiva.

Em consequência de tal comportamento, (Ponto 14) sofreu a A. uma diminuição na sua produção de uma quantidade não concretamente determinada de quilogramas e teve a A. de proceder à eliminação obrigatória de quantidade não concretamente determinada de fêmeas de reposição, sendo que cada fêmea de reposição tinha um valor não concretamente apurado.

A apelante transmitiu um prazo à apelada, advertindo-a claramente de que, caso não fosse cumprida a obrigação, da parte dela, a apelante achar-se-ia com direito à resolução, mantendo-se esta em incumprimento.

Daí que o contrato tenha sido resolvido, com direito, por parte da autora/apelante, ao valor da respectiva cláusula penal, não existindo nos autos quaisquer elementos que permitam/possibilitem utilizar a norma do artigo 812.º n.º 1.

Procede, pois, a instância recursiva.

Passemos ao sumário:

I. Nos termos do art. 811ºn.º 2 do Código Civil o estabelecimento da cláusula penal obsta a que o credor exija indemnização pelo dano excedente, salvo se outra for a convenção das partes. Trata-se de uma liquidação convencional antecipada dos prejuízos, visto não se saber ainda qual o valor real dos prejuízos nem mesmo se eles virão a produzir-se.

II. O valor fixado será aquele que o devedor haverá de pagar e o credor de exigir, se se preencher a condição de que depende a obrigação de indemnizar.

III. Não tendo sido acordado entre os contraentes – em moldes a não deixar quaisquer duvidas -, a relação tributária do imposto, propriamente dita, gera-se exclusivamente entre o vendedor do bem ou transmitente do serviço, por um lado, e a administração fiscal, pelo outro, com o significado de o vínculo debitório do imposto devido incidir na esfera jurídica - tão-só - daquele, perfeitamente alheada à do seu adquirente ou transmissário - ver, também, a norma do artigo 397.º.

Pelas razões expostas, damos provimento ao recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência, condenamos a ré/apelada L…, SA. a pagar, à autora/apelante C…, Lda, a quantia pedida de € 42.500,00 (quarenta e dois mil e quinhentos euros).

Custas pela apelada.

José Avelino  Gonçalves - Relator

Regina Rosa

Artur Dias