Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1990/07.8TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: ÓNUS DE ALEGAÇÃO
FACTOS ESSENCIAIS
CONSENTIMENTO TÁCITO
DELIBERAÇÃO
CESSÃO DE QUOTA
PROCURAÇÃO
Data do Acordão: 01/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DO COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 5º Nº 2 DO NCPC E 230º Nº6 DO CSC
Sumário: I. Impondo o n.º 2 do art.º 5.º do NCPC ao juiz que tome em consideração “os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”, tal significa que tais factos, podendo ser adquiridos para o processo até final do julgamento, terão de ser incluídos na fundamentação de facto na sentença.

II. Estando ainda aqui em causa factos essenciais, ou seja, aqueles que constam da previsão normativa, reconduzindo-se aos factos constitutivos, impeditivos, extintivos ou modificativos, exige todavia a lei uma conexão “objectiva” entre o núcleo da matéria de facto alegada e os factos omitidos no articulado, que se devem configurar como complementares ou concretizadores dos alegados;

III. É de considerar que se verifica a exigida identidade, ainda que parcial, se os RR invocam, embora com deficiente concretização, o reconhecimento de uma cessão não consentida com fundamento na prática, pela ré sociedade, de actos omissivos ao longo dos tempos, após ter tomado conhecimento da transmissão, e o juiz considerou a final outros factos, adquiridos para o processo na fase de julgamento, os quais, em seu entender, preenchiam o conceito de consentimento tácito a que se refere o n.º 6 do art.º 230.º do CSC, não padecendo a sentença proferida do vício do excesso de pronúncia.

IV. Sendo pressuposto de aplicação da solução consagrada no n.º 6 do art.º 230.º do CSC a ausência de deliberação, excluídos da sua previsão ficam os casos em que existiu uma deliberação expressa no sentido da ratificação da cessão efectuada, tendo a mesma sido judicialmente impugnada.

V. Não pode atribuir-se o valor de consentimento tácito à ausência de impugnação das deliberações em que participaram os cessionários na pendência da acção de anulação da deliberação ratificativa da cessão, posto que esta, sendo anulável e deixando de produzir os seus efeitos caso seja anulada por sentença judicial -que tem assim efeitos constitutivos- produz até esse momento, ressalvados os casos de suspensão, os efeitos jurídicos a que tendia.

VI. A procuração no interesse exclusivo do mandatário não opera a transmissão da posição jurídica do “dominus”, que se mantém como seu titular, com os correspondentes poderes de disposição; é assim válida a cessão de quota em que interveio o seu titular, a despeito de ter outorgado em data anterior procuração irrevogável no interesse do mandatário, conferindo-lhe poderes para proceder à transmissão da mesma, sem prejuízo de poder incorrer em responsabilidade por violação do negócio celebrado com o procurador e que constitui a relação subjacente.

Decisão Texto Integral:
I. Relatório
A..., residente na (...), lugar e freguesia de (...), concelho de Águeda, instaurou acção declarativa constitutiva, a seguir a forma ordinária do processo comum, contra:
1) B..., Lda., com sede no lugar e freguesia de (...), Águeda;
2) C...e mulher, D... , residentes no lugar de (...), freguesia de (...), Águeda;
3) E... e mulher, F... , residentes na (...), lugar e freguesia de (...), concelho de Anadia,
4) G..., casado, residente na (...)., freguesia de (...), concelho do Porto;
5) H... e mulher, I... , residentes na (...), em Coimbra;
6) J... , residente no lugar de (...), freguesia de (...), Águeda, e
7) L... , advogado, com domicílio profissional na (...), Águeda, pedindo a final que, na procedência da acção:
“a) fosse declarada nula e ineficaz em relação à ré sociedade e ainda em relação ao sócio autor, a cessão da quota de valor nominal de €134 665,43 com que o sócio E... participa no capital social da mesma sociedade, cessão feita pelo referido sócio e mulher, F..., ao sócio C..., aqui demandado em segundo lugar, e que se encontra registada na Conservatória do Registo Comercial de Águeda sob a menção Dep. 104/2007-03-29, ordenando-se o cancelamento deste registo;
b) fosse declarado nulo e ineficaz em relação à sociedade ré, e também pelo menos em relação ao sócio aqui autor, qualquer acto posterior de cessão da quota referida em a) e/ou da sua divisão e subsequente transmissão das quotas daí resultantes feitas pelo mesmo sócio C... e mulher a favor de seus filhos, os também RR H... e J..., actos a que se reportam as menções Dep. 105/2007-03-29 e Dep. 106/2007-03-29, ordenando-se o cancelamento destes registos;
c) fossem os RR condenados a reconhecerem a validade e eficácia absoluta, em relação a todos eles, aos restantes sócios e a terceiros, da cessão da aludida quota, pertencente a E..., a favor de M... , cessão na qual interveio o autor na qualidade de mandatário do cedente e da sua mulher, os ora 3.ºs RR, fazendo uso de procuração irrevogável por estes outorgada, acto registado na mesma Conservatória do Registo Comercial de Águeda sob a menção Dep. 133/2007-05-15, registo cuja validade e eficácia deve ser declarada;
d) serem todos os RR solidariamente condenados a pagar ao autor a indemnização compensatória de todos os danos, de natureza patrimonial e não patrimonial, sofridos em consequência dos actos por eles praticados, em montante a apurar e liquidar em execução de sentença”.
Em fundamento alegou, em síntese, que a ora 1.ª ré sociedade B..., Lda, foi constituída por escritura pública outorgada em 7 de Julho de 1995, com o capital social de trinta milhões de escudos. Fruto do aumento de capital e sua redenominação para euros, bem como da admissão de novos sócios, o capital social, actualmente fixado em € 1 077 403,46, até início de 2004, data em que os sócios Q...e R... cederam as suas quotas, encontrava-se dividido do seguinte modo:
- seis quotas no valor de €134 665,43 cada, tituladas pelos sócios A..., aqui autor; E..., 3.º réu; G..., demandado em 4.º lugar; V...; N... ; e T...;
- três quotas no valor de € 67 377,72 cada, tituladas pelos sócios C..., ora 2.º réu, Q... e R...;
- duas quotas no valor de € 33 668.87 cada, pertencendo uma ao sócio H... e a outra ao sócio J..., os aqui 5.º e 6.º réus.
Mais alegou resultar evidente da aludida repartição do capital social a preocupação de equilibrar as participações de cada sócio ou grupo de sócios -casos dos irmãos Q... e R... e dos RR C..., H... e J..., estes respectivamente pai e filhos- equilíbrio que a cláusula 5.ª do pacto social visou salvaguardar, fazendo depender a cessão de quotas entre sócios da autorização da sociedade (cf. o seu ponto 3).
Sucede, porém, que por escritura celebrada em 4/4/2002, o sócio E... e mulher, F..., cederam a quota de que o primeiro era titular na sociedade B..., Lda. ao também sócio C.... Este, por seu turno, procedeu à divisão em partes iguais da quota que adquirira ao referido casal, cedendo posteriormente cada uma das quotas assim obtidas aos RR seus filhos H... e J.... Tais actos, não autorizados pela ré sociedade, só posteriormente chegaram ao conhecimento do aqui autor e dos então sócios Q... e R....
Dada a ilegalidade da referida cessão, o autor, acompanhado dos identificados sócios, intentou uma acção, que correu termos no Tribunal Judicial de Águeda, pedindo que a aludida transmissão e qualquer acto posterior a ela fossem declarados nulos e ineficazes em relação à sociedade e aos ali demandantes, com o cancelamento dos correspondentes registos.
Por sentença proferida em 9/12/2003, posteriormente confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, transitado em julgado em 20/7/2006, foi declarada ineficaz em relação ao autor e à sociedade ora ré a referida cessão de quotas, bem como qualquer acto de transmissão e/ou divisão das mesmas, tendo sido ordenado o cancelamento dos registos efectuados na competente conservatória, mantendo-se deste modo, e por força da aludida decisão, na titularidade do sócio E... a participação social no valor de € 134 664,43.
Sucede que por procuração outorgada em 7 de Julho de 1995, os RR E... e mulher haviam constituído o A. e sua esposa seus procuradores bastantes, concedendo-lhes poderes para, em conjunto ou separadamente, cederem, pelo preço e condições que entendessem, a quota de que o réu marido era titular na sociedade.
Tendo surgido, após o trânsito em julgado da referida decisão, uma oportunidade de cedência da quota, deu o autor cumprimento ao estatuído no contrato social, solicitando a convocação de uma assembleia-geral tendo em vista obter da sociedade ré a necessária autorização para a cedência a terceiros, caso nem aquela nem os demais sócios estivessem interessados em exercer o direito de preferência que no mesmo contrato lhes é atribuído. À carta enviada com a referida solicitação respondeu a ré sociedade decorridos 41 dias, tendo comunicado, em missiva datada de 23 de Abril de 2007, que a participação pretendida ceder já não se encontrava na titularidade do sócio E....
Decorridos 60 dias sem que a sociedade procedesse à pedida convocatória, o autor, na qualidade de procurador do sócio E... e mulher, cedeu a M... a quota de que o cedente marido era titular na sociedade ré, acto formalizado por escritura pública outorgada no dia 15 de Maio de 2007. E só na sequência do pedido de registo do acto em causa é que veio a tomar conhecimento da existência da menção correspondente ao Dep. 104/2007-03-29, referente à “transmissão de quota de E... para C...” e de duas outras menções -resultantes dos Dep. 105/2007-03-29 e 106/2007-03-29- atinentes à divisão da quota adquirida em duas, no valor de € 67 337,72 cada, e sua subsequente cessão aos sócios H... e J....
A cedência da quota original, bem como as suas subsequentes divisão e cedência aos filhos do cessionário, os aqui RR H... e J..., desconhecendo embora o demandante os termos dos negócios em causa, posto que a inscrição registral se efectua por mero depósito, continuam a ser nulas e ineficazes em relação à sociedade e também ao sócio aqui autor, porque não consentidos, sendo certo que não foi dada aos sócios não cedentes a faculdade de participarem da cessão, direito estatutariamente consagrado. Daí que deva ser declarada a sua nulidade e ineficácia em relação à ré sociedade e ao aqui autor, conforme peticiona.
Subsidiariamente, invocando ter sofridos danos em razão das descritas condutas culposas dos RR -prejuízos decorrentes dos encargos que diz ter suportado para “solidificar a cessão” entretanto realizada, e também danos de natureza não patrimonial, estes devido “às agruras e afronta à sua honra que o registo requerido na Conservatória lhe causou”-, reclamou o seu ressarcimento em montante a liquidar, aqui justificando a demanda do 7.º réu, Dr. L..., pela circunstância de ter sido o Il. Causídico responsável pela realização do registo, bem sabendo que o mesmo era incorrecto, uma vez que havia tido intervenção na precedente acção.
*
Citados, contestaram os réus C..., D..., E..., F..., G..., H..., I... e J... em peça única na qual, defendendo-se por excepção, arguiram o caso julgado, invocando ser a presente acção mera repetição da que correu termos no TJ da Anadia sob o n.º 17/03.3TBAGD.
Em sede de impugnação, alegaram que os actos transmissivos da quota titulada pelo sócio A E..., tendo embora sido declarados ineficazes, não sofriam de qualquer vício que os invalidasse, razão pela qual, apesar de peticionada pelo autor, não foi naquela acção declarada a respectiva nulidade. Sendo válidas as transmissões e conhecidas da sociedade ré, a quem haviam sido comunicadas, e também dos sócios, nada tendo aquela deliberado após o trânsito em julgado do acórdão do STJ, ocorrido em 20/7/2006, sobre o pedido antes apresentado, a eficácia da cessão deixou de estar na dependência do consentimento da sociedade como estatuído no n.º 4 do art.º 230.º do CSC. Mais alegaram que, ainda a não ter existido tal comunicação, uma vez que a sociedade tomou conhecimento das referidas transmissões, as quais foram objecto de discussão e deliberação em sede de assembleia-geral, tal equivale ao seu reconhecimento.
Por outro lado, a ser entendido que a sociedade ré recusou o seu consentimento, uma vez que a recusa não se fez acompanhar da proposta de amortização ou aquisição imposta por lei, a cessão tornou-se livre. E tornada livre a cessão por uma ou outra das referidas vias, podiam os transmissários levar a registo os actos de transmissão, conforme fizeram.
Alegaram finalmente que, sendo válidas e eficazes as referidas transmissões, a posterior cedência da quota nos termos do negócio celebrado entre o autor, como procurador do sócio A E..., e o cessionário M..., configura uma venda de coisa alheia, devendo por isso ser declarada nula, ordenando-se o cancelamento do respectivo registo, pretensões que formularam em via reconvencional.
*
Contestação em tudo idêntica ofereceu a ré sociedade, pedindo a final, em via reconvencional:
“) fosse reconhecida como válida e eficaz a cessão de quota de E... a C... e a posterior divisão e cessão de quotas deste último a H... e J...;
b) fosse reconhecida a nulidade da cessão de quota de E... a M..., por se tratar da venda de coisa alheia, e ainda a ineficácia do mesmo acto perante os verdadeiros titulares da quota, sendo ordenado o cancelamento do respectivo registo”.
O autor replicou, pronunciou-se no sentido da improcedência das excepções e pedidos reconvencionais deduzidos pelos réus, concluindo como na petição inicial.
*
Por despacho de 22/11/2011 (fls. 615/616), e na sequência da dedução do pedido reconvencional, foi admitido o chamamento de M... e mulher, O... , como associados do reconvindo, tendo os mesmos declarado fazer seus os articulados por este apresentados.
*
Frustrada tentativa de conciliação das partes, foi proferido despacho saneador, no qual foi sumariamente julgada improcedente a arguida excepção de caso julgado, prosseguindo os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória. De ambas as peças reclamaram os RR de 2.º a 6.º, invocando existir erro no que respeita ao facto especificado em B) e acusando a base instrutória de omissiva, pretendendo o aditamento da matéria alegada em sede de contestação sob os art.ºs 29.º, 29.º (ocorreu repetição na numeração), 30.º, 58.º, 59.º, 62.º, 63.º, 74.º, 102.º, 103.º e 105.º, reclamação totalmente indeferida com o argumento de que a factualidade assente correspondia à matéria alegada e aceite pelas partes, sendo os factos pretendidos aditar irrelevantes (cf. despacho de fls. 760) Faz-se notar que, a despeito de tal juízo de irrelevância, os factos em causa -maxime os alegados nos art.ºs 29.º, 29.º, 30.º, 74.º, 102.º, 103.º e 105.º- vieram a ser considerados na sentença final, nos seus pontos 16. a 20., da qual constam em aditamento à matéria que provinha do elenco dos factos assentes. Tal questão, todavia, não foi suscitada em sede de recurso sendo certo que, tratando-se de factos oportunamente alegados e documentalmente comprovados, a sua consideração é permitida à luz do que preceitua o n.º 4 do art.º 607.º do CPC..
Teve lugar audiência de julgamento em cujo termo foi proferida sentença que, na improcedência da acção e procedência da reconvenção, decretou:
“ a) Absolver os réus da totalidade do pedido formulado pelo autor A....
b) Reconhecer como válida e eficaz a cessão de quota de E... a C... e a posterior divisão e cessão de quotas deste último a H... e J....
c) Declarar nulo o negócio de cessão de quota celebrado entre E... e o reconvindo/cessionário M..., a que se reporta a escritura lavrada no Cartório Notarial de Águeda em 15 de Maio de 2007, e, consequentemente, ineficaz perante os titulares da quota.
d) Ordenar o cancelamento do registo, lavrado na Conservatória do Registo Comercial de Águeda, referente à cessão de 15 de Maio de 2007 (Menção – Dep. 133/2007-05-15)”.
*
Inconformado, recorreu o autor e, tendo apresentado doutas alegações, rematou-as com as seguintes conclusões:
“1.ª- O Mº. Juiz a quo excedeu os seus poderes de pronúncia por ter apreciado questões não submetidas à sua apreciação e não alegadas, sendo certo que a natureza das mesmas não permite a pronúncia oficiosa;
2.ª- Porque não foi alegada, tal matéria não foi objecto de prova e, portanto nunca poderia servir de base à decisão;
3.ª- Assim, a douta sentença recorrida encontra-se eivada de nulidade, porquanto apreciou e decidiu questões que lhe estavam vedadas nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do Art.º 615.º do CPC;
4.ª- Os dois artigos da Base Instrutória são manifestamente conclusivos, pelo que devem ser tidos como não escritos;
5.ª- As assembleias-gerais mencionadas no Ponto 21. da douta sentença recorrida tiveram lugar na pendência da acção judicial a que se refere o ponto 5. da mesma douta sentença, a qual deu entrada em Tribunal em 06-01-2003 e esteve pendente até nela ser proferido o douto Acórdão do STJ em 20-04-2006, ou na pendência da presente acção entrada em tribunal em 26-07-2007;
6.ª- E estas acções foram instauradas pelos autores precisamente para impugnarem a validade da transmissão da quota entre os sócios sem o consentimento da sociedade;
7.ª- Os RR. C... e os filhos H... e J... estiveram presentes nas assembleias-gerais referidas no mesmo ponto 21. e tomaram parte nas deliberações, mas tal facto não tem a relevância que o Tribunal a quo lhe atribuiu, uma vez que estes já eram sócios da Ré sociedade B..., Lda. antes da divisão e cessão de quotas a que se reportam os autos e, portanto, a sua presença e direito a deliberar não podia ser posto em causa.
8.ª- Nas assembleias-gerais da sociedade ré que tiveram lugar na pendência da presente acção judicial, sempre o Autor A...ou quem o representou nas diversas assembleias, deixou exarada em acta uma declaração com o seguinte teor ou com teor semelhante: “O sócio A... não concorda com a composição do capital social apresentado e não reconhece a quota titulada por J..., no valor de 67.337,71 euros, como também não reconhece a quota titulada por H... no valor de 67.337,72 euros”.
9.ª- As deliberações tomadas nas assembleias-gerais da sociedade ré nada tinham a ver com quotas de sócios e com a sua posição no capital social, mas sim com aprovação de contas ou outros assuntos atinentes ao normal desenvolvimento da actividade da sociedade ré.
10.ª- A sociedade ré nunca, expressa ou tacitamente, deu o seu consentimento à cessão de quotas do Réu E... ao sócio C..., ou deste último aos seus filhos e sócios H... e J....
11.ª- Os réus nunca pediram à sociedade ré o consentimento para a cessão de quotas;
12.ª- Nem nunca lhe comunicaram que tivessem procedido a quaisquer cessões de quotas;
13.ª- Nunca mais tal assunto foi tratado em qualquer assembleia-geral;
14.ª- Os Apelantes dispunham de uma decisão do STJ que lhes era favorável;
15.ª- A procuração outorgada no Cartório Notarial de Vagos em 7 de Julho de 1995 foi outorgada no interesse dos mandatários (o autor A... e mulher P...) os quais já não teriam quaisquer contas a prestar aos demandantes, sendo irrevogável.
16.ª- Constitui tal procuração um documento autêntico, que não foi revogado – e não o poderia ser nos seus próprios termos - e, como tal, tem força probatória plena.
17.ª- No uso dos poderes que lhe eram conferidos através da dita procuração pelos mandatários E... e esposa F..., o autor A..., como procurador dos mesmos outorgou a escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Águeda em 15 de Maio de 2007, em que declarou ceder a M..., pelo valor nominal de 134.665,43€, a quota de que o mandante era titular na sociedade ré B..., Lda.
18.ª- Esta cessão da quota é perfeitamente válida, pois que foi celebrada com uma procuração irrevogável outorgada em 7 de Julho de 1995.
19.ª- Quando, em 4 de Abril de 2002 o réu E... declarou ceder a quota ao réu C..., já esta não lhe pertencia, já tinha alienado o seu direito de disposição sobre a mesma através de um documento autentico – a procuração irrevogável que passou a favor do autor A...e mulher.
20.ª- Esta cessão de quotas constitui uma “venda a non domino” e, portanto, ferida de nulidade.
21.ª- Salvo devido respeito o Mº Juiz a quo fez errada interpretação das normas dos Artºs 265 nº 3, Artºs 369º, nº 1, 371º, nº 1, 892º e 1170, nº 2 do Código Civil; 228º, nº 3 e 230, nº 6 do Código das Sociedades Comerciais; 608º, nº 2, 615º, nº 1, al. d) do Código de Processo Civil.
Com tais fundamentos pretende que, na procedência do recurso, seja proferido acórdão que julgue procedente a acção e improcedente a reconvenção: “a) declarando nula e ineficaz a cessão de quota de E... a C... e a posterior divisão e cessão de quotas deste último a H... e J...; b) declarando válida e eficaz a cessão de quotas celebrada entre o réu E... e o autor M..., através da escritura lavrada no Cartório Notarial de Águeda em 15 de Maio de 2007, c) ordenando o cancelamento do registo lavrado na Conservatória do Registo Comercial de Águeda referente às cessões e divisão de quotas referida na al. a) – Dep. 104/2007-03-29”.
*
Contra alegaram os RR demandados de 2.º a 6.º e, tendo pugnando naturalmente pela manutenção do julgado, ampliaram o objecto do recurso, impugnando nesta sede a resposta dada ao art.º 2.º da base instrutória, que pretendem positiva, mais tendo interposto recurso subordinado da sentença, este não admitido.
Também a ré sociedade apresentou contra alegações, defendendo a manutenção da sentença apelada e requerendo, também ela, a ampliação do objecto do recurso, visando igualmente a reapreciação da matéria vertida no art.º 2.º da base instrutória, tendendo a inverter a resposta que lhe foi dada.
*
Sabido que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são questões a decidir:
i. indagar da nulidade da sentença proferida por excesso de pronúncia;
ii. determinar se as transmissões que o autor pretende serem nulas e ineficazes foram objecto de consentimento tácito por banda da sociedade ré;
iii. indagar da vaIidade do negócio de cessão da quota celebrado entre E... e o interveniente M...
iv. no âmbito da ampliação do objecto do recurso decidir se a matéria vertida no art.º 2.º da base instrutória deverá ser considerada assente.
*
i. da nulidade da sentença proferida por excesso de pronúncia
O apelante imputa à sentença recorrida o vício extremo da nulidade previsto na al. d) do n.º 1 do art.º 607.º, por ter apreciado questões de que não podia tomar conhecimento.
Fundamenta tal vício na circunstância do Mm.º juiz “a quo” ter considerado o facto assente na sentença sob o n.º 21., o qual não constava, nem do elenco dos factos assentes, nem da base instrutória oportunamente elaborada. Tal matéria, diz, não tendo sido alegada por qualquer das partes, não poderia motivar a decisão proferida.
Acrescenta que os artigos da base instrutória, com maior incidência o art.º 2.º, são eminentemente conclusivos, donde deverem ser tidos como não escritos.
Vejamos pois da razão que lhe assiste (ou não).
Começando precisamente por este último aspecto, cabe desde logo afirmar não se impor conhecer do recurso no que respeita à objecção colocada à formulação do art.º 1.º da base instrutória. Com efeito, independentemente da justeza da crítica que assim lhe foi dirigida, a verdade é que, tendo merecido do Tribunal resposta negativa, nenhuma das partes impugnou este segmento da decisão ou sequer atribuiu a tal matéria, fosse no recurso, fosse na requerida ampliação, qualquer relevância -daí que a pronúncia sobre a questão, porque inconsequente, configurasse a prática de um acto inútil e, nessa medida, proibido pelo art.º 130.º do CPC.
No que se reporta ao art.º 2.º da base instrutória, ingressou no elenco dos factos não provados com uma redacção restritiva quando se considere a sua formulação.
Perguntava-se no artigo em referência se “As cessões do sócio E... para o sócio C... e deste último para os sócios H... e J... foram reconhecidas pela sociedade”. O Tribunal, na sentença, fez ingressar no elenco dos factos não provados que “as cessões do sócio E... para o sócio C... e deste último para os sócios H... e J... foram expressamente reconhecidas pela sociedade”, assim restringindo o âmbito da questão a que respondeu negativamente e salvaguardando a possibilidade -outro não será, afigura-se, o sentido útil da restrição- de vir a considerar a existência de um reconhecimento tácito.
Note-se que a peça em referência -base instrutória- foi naturalmente elaborada ao abrigo do CPC cessante, devendo conter, consoante previa a al. e) do n.º 1 do cessante art.º 508.º-A, a matéria de facto relevante sobre a qual iriam incidir as diligências instrutórias. Tal preceito harmonizava-se com a disposição contida no art.º 513.º que, epigrafado de “Objecto da prova”, consagrava que a instrução tinha por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devessem considerar-se controvertidos ou necessitados de prova. E porque de factos se tratava, o n.º 4 do art.º 646.º sancionava a resposta que viesse a recair sobre questões de direito, determinando que a mesma se haveria de ter por não escrita (cf. n.º 4 do art.º 646.º) Ao invés, parece ser de admitir que a enunciação dos temas da prova hoje prevista no n.º 1 do art.º 596.º assuma um carácter genérico e até conclusivo, elegendo-se como tal, por exemplo, a validade do contrato. Todavia, a decisão da matéria de facto já não deverá conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, exigindo-se nesta sede que o juiz se pronuncie sobre os factos essenciais e ainda os instrumentais que assumam pertinência para a questão decidenda.
.
Do que vem de se expor resulta que o reconhecimento perguntado no artigo em referência, quando o que estava em causa era precisamente a validade e eficácia da transmissão de uma quota social, tem inequívoca natureza de questão jurídica, não valendo a pena argumentar, conforme fazem os apelados, que a palavra “reconhecimento” tem um sentido comum, de todos conhecido, porquanto, no contexto em que foi utilizada nas contestações apresentadas e daí importada para o referido artigo da base instrutória, trata-se inequivocamente de conceito jurídico, tal qual surge mencionado no n.º 3 do art.º 228.º do CSC. E porque assim era, carecia naturalmente a parte que da excepção aqui consagrada se quisesse prevalecer, de alegar os necessários factos concretizadores. Daí que não nos pareça aceitável a formulação do artigo em causa, nos termos em que o foi.
A despeito do que acaba de se referir, a verdade é que o desvalor da base instrutória não se repercute na validade da sentença; conforme se fez notar, a resposta que ao referido artigo viesse a ser dada é que ficaria sujeita à sanção prescrita pelo citado n.º 4 do art.º 646.º, sem afectar formalmente a sentença que viesse a ser proferida.
No caso em apreço, tendo-se a audiência de julgamento desenrolado e a subsequente sentença sido proferida já sob a égide do NCPC (que não contém disposição similar ao referido n.º 4 do art.º 646.º), constata-se ter o Mm.º juiz “a quo” feito ingressar na sentença factos que não constavam do elenco dos assentes, nem haviam sido seleccionados para a base instrutória, nomeadamente o aqui referido facto 21., para concluir que a ré sociedade deu, ainda que tacitamente, o seu consentimento à cessão inicial da quota originariamente titulada pelo sócio e aqui réu E..., sendo válidas as transmissões subsequentes.
Ora, se é certo que nada obstava, ainda no domínio do anterior CPC, a que o juiz tomasse em consideração na sentença os factos “admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito” (cf. n.º 3 do art.º 659.º) Os quais poderiam, aliás, ser ainda considerados em momento posterior, já em sede de recurso, quer pela Relação, quer pelo STJ (cf. art.ºs 713.º, n.º 2 e 726.º), solução que hoje surge amplamente consagrada no n.º 4 do art.º 607.º Que assim dispõe: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”. -disposição que já se encontrava em vigor, note-se, à data em que a sentença apelada foi proferida-, cabe todavia indagar dos limites à consideração de tais factos adquiridos no processo e em que termos se harmoniza com o princípio dispositivo -enquanto “liberdade das partes na decisão de propositura da acção, sobre os exactos limites do seu objecto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às excepções peremptórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transaccionar)” Prof. Dr.ª Mariana França Gouveia, “O princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: a incessante procura da flexibilidade processual”, in “Estudos em Homenagem aos Profs. Palma Carlos e Castro Mendes”, acessível on line.- que ainda vigora claramente na nossa lei processual civil (cf. o art.º 3.º e n.º 1 do art.º 5.º).
A questão assim colocada assume tanto mais relevo quanto se tenha em mente que, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), normativo que reproduziu sem alterações o predecessor art.º 668.º, a sentença continua a ser nula “Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, ou seja, de todos os pedidos formulados, todas as causas de pedir invocadas e todas as excepções deduzidas (art.º 608.º, n.º 2), é nula a sentença quando deixe de se pronunciar sobre algum deles e ainda quando, não tendo sido invocados, deles conheça, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso, nisto consistindo o fundamento da nulidade aqui previsto. E é isto que na realidade está aqui em causa: considerou o Mm.º juiz factos não alegados, integradores de uma excepção não invocada pelos RR, e dela conheceu estando-lhe interditado tal conhecimento?
O art.º 5.º, n.º 1, epigrafado de “Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal”, continua a fazer recair sobre as partes o ónus da alegação dos “factos essenciais que constituem a causa de pedir e [d]aqueles em que se baseiam as excepções invocadas” (vide n.º 1). Os factos essenciais que constituem a causa de pedir devem ser alegados pelo autor na petição inicial (art.º 552.º), mantendo-se o princípio de que toda a defesa deve ser deduzida na contestação, ou seja, também o réu está obrigado a alegar nesta peça os factos essenciais que consubstanciam as excepções (art.ºs 572.º, al. c) e 573.º, n.ºs 1 e 2).
Pese embora tal regime normativo -que nenhuma alteração de relevo introduziu ao regime cessante, posto que se mantém o efeito preclusivo quanto aos factos essenciais- nos termos da al. b) do n.º 2 do art.º 5.º, impõe-se ao juiz que tome em consideração “os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”. Tais factos complementares ou concretizadores, categoria a que se referia o art.º 264.º, n.º 3 da lei cessante Com o seguinte teor: “Serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório”., podendo ser adquiridos para o processo até final do julgamento, terão assim de ser incluídos na fundamentação de facto na sentença, ainda que sem apoio nos articulados das partes.
Apesar da nova lei não definir os factos complementares ou concretizadores exactamente nos termos anteriores, tendo sido suprimido o qualificativo “essenciais”, tal como omitida foi a referência à manifestação de vontade da parte interessada em deles se aproveitar, parece dever entender-se que estamos, ainda aqui, perante factos essenciais, ou seja, aqueles que constam da previsão normativa, reconduzindo-se aos factos constitutivos, impeditivos, extintivos ou modificativos, destinando-se a norma em análise, tal como acontecia no regime cessante, a aligeirar o consagrado efeito preclusivo, deslocando para o termo do julgamento o limite temporal da inclusão no processo destes factos principais Assim, Prof. Mariana França Gouveia, estudo citado. No sentido de que se trata de factos essenciais, também o Prof. Lebre de Freitas, no estudo “Sobre o novo Código de Processo Civil” (uma visão de fora), ROA 2013, acessível on line, no seu ponto 5. .
Todavia, exigindo a lei uma conexão “objectiva” entre o núcleo da matéria de facto alegada e os factos omitidos no articulado, que se devem configurar como complementares ou concretizadores dos alegados, daqui resulta impedimento à consideração de outros que impliquem uma alteração do objecto do processo, que se encontra duplamente circunscrito pela causa de pedir e pelas excepções na devida oportunidade invocadas. Parece, pois, ser de manter o entendimento de que estão aqui em causa particularmente duas situações paradigmáticas:
“a) a alegação pela parte do núcleo fáctico essencial da sua pretensão ou defesa, omitindo, porém, a alegação de um elemento parcelar (segmento ou circunstância) integrador de uma “fattispecie” complexa, de cuja integralidade dependia a produção do efeito jurídico pretendido – por lapso manifesto ou erro acerca da exacta configuração jurídica a atribuir a tal segmento da matéria de facto (…);
b) a alegação pela parte de uma “conclusão” ou “conceito meramente normativo” que, no âmbito da acção em causa, não concretiza, especifica ou densifica, em termos considerados bastantes, um elemento parcelar de uma “fattispecie” normativa complexa. (…) Ou seja: tendo a parte alegado satisfatoriamente o núcleo fáctico essencial, integrador da causa de pedir ou da excepção deduzida (…) omite a concretização ou densificação de um segmento ou circunstância que acaba por se revelar fundamental para a procedência da acção, da reconvenção ou da excepção” Prof. Lopes do Rego, em comentário ao n.º 3 do art.º 264.º cessante, no seu “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, pág. 254. .
Cabe por último referir que, resultando aparentemente da letra da citada al. b) do n.º 2 do art.º 5.º derrogação do princípio dispositivo, face à omissão da referência à necessidade de declaração de vontade por banda da parte interessada em aproveitar-se dos factos em causa, para quem entenda que, face à manutenção do ónus de alegação dos factos essenciais constante da n.º 1 do preceito, continua a ser necessária uma sua actuação positiva, parece que nada obsta a que da pronúncia que haja de fazer sobre tais factos, para o que será necessariamente notificada, se retire o seu acordo -tácito ou expresso- à alegação e consequente consideração dos mesmos Neste preciso sentido, Profs. Mariana França Gouveia e Lebre de Freitas nos estudos citados..
Isto dito, debrucemo-nos então sobre o caso que nos ocupa.
Para o que ora releva está em causa, como se relatou, a cessão de uma participação social entre sócios no âmbito de sociedade por quotas, e ainda a sua subsequente divisão e cedência das duas quotas aí resultantes a dois outros sócios, actos transmissivos que o autor pretende inválidos e ineficazes por não terem sido consentidos pela sociedade, não tendo igualmente sido dada a possibilidade aos restantes sócios de participarem na cessão, conforme impunha o respectivo contrato societário.
Detenhamo-nos agora sobre as contestações apresentadas.
A demandada sociedade, tendo impugnado diversa factualidade alegada pelo autor, reconheceu -art. 5.º- que a cessão da quota titulada pelo sócio E... foi efectivamente realizada sem o seu consentimento prévio.
Mais alegou, nos art.ºs 33 e seguintes, que “As cessões de quotas em causa foram reconhecidas pela sociedade”; “A sociedade ré reconheceu as transmissões de quotas aqui em causa, tanto mais que houve uma deliberação da assembleia-geral que incidiu sobre as mesmas”, “Pelo que tais cessões foram reconhecidas pela sociedade ré”.
Os demais RR contestantes, por seu turno, no que respeita à matéria da aludida excepção, alegaram que “Para além de comunicadas, as transmissões em causa foram reconhecidas pela sociedade ré” (art.º 60.º); que “delas teve conhecimento, tanto mais que se realizou uma assembleia-geral no dia 21/11/2002, onde se discutiu e deliberou sobre o consentimento da sociedade sobre essas mesmas cessões” (art.º 62.º); “a partir de então, quer a sociedade, quer os demais sócios, passaram a ter conhecimento dos negócios validamente realizados sobre aquela participação social (art.º 64.º); “tendo tomado conhecimento das referidas transmissões, que foram objecto de discussão e deliberação em assembleia-geral, tal equivale ao reconhecimento das referidas transmissões” (art.º 68.º).
O Mm.º Juiz a quo deu por assente, no fulcral ponto 21. da sentença, que “O autor e os RR H... e J... estiveram presentes em assembleias-gerais da sociedade ré realizadas em 5/2/2003, 11/2/2003, 19/2/2003, 24/4/2003, 11/11/2003, 23/4/2004, 7/12/2004, 2/3/2005, 14/4/2005, 4/5/2006, 25/5/2007, 28/5/2008, 27/5/2009, 26/5/2010 e 6/11/2011, tendo todos tomado parte nas deliberações aí votadas, deliberações essas que não foram impugnadas judicialmente (documentos de fls. 806 a 810, 813, 814, 815 a 817, 818 a 821, 825 a 828, 829 a 833, 836, 837, 842 a 844, 854 e 859 a 862)”. Tais documentos são as actas das referidas assembleias-gerais, tendo sido também considerado o teor da certidão emitida pela Conservatória do Registo Comercial junta pela ré tendo em vista demonstrar nos autos o registo da reconvenção, constante de fls. 685 a 699.
Os documentos em causa -e, com eles, o facto assim especificado- ingressaram no processo por iniciativa conjunta do Mm.º juiz e da Il. mandatária da ré sociedade, encontrando-se consignado na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 28 de Janeiro de 2014 que “De seguida, pela ilustre mandatária dos RR Embora na acta de fls. 863 a 866, maxime fls. 865, se faça menção à Il. Mandatária dos RR, trata-se antes da Il. advogada que representa apenas a ré sociedade, conforme resulta claro do requerimento de fls. 868, nos termos do qual requereu a junção de cópias legíveis do aludido documento. foi exibido um documento constituído por 69 folhas que o Mm.º juiz determinou que fosse junto aos autos, por poder relevar para a decisão da causa”.
Junto o documento e ordenada a notificação das partes para sobre o mesmo se pronunciarem, fizeram notar os demais RR que dele resultava “terem estado presentes ou representados nas aludidas assembleias-gerais os RR C..., H... e J... também na qualidade de titulares da quota transmitida em 4/4/2002 pelo referido E...; nessa mesma qualidade participaram na discussão e aprovação dos diversos pontos da ordem de trabalhos, usaram o seu direito de voto e as actas em causa, sendo que o cedente nunca mais compareceu ou participou nas assembleias da sociedade ré; nalguns casos o quórum deliberativo e a maioria dos votos para que as deliberações fossem tomadas só foram alcançados com os votos correspondentes à quota em litígio; e nenhuma das aludidas deliberações foi judicialmente impugnada”, donde dever-se concluir que “a sociedade, com os referidos actos e comportamentos por todos assumidos nas referidas assembleias, reconheceu tacitamente as transmissões das quotas em litígio” (cf. 916 a 918).
Face aos termos da pronúncia efectuada e de que se deu conta, afigura-se inequívoco que os RR contestantes pretenderam prevalecer-se dos factos assim trazidos ao processo na fase de julgamento, tal como de resto foi claramente entendido pelo autor que, no exercício do contraditório, refutou que dos documentos em causa pudesse extrair-se o invocado reconhecimento (cf. fls. 922-923). Incontornável é também a circunstância do Mm.º Juiz “a quo” ter relevado o facto -mais rigorosamente o complexo de factos incluídos naquele ponto 21.-, que se revelou decisivo para o sentido da decisão (cf. fls. 42-43 da sentença apelada).
Pois bem, aqui chegados, cumpre indagar se, neste caso concreto, a decisão assim proferida padece do vício da nulidade assacada pelo recorrente ou a consideração dos factos em causa, ainda que integrativos de excepção peremptória, é lícita à luz do invocado art.º 5.º do NCPC.
Parece não oferecer dúvida que a matéria da excepção invocada pelos RR se apresenta deficientemente concretizada em ambas as contestações. Todavia, não deixaram os contestantes de, em essência, assentarem o invocado reconhecimento numa conduta omissiva da ré sociedade, com destaque para o período posterior ao trânsito em julgado do acórdão do STJ. E assim sendo, cremos que os factos considerados pelo Mmº juiz, a despeito de não terem sido alegados na devida oportunidade, não implicam uma alteração do objecto do processo.
Não se afigura questionável que o NCPC, na esteira, aliás, do espírito que presidiu à Reforma de 95/96, tem como grande princípio informador a prevalência da decisão de mérito sobre a decisão de forma A intenção do legislador resultava já do anúncio efectuado na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, quando erigiu em princípio informador do processo a prevalência do mérito sobre questões de forma, proclamando que toda a actividade processual deve ser orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma. . Nesta senda, constava da exposição de motivos da proposta de Lei enviada pelo Governo à AR a referência “à possibilidade de, ao longo de toda a tramitação (…) vir a entrar nos autos um acervo factual merecedor de consideração pelo Tribunal com vista à justa composição do litígio”. É certo que, mau grado tal intenção, o regime consagrado é aquele que se analisou, continuando a exigir-se a aludida conexão objectiva entre os factos complementares ou concretizadores que poderão ser considerados a final nos termos permitidos pela al. b) do n.º 2 do art.º 5.º e os inicialmente alegados. Todavia, na interpretação do preceito deverá decerto intervir aquele que se sabe ter sido o pensamento legislativo, animado de um ímpeto flexibilizador, bem como a unidade do sistema, no qual pontificam soluções que reflectem tal filosofia, elementos interpretativos que afastam uma sua leitura restritiva (cf. art.º 9.º do Código Civil).
Cremos assim que, verificando-se, no caso em apreço, a exigida identidade, ainda que parcial, entre os termos da alegação e os factos que vieram a ser considerados nos termos antecedentemente expostos, são estes de qualificar como complementares e concretizadores dos antes -e, repete-se, deficientemente- alegados No sentido de que não há alteração da causa de pedir (raciocínio igualmente aplicável às excepções) sempre que estes factos principais -refere-se a autora aos complementares ou concretizadores– tenham para com os inicialmente alegados uma identidade parcial, Prof.ª Mariana França Gouveia, no estudo citado.em suporte da aludida matéria exceptiva. Com efeito, movemo-nos ainda no círculo da conduta omissiva imputada à sociedade ao longo dos tempos, desde que por ela foi recepcionada a carta do sócio réu H... dando conta da cessão a seu favor, então já consumada, e intenção de proceder à sua divisão e subsequente cessão a outros sócios, sendo idêntico o efeito pretendido extrair: paralisador da sanção legal decorrente da ausência de consentimento.
Atento o exposto, tratando-se de factos documentalmente demonstrados, tendo sido pelas partes exercido o contraditório e tendo os RR assumido posição processual expressa no sentido de deles se quererem valer, afigura-se lícita a sua aquisição para o processo e consideração na sentença final, à luz dos citados art.º 5.º, n.º 2, al. b) e 607.º, n.º 4 do NCPC. Daí que a decisão proferida não padeça do imputado vício do excesso de pronúncia, improcedendo as conclusões 1.ª a 3.ª.
*
II. Fundamentação
De facto
São os seguintes os factos a considerar, lógica e cronologicamente ordenados:
1. Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Vagos em 7 de Julho de 1995, foi constituída a sociedade comercial B... Limitada, tendo por objecto social o exercício da indústria, comércio, importação e exportação de acessórios e equipamentos de banho e mobiliário (cláusulas 1.ª e 2.ª).
A sociedade foi constituída com o capital social de trinta milhões de escudos, correspondente à soma das quotas dos sócios constituintes, nos seguintes termos: cinco com o valor nominal de cinco milhões de escudos pertencentes a cada um dos sócios C..., A..., E..., V... e N..., e duas no valor nominal de dois milhões e quinhentos mil escudos cada, pertencentes aos sócios Q... e R... (cláusula 3.ª).
Nos termos da cláusula 4.ª foram nomeados gerentes todos os sócios e ainda U..., obrigando-se a sociedade com a assinatura de dois gerentes, sendo que os gerentes U..., R... e Q... só podiam assinar em conjunto com um dos restantes gerentes.
Acordaram ainda os outorgantes, nos termos da cláusula 5.ª, que:
“Número um: Se qualquer um dos sócios R... e Q..., ou ambos, quiserem ceder as suas quotas, não o podem fazer a favor da sociedade ou outros sócios, ou a estranhos, se o gerente U... quiser adquiri-las pelo valor que resultar do último balanço aprovado.
Número dois: Na cessão a estranhos de quaisquer outras quotas e das anteriormente referidas, estas se não forem adquiridas pelo U... aludido no número anterior, tem direito de preferência a sociedade em primeiro lugar e os sócios não cedentes em segundo lugar.
Número três: A cessão de quotas entre sócios só é permitida com autorização da sociedade e se mais do que um sócio pretender adquirir a quota ou quotas cedidas, a aquisição será feita por rateio”, tudo conforme consta da escritura pública cuja certidão consta de fls. os autos aqui se dando, quanto ao mais, por reproduzido o respectivo teor (al. A dos factos assentes).
2. A sociedade ré, constituída com o capital social de trinta milhões de escudos, tem actualmente, após aumento de capital realizado pelos sócios que a constituíram e com a admissão de novos sócios e a sua redenominação para euros, o capital social de €1 077 403,46, o qual se encontrava dividido nas seguintes quotas, consoante Ap. 03/19950928:
a) Seis no valor de €134 665,43, pertencentes cada uma delas aos sócios A..., E..., G..., V..., N... e T..., respectivamente.
b) Três no valor de €67 377,72, pertencentes, respectivamente, a cada um dos sócios C..., Q... e R...;
c) Duas no valor de €33 668,86 €, pertencendo cada uma aos sócios H... e J..., respectivamente, conforme certificado de fls. 43 a 54 dos autos (alínea B) dos factos assentes).
3. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Vagos em 4 de Abril de 2002, o sócio E... cedeu ao sócio C... a quota que detinha na referida sociedade, tendo a transmissão sido inscrita na competente Conservatória do Registo Comercial (Águeda), pela Ap. 10/20020417 (alínea C) dos factos assentes).
4. A transmissão a que se alude em 3. foi levada a registo – inscrição 2, Ap. 10/20020417 da mesma Conservatória do Registo Predial de Águeda, cf. certidão de fls. 43 a 54 dos autos, maxime fls. 46.
5. Foi convocada para 21 de Novembro de 2002 uma assembleia-geral da sociedade ré, incluindo-se na respectiva ordem de trabalhos, dela constituindo o ponto 2., “discutir e deliberar” sobre o teor da carta recebida do sócio C..., datada de 22/10/2002, na qual dava conhecimento da aquisição da quota titulada por E... e mulher, manifestando ainda a vontade de proceder à respectiva divisão em duas novas quotas de igual valor para posterior cessão a seus filhos J... e H... – documento de fls. 281, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o respectivo teor- e acta certificada de fls. 283 e seguintes, cujo teor se considera igualmente reproduzido.
6. Na ordem de trabalhos para a referida assembleia-geral foi também incluída uma proposta, formulada pelo ora autor, no sentido de não ser reconhecida a cessão feita por E... a C... e considerá-la nula e ineficaz em relação à sociedade e aos sócios por violação do estipulado no n.º 3 do art.º 5.º do contrato social e, como consequência, não admitir o sócio C... a representar essa quota (ponto n.º 3 da ordem dos trabalhos); deliberar sobre a propositura de uma acção judicial pela sociedade, acompanhada ou não dos demais sócios ou daqueles que a pretendam acompanhar, contra o sócio cedente e o sócio cessionário para declaração da ineficácia e nulidade da cessão de quotas entre ambos (ponto n.º 4); conceder a dois ou mais gerentes da sociedade os poderes necessários para representar a sociedade nessa acção judicial e constituir advogado que represente a sociedade (ponto n.º 5), conforme consta da mesma acta.
7. Na aludida Assembleia-Geral, postos os referidos pontos da ordem de trabalhos a votação, foi o ponto n.º 2 aprovado com os votos contra dos sócios A..., Q..., R... e N... e os votos favoráveis dos demais, enquanto que os pontos 3., 4. e 5. foram rejeitados com os votos a favor daqueles identificados sócios e votos contra dos restantes (cf. acta de fls. 283 a 287).
8. Em 6 de Janeiro de 2003, o ora autor A... e os sócios Q... e R... intentaram uma acção contra a sociedade B... e os sócios C... (e cônjuge, D...), E... (e cônjuge, F...), V..., G..., T..., J... e H..., acção essa que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda sob o nº 17/03.3TBAGD, e na qual era pedida a declaração de nulidade e de ineficácia, em relação aos autores, da cessão de quotas referida em 3), bem como a declaração de nulidade e de ineficácia em relação à sociedade B... de qualquer acto posterior à cessão de quotas, ordenando-se o cancelamento dos respectivos registos, e a declaração de inexistência ou anulação de deliberações tomada em assembleia geral realizada no dia 21 de Novembro de 2002 referentes aos pontos 2, 3, 4 e 5 da respectiva ordem de trabalhos (documento de fls. 64 a 125 cujo teor se considera integralmente reproduzido) (alínea D) dos factos assentes).
9. Por sentença proferida em 23 de Fevereiro de 2004, confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Abril de 2006, foi a acção julgada procedente e, em consequência, ficou decidido:
“a) declarar ineficaz em relação à ré sociedade e aos sócios autores a cessão da quota do valor nominal de €134 665,43 com que o sócio E... participa no capital social da ré sociedade, feita pelo dito sócio E... e mulher, F..., ao sócio C... por preço igual ao valor nominal, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Vagos em 04-04-2002 (lavrada de fls. 3 a 6 do l.º n.º 181-B) e registada sob a inscrição n.º 5 (Ap. 10/20020417) na Conservatória do Registo Comercial de Águeda, ordenando-se o cancelamento deste registo;
b) declarar ineficaz em relação à ré sociedade e aos ora autores qualquer outro acto posterior a essa cessão de quotas de transmissão e/ou divisão da mesma quota e transmissão das quotas resultantes dessa divisão feitas pelo sócio C... a seus filhos (os RR J... e H...) ou a qualquer outro sócio ou a terceiros, ordenando-se o cancelamento dos registos a estes actos relativos;
c) declarar anuladas as deliberações tomadas na reunião da Assembleia-geral da ré sociedade realizada no dia 21-11-2002 sobre os pontos 2, 3, 4 e 5 da ordem de trabalhos (acta de fls. 116 a 121);
d) condenar os 2.º a 8.º RR a reconhecerem que os votos por eles emitidos naquela reunião de assembleia-geral da ré sociedade foram ilegalmente emitidos, por terem incidido sobre matéria em que alguns deles estavam impedidos de votar, por contrariarem frontalmente uma disposição do contrato social que condiciona a cessão de quotas entre sócios à prévia autorização da sociedade e são abusivos por visarem, não a satisfação de interesses da sociedade ou de interesses comuns dos sócios, mas tão só lograr obter vantagens especiais para o grupo de sócios formado pelos 2.º, 7.º e 8.º RR para que em conjunto eles passem a deter o dobro de cada um dos outros no capital social;
e) condenar os RR a reconhecerem que, declarada ineficaz em relação à ré sociedade e aos AA a cessão de quotas referida, bem como qualquer outro acto de transmissão ou divisão e transmissão das quotas resultantes da divisão a ela posteriores, poderão os AA, após autorização a ela prestada pela sociedade, nela participarem, se assim o entenderem, procedendo-se nesse caso a rateio da quota entre os sócios que pretendam adquiri-la” (alínea E) dos factos assentes).
10. Em princípios de 2004 foi alterada a divisão de quotas que integravam o capital social da ré sociedade em razão da decisão dos sócios Q... e R... de cederem as suas quotas ao aqui autor A..., tendo-se procedido, depois de obtido o consentimento da sociedade, ao rateio da quota do sócio Q..., que foi dividida em três, nos valores de €42 647,22, €21 323,61 e €3 366,89, tendo a primeira sido adquirida pelo sócio A..., a segunda pelo ora réu C..., e a terceira por U... (alínea F) dos factos assentes).
11. Por sua vez, a quota da sócia R..., com autorização da sociedade ré, foi divida em duas outras, uma no valor de €63 970,83 e outra no valor de €3 366,89, tendo a primeira sido adquirida pelo sócio A... e a segunda por U... (alínea G) dos factos assentes).
12. As aquisições referidas em 10. e 11. foram registadas na Conservatória do Registo Comercial de Águeda, nos termos do documento de fls. 56 a 63 cujo teor se dá por integralmente reproduzido) (alínea H) dos factos assentes).
13. E... e esposa, F..., outorgaram procuração no dia 7 de Julho de 1995, na vila e cartório notarial de Vagos, na qual declararam que “(…) com a faculdade de substabelecer constituem bastante procurador o senhor A..., casado, natural da freguesia de Jovim, concelho de Gondomar, e P...., natural da freguesia de (...), concelho de Águeda, a quem concedem poderes para em conjunto ou separadamente ceder pelo preço e condições que entender convenientes a quota de que o marido é titular no capital da sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada sob a firma B...Limitada, com sede no lugar e freguesia da (...), concelho de Águeda, podendo ceder a quota a eles mandatários ou a terceiros pelo preço e condições que entender.
Mais declararam que a aludida procuração era “outorgada no interesse dos mandatários, que já não têm quaisquer contas a prestar aos mandantes, considerando-se irrevogável nos termos dos artigos duzentos e sessenta e cinco número três e mil cento e setenta número dois ambos do Código Civil.”, conforme consta da certidão junta a fls. 127-128 dos autos, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.
14. O Autor, na qualidade de procurador de E... e mulher, F..., enviou à gerência da sociedade ora ré uma carta registada com a/r, datada de 12 de Março de 2007, subordinada ao assunto “Cessão da quota”, com o seguinte teor:
“Ex.mos Senhores, Os meus cumprimentos.
Na qualidade de procurador do Senhor E... e sua mulher F..., detentores de uma quota correspondente a 12,5% no Capital Social dessa Sociedade B..., LDA., venho pela presente comunicar que decidi ceder a quota que o meu referido mandante possui nessa Sociedade Comercial.
A presente comunicação é feita nos termos e para os efeitos do estatuído no artigo 5.º, n.º 3 da Escritura de Constituição da Sociedade B...; Lda.
Para tal efeito, solicito a V. Exªs a convocação da assembleia geral da Sociedade B..., L.da dentro do prazo estabelecido no artigo 6º da Escritura de Constituição, não podendo a realização de tal assembleia Geral ultrapassar o prazo de 30 (trinta) dias, a contar da recepção desta carta.
Solicito, ainda, que a convocatória da referida assembleia Geral, seja redigida com clareza, de modo a ser entendida por todos os Sócios, sendo necessariamente dela constante como ponto de ordem de trabalhos, a referida Cessão de Quota e o demais consignado no artigo 5º, nºs 2 e 4, dos Estatutos da Sociedade,
Nos termos legais, indico a V. Exªs a identidade do interessado na compra da referida quota, Senhor Dr. M.... Preço da Cessão: 249.579,26 (duzentos e quarenta e nove mil quinhentos e setenta e nove euros e vinte e seis cêntimos), que será pago, integralmente, no acto da Outorga da competente Escritura Pública.
Mais informo que o não cumprimento por parte de V. Exªs do estatutariamente previsto, dentro do prazo acima fixado, implicará o reconhecimento do desinteresse da Sociedade B... na aquisição da quota cuja cessão se pretende realizar, assim como, de todos os restantes Sócios, a título individual e pessoal, aos quais foi dirigida cópia desta comunicação.
Finalmente, esclareço V. Exªs que a Procuração que me foi conferida, da qual junto, em anexo, fotocópia devidamente autenticada, concede-me plenos e específicos poderes para a realização desta operação.
De V. Exª, Atenciosamente”, seguindo-se a assinatura do Autor A... (al. J) dos factos assentes.
15. A A carta transcrita em 14., com a procuração referida em 13. em anexo foi igualmente enviada a todos os sócios da sociedade ré e por eles recepcionada em 13 de Março de 2007 (alínea L) dos factos assentes).
16. O autor recebeu da sociedade ré uma carta, datada de 18 de Abril de 2007, com o seguinte teor:
“Ex.mo Senhor
Na sequência da recepção da carta enviada por V. Ex.ª com data de 12-03-2007, e pela qual V. Ex.ª nos solicita a promoção de uma Assembleia Geral para efeito de deliberação sobre a cessão de uma quota da qual seria titular E..., vimos informar V. Exª de que, realizada pesquisa na Conservatória do Registo Comercial viemos a constatar que a referida participação já não está averbada na titularidade da pessoa em causa.
Pelo exposto, resulta prejudicada a pretensão formulada por V. Ex.ª, pelo que não podemos corresponder ao seu pedido.
Sempre disponíveis para prestar os esclarecimentos que V. Ex.ª entender necessários, subscrevemo-nos.
A Gerência”
(al. M) dos factos assentes.
17. Não foi convocada uma assembleia-geral da sociedade ré para se pronunciar sobre a aquisição da quota referida em 14. (alínea N) dos factos assentes).
18. Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Águeda em 15 de Maio de 2007, o ora autor A..., na qualidade de procurador de E... e esposa F..., declarou ceder a M..., a quota no valor nominal de 134.665,43€ da qual o representado marido era titular na sociedade B..., Lda., pelo preço de € 249 579,26, a ser pago através dos cheques que identificou, cessão que o segundo outorgante declarou aceitar, tudo conforme consta dos termos da escritura certificada a fls. 133 e v.º e 134 dos autos, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o respectivo teor.
19. Na Conservatória do Registo Comercial de Águeda foram lavradas as seguintes menções de Depósito –Anotações:
Menção Dep. 104/2007-03-29 11:50:50
Transmissão de quota no valor de €134 675,43, sendo sujeito activo o aqui réu C... e sujeito passivo o também réu E..., ali surgindo como responsável pela realização do registo o réu L...;
Menção Dep. 105/2007-03-29 11:53:20
Transmissão da quota no valor de €67 377,72, resultante da divisão da quota de €134 675,53, sendo sujeito activo H... e sujeito passivo C..., sendo igualmente responsável pelo registo o réu L...;
Menção Dep. 106/2007-03-29 11:55:30
Transmissão de quota no valor de € 67 337,71, resultante da divisão da quota de €134 675,53, sendo sujeito activo J... e sujeito passivo C..., sendo igualmente responsável pelo registo o réu L..., conforme resulta do doc. de fls. 288 a 300 dos autos.
Menção Dep. 133/2007-05-15 15:55:22
Transmissão de quota no valor de € 134 665,43, sendo sujeito activo M... e sujeito passivo E... (al. P dos factos assentes e aditamento rectificativo feito na sentença em conformidade com a certidão constante de fls. 685 a 699 dos autos).
20. Foi convocada para 29 de Setembro de 2007 uma assembleia-geral extraordinária da sociedade ré, da qual constavam como pontos da ordem de trabalhos a tomada de uma deliberação no sentido de reconhecer como válida a cessão de quota efectuada ao sócio C..., bem com a posterior divisão da mesma quota em duas e respectiva cessão aos sócios J... e H..., assembleia essa que se reuniu na data apontada mas onde não foi tomada qualquer deliberação sobre os assuntos constantes da ordem do dia, tendo a sessão sido declarada encerrada “sob protestos de vários sócios, muito barulho e insultos impossíveis de serem aqui descritos”, conforme consta do instrumento de acta de reunião de órgão social lavrado pela Sr.ª Notária S... cuja cópia consta de fls. 246 a 258, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o seu teor.
21. À excepção das deliberações referidas em 7., posteriormente anuladas por decisão judicial, a sociedade ré, por intermédio dos seus sócios, nunca mais deliberou sobre o assunto referente à cessão de quota efectuada a C..., não tendo igualmente deliberado sobre a posterior divisão da quota e cessões realizadas a favor dos seus filhos H... e J....
22 Corresponde ao facto 21. da sentença apelada.. O autor e os réus C..., H... e J... estiveram presentes em assembleias gerais da sociedade ré realizadas em 5/2/2003, 11/2/2003, 19/2/2003, 24/4/2003, 11/11/2003, 22/4/2004, 7/12/2004, 2/3/2005, 12/4/2005, 4/5/2006, 25/5/2007, 28/5/2008, 27/5/2009, 26/5/2010 e 6/11/2001, tendo todos tomado parte nas deliberações aí votadas, deliberações essas que não foram impugnadas judicialmente (documentos de fls. 806 a 810, 813-814, 815 a 817, 818 a 821, 825 a 828, 829 a 833, 836-837, 842 a 844 a 854 e 859 a 862, cujo teor se considera integralmente reproduzido).
*
De Direito
ii. Da excepção do consentimento tácito
Tal como correctamente se sintetizou na sentença apelada, resulta dos factos apurados que por escritura pública celebrada em 4 de Abril de 2002, o sócio E... cedeu ao sócio C..., aqui demandado, a participação social que detinha na também ré B..., Lda. no valor nominal de € 134 665,43.
Mais resulta do acervo factual assente que, inconformado com a cedência efectuada, o autor, então acompanhado de dois outros sócios -os quais procederam entretanto à alienação das quotas respectivas- instaurou acção tendendo a impugnar aquela transmissão e as subsequentes, em consequência do que foi proferida sentença, transitada em julgado, que se pronunciou no sentido de tais negócios translativos serem ineficazes em relação, quer à sociedade ré, quer aos sócios autores, determinando o cancelamento dos registos aos mesmos atinentes.
Constata-se, porém, que transitada em julgado a aludida decisão em 20 de Julho de 2006, vieram os RR cessionários a promover, em Março de 2007, novo registo das mesmas transmissões -efectuado por meio de depósito- actos novamente impugnadas pelo autor na presente acção.
Epigrafado de “Transmissão entre vivos e cessão de quotas” preceitua o art.º 228.º do CSC, para o que aqui releva, que “2. A cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta, a não ser que se trate de cessão entre cônjuges, entre ascendentes e descendentes ou entre sócios. 3. A transmissão de quota entre vivos torna-se eficaz para com a sociedade logo que lhe for comunicada por escrito ou por ela reconhecida, expressa ou tacitamente”.
Prevê o n.º 3 do art.º 229.º que o contrato de sociedade possa exigir o consentimento desta para alguma das cessões referidas na parte final daquele n.º 2, que deixa assim de ser livre. Nos casos em que é devido (por força da lei ou do contrato), o consentimento da sociedade é pedido por escrito, com indicação do cessionário e de todas as condições da cessão. O consentimento expresso deve ser dado por deliberação dos sócios e não pode ficar subordinado a condições, sendo irrelevantes as que eventualmente se estipularem, regime este consagrado no art.º 230.º, n.ºs 1 a 3 do mesmo diploma legal.
Face às transcritas disposições temos pois que, em princípio, é livre a cessão entre sócios, casos em que a eficácia da cessão depende apenas da sua comunicação à sociedade; na ausência de comunicação, ainda assim a cessão torna-se eficaz quando por esta for reconhecida, expressa ou tacitamente.
Nos casos em que, por força da lei ou do pacto societário, tal cessão depende do consentimento da sociedade, uma vez autorizada torna-se eficaz mediante a comunicação. Já se a comunicação tiver por objecto uma cessão não consentida, aquela não substitui nem supre o pedido de consentimento e a cessão continuará ineficaz até que este seja prestado Cf. Prof. Raul Ventura, “Sociedade por quotas”, vol. I, 1987, págs. 579 e seguintes. (ainda que tacitamente). Daqui decorre que o consentimento não tem necessariamente de preceder a cessão, podendo ser validamente prestado após esta se ter concretizado. Todavia, até lá, tudo se passa como se a cessão não tivesse tido lugar, podendo ser ignorada pela sociedade.
Revertendo ao caso dos autos, e vistos os termos da cláusula 5.ª do contrato de sociedade, não há dúvida que a cessão entre sócios ficou sujeita ao consentimento da ré B..., Lda, e isto claramente tendo em vista permitir o exercício do direito de preferência ali consagrado a favor dos sócios e da sociedade, com direito a rateio no caso de serem vários os interessados. Tal cláusula é válida, por ser de admitir que o consentimento fique condicionado a requisitos específicos, incluindo o cumprimento da aludida cláusula de preferência (cf. art.º 229.º, 2.ª parte do n.º 5) Neste sentido Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, reimpressão 2003, págs. 364-365., questão esta, aliás, que não suscitou divergências nos autos.
Também está fora de discussão o facto da cessão da quota do réu E... ao sócio C... ter sido efectuada sem precedência da necessária autorização da sociedade. Acresce que, ainda a considerar-se que tal consentimento foi pedido “a posteriori”, mediante a carta por este último enviada à sociedade em 22/10/2002, posta a discussão na assembleia geral que teve lugar no dia 21 de Novembro desse mesmo ano e que aí foi objecto de deliberação favorável, não pode olvidar-se que as deliberações então tomadas foram anuladas por decisão transitada, termos em que, não tendo sido renovadas, delas não pode extrair-se qualquer argumento em favor do invocado reconhecimento da cessão. E isso mesmo entendeu o Mm.º juiz quando fez consignar na sentença apelada, a dado passo, não poder “ter-se como reconhecida uma cessão que foi, em devido tempo, impugnada judicialmente, litígio que veio a merecer o desfecho já referido – declaração de ineficácia da cessão e anulação das deliberações sociais tomadas sobre esta matéria” Pág. 40 da sentença recorrida. .
Arredada igualmente -a nosso ver bem- a solução consagrada no n.º 4 do art.º 230.º do CSC, que os RR pretendiam aplicável por não se ter a sociedade pronunciado sobre a comunicação antes efectuada pelo sócio H... após a decisão proferida pelo STJ, veio contudo a considerar-se na sentença apelada que “Com um litígio pendente sobre a validade e eficácia da cessão, foram sendo realizadas, no entanto, ao longo de quase uma década, diversas assembleias-gerais, nas quais participaram, para além do autor, os sócios C... e os sócios (filhos deste) H... e J....
Para além da participação de todos os referidos sócios, constata-se ainda que foram tomadas deliberações sobre os assuntos constantes da respectiva ordem de trabalhos, em que intervieram o ora autor e os réus, sendo certo que parte delas ate foram tomadas por unanimidade.
Por outro lado, nenhuma das deliberações em causa -com intervenção de todos os interessados- se mostra impugnada judicialmente.
Parece-nos pois incontornável (…) que a sociedade ré deu o seu consentimento à cessão, quer à inicial, feita pelo E... ao sócio C..., quer a deste último aos seus filhos e também sócios H... e J... – dada a participação activa que todos tiveram nas deliberações sociais e atento o facto das mesmas não terem sido judicialmente impugnadas (art.º 230.º, n.º 6 do CSC)”.
Insurge-se o apelante contra o entendimento expresso, sustentando que inexistiu consentimento da sociedade, ainda que tácito. Vejamos então:
Nos termos da convocada disposições legal “Considera-se prestado o consentimento da sociedade quando o cessionário tenha participado em deliberação dos sócios e nenhum deles a impugnar com esse fundamento, provando-se o consentimento tácito, para efeitos de registo da cessão, pela acta da deliberação”.
Conforme é sabido, a declaração negocial não tem forçosamente de ser expressa, podendo, de harmonia com o princípio da liberdade declarativa consagrado no art. 217º do CC, ser tácita (n.º 1). A declaração é tácita “quando do seu conteúdo directo se infere um outro, isto é, quando se destina a um certo fim, mas implica e torna cognoscível, a latere, um auto regulamento sobre outro ponto - em via oblíqua, imediata, lateral - quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” Prof. Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª Edição, 1996, pág. 425..
No caso em apreço, é a própria lei que, na ausência de uma deliberação dos sócios autorizando a cessão, conforme previsto no n.º 2 do preceito, atribui o mesmo valor a um comportamento que, de forma inequívoca e concludente -a lei assim o considera-, aponta no sentido da sua aceitação/ratificação.
Sendo pressuposto de aplicação da norma a ausência de deliberação, excluídos da sua previsão ficam os casos, como o dos autos, em que existiu uma deliberação expressa no sentido da ratificação da cessão efectuada, tendo a mesma sido judicialmente impugnada. Neste contexto, não pode, cremos, atribuir-se à ausência de impugnação das deliberações em que participaram os cessionários -os quais, note-se, sendo titulares de outras quotas sempre teriam direito a voto- ainda que também em representação da quota antes titulada pelo sócio A E..., o valor de consentimento tácito, não se vendo razão para impor ao autor que impugnasse cada uma delas, cujo conteúdo, aliás, era estranho ao litígio, estando pendente a referida acção judicial. É que a deliberação anulável, deixando de produzir os seus efeitos caso seja anulada por sentença judicial -que tem assim efeitos constitutivos- produz até esse momento, ressalvados os casos de suspensão, os efeitos jurídicos a que tendia Cf., quanto ao regime jurídico da anulabilidade das deliberações, Prof. Pinto Furtado, “Deliberações de Sociedades Comerciais”, págs. 706-707.. Acresce que nem os RR cessionários interpretaram nesse sentido a inércia do autor em relação a tais deliberações, posto que só em Março de 2007, depois deste ter comunicado à sociedade ré, tendo em vista obter dela o necessário consentimento, a sua intenção de ceder a quota em representação do mandante, é que aqueles se apressaram a proceder a novo registo das transmissões efectuadas em 2002 -por mero depósito como passou a ser permitido (cf. art.º 53.º-A, nºs 3 e 5, al. a) do CRC), sem disso terem dado conhecimento à própria sociedade, que se viu na contingência de ter que averiguar junto da Conservatória do Registo Comercial da identidade do titular inscrito da quota em litígio (cf. facto 16).
Por outro lado, tendo sido realizada uma assembleia-geral após o trânsito em julgado do acórdão proferido pelo STJ na qual participaram, em desrespeito pela decisão proferida, os identificados cessionários, não deixou o autor de fazer consignar na acta o seu desacordo em relação à composição do capital social que da mesma ficara a constar, tendo a presente acção dado entrada em 26 de Julho imediato. E se não foi impugnada judicialmente a deliberação, nem por isso poderá considerar-se que se está perante a prestação de consentimento tácito por banda da sociedade, atendendo a que, nos termos da decisão proferida e então já transitada, as referidas transmissões haviam sido declaradas ineficazes em relação àquela.
Pretendem (só) agora em sede de recurso os recorridos sócios que, tendo sido convocada para o dia 29 de Setembro de 2007 uma assembleia-geral da sociedade ré, cuja ordem de trabalhos incluía a tomada de deliberação no sentido de reconhecer como válida a cessão da quota ao sócio C..., a sua posterior divisão em duas outras e respectiva cessão aos sócios J... e H..., assembleia que teve lugar sem que nela tenha sido tomada deliberação sobre tal assunto, é de aplicar analogicamente o n.º 4 do art.º 230. Insistem por esta via os apelantes na aplicação do mesmo normativo, ainda que com fundamento fáctico diverso. Trata-se, contudo, de questão não alegada, nestes precisos termos, perante a 1.ª instância e, por isso não apreciada, encontrando-se o seu conhecimento subtraído a este Tribunal que, conforme é sabido, ressalvadas as de conhecimento oficioso, só pode pronunciar-se sobre as questões que foram objecto de decisão.
Em todo o caso, prevenindo diverso entendimento, sempre se dirá que a solução consagrada no invocado preceito pressupõe que o consentimento haja sido pedido por escrito, contendo as menções a que alude o n.º 1, É o seguinte o teor do referido art.º 230.º:
“Prestação de consentimento
1. O consentimento da sociedade é pedido por escrito, com indicação do cessionário e de todas as condições da cessão.
2. O consentimento expresso é dado por deliberação dos sócios.
3. O consentimento não pode ser subordinado a condições, sendo irrelevantes as que se estipularem.
4. Se a sociedade não tomar a deliberação sobre o pedido de consentimento nos 60 dias seguintes à sua recepção, a eficácia de cessão deixa de depender dele.
5. O consentimento dado a uma cessão posterior a outra não consentida torna esta eficaz, na medida necessária para assegurar a legitimidade do cedente.
6. Considera-se prestado o consentimento da sociedade quando o cessionário tenha participado em deliberação dos sócios e nenhum deles a impugnar com esse fundamento, provando-se o consentimento tácito, para efeitos de registo da cessão, pela acta da deliberação”. solicitação que no caso não foi feita. Afigura-se, pois, que não tendo sido dadas a conhecer à sociedade as condições das sucessivas cessões, questão de primordial importância atendendo a que o pacto social atribui aos sócios e à própria sociedade direito de preferência, não se encontravam reunidas as condições para que a assembleia pudesse deliberar, donde não poder extrair-se da ausência de deliberação quanto agora pretendem os apelados.
Ainda a propósito, há que ter em mente que, conforme se ponderou no acórdão do STJ que pôs termo à antecedente acção, “a sociedade foi criada de uma forma igualitária e os seus criadores tiveram o cuidado de assegurar a original igualdade para futuro, para além do acto da própria criação;
Se algum deles quiser ceder a sua quota a outro só o pode fazer com autorização da sociedade e está salvaguardado em relação a todos e cada um deles, através de rateio na aquisição, a posição relativa de igualdade social perante os restantes;
Cada um dos sócios está, pois, constrangido a -tem a obrigação de- não ceder a sua quota a outro sem autorização da sociedade;
Cada um deles está sujeito ao rateio da aquisição da quota que cede ou rateio da quota que pretende adquirir.
(…) Manifestamente este [direito ao rateio na aquisição] é já um direito do sócio e não da sociedade, um direito do sócio que pode ser qualificado como especial, um direito que não pode ser postergado pela sociedade seja em que circunstância for, seja por que modo ou por que procedimento for.
Assim sendo, a cessão de quotas de um sócio a favor de um outro, sem autorização da sociedade, é um acto duplamente ineficaz:
Ineficaz em relação à sociedade, ao menos enquanto esta não expressar o seu consentimento ratificativo quanto à cessão;
Ineficaz em relação ao sócio, mesmo depois de suportada numa eventual deliberação ratificativa por parte da sociedade, se acaso essa deliberação não tiver a concordância do próprio sócio a quem não seja subtraído o direito ao rateio” Do aresto do STJ certificado de fls. 104 a 125 dos autos. (é nosso o destaque).
Em remate, temos que as cessões -originária e subsequente- da quota de que era titular o réu E... não foram autorizadas, conforme o exigia o pacto social, nem expressa nem tacitamente. Deste modo, tendo sido anulada, na sequência de impugnação judicial, a deliberação ratificativa da cessão efectuada e não tendo a mesma sido renovada, subsiste o então decidido, mantendo-se a ineficácia da cessão em relação ao autor e à sociedade ré.
Faz-se contudo notar que o consentimento da sociedade constitui um requisito legal da eficácia da cessão de quotas, e não um requisito de validade, o que vale por dizer que a sua ausência não determina a invalidade da cessão. Daí que, procedendo, nesta parte, o recurso interposto, o juízo de procedência fique circunscrito à pedida ineficácia.
*
ii. da ampliação do objecto do recurso - a impugnação da resposta ao art.º 2.º da BI
Atento o decidido, cumpre aqui apreciar a ampliação do objecto do recurso pedida pelos apelados, que pretendem nesta sede a alteração da resposta que mereceu o art.º 2.º, que pretendem positiva.
A este respeito, e conforme decorre do que se deixou dito aquando da apreciação da arguida nulidade da sentença, está em causa matéria de natureza eminentemente jurídica, estando vedado o seu ingresso no elenco dos factos a considerar porquanto, conforme decorre do disposto no n.º 4 do art.º 607.º, apenas os factos que relevam para a decisão poderão, nesta sede, ser considerados, ficando claramente excluídas as formulações genéricas, de direito ou conclusivas. Deste modo, e com tal fundamento, não poderá considerar-se como assente a matéria em causa, improcedendo a pretensão formulada pelos recorridos.
*
iii. da vaIidade do negócio de cessão da quota celebrado entre E... e o interveniente M...
O autor pediu ainda a condenação dos RR “a reconhecerem a validade e eficácia absoluta, em relação a todos eles, aos restantes sócios e a terceiros, da cessão da aludida quota, pertencente a E..., a favor de M..., cessão na qual interveio o autor na qualidade de mandatário do cedente e da sua mulher, os ora 3.ºs RR, fazendo uso de procuração irrevogável por estes outorgada”
Tal pretensão veio a ser julgada improcedente, ao passo que o pedido simétrico de declaração de nulidade do mesmo negócio, este formulado em via reconvencional, mereceu juízo de procedência, face à consideração de que o negócio em causa consubstanciava uma venda “a non domino”.
Bate-se agora o recorrente pela inversão do julgado, assentando a sua discordância com o decidido num argumento fundamental: quando, em 4 de Abril de 2002, o réu E... declarou ceder a quota ao réu H..., já tinha antes alienado o seu direito de disposição sobre a mesma através da procuração irrevogável que outorgara a favor do apelante e sua mulher.
Está provado que no preciso dia de constituição da sociedade, o sócio E... e esposa, F..., outorgaram procuração a favor do autor e esposa, conferindo-lhes poderes para cederem a quota de que aquele era titular na sociedade ré, mais tendo declarado, para o que ora releva, que a aludida procuração era “outorgada no interesse dos mandatários, que já não têm quaisquer contas a prestar aos mandantes, considerando-se irrevogável nos termos dos artigos duzentos e sessenta e cinco número três e mil cento e setenta número dois ambos do Código Civil.” (cf. ponto 13. dos factos assentes).
Tratando-se de procuração irrevogável outorgada, ao que resulta dos termos da própria declaração, no exclusivo interesse dos procuradores -note-se que não se diz que é outorgada também no interesse dos mandatários, sendo referenciado apenas e só o interesse destes- negócio jurídico que, em nosso entender, ainda que não expressamente previsto, não se encontra vedado por lei V., por todos, Pais de Vasconcelos, “A Procuração irrevogável”, Reimpressão, 2012, págs. 94 a 97 e acórdão da Relação de Lisboa de 31/3/2011, processo n.º 96/06.1 TBBBR.L1-2, disponível em www.dgsi.pt., coloca-se a questão de saber se com a sua outorga se transmite, tal como defende o apelante, a titularidade da posição jurídica do mandante.
A resposta à questão formulada deverá ser, desde já se antecipa, negativa.
A procuração é um negócio jurídico unilateral, através do qual o mandante confere voluntariamente poderes a outrem para que este celebre negócios jurídicos ou pratique actos em seu nome, os quais irão produzir efeitos jurídicos directamente na esfera jurídica do dominus (cf. art.ºs 262.º, n.º 1 e 258.º do Código Civil). Da noção que nos é fornecida pela lei logo avulta a ausência de referência ao interesse do mandante enquanto seu elemento caracterizador: o procurador actua em nome e, regra geral, no interesse daquele, mas “o que caracteriza a representação não é a circunstância de ser alheio o interesse, mas o de o ser a posição jurídica” Autor e ob. cit., pág. 99..
Não sendo o interesse do dominus essencial, nem à procuração, nem à representação, a procuração outorgada no interesse exclusivo do mandatário não implica a transmissão da posição jurídica daquele, isto desde logo por respeito à autonomia privada, em cujo exercício a parte livremente optou por aquele negócio e não por um outro de natureza transmissiva Idem, pág. 108. Na jurisprudência, o acórdão do STJ de 17 de Maio de 2011, processo n.º 2766/03.7 TBPTM.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.. Acresce que, a considerar-se ter ocorrido transmissão da posição jurídica do dominus para o procurador, sem sentido ficaria a outorga da procuração, pois este passaria a actuar em seu nome, repercutindo-se os efeitos do negócio na sua esfera jurídica.
Assente que a procuração no interesse exclusivo do mandatário não opera a transmissão da posição jurídica do dominus, que se mantém como seu titular, solução também imposta por razões de protecção dos terceiros de boa fé E isto porque o procurador adquire, nas situações que nos ocupam, uma posição oponível ao dominus, mas não a terceiros. Assim, se o proprietário de um imóvel que outorgou uma procuração irrevogável para venda do mesmo, proceder posteriormente à venda do imóvel a um terceiro de boa fé, a venda é eficaz, sem prejuízo da responsabilidade civil em que possa incorrer perante o procurador por violação do negócio que constitui a relação subjacente (cf. mesmo autor e obra, a pág. 172). , poderá este praticar eficazmente actos de disposição, sem prejuízo de poder incorrer em responsabilidade por violação do negócio celebrado com o procurador e que constitui a relação subjacente. Com efeito, embora a validade do negócio jurídico unilateral em que se consubstancia a procuração, enquanto negócio abstracto, não dependa da explicitação da causa -ao contrário daquele que parece ser o entendimento dos apelados- a verdade é que a sua outorga é normalmente justificada pela existência de uma relação subjacente (v.g. um contrato de mandato, de agência, de trabalho ou um qualquer atípico negócio fiduciário). “E se deste negócio resultar, como normalmente sucederá, que o dominus não deve praticar actos que inviabilizem a prática daqueles para os quais a procuração irrevogável foi outorgada, ficará apenas negocialmente impedido de os praticar, mas se o fizer, a sua actuação será eficaz. Constituirá uma violação do negócio que constitui a relação subjacente, mas os actos praticados produzirão os seus efeitos típicos” Ainda Pais de Vasconcelos, ob. cit., pág. 172..
Transpondo quanto vem de se dizer para o caso que nos ocupa, conclui-se que, a despeito da outorga da aludida procuração, manteve-se na esfera jurídica do cedente e aqui réu E... o poder de dispor da sua participação social. Por assim ser, é válida a cedência ao também réu C... e as subsequentes divisão e transmissão a que este, seu legítimo titular, depois procedeu. É certo que tal actuação do cedente, podendo configurar violação do negócio subjacente à outorga da procuração celebrado com o aqui autor -e aqui não invocado- pode fazê-lo constituir-se na obrigação de indemnizar. Verifica-se, porém, que tendo o apelante formulado, ainda que subsidiariamente -e, diga-se, sem suporte fáctico bastante- pedido de indemnização, o qual foi julgado improcedente, não reagiu contra esta parte da decisão, que se encontra assim excluída do objecto do presente recurso.
Por outro lado, mera decorrência da validade da cedência efectuada ao sócio H... -que, para além do mais, goza da anterioridade registral-, não pode subsistir a cedência posterior efectuada pelo mesmo cedente, então representado pelo autor fazendo uso da procuração vinda de analisar porquanto, e conforme se considerou na sentença apelada, já não era aquele o titular da participação social, configurando tal posterior negócio translativo cedência de coisa alheia, a desencadear a sanção prevista no art.º 892.º do CC, ex vi do disposto no art.º 939.º do mesmo diploma legal. Todavia, e conforme sem dissêndio vem sendo entendido, em relação ao verdadeiro dono a alienação é ineficaz (art.º 406.º, n.º 2), não lhe conferindo a lei legitimidade para invocar a nulidade Cf. Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. III, 4.ª ed. págs. 93 e seguintes, maxime fls. 98, também citado na sentença recorrida.. Daí que, quanto a este segmento da decisão, improcedendo embora o essencial da pretensão recursiva do autor, seja este o efeito a decretar.
*
III. Decisão
Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente a ampliação do objecto do recurso requerida pelos apelados e parcialmente procedente o recurso interposto pelo autor, em consequência do que:
a) declaram ineficaz em relação à ré sociedade e ainda em relação ao sócio autor, a cessão da quota de valor nominal de €134 665,43 com que o sócio E... participa no capital social da sociedade ré, cessão feita pelo referido sócio e mulher, F..., ao sócio C..., aqui demandado em segundo lugar, e que se encontra registada na Conservatória do Registo Comercial de Águeda sob a menção Dep. 104/2007-03-29, ordenando o cancelamento deste registo;
b) declaram ineficaz em relação à sociedade ré, e também em relação ao sócio aqui autor, qualquer acto posterior de cessão da quota referida em a) e/ou da sua divisão e subsequente transmissão das quotas daí resultantes feitas pelo mesmo sócio C... e mulher a favor de seus filhos, os também RR H... e J..., actos a que se reportam as menções Dep. 105/2007-03-29 e Dep. 106/2007-03-29, ordenando o cancelamento destes registos;
c) Declaram ineficaz em relação aos apelantes C..., H... e J... o negócio de cessão de quota celebrado entre E... e o reconvindo/cessionário M..., a que se reporta a escritura lavrada no Cartório Notarial de Águeda em 15 de Maio de 2007, mantendo quanto ao mais a decisão apelada.
Custas da acção nesta e na 1.ª instância a cargo de A e RR na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente;
Custas da reconvenção a cargo do autor e interveniente reconvindos.
*
Sumário
I. Impondo o n.º 2 do art.º 5.º do NCPC ao juiz que tome em consideração “os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”, tal significa que tais factos, podendo ser adquiridos para o processo até final do julgamento, terão de ser incluídos na fundamentação de facto na sentença.
II. Estando ainda aqui em causa factos essenciais, ou seja, aqueles que constam da previsão normativa, reconduzindo-se aos factos constitutivos, impeditivos, extintivos ou modificativos, exige todavia a lei uma conexão “objectiva” entre o núcleo da matéria de facto alegada e os factos omitidos no articulado, que se devem configurar como complementares ou concretizadores dos alegados;
III. É de considerar que se verifica a exigida identidade, ainda que parcial, se os RR invocam, embora com deficiente concretização, o reconhecimento de uma cessão não consentida com fundamento na prática, pela ré sociedade, de actos omissivos ao longo dos tempos, após ter tomado conhecimento da transmissão, e o juiz considerou a final outros factos, adquiridos para o processo na fase de julgamento, os quais, em seu entender, preenchiam o conceito de consentimento tácito a que se refere o n.º 6 do art.º 230.º do CSC, não padecendo a sentença proferida do vício do excesso de pronúncia.
IV. Sendo pressuposto de aplicação da solução consagrada no n.º 6 do art.º 230.º do CSC a ausência de deliberação, excluídos da sua previsão ficam os casos em que existiu uma deliberação expressa no sentido da ratificação da cessão efectuada, tendo a mesma sido judicialmente impugnada.
V. Não pode atribuir-se o valor de consentimento tácito à ausência de impugnação das deliberações em que participaram os cessionários na pendência da acção de anulação da deliberação ratificativa da cessão, posto que esta, sendo anulável e deixando de produzir os seus efeitos caso seja anulada por sentença judicial -que tem assim efeitos constitutivos- produz até esse momento, ressalvados os casos de suspensão, os efeitos jurídicos a que tendia.
VI. A procuração no interesse exclusivo do mandatário não opera a transmissão da posição jurídica do “dominus”, que se mantém como seu titular, com os correspondentes poderes de disposição; é assim válida a cessão de quota em que interveio o seu titular, a despeito de ter outorgado em data anterior procuração irrevogável no interesse do mandatário, conferindo-lhe poderes para proceder à transmissão da mesma, sem prejuízo de poder incorrer em responsabilidade por violação do negócio celebrado com o procurador e que constitui a relação subjacente.
*
Maria Domingas Simões (Relator)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida