Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/20.5JALRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ROSA PINTO
Descritores: PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE OU DE “NUMERUS CLAUSUS” DAS NULIDADES
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
ACTO DECISÓRIO
INDEFERIMENTO DE DILIGÊNCIAS DE PROVA
INSUFICIÊNCIA DA INSTRUÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
DEBATE INSTRUTÓRIO
INDÍCIOS SUFICIENTES
BURLA INFORMÁTICA
Data do Acordão: 03/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 205.º CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 97.º, N.º 1 E 5, 118.º, N.º 1 E 2, 119.º, 123.º, N.º 1, 283.º, N.º 2, 288.º, N.º 4, 291º, N.º 1 E 2, 292.º, N.º 2, 300.º, N.º 1, 308.º, N.º 1 E 2, 374.º, N.º 2, E 379.º, N.º 1, ALÍNEA A), TODOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGO 221.º CÓDIGO PENAL
Sumário: I - A falta de fundamentação das decisões judiciais constitui mera irregularidade, a menos que se verifique na sentença, no despacho que decreta uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, no despacho de pronúncia – casos em que a falta de fundamentação constitui nulidade, como resulta, respectivamente, das normas dos artigos 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, 194.º, n.º 6, e 308.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal -, ou inclusive no despacho de não pronúncia, segundo grande parte da jurisprudência.

II - Permitindo a lei que o juiz indefira todas as diligências probatórias e a junção de toda a prova requeridas pelo requerente de instrução, limitando esta fase ao debate instrutório, de tal decisão não resulta a nulidade insanável da falta da instrução, porque ela teve lugar, nem a nulidade sanável da insuficiência da instrução, porque as únicas diligências obrigatórias nesta fase processual são o interrogatório do arguido e audição da vítima quando estes o solicitem, como determina o nº 2 do art. 292º do C.P.P.

III - O indeferimento da realização de diligências instrutórias é passível de reclamação, mas o despacho a decida esta reclamação não admite recurso.

IV - Não é obrigatória a presença do arguido no debate instrutório.

V - Fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia, quando os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior, e se conclua que esses elementos se manterão em julgamento, ou quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura. 

VI - São elementos do tipo objectivo de ilícito do crime de burla informática o dano patrimonial causado a outra pessoa e a conduta expressa em interferência no resultado de tratamento de dados ou mediante incorrecta estruturação de programa informático, uso incorrecto ou incompleto de dados, aproveitamento de dados sem autorização ou intervenção no processamento não autorizado.

Decisão Texto Integral:
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A – Relatório

1. Nos presentes autos de instrução que correm na Comarca de Leiria (Juízo de Instrução Criminal de Leiria – Juiz 3), em que é assistente AA, foi proferida decisão instrutória, a 9.6.2022, decidindo-se não pronunciar o arguido BB, pelos factos e pela prática de um crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelo artigo 221º, nº 1, do Código Penal, que lhe foram imputados no requerimento de abertura de instrução.

2. Inconformado com o despacho de não pronúncia, veio o assistente interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“1) O Assistente apresentou requerimento de abertura de instrução, em virtude do despacho de arquivamento do Ministério Público …

2) Por despacho proferido e notificado ao Assistente em 14-01-2022, veio a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, decidir rejeitar por inadmissibilidade legal o requerimento apresentado pelo Assistente para a abertura de instrução;

3) Por não concordar com tal decisão, o Assistente interpôs recurso da mesma para o Tribunal da Relação de Coimbra, formulando as conclusões acima reproduzidas;

4) Na sequência do qual foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que concedeu provimento ao recurso interposto pelo Assistente …

6) Realizado o debate instrutório, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo proferiu o despacho, ora recorrido, e acima reproduzido, indeferindo as diligências requeridas e não pronunciando o arguido;

8) A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo limitou-se a declarar aberta a instrução e a designar a data do debate instrutório, indeferindo as diligências requeridas no Requerimento de Abertura de Instrução (RAI);

9) É certo que a abertura de instrução tem como finalidade a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (vide art. 286º n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP));

10) Porém, para requerer a abertura de instrução, para além de dever indicar, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, em face do arquivamento do inquérito, pode indicar os atos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros se espera provar – vide art. 287º, n.º 2, do CPP);

11) Foi o que o Assistente fez ao pedir no final do RAI, a realização das seguintes diligências:

→        Que seja notificado o consulado português na Suiça, para que forneça aos autos a morada de CC, mãe do Denunciado BB, na qual este se encontra atualmente a viver, para que seja posteriormente notificado para prestar declarações no âmbito dos presentes autos;

→        Que seja notificado o Banco 1..., para que este forneça aos autos todos os dados relativos ao MB WAY utilizado nos movimentos eletrónicos de levantamentos de dinheiro e pagamento de compras da conta titulada por AA, desde o dia 03-01-2020 até ao dia 07-01-2020 inclusive e acima discriminados, designadamente o(s) número(s) de telemóvel utilizado(s) nessa aplicação.

→        Que seja notificado a A..., para fornecer aos autos cópia da fatura ou talão de compra emitidos na sequência das operações de compra efetuados nos dias 4/01/2020, 05/01/2020 e 06/01/2020 através do MBWAY e acima discriminados, e fornecer igualmente a informação se tais compras foram feitas na loja física ou online.

- Caso as mesmas tenham sido feitas online, deverá também fornecer aos autos a identificação da pessoa e a morada onde os artigos foram entregues;

- E caso as mesmas tenham sido feitas na loja física dizer se existem registos de vídeo desses dias em que foram efetuadas as compras e caso existam que sejam fornecidas aos autos.

→        Que sejam notificadas as entidades bancárias que gerem as caixas multibanco existentes na Av. ..., ..., na Av. ..., ..., na ..., todas em ..., para que venham juntar aos autos as imagens de vídeo referentes aos levantamentos ocorridos naquelas caixas multibanco nos dias 03-01-2020 04-01-2020 e 07-01-2020 e acima discriminados.

12) Entendeu a Meritíssima Juiz a quo, que o Assistente, em vez de requerer a abertura de instrução deveria ter optado por suscitar a intervenção hierárquica requerendo que a investigação prosseguisse, indicando as diligências a efetuar, nos termos do disposto no artigo 278º, n.º 1, do Código de Processo Penal;

13) Por não usar de tal faculdade, optando por requerer a abertura de instrução, solicitando do Tribunal a realização de diligências, designadamente com vista a determinar o eventual paradeiro do arguido no estrangeiro (Suiça), entendeu, mal, na nossa modesta opinião, indeferir a realização das diligências requeridas por tal extravasar do âmbito da fase da instrução;

14) O Assistente não estava impedido de requerer a abertura de instrução requerendo que se procedesse à realização das diligências requeridas, conforme dispõe o citado artigo 287º, n.º 2, do CPP;

15) Parece ao Recorrente que a decisão de indeferir a realização das diligências requeridas é nula, por ser ilegal e por não se encontrar devidamente fundamentada de facto e de direito, pelo que foi violado o disposto no artigo 374º, n.º 2, do CPP – vide artigo 379º, n.º 1, al. a), do CPP;

16) Acresce ainda que a determinação do paradeiro do arguido poderia ser relevante para a prova dos factos, sendo necessária para o regular prosseguimento (procedimento) dos autos;

18) A mera conjetura de que o mesmo poderia não prestar declarações, remetendo-se ao silêncio, não é fundamento bastante para que se não proceda à localização do arguido, tal como foi requerido pelo Assistente;

19) Sendo certo que o Assistente forneceu aos autos informações concretas onde o arguido poderia ser encontrado: “Na Suíça, em casa da mãe, de nome CC, para onde o arguido teria ido viver”;

21) E pedindo o Assistente que fosse notificado o consulado Português na Suíça, para que fornecesse a morada de CC, mãe do arguido;

22) Pelo que o requerido a este respeito pelo Assistente não era desprovido de utilidade, antes pelo contrário;

23) Obtendo-se o paradeiro do arguido, para além de o poder notificar para ser ouvido na qualidade de arguido, este teria conhecimento da acusação que sobre si impendia e a que tem direito, podendo ou não prestar declarações que de alguma forma o indiciassem do crime que lhe é imputado no RAI;

24) A notificação do arguido seria sempre necessária, quer para efeitos de ser constituído arguido e prestar, pelo menos, termo de identidade e residência, quer para ser notificado de todos os atos processuais e para poder comparecer nas diligências que lhe digam diretamente respeito;

26) Sendo que a não comparência do arguido no debate instrutório constitui uma nulidade insanável, que ora desde já se invoca, com todas as consequências legais daí resultantes;

27) A Meritíssima Juiz entendeu também, tal como a Digna Magistrada do Ministério Público, não existirem indícios que levem a fundamentar as suspeitas que recaem sobre o arguido BB;

28) Porém, todos os elementos carreados para o processo – extrato do Banco 1... dos levantamentos e compras feitas através do MB WAY (doc. 1), informação do Banco 1... (doc.2), contrato de venda de veículo e Declaração (doc.s 3 e 4), letras (doc.s 5 e 6) extrato do Banco 1... – Movimentos (doc. 7) – conjugados com as declarações do Assistente, não podem deixar de constituir fortes indícios da prática pelo arguido dos factos de que vinha acusado pelo Assistente no RAI;

29) As demais diligências requeridas, para além da localização do arguido, seriam precisamente para comprovar de forma inquestionável a autoria do arguido na prática dos factos descritos no RAI;

30) Ao indeferir-se a realização das diligências requeridas no RAI, tal decisão configura insuficiência de instrução, o que constitui uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 118º e 119º do CPP;

31) O despacho de não pronúncia constitui um ato decisório, nos termos do disposto no artigo 97º, n.º 1, al. b), do CPP;

32) Os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – vide art. 97º, n.º 5, do CPP;

33) O despacho de não pronúncia recorrido, não descreveu nem especificou os factos do RAI, que considerou não suficientemente indiciados;

34) O despacho não respeitou os artigos 205º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 97º, n.º 1, alínea b), e n.º 5, 308º, n.º 2, 283º e 287º, n.º 2 do CPP, sendo nulo, ou pelo menos irregular, nos termos do artigo 118º, 119º, 120º e 123º do CPP, tornando a decisão inválida, nos termos do disposto no art. 122º, n.º 1 do CPP;

35) Violou ainda o Despacho recorrido o princípio constitucional do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20º, n.º 5, da CRP, o qual dispõe: “Para defesa dos direitos liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”;

36) Ora, neste caso, essa circunstância não se verifica;

41) Acresce que o Despacho recorrido viola o disposto nos artigos 374º, 375º e 377º do CPP;

42) Por tudo o que acima se disse, interpretando e aplicando deficientemente os elementos constantes do requerimento de abertura de instrução;

43) O Despacho recorrido é nulo, por interpretação e aplicação deficiente das normas legais citadas, conforme já acima se disse e provou;

3. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo assistente, pugnando pelo não provimento do mesmo …

4. O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido da procedência parcial do mesmo e do reenvio do processo à 1ª instância para que sejam efectuadas as diligências requeridas pelo assistente …

5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentadas respostas ao douto parecer.

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B – Fundamentação

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo assistente, as questões a decidir são as seguintes:

- se a decisão de indeferir a realização das diligências requeridas é nula, por não se encontrar devidamente fundamentada de facto e de direito, tendo sido violado o disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal (cfr. artigo 379º, nº 1, alínea a), do mesmo diploma legal);

- se a não comparência do arguido no debate instrutório constitui uma nulidade insanável;

- se o indeferimento da realização das diligências requeridas no RAI traduz uma insuficiência de instrução, o que constitui uma nulidade, nos termos do disposto nos artigos 118º e 119º, ambos do Código de Processo Penal;

- se o despacho de não pronúncia é nulo ou, pelo menos irregular, por não ter descrito os factos do RAI que considerou não suficientemente indiciados;

- se existem nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos que lhe foram imputados pelo assistente no RAI;

- se o despacho recorrido violou o princípio constitucional do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20º, nº 5, da CRP, bem como o ditame constitucional do artigo 13º da Lei Fundamental.

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a decisão recorrida, que apresenta o seguinte teor:

O Ministério Publico proferiu despacho de arquivamento com o fundamento de que realizadas todas as diligencias de investigação providas de utilidade não foi possível recolher indícios suficientes de forma a identificar o autor dos factos, razão pela qual e face à carência de indícios, determinou o arquivamento dos autos …

O assistente não se conformou com a decisão de arquivamento e veio requerer a abertura de instrução, visando a pronúncia do arguido pela prática do crime do artigo 221.º, n.º 1 do Código Penal.

A finalidade da instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal). Dispõe o artigo 278.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que o assistente pode requerer, em caso de arquivamento, que a investigação prossiga, indicando as diligências a efectuar.

Ora o assistente não usou tal faculdade e ao invés optou pela abertura de instrução, solicitando que este tribunal, nesta fase, procedesse à realização de diligências de investigação, bem como à determinação do eventual paradeiro do arguido no estrangeiro, o que não se revelou possível na fase de inquérito, sem que tenha sido junto aos autos qualquer prova válida que sustentasse a indiciação de que o mesmo se encontra a residir na Suíça na atualidade, sendo que no inquérito existia a informação de que o mesmo estaria em França.

Nesse pressuposto, o tribunal indeferiu a realização das diligências requeridas pelo assistente, dado que a fase de instrução não se confunde com a fase de inquérito.

Aqui chegados, importa analisar dos indícios existentes nos autos. Cumpre, antes de mais, salientar que mesmo que fosse localizado o arguido e fosse designada data para o seu interrogatório, o mesmo poderia não prestar declarações, usando a faculdade que a lei lhe confere, no sentido de se remeter ao silêncio.

Realizada a instrução e analisados os elementos constantes nos autos e os documentos juntos com o RAI, mantém-se o entendimento plasmado no despacho de arquivamento do Ministério Público, no sentido de que não existem indícios que nos levam a fundamentar as suspeitas que recaem sobre BB, não existindo qualquer elemento de prova que corrobore tal suspeita.

Assim sendo e não se vislumbrando também a realização de qualquer outra diligência com utilidade, determina-se a prolação de despacho de não pronúncia.

….”

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4. Cumpre agora apreciar e decidir.

A primeira questão a apreciar é a de saber se a decisão de indeferir a realização das diligências requeridas é nula, por não se encontrar devidamente fundamentada de facto e de direito, tendo sido violado o disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal (cfr. artigo 379º, nº 1, alínea a), do mesmo diploma legal).

Alega o recorrente que “entendeu a Meritíssima Juiz a quo, que o Assistente, em vez de requerer a abertura de instrução deveria ter optado por suscitar a intervenção hierárquica requerendo que a investigação prosseguisse, indicando as diligências a efetuar, nos termos do disposto no artigo 278º, n.º 1, do Código de Processo Penal. E por não usar de tal faculdade, optando por requerer a abertura de instrução, solicitando que o Tribunal procedesse à realização de diligências, designadamente com vista a determinar o eventual paradeiro do arguido no estrangeiro (Suíça), entendeu, mal, na nossa modesta opinião, indeferir a realização das diligências requeridas por tal extravasar do âmbito da fase da instrução. O Assistente não estava impedido de requerer a abertura de instrução requerendo que se procedesse à realização das diligências requeridas, conforme dispõe o citado artigo 287º, n.º 2, do CPP. Ora, parece ao Recorrente que a decisão de indeferir a realização das diligências requeridas é nula por ser ilegal e por não se encontrar devidamente fundamentada de facto e de direito, pelo que foi violado o disposto no artigo 374º, n.º 2, do CPP – vide artigo 379º, n.º 1, al. a) do CPP”.

Frisa-se que o presente recurso tem por objecto o despacho de não pronúncia, proferido a 9.6.2022, logo após o debate instrutório.

O despacho que indeferiu as diligências requeridas pelo assistente no RAI foi proferido a 5.5.2022 e notificado a 11.5.2022.

Deste despacho o assistente não reclamou, como podia, ao abrigo do disposto no artigo 291º, nº 2, do Código de Processo Penal, nem reagiu de qualquer outra forma.

Aquando do debate instrutório, tendo-lhe sido perguntado se pretendia requerer a produção de provas indiciárias suplementares, por ele foi dito que não, nada tendo requerido, como resulta da respectiva acta.

Assim, não sendo o despacho que indeferiu as diligências de instrução objecto do presente recurso, independentemente da questão da sua irrecorribilidade, nunca haveria que conhecer se ele sofre da invocada nulidade por falta de fundamentação.

De qualquer forma, em síntese, sempre se diz que o artigo 118º, nº 1, do Código de Processo Penal, dispõe que “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.

De acordo com o nº 2 da mesma norma legal, “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”.

Consagra-se, assim, um apertado princípio da taxatividade ou de “numerus clausus” das nulidades.

Todos os demais vícios que não sejam expressamente atingidos pela nulidade, são irregularidades, ficando sujeitas ao regime do artigo 123º, nº1, do Código de Processo Penal.

Nos termos desta norma legal, “qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”.

No caso concreto, segundo o recorrente, como se disse, o despacho que indeferiu as diligências de instrução carece de fundamentação.

De facto, de acordo com o disposto no artigo 97º, nº 5, do Código de Processo Penal, “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

Coloca-se, assim, a questão de saber em que espécie de invalidade se integra a inobservância do dever de fundamentação de tal despacho, prescrito no artigo 97º, nº 5, do Código de Processo Penal.

Ora, é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência, que a falta de fundamentação das decisões judiciais constitui mera irregularidade (artigo 118.º, n.ºs 1 e 2), a menos que se verifique na sentença, acto processual que, conhecendo a final do objecto do processo (artigo 97.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.), a lei impõe que obedeça a fundamentação especial, sob pena de nulidade (artigos 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, do mesmo diploma legal), ou que se verifique no despacho que decreta uma medida de coacção ou de garantia patrimonial (artigo 194.º, n.º 6, do C.P.P.) ou no de pronúncia (artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do mesmo diploma), em que o legislador igualmente comina a falta de observância do específico dever de fundamentação desses actos com nulidade – cfr. Ac. da RL de 24.11.2020, in www.dgsi.pt. Ou até mesmo no de não pronúncia, segundo grande parte da jurisprudência.

A ser assim, no caso do despacho que indeferiu as diligências não estamos perante nenhuma situação cominada com nulidade. A situação não se enquadra em nenhuma das normas dos artigos 119º ou 120º, ou qualquer outra, do Código de Processo Penal, configurando, por isso, mera irregularidade.

Irregularidade que não foi arguida no prazo legal, pelo que, a existir, encontrar-se-ia sanada.

Pelo exposto, indefere-se esta questão suscitada pelo recorrente.

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Passa-se agora a conhecer se a não comparência do arguido no debate instrutório constitui uma nulidade insanável.

Defende o recorrente que a não comparência do arguido no debate instrutório constitui uma nulidade insanável, com todas as consequências legais daí resultantes.

Vejamos se lhe assiste razão.

Nos termos do artigo 300º, nº 1, do Código de Processo Penal, o debate só pode ser adiado por absoluta impossibilidade de ter lugar, nomeadamente por grave e legítimo impedimento de o arguido estar presente.

Assim, como se refere no Ac. da RP de 15.10.2014, in www.dgsi.pt, “não é obrigatória a presença do arguido no debate instrutório.

A regra é a impossibilidade do adiamento do debate instrutório, e só em caso de absoluta impossibilidade de ter lugar é adiado:

– Como impossibilidade absoluta é considerado o impedimento do arguido em estar presente;

- Tal impedimento só gera impossibilidade se for grave e legítimo e deve ser transmitido ao tribunal até ao início do debate, e apesar dele, pode o debate ter lugar se o arguido renunciar ao direito de estar presente”.

Também Maia Costa, in Código de Processo Penal Comentado, 2014, pág. 1015, refere que “o adiamento tem que resultar de uma absoluta impossibilidade de realização do debate, como a falta do arguido …, cuja presença o juiz tenha considerado indispensável, mas só pode ter lugar por uma vez, independentemente do motivo do adiamento”.

Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed. actualizada, pág. 792, defende que “a comunicação da justificação da falta do arguido nos termos do artigo 117º, nº 2, dá causa ao adiamento do debate. Não tendo sido feita a dita comunicação, não há adiamento da diligência, salvo se o juiz de instrução considerar a sua presença indispensável para a realização das finalidades da instrução”.

No caso concreto, como resulta da respectiva acta, no início do debate instrutório, foi proferido o seguinte despacho:

Uma vez que não foi possível localizar o arguido e dado que face às diligências encetadas não resultou a obtenção de qualquer informação que permita a sua localização, nada mais a determinar neste ponto, passando à realização Debate Instrutório.”

Assim, no caso concreto, o paradeiro do arguido era desconhecido e, apesar das diligências levadas a cabo para o localizar, não foi encontrado.

Não estamos, assim, perante um arguido que pretendia estar presente mas impossibilitado de comparecer por qualquer impedimento grave e legítimo.

Por outro lado, o tribunal não considerou a presença do arguido indispensável para a realização das finalidades da instrução.

Do que fica dito resulta que o debate instrutório foi adiado com respeito por todos os ditames legais, não tendo sido cometida a invocada nulidade.

Improcede, igualmente, esta questão suscitada pelo assistente.

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A próxima questão é a de saber se o indeferimento da realização das diligências requeridas no RAI traduz uma insuficiência de instrução, o que constitui uma nulidade, nos termos do disposto nos artigos 118º e 119º, ambos do Código de Processo Penal.

Defende o assistente que as diligências requeridas, para além da localização do arguido, seriam precisamente para comprovar de forma inquestionável a autoria do arguido na prática dos factos descritos no RAI. Ao indeferir-se a realização das diligências requeridas no RAI, tal decisão configura insuficiência de instrução, o que constitui nulidade, nos termos dos artigos 118º e 119º do Código de Processo Penal.

Pois bem.

Estipula o artigo 291º, nº 1, do Código de Processo Penal que “os actos de instrução efectuam-se pela ordem que o juiz reputar mais conveniente para o apuramento da verdade. O juiz indefere os actos requeridos que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis”.

O nº 2 da mesma norma legal dispõe que “do despacho previsto no número anterior cabe apenas reclamação, sendo irrecorrível o despacho que a decidir”.

Em coerência com o princípio da investigação autónoma, teleologicamente direcionada à descoberta da verdade material, no âmbito da vinculação temática estabelecida pelo requerimento de abertura de instrução do assistente ou pela acusação, conforme os casos (artigo 288º, nº 4), o juiz realiza os actos instrutórios pela ordem que entender conveniente ao apuramento da verdade.

Como corolário dos mesmos princípios, o juiz deve indeferir os actos que considerar impertinentes ou dilatórios, e ordenar ou praticar oficiosamente os que considerar úteis. O juiz não pode, porém, indeferir o interrogatório do arguido, quando por ele requerido (artigo 292º, nº 2).

O despacho que indeferir a realização de diligências é irrecorrível, nos termos do nº 2, desde a revisão introduzida pela Lei nº 59/98, de 25.8. Esta solução foi diversas vezes submetida a fiscalização do Tribunal Constitucional, que sempre se pronunciou pela sua conformidade constitucional. É recorrível, porém, o despacho que indeferir o interrogatório do arguido, quando por este requerido.

Aquele despacho de indeferimento pode, no entanto, ser objecto de reclamação para o próprio juiz que proferiu o despacho (revisão da Lei nº 48/2007 de 29-8). Do despacho que decidir a reclamação não cabe, porém, recurso” – cfr. Maia Costa, in Código de Processo Penal Comentado, 2014, págs. 1009-1010.

No mesmo sentido afirma Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed. actualizada, pág. 787, que a Lei nº 59/98, de 25.8, determinou a irrecorribilidade do despacho judicial de indeferimento da realização de diligências instrutórias. O TC já se pronunciou repetidamente no sentido da não inconstitucionalidade da irrecorribilidade do despacho judicial de indeferimento da realização de diligências instrutórias.

O indeferimento da realização de diligências instrutórias é passível de reclamação, mas o despacho sobre a reclamação não admite recurso. O propósito do legislador foi precisamente o de limitar ao juiz de instrução a decisão sobre as diligências instrutórias. Destarte, a lei permite que o juiz indefira a realização de todas as diligências probatórias e a junção de toda a prova do requerente de instrução, limitando-se a instrução ao debate instrutório. Não haverá, então, a nulidade insanável da falta da instrução, porque ela teve lugar, nem a nulidade sanável da insuficiência da instrução, na medida em que os actos processuais referidos não são obrigatórios. Por outro lado, a irrecorribilidade abrange também os despachos de indeferimento da produção de prova suplementar apresentados no debate, uma vez que se trata de um requerimento de diligências instrutórias. A irrecorribilidade abrange mesmo o indeferimento de diligências de prova, anteriormente admitidas pelo juiz de instrução, se elas se afiguram desnecessárias diante da prova entretanto produzida na instrução.

O despacho que indefere o interrogatório do arguido a seu pedido é recorrível, mas é irrecorrível o despacho que indefere o interrogatório do arguido se tiver sido pedido pelos outros sujeitos processuais”.

Também Germano Marques da Silva, in Direito Processual Penal Português – Do Procedimento (Marcha do Processo), pág. 153, afirma que “o juiz deve ter em conta os actos de instrução requeridos pelo assistente e pelo arguido, mas não está vinculado ao requerido. Por isso do despacho de indeferimento dos actos de instrução requeridos não cabe recurso (artigo 291º, nº 2). Uma ressalva apenas. Nos termos do artigo 292º, nº 2, o juiz de instrução deve interrogar o arguido sempre que este o solicite. A omissão do interrogatório do arguido por ele requerido constitui nulidade dependente de arguição, nos termos do artigo 120º, nº 2, alínea d), e deve ser arguida até ao encerramento do debate instrutório (artigo 120º, nº 3, alínea c)).

A nível jurisprudencial e a título de exemplo, veja-se o Ac. da RP de 13.12.2006, in www.dgsi.pt, segundo o qual “sendo irrecorrível, nos termos do artigo 291º, nº 1, do CPP98, o despacho que indefere diligências não obrigatórias de instrução não pode ser atacado pela via da arguição de nulidade”.

Também a RE já se pronunciou no mesmo sentido no Ac. de 6.3.2009, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que “do despacho que indeferir diligência requerida em sede de instrução cabe apenas reclamação para o juiz de instrução, sendo irrecorrível o despacho que a decidir, como proclama o n.º 2 do art. 291.º do Código de Processo Penal”.

Doutrina e jurisprudência que se acompanha integralmente.

Revertendo ao caso concreto, volta a afirmar-se que o assistente não recorreu nem reclamou do despacho que indeferiu as diligências por si requeridas.

Desse despacho apenas cabia reclamação para o tribunal que o proferiu, não havendo recurso do despacho que decidisse a reclamação.

Vem agora o assistente invocar a nulidade insanável por falta de instrução, mas sem razão.

Como se disse, a única forma de atacar o dito despacho era reclamar do mesmo. Não sendo admissível recurso, também não é admissível a arguição de nulidade.

De facto, como se afirma no citado Ac. da RP de 13.12.2006, “invocar apenas uma aparente nulidade da insuficiência da instrução com o fim de poder recorrer de um despacho judicial anterior que é irrecorrível, por ter sido proferido ao abrigo do art. 291 nº 1 do CPP, é inadmissível, na medida em que visa obter um fim expressamente proibido por lei.

Diz José Alberto dos Reis que, se há um despacho a omitir a prática de um acto ou de uma formalidade, «o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente», desde que, claro, se trate de decisão que admita recurso.

Por isso é que, como assinala o mesmo Autor, «a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se».

Em suma, pelos fundamentos supra expostos, não assiste razão ao recorrente quando afirma que, ao indeferir-se a realização das diligências requeridas no RAI, tal decisão configura insuficiência de instrução, o que constitui nulidade, nos termos dos artigos 118º e 119º do Código de Processo Penal”.

Não foi cometida a invocada nulidade, nulidade esta que nunca poderia ser arguida no presente recurso.

Pelo exposto, indefere-se igualmente esta questão suscitada pelo recorrente.

*

Passa-se agora a conhecer se o despacho de não pronúncia é nulo ou, pelo menos irregular, por não ter descrito os factos do RAI que considerou não suficientemente indiciados.

Afirma o assistente que o despacho de não pronúncia constitui um ato decisório, nos termos do disposto no artigo 97º, n.º 1, al. b), do CPP.

Os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – vide art. 97º, n.º 5, do CPP. O despacho de não pronúncia recorrido, não descreveu nem especificou os factos do RAI, que considerou não suficientemente indiciados.

O despacho não respeitou os artigos 205º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 97º, n.º 1, alínea b), e n.º 5, 308º, n.º 2, 283º e 287º, n.º 2 do CPP, sendo nulo, ou pelo menos irregular, nos termos do artigo 118º, 119º, 120º e 123º do CPP, tornando a decisão inválida, nos termos do disposto no art. 122º, n.º 1 do CPP.

Vejamos então.

Nos termos do artigo 97º, nº 1, do Código de Processo Penal, “os actos decisórios dos juízes tomam a forma de:

a) Sentenças, quando conhecerem a final do objecto do processo;

b) Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior”.

O nº 4 da mesma norma legal dispõe que “os actos decisórios referidos nos números anteriores revestem os requisitos formais dos actos escritos ou orais, consoante o caso”.

Por sua vez, o número 5 do mesmo normativo estipula que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

O dever de fundamentação das decisões judiciais encontra-se consagrado no artigo 205º da nossa Lei Fundamental.

Nos termos do nº 1 desta norma, “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Trata-se de uma garantia do Estado de direito democrático, assumindo, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos.

O objetivo de tal dever de fundamentação, imposto pelos sistemas democráticos, é permitir, nas palavras de Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III Volume, 3ª edição, página 289, “a sindicância da legalidade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando por isso como meio de autodisciplina”.

Com efeito, é através da fundamentação que se revelam as razões da decisão, permitindo aos respetivos destinatários e à comunidade a compreensão dos juízos de valor e da apreciação que o julgador levou a cabo. Para além disso, para efeitos de recurso, é ainda através da fundamentação que se alcança o controlo da atividade decisória. Daí que a fundamentação de um ato decisório deva estar devidamente exteriorizada no respetivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido. Assim, não cumprem estes requisitos os atos decisórios que não tenham fundamento algum, por mínimo que seja, e aqueles que se revelem insuficientemente motivados. De qualquer forma, também não se deve exigir que no ato decisório fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser.

No mesmo sentido refere Joaquim Gomes Correia, in A motivação judicial em processo penal e as suas garantias constitucionais, pág. 97, consutável em julgar.pt, que se deve conhecer qual foi “o efectivo juízo decisório em que se alicerçou a correspondente decisão judicial, designadamente os factos que acolheu e a interpretação do direito que perfilhou, permitindo o seu controlo pelos interessados e, se for caso disso, por uma instância jurisdicional distinta daquela.

Assim e à partida, não cumprem estes requisitos os actos decisórios que não tenham fundamento algum, por mínimo que seja, e aqueles que se revelem insuficientemente motivados.

Porém, também não se deve exigir que nas decisões judiciais fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser.

O que importa é que a motivação seja necessariamente objectiva e clara, bem como suficientemente abrangente em relação às questões aí suscitadas, de modo que se perceba o raciocínio seguido.

Do mesmo modo, a suficiência não implica a apreciação, ponto por ponto, de todos os argumentos que foram expendidos, mas apenas do conjunto de questões que foram efectivamente suscitadas.

Muitas vezes confunde-se motivação com prolixidade da fundamentação e esta apenas serve para confundir ou obnubilar a compreensibilidade que deve ser uma característica daquela.

A exigência da fundamentação é, simultaneamente, um acto de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legitima, e das diversas garantias constitucionais da motivação decisória, com destaque para os direito da defesa, de forma a aferir-se da sua razoabilidade e a obstar a decisões arbitrárias”.

Voltando ao caso concreto, consta da decisão recorrida, na parte que aqui interessa, que:

Realizada a instrução e analisados os elementos constantes nos autos e os documentos juntos com o RAI, mantém-se o entendimento plasmado no despacho de arquivamento do Ministério Público, no sentido de que não existem indícios que nos levam a fundamentar as suspeitas que recaem sobre BB, não existindo qualquer elemento de prova que corrobore tal suspeita”.

Assim, a decisão recorrida, quanto aos seus fundamentos, remete para o despacho de arquivamento, mantendo o mesmo entendimento.

Por sua vez, no despacho de arquivamento, pode ler-se que:

Iniciaram-se os presentes autos com a denúncia apresentada por AA, da qual se infere, sumariamente, que entre 03 e 07 de Janeiro de 2020, pessoa cuja identidade é desconhecida, usando os dados do cartão bancário por si titulado, efectuou onze transações, na quantia global de €1.750,00, sem o seu conhecimento e consentimento.

A factualidade descrita é susceptível de consubstanciar, em abstracto, a prática de um crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelo artigo 221.º, n.º 1 do Código Penal. …

Ora, no caso dos autos, não obstante os esforços probatórios desenvolvidos, os quais permitem concluir pelo cometimento do crime denunciado, não foi possível proceder à identificação do(s) seu(s) autor(es).

Efectivamente, inexistem dados bancários que nos levem àquela identificação, já que as operações foram realizadas através da aplicação MBWAY, que foi subscrita através do telemóvel pertencente ao ofendido.

Acresce que não há registos de que tenha sido requerida uma outra via do cartão telefónico do ofendido, para além das duas de que é possuidor.

Assim sendo, apesar das suspeitas que recaem sobre BB, o certo é que não há qualquer elemento de prova que corrobore tal suspeita, atenta a falta de dados bancários ou de outros que a sustentem”.

Isto é, o Ministério Público considera indiciados os factos denunciados, que integram o crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelo artigo 221.º, n.º 1 do Código Penal, mas afirma que não existem indícios suficientes de ter sido o ora arguido BB quem os praticou.

É este igualmente o entendimento da decisão instrutória de não pronúncia. Entendimento este bem explícito ao afirmar que “mantém-se o entendimento plasmado no despacho de arquivamento do Ministério Público, no sentido de que não existem indícios que nos levam a fundamentar as suspeitas que recaem sobre BB, não existindo qualquer elemento de prova que corrobore tal suspeita”.

Na verdade, a fundamentação da decisão recorrida é parca, não prima pelo brilhantismo, mas também não se pode afirmar que se desconheça o raciocínio do tribunal a quo. Segundo este, analisada a prova carreada para os autos, não existe qualquer elemento que corrobore a suspeita contra o arguido.

A decisão recorrida não desenvolve o seu raciocínio, é certo, mas cumpre os requisitos mínimos de fundamentação, já que é objectiva e clara, permitindo a sindicância do acto.

No que respeita à remissão para o despacho de arquivamento, passa-se a citar algumas passagens do Ac. do TC nº 281/2005, consultável em https://www. tribunalconstitucional. pt/tc/acordaos/20050281. Html:

Assim recortado o âmbito material dos parâmetros constitucionais aqui relevantes, pode antecipar-se, desde já, que “as normas dos artigos 97.º, n.º 4, 379.º, n.º 1, alínea a) e 425.º, n.º 4 do Código de Processo Penal interpretadas no sentido de que havendo lugar a uma total confirmação do anteriormente decidido, a fundamentação da decisão em matéria de facto, proferida em acórdão de recurso que confirmou a decisão de pronúncia se basta com remissão para a prova indicada na decisão recorrida, não sendo exigível à decisão a proferir que explicite, especificadamente, os fundamentos dessa adesão – autonomizando, em texto próprio, a enumeração dessa prova, a especificação dos motivos de facto que fundamentam a decisão e a análise da mesma –, mas tão só que se indiquem as razões pelas quais valida a conclusão fáctica e jurídica em apreço”, não padecem de inconstitucionalidade por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Como é consabido – e foi, de resto, exemplarmente concretizado nos arestos supra referidos –, apesar do dever de fundamentação das decisões judiciais poder assumir, conforme os casos, uma certa geometria variável, o seu cumprimento só será efectivamente logrado quando permitir revelar às partes – e, bem assim, à comunidade globalmente considerada – o conhecimento das razões “justificativas” e “justificantes” que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, revelar uma “sustentada aptidão comunicativa ou compreensividade” sustentada na exteriorização do(s) critério(s) normativo(s) que presidem à sua resolução e do seu respectivo juízo de valoração de modo a comunicar, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido.

Não se esquecendo que o juízo decisório (e por ser “juízo”…) envolve sempre uma “ponderação prudencial de realização concreta orientada por uma fundamentação”, é imprescindível que esta, como base desse juízo, seja exteriorizada em termos de permitir desvelar o iter “cognoscitivo” e “valorativo” justificante da concreta decisão jurisdicional.

Ora, esta função não fica materialmente prejudicada quando uma decisão, como a recorrida, sindicando um juízo que considera totalmente adequado, remeta para as razões aí invocadas, autonomizando – ou, recte, explicitando – “as razões pelas quais se valida a conclusão fáctica e jurídica em apreço”.

É claro que, em sede de recurso, está sempre em causa uma avaliação crítica incidente sobre o seu objecto - in casu, a já referida “questão de saber se a prova recolhida nos Autos, seja em fase de inquérito, seja na instrução indicia suficientemente, ou não, a prática pelo Arguido dos dois crimes que lhe são imputados”.

Todavia, nada impede que o resultado dessa avaliação crítica – que não pode deixar de ser cabalmente equacionada – acabe por conduzir ao “acolhimento” das razões fundamentantes da decisão recorrida, hipótese na qual, mostradas que estejam as razões pelas quais se valida tal juízo, se há-de ter por fundamentada uma decisão que, ao concordar integralmente com a valoração previamente efectuada – que se encontra transcrita  e até formalmente integrada na parte decisória do aresto em crise –, remeta para a motivada ponderação do anteriormente decidido, fazendo seus os argumentos aí explicitados.

Ora, como transparece dos autos, a decisão recorrida louvou-se numa total adesão ao que previamente havia sido decidido, concluindo expressamente que a prova indiciária constante da decisão em crise “é idónea e bastante para sustentar a pronúncia do Arguido”, não deixando de avaliar ou analisar – e fazer suas – as razões pelas quais “os elementos de prova que, nestes Autos, sustentam o juízo incriminatório imputado ao Arguido [que] são os indicados no Despacho (...) [permitem afirmar que] resulta claro existir uma séria probabilidade de o Arguido ter cometido os factos denunciados nos autos”.

Assim sendo, é indubitável que o Acórdão recorrido sindicou e ponderou “a questão de saber se a prova recolhida nos Autos – seja em fase de inquérito, seja na instrução – indicia suficientemente, ou não, a prática pelo Arguido dos dois crimes que lhe são imputados”, tendo, na sua decisão, manifestado concordância com a fundamentante argumentação que constava da decisão recorrida.

Por isso, a autonomização, em texto próprio, da enumeração da prova, da especificação dos motivos de facto que fundamentam a decisão e da análise da mesma, num caso, como o dos autos – em que o tribunal manifesta total concordância com a prova enumerada, os motivos de facto que fundamentaram a decisão e análise crítica efectuada na decisão recorrida –, nada acrescentaria, num plano material-substantivo, à decisão aqui em crise”.

O que fica dito revela-se suficiente para se concluir pela inexistência da invalidade da decisão recorrida, improcedendo igualmente esta questão suscitada pelo recorrente.

*

Cumpre agora apreciar se existem indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos que lhe foram imputados pelo assistente no RAI.

Alega o recorrente que “a Meritíssima Juiz entendeu também, tal como a Digna Magistrada do Ministério Público, não existirem indícios que levem a fundamentar as suspeitas que recaem sobre o arguido BB.

Porém, todos os elementos carreados para o processo – extrato do Banco 1... dos levantamentos e compras feitas através do MB WAY (doc. 1), informação do Banco 1... (doc.2), contrato de venda de veículo e Declaração (doc.s 3 e 4), letras (doc.s 5 e 6) extrato do Banco 1... – Movimentos (doc. 7) – conjugados com as declarações do Assistente, não podem deixar de constituir fortes indícios da prática pelo arguido dos factos de que vinha acusado pelo Assistente no RAI”.

Pois bem.

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Por sua vez, determina o artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal que, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, devendo, em caso contrário, proferir despacho de não pronúncia.

Face ao disposto nos artigos 283º, nº 2, e 308º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, consideram-se indícios suficientes “sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.”

Haverá indícios suficientes quando está em causa um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados, isto é, vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.

Consequentemente, fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia quando:

- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;

- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou

- quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura.     

Para a pronúncia não é necessário uma certeza da existência da infracção, bastando uma grande probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Deve assim o Juiz de Instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.

Neste sentido veja-se o esclarecedor Ac. da RC de 23.5.2018, in www.dgsi.pt, segundo o qual “Mais concretamente e no que respeita à fase da instrução, nesta não se pretende alcançar a demonstração da realidade dos factos; pretende-se, tão só, recolher indícios, sinais, de que um crime foi, ou não, cometido pelo arguido. As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento. No dizer do Prof. Germano Marques da Silva, nesta fase processual a lei «… não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.» Ou seja, «Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação.». Cfr. “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, páginas 179 a 182. O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no nº 2 do artigo 283º do C.P.P., aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação”.

 Continua o mesmo aresto afirmando que “Seguindo a lição do Prof. Figueiredo Dias, proferida ainda na vigência do Código de Processo Penal de 1929, consideramos que continua a ser aceitável, na interpretação do conceito normativo de indícios suficientes, considerar que «… os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.». Cfr. “Direito Processual Penal”, 1.º Vol. Coimbra Editora, 1974, pág. 133. Por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela possibilidade razoável de condenação como uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. Para a pronúncia, não obstante não ser necessária a certeza da existência da infração, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de razoável probabilidade de condenação no que respeita aos factos que lhe são imputados”.

Afirma ainda o mesmo aresto que “a decisão de pronúncia, tal como a de acusar, não pode ser proferida de forma apressada ou precipitada, pois sujeitar alguém a um julgamento, para além do natural incómodo, pode ser causa, se não para o próprio, para outras pessoas, de desonra e de vergonha. Na mente do julgador deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de proteção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso do bom nome e reputação do cidadão”.

Veja-se igualmente o Ac. da RC de 10.9.2008, in www.dgsi.pt, segundo o qual “Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado. Na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia)”.

O mesmo aresto afirma que “o juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade. Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável - é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação”.

Jurisprudência com a qual se concorda.

*

Vejamos agora os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime sub judice.

Dispõe o artigo 221º, nº 1, do Código Penal que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer modo não autorizada no processamento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Quanto ao bem jurídico, a burla informática consubstancia um crime contra o património. … Ainda no tocante ao bem jurídico, como deriva da letra do nº 1 do artigo 221º, a burla informática integra um crime de dano, cuja consumação depende da efectiva ocorrência de um prejuízo patrimonial de outra pessoa. Acresce que, pela própria natureza das coisas, se está perante um delito material ou de resultado, que só se perfaz com a verificação do “evento” consistente na saída dos bens ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” da vítima.

Perspectivada do ângulo da conduta, a burla informática constitui um crime de execução vinculada. …

A infracção do nº 1 do artigo 221º assume uma estrutura diversa do delito fundamental da burla do artigo 217º. Neste último, o agente cria no sujeito passivo um estado de erro que o leva à prática de actos de diminuição patrimonial (própria ou alheia), deparando-se com um iter criminis que comporta um duplo nexo de imputação objectiva. Ao invés, a denominada burla informática concretiza-se num atentado directo ao património, isto é, num processo executivo que não contempla, de permeio, a intervenção de outra pessoa e cuja única peculiaridade reside no facto de a ofensa ao bem jurídico se observar através da utilização de meios informáticos.

No que respeita ao tipo subjectivo de ilícito, a burla informática constitui um crime doloso, que não permite a punição a título de negligência, por força da interpretação conjugada dos artigos 221º, nº 1, e 13º do CP.

Acresce que o preenchimento do tipo legal em apreço não se basta com a produção do dano patrimonial da vítima, exigindo, ademais, que o agente actue com a intenção de obter, para si ou para outrem, um enriquecimento ilegítimo. Trata-se, portanto, de um delito de intenção ou, vistas as coisas de outro ângulo, de um delito de resultado parcial ou cortado, caracterizado por uma descontinuidade entre os tipos subjectivo e objectivo, em que se requer o aludido animus de enriquecimento, mas que se consuma com o dano patrimonial da vítima, independentemente da efectiva verificação do benefício económico do sujeito activo da infracção ou de terceiro” – cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, págs. 330-331.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 860, “o tipo objectivo do crime previsto no nº 1 consiste na interferência no resultado de tratamento de dados, através da estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizado no processamento, causando desse modo prejuízo patrimonial”.

Em suma, do que fica dito, resulta que são elementos do tipo objectivo de ilícito do crime de burla informática, o dano patrimonial causado a outra pessoa e a conduta expressa em interferência no resultado de tratamento de dados ou mediante incorrecta estruturação de programa informático, uso incorrecto ou incompleto de dados, aproveitamento de dados sem autorização ou intervenção no processamento não autorizado.

No mesmo sentido, veja-se o Ac. do STJ de 5.11.2008, in ww.dgsi.pt, onde se pode ler que “no plano da tipicidade, o crime de burla informática p. e p. pelo art. 221.º, n.º 1, do CP é um crime de execução vinculada, no sentido de que a lesão do património se produz através da intromissão nos sistemas e da utilização em certos termos de meios informáticos. E é um crime de resultado – embora de resultado parcial ou cortado –, exigindo que seja produzido o prejuízo patrimonial de alguém.

A tipicidade do meio de obtenção de enriquecimento ilegítimo (com o prejuízo patrimonial de alguém) consiste, como resulta da descrição do tipo, na interferência «no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático», na «utilização incorrecta ou incompleta de dados», na «utilização de dados sem autorização» ou na «intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento».

Pela amplitude da descrição, o tipo do art. 221.º, n.º 1, do CP parece constituir um plus relativamente ao modelo de protecção contra o acesso ilegítimo a um sistema ou rede informática previsto no art. 7.º da Lei 109/91, de 17-08 (Lei da Criminalidade Informática).

A dimensão típica remete, pois, para a realização de actos e operações específicas de intromissão e interferência em programas ou utilização de dados nos quais está presente e aos quais está subjacente algum modo de engano, de fraude ou de artifício que tenham a finalidade de obter enriquecimento ilegítimo e através do qual se realiza esta específica intenção, causando a outra pessoa prejuízo patrimonial.

Assim, há-de estar sempre presente um erro directo com finalidade determinada, um engano ou um artifício sobre dados ou aplicações informáticas – interferência no resultado ou estruturação incorrecta de programa, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou qualquer intervenção não autorizada de processamento.

Daí o nomen (“burla informática”) introduzido com a Reforma de 1995, em adaptação da fonte da disposição, a Computerbetrug do art. 263a do Strafgesetzbuch alemão, novo tipo penal, surgido em 1986, que prescinde, no entanto, do engano e do correlativo erro em relação a uma pessoa.

Na interpretação conjugada e também no primeiro módulo da interpretação de uma disposição penal (na identificação dos elementos do tipo, na descrição chegada à letra, por respeito para com os princípios da tipicidade e da legalidade), os nomina têm relevância pelas referências conceptuais na unidade do sistema para que apontam ou que pressupõem. Por isso, a burla informática, na construção típica e na correspondente execução vinculada, há-de consistir sempre em um comportamento que constitua um artifício, engano ou erro consciente, não por modo de afectação directa em relação a uma pessoa (como na burla – art. 217.º do CP), mas por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados.

As condutas típicas referidas no art. 221.º, n.º 1, do CP constituem, assim, na apreensão intrínseca e na projecção externa, modos de descrição de modelos formatados de prevenção da integridade dos sistemas contra interferências, erros determinados ou abusos de utilização que se aproximem da fraude ou engano, contrários ao sentimento de segurança e fiabilidade dos sistemas.

O bem jurídico protegido é essencialmente o património: o crime de burla informática configura um crime contra o património, por comparação e delimitação relativamente aos bens jurídicos protegidos em outras incriminações, referidas à tutela de valores de natureza patrimonial ou de protecção da própria funcionalidade dos sistemas informáticos (cf. José de Faria Costa e Helena Moniz, Algumas reflexões sobre a criminalidade informática em Portugal, in BFDUC, Vol. LXXIII, 1997, págs. 323-324, e A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 328 e ss.). A inserção sistemática constitui, neste aspecto, um elemento relevante para a definição e delimitação do bem jurídico protegido.

A coordenação entre a natureza do bem jurídico protegido e a especificidade típica como crime de execução vinculada supõe que a produção do resultado tenha de ser determinada por procedimentos e acções que sejam tipicamente vinculados na descrição específica da norma que define os elementos materiais do crime”.

*

Revertendo ao caso concreto, face ao teor da decisão instrutória, encontra-se indiciado que, entre os dias 3 e 7 de Janeiro de 2020, pessoa cuja identidade é desconhecida, usando os dados do cartão bancário do ofendido AA, efectuou onze transações, na quantia global de €1.750,00, sem o seu conhecimento e consentimento.

Encontra-se não indiciado que tenha sido o arguido quem efectuou tais transacções.

Vejamos a prova indiciária recolhida nos autos.

Aquando da denúncia apresentada, a 8.1.2020, o ofendido disse que, no dia de ontem, verificou no extracto da sua conta bancária do Banco 1..., que existia uma série de movimentos (11), efectuados através do seu cartão de débito associado a essa sua conta, num valor total de 1,750,00 euros, que não tinha realizado. Dirigiu-se ao seu banco, tendo-lhe sido referido que provavelmente teria ocorrido uma clonagem desse seu cartão. Mais disse que o dito cartão está na sua posse e nunca facultou os seus dados a qualquer pessoa. Nunca usou o cartão para realizar pagamentos na internet.

Juntou cópia do cartão e do extracto bancário com os referidos movimentos.

Quando foi inquirido em sede de inquérito, o ofendido veio dizer que são fraudulentos todos os movimentos de 3.1.2020 a 7.1.2020, num total de 12 movimentos. Destes, seis são levantamentos em ATM e cinco são compras na A.... Após receber a informação do Banco 1... a informá-lo que os movimentos tinham sido feitos através da APP MBWAY, recordou-se que um seu cliente o terá burlado desta forma.

Contou então que vendeu a esse cliente, o ora arguido BB, um veículo automóvel, em Outubro de 2019. Em finais de Novembro, para pagamento de uma prestação, o BB pediu-lhe para o acompanhar a uma caixa ATM do Banco 1... para fazer a transferência. Aí disse-lhe que ia fazer a transferência por MBWAY. Como não sabia o que era, entregou-lhe o seu cartão de débito. O arguido usando o seu telemóvel e o cartão instalou a aplicação. Sabe agora que era para aceder à sua conta. No final, o arguido disse que não conseguiu fazer a transferência do dinheiro.

Mais disse que a conta bancária em causa esteve com o saldo de 15 euros até Janeiro de 2020. Quando foi feito o depósito no valor de 1.535,00 euros, a 3.1.2020, os débitos começaram a ser efectuados, ou seja, o indivíduo em causa, através do MBWAY viu que a sua conta estava provida e resolveu usá-la. O Banco 1... informou-o que durante o mês de Dezembro de 2019 houve tentativas de débitos, não conseguidas devido à falta de saldo bancário.

O Banco 1... informou os autos que os movimentos foram realizados em ambiente electrónico, sem a presença física do cartão e através do serviço MBWAY, tendo sido validados por digitação do código de 10 dígitos gerado pela app MBWAY. Para aderir ao serviço MBWAY no Multibanco, sendo esta operação validada por digitação do código pessoal secreto (PIN).

Informou ainda o Banco 1... que a criação do serviço MBWAY foi efectuada em 26.10.2019, ficando registado o telemóvel ...30.

O ofendido esclareceu que no dia em que o ora arguido esteve consigo no multibanco a instalar e configurar a aplicação MBWAY usou o seu telemóvel (do ofendido), com o nº ...30.

Na posse desse telemóvel, com a autorização do ofendido, a entidade policial visionou que o aparelho tem a aplicação MBWAY instalada.

O ofendido reiterou que foi o BB quem usou o seu telemóvel para instalar e configurar o MBWAY. De seguida devolveu-lhe o telemóvel e, a partir daí, o BB não teve mais acesso a esse aparelho. O cartão SIM nunca saiu do interior do telemóvel e desconhece de que forma este conseguiu fazer os movimentos.

Ora, o facto do arguido não ter tido mais acesso ao telemóvel do ofendido, não o impedia de realizar os movimentos em causa. O arguido poderia ter instalado o MBWAY no seu telemóvel, com os dados do ofendido, mormente o seu número de telemóvel, ficando desse modo com acesso total à conta bancária do assistente. Não podemos esquecer que, aquando da ida ao multibanco, o ofendido forneceu ao arguido todos os elementos necessários para o efeito. Como refere, mormente no RAI, o ofendido forneceu ao arguido o número do cartão multibanco do Banco 1..., o seu NIB e o seu número de telemóvel. Número este que o arguido já conhecia em virtude do negócio que tinha celebrado com o ofendido.

Aliàs, foi essa a conclusão a que chegou a entidade policial no final da investigação. Como afirmou, “ao que tudo indica, o BB instalou o MBWAY no seu telemóvel pessoal, ficando desse modo com acesso total à conta bancária do participante. Esperou que esta tivesse saldo e usou este artifício para conseguir obter a quantia em que o participante se encontra lesado”.

Os documentos juntos aos autos, mormente com o RAI, corroboram a versão apresentada pelo ofendido, nomeadamente o contrato de compra e venda do veículo automóvel mencionado, celebrado a 26.10.2019, e a forma de pagamento.

Também a informação prestada pelo Banco 1... de que no mês de Dezembro de 2019 houve tentativas de débitos, não conseguidas devido à falta de saldo bancário, está em consonância com a posição do ofendido que refere que a conta esteve com saldo de 15 euros até Janeiro.

Em suma, da conjugação dos indícios recolhidos nos autos, conclui-se que está suficientemente indiciado que foi o ora arguido quem praticou os factos e o crime que lhe foram imputados no RAI.

Mesmo que existisse apenas a palavra do ofendido, não se pode concluir, sem mais, pela inexistência de indícios e, noutra fase processual, de prova, de que foi o arguido quem praticou os factos.

Acreditar ou não num depoimento é uma questão de convicção.

Essencial é que a explicação do tribunal porque é que acredita ou não seja racional e tenha lógica.

E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficia da oralidade e da imediação que tem com a prova.

Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente” – cfr. Ac. da RE de 21.4.2015, in www.dgsi.pt.

Por outro lado, não podemos descurar a importância da prova indireta, que pode conduzir à prova dos factos e que assume no processo penal extrema importância. Na verdade, nem sempre existem provas directas da prática de determinados crimes, muitas vezes de elevada gravidade. Com o uso de indícios, da lógica e das regras da experiência, acabam por não ficar impunes.

Como refere Alberto Vicente Ruço, in Prova Indiciária, pág. 21, “Quem pratica crimes, ou mesmo outros factos ilícitos de menor reprovação social, só os executa na presença de outras pessoas – testemunhas – se não os puder levar a cabo furtivamente, pois existe uma tendência natural para o homem ocultar dos outros as acções que ele sabe serem desonrosas ou socialmente desvaliosas, as quais, por essa razão, desvalorizam também socialmente o respectivo autor”.

Também Santos Cabral, in Prova Indiciária e as Novas Formas de Criminalidade, Revista Julgar, nº 12, 2012, consultável em julgar.pt, afirma que “É clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta, ou indiciária, se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova a (v. g., uma coisa é ver o homicídio e outra encontrar o suspeito com a arma do crime). Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervêm a inteligência e a lógica do juiz. A prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova directa, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica (v. g., a prova directa — impressão digital — colocada no objecto furtado permite presumir que o seu autor está relacionado com o furto; da mesma forma, o sémen do suspeito na vítima de violação). Aliás, é importante que se refira que a prova indiciária, ou o funcionamento da lógica e das presunções, bem como das máximas da experiência, é transversal a toda a teoria da prova, começando pela averiguação do elemento subjectivo de crime, que só deste modo pode ser alcançado, até à própria creditação da prova directa constante do testemunho (a intenção de matar infere-se da zona atingida; da arma empregada; da forma de utilização)”.

Ora, da conjugação de toda a prova indiciária, frisando a forma pormenorizada como o ofendido relatou os factos e a consonância dessas declarações com a prova documental junta aos autos, o que lhe confere credibilidade, e ainda as regras do normal acontecer, conclui-se pela existência de indícios suficientes da prática dos factos por parte do arguido. Existe nos autos um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados.

Mal andou o tribunal a quo ao proferir despacho de não pronúncia.

Dos indícios recolhidos resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.

A ser assim, dando procedência a esta questão suscitada pelo assistente, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido pelos factos e pelo crime que lhe são imputados no RAI.

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A última questão a apreciar é a de saber se o despacho recorrido violou o princípio constitucional do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20º, nº 5, da CRP, bem como o ditame constitucional do artigo 13º da Lei Fundamental.

Alega o assistente que “violou o despacho recorrido o princípio constitucional do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20º, n.º 5, da CRP, o qual dispõe: “Para defesa dos direitos liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.

Ora, neste caso essa circunstância não se verifica. Isto é, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, com a decisão recorrida, não assegurou a defesa dos direitos do Assistente, ao rejeitar sem fundamento válido o requerimento de abertura de instrução.

Dúvidas não existem de que o Despacho recorrido é ilegal e inconstitucional, violando-se também o disposto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, dado que esta norma constitucional dispõe: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Dúvidas não existem de que assim, o Assistente não foi tratado de forma igual a outros cidadãos perante a lei.

Ora, o facto do tribunal a quo ter chegado a conclusão diversa após análise dos indícios dos autos, não significa que tenham sido violados os referidos ditames constitucionais.

De facto, não foi violado o direito de defesa do assistente, nem mesmo o princípio da igualdade.

Improcede esta questão suscitada pelo recorrente.

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Pelo exposto, apesar da improcedência de diversas questões, deve ser concedido provimento ao recurso.

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 C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente AA e, em consequência, decidem revogar o despacho recorrido, devendo este ser substituído por outro que pronuncie o arguido BB pelos factos e pelo crime que lhe foram imputados no RAI.

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Sem custas – artigo 515º, nº1, alínea b), do Código de Processo Penal, a contrario sensu.

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Notifique.

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Coimbra, 22 de Março de 2023.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

Rosa Pinto – Relatora

Alice Santos – 1ª Adjunta

Luís Ramos – 2º Adjunto