Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
231/19.0T8MBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: VENDA DE BENS DE CONSUMO
VENDA DEFEITUOSA
FALTA DE CONFORMIDADE
DENÚNCIA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - M.BEIRA - JUÍZO C. GENÉRICA - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS 289, 342 Nº2, 913, 916, 917, 921 CC, LEI Nº 24/96 DE 31/7, DL Nº 67/2003 DE 8/4, DL Nº 84/2008 DE 25/5.
Sumário: I - Apesar de o consumidor ter o ónus de denunciar a desconformidade do produto com o contrato, em caso de litígio não lhe cabe provar que efectuou a denúncia ou que a efectuou dentro do prazo previsto na lei.

II - É ao vendedor que cabe o ónus de provar que o comprador não denunciou a falta de conformidade e/ou que não a denunciou no prazo de dois meses, a contar da data em que a tenha detectado e/ou que a acção judicial visando o exercício dos direitos do consumidor não foi proposta dentro do prazo legal.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 231/19.0T8MBR.C1

Venda de bens de consumo

Denúncia da falta de conformidade

Ónus da prova

Sumário:

I - Apesar de o consumidor ter o ónus de denunciar a desconformidade do produto com o contrato, em caso de litígio não lhe cabe provar que efectuou a denúncia ou que a efectuou dentro do prazo previsto na lei.

II - É ao vendedor que cabe o ónus de provar que o comprador não denunciou a falta de conformidade e/ou que não a denunciou no prazo de dois meses, a contar da data em que a tenha detectado e/ou que a acção judicial visando o exercício dos direitos do consumidor não foi proposta dentro do prazo legal.

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da relação de Coimbra

     

      C (…), residente (…), propôs a presente acção declarativa com processo comum contra M (…), residente (…), pedindo:
1. Se decretasse a anulação do contrato de compra e venda do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca “Mitsubishi Strakar”, matrícula  BU (...), celebrado entre ele, autor, e o réu;
2. Se condenasse o réu a pagar-lhe a quantia de € 14 000,00 (catorze mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até ao efectivo e integral pagamento;
Subsidiariamente,

Se condenasse o réu a pagar-lhe a quantia de € 6.000 (seis mil euros), acrescida de juros, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

Para o efeito alegou:
1. Que comprou ao réu, em Outubro de 2017, o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca “Mitsubishi Strakar”, matrícula  BU (...), pelo preço de € 14 000,00, que foi pago;
2. Que na altura da venda o réu informou-o que o veículo possuía, àquela data, 163 512 quilómetros;
3. Que aquando da inspecção periódica efectuada ao veículo em 4/3/2019, ele autor, foi informado que o conta-quilómetros havia sido adulterado, pois aquando da inspecção periódica que lhe foi feita em 14 de Dezembro de 2015 o conta-quilómetros marcava 326 243 quilómetros, ao passo que, na realizada em 7 de Abril de 2016, marcava apenas 160 668, sendo, pois, falsa a informação de que, na altura da venda, o veículo tinha apenas 163.512 quilómetros;
4. Que o valor do veículo com a quilometragem real valia apenas cerca de € 8 000,00 e não os € 14 000,00 que foram pagos pelo autor;
5. Que caso tivesse conhecimento do número real dos quilómetros não teria adquirido o veículo.

O réu contestou por excepção e por impugnação. Em matéria de excepção, alegou que era parte ilegítima e que o direito de pedir a anulação do contrato estava caducado, por os prazos legais previstos para a denúncia dos defeitos e para a propositura da acção terem sido largamente ultrapassados. Alegou, ainda, que no caso de anulação do negócio, sempre deveria ser deduzida uma quantia nunca inferior a 6.000,00€, a título de desvalorização do veículo pelo seu uso, valor que, pelas mesmas razões, deveria também ser sempre tido em conta, se ele, réu, fosse condenado no pedido subsidiário.

Terminou a contestação, pedindo se julgassem procedentes as excepções e que, em consequência, se absolvesse o mesmo do pedido e que, caso assim se não entendesse, se julgasse improcedente a acção.

O autor respondeu, sustentando a improcedência das excepções.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência foi proferida sentença que, considerando o direito de anulação caducado - e os de indemnização que a este direito andavam ligados, subsidiariamente pedidos –, julgou a acção improcedente por não provada e absolveu o réu do pedido.

O autor não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse e se substituísse a mesma por decisão que reconhecesse, ao recorrente, o direito à anulação do contrato de compra e venda celebrado com o recorrido e à restituição do valor suportado com a aquisição do veículo e que, se assim se não entendesse, se reconhecesse ao autor o direito de ver reduzido o preço d negócio, o que passava pela condenação do recorrido na restituição da quantia não inferior a seis mil euros.

Os fundamentos do recurso consistiram em síntese:
1. Na alteração da decisão proferida sob o ponto n.º 18 da fundamentação no sentido de se julgar provado que o contacto telefónico nele referido ocorreu entre o dia 4 de Março de 2019 e 29 de Abril do mesmo ano;
2. Na alteração da decisão de julgar não provado que “com a quilometragem real o veículo valeria apenas cerca de € 8.000 (oito mil euros), e não os € 14.000 (catorze mil euros) que efectivamente foram pagos pelo autor” no sentido de se julgar provado este facto;
3. Na alegação de que a acção foi proposta em tempo e que não se verificava a excepção de caducidade e que, ao assim não decidir, a sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente as regras previstas no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril;
4. Na alegação de que, ainda que assim se não entendesse, sempre assistiria ao recorrente o direito de ver reduzido o preço, o qual passava, no caso, pela condenação do recorrido em quantia não inferior a € 6000,00 [seis mil euros].

 O réu respondeu. Na resposta sustentou a manutenção da decisão relativa à matéria de facto, bem como a decisão de julgar que o direito invocado pelo autor havia caducado.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:
1. Saber se a prova produzida impõe a alteração da decisão relativa à matéria de facto no sentido indicado pelo recorrente;
2. Saber se, ao julgar caducados os direitos invocados pelo autor, a sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente as regras jurídicas previstas no Decreto-Lei n.º 67/2003 de 8 de Abril.

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I)

Impugnação da decisão relativa à matéria de facto

Visto que a resolução das questões de facto tem precedência lógica sobre a resolução das questões de direito, iremos começar o julgamento do objecto do recurso, pelo conhecimento daquelas questões.

Impugnação da decisão proferida sob o ponto n.º 18 dos factos provados

Sob este número o tribunal a quo julgou provado que, “por contacto telefónico efetuado em data não concretamente apurada, o A. denunciou ao R. os defeitos da viatura”.

O recorrente pede a alteração da decisão no sentido de se julgar provado que o contacto telefónico referido pelo tribunal a quo ocorreu entre o dia 4 de Março de 2019 e o dia 29 de Abril de 2019.

Invocou, para o efeito, o que ele próprio declarou em audiência, em declarações de parte.

Ouvidas as declarações do autor e do réu, prestadas em audiência, este tribunal entende que é de alterar a decisão no sentido indicado pelo recorrente. Com efeito, apesar de o autor não ter sabido precisar o dia e o mês em que telefonou ao réu para lhe dar conta de que o número de quilómetros percorrido pelo veículo havia sido alterado, relacionou, no entanto, esse telefonema com o facto de ter obtido junto do IMT [Instituto da Mobilidade e dos Transportes] uma certidão com o registo das inspecções periódicas obrigatórias ao veículo [certidão junta com a petição inicial como documento número 4], dizendo que havia telefonado “logo quase a seguir”.

Este tribunal não encontrou razões para duvidar da veracidade do que disse o autor. É crível, à luz das regras da experiência comum, que o autor, que havia recebido do réu uma declaração com a menção de que o veículo, quando lhe foi vendido, tinha 163 512 quilómetros, ao tomar conhecimento através da certidão do IMT, que essa informação não correspondia à verdade e que o número de quilómetros havia sido alterado, tenha telefonado ao vendedor do veículo, senão no próprio dia em que obteve a certidão, nos dias seguintes, para, usando as palavras do ora recorrente, “ver se podia resolver qualquer coisa com ele”.

O que não é crível é o que o réu disse sobre o momento em que recebeu o telefonema. Segundo ele, o autor telefonou-lhe a dizer-lhe que “os quilómetros não batiam certo”, em meados de Maio, perto do seu aniversário, precisando que, no fim desse mesmo mês, recebeu a carta do tribunal [querendo referir-se à carta a citá-la].

Sabendo-se que acção foi proposta em 29 de Abril de 2019, extrai-se da versão do réu, que o autor, primeiro, propôs a acção, e só depois é que lhe telefonou, a dar-lhe conta de que, os quilómetros não batiam certo.

Esta versão não é credível, pois não corresponde ao que é lógico e ao que é normal acontecer em situações como a dos autos. Com efeito, o que é normal é que o comprador, antes de propor a acção, procure, como disse o autor nas suas declarações, “resolver qualquer coisa” com o vendedor.    

Em consequência, altera-se o ponto n.º 18 dos factos julgados provados, julgando-se provado que, “por contacto telefónico efectuado em data não concretamente apurada, mas compreendida entre 4 de Março de 2019 e 29 de Abril do mesmo ano, o autor comunicou ao réu que o veículo, quando o comprou, já tinha cerca de 326 mil quilómetros e não os 163.512 que o réu lhe indicou”.


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Impugnação da decisão de julgar não provada a matéria da alínea a) dos factos julgados não provados

Sob esta alínea o tribunal a quo julgou não provado que “com a quilometragem real o veículo valeria apenas cerca de € 8.000 (oito mil euros), e não os € 14.000 (catorze mil euros) que efectivamente foram pagos pelo A”.

Pede se julgue provada tal alegação com base no depoimento de C (…).

Pelas razões a seguir expostas, este tribunal considera insuficiente o depoimento de C (…) para alterar a decisão no exacto sentido pretendido pelo recorrente.

A questão que está em causa é a do valor comercial da viatura quando ela foi comprada pelo autor [Outubro de 2017] com o número de quilómetros real, ou seja, com pelo menos 326 000 quilómetros.

Instada sobre o valor da viatura com tal número de quilómetros, a testemunha respondeu que o valor seria completamente diferente daquele por que foi comprado pelo autor [€ 14 000,00], pela dificuldade que havia em comprar um carro com quase 400 mil quilómetros. Sobre o valor do veículo disse: “era carro para valer 7 ou 8 mil euros”. E procurando justificar o valor atribuído, acrescentou que havia ficado há pouco tempo com um veículo exactamente igual, com 265 mil quilómetros, numa retoma, e que o avaliou em 8 000,00 euros.

Este tribunal não tem nenhuma razão para duvidar da testemunha quando afirmou que o valor comercial do veículo adquirido pelo autor seria diferente, para menos, daquele por que foi vendido se se tivesse em conta o número de quilómetros real do veículo, superior a 326 000 quilómetros.

Com efeito, sabe-se, com base nas regras da experiência comum, que um dos factores que influencia o valor comercial de um veículo usado é o seu número de quilómetros e daí que, quantos mais quilómetros tiver, menor será o seu valor. E, assim, com base no depoimento da testemunha, que é um comerciante experimentado na área do comércio de automóveis [declarou que é comerciante há mais de 30 anos], e nas regras da experiência comum, pode concluir-se que o valor real do veículo era inferior aos 14 mil euros pagos pelo autor.

Consideramos, no entanto, que o depoimento da testemunha é insuficiente para se afirmar que o valor real da viatura aquando da compra dela pelo autor era de cerca de 8 mil euros. E é insuficiente porque o valor de um veículo automóvel usado não depende apenas do seu número de quilómetros. Depende também, por exemplo, do seu número de anos e do seu estado de conservação, sucedendo que a testemunha não sabia qual era o estado da viatura quando ela foi adquirida pelo autor, visto que não a examinou. Ora, a opinião de uma única testemunha sobre o valor comercial de um veículo, quando a opinião não se baseia no exame do veículo, é insuficiente para formar uma convicção segura do tribunal sobre o valor real/comercial desse veículo.

Pelo exposto, altera-se a decisão, mas apenas para julgar provado que “com o número de quilómetros real, o veículo valeria, quando o autor o comprou, menos do que € 14 000,0, pagos por ele”.


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Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados e não provados os seguintes factos:

Factos provados:
1. O réu dedica-se à comercialização de veículos automóveis em segunda mão, explorando, para o efeito, um stand, denominado “R (…)”, sito (…).
2. Através de anúncio publicado na internet, tomou o autor conhecimento de que o réu teria para venda um veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, marca “Mitsubishi Strakar”, matrícula  BU (...).
3. Tendo demonstrado interesse em adquirir o aludido veículo, o réu transmitiu ao autor as características que este detinha, o seu estado e o respectivo ano de fabrico.
4. Neste sentido, foi o autor informado de que o veículo possuía, àquela data, 163.512 quilómetros, o que foi confirmado a posteriori pelo réu, com a emissão da declaração.
5. Uma vez reunidas as características tidas como essenciais pelo autor para a consumação do negócio jurídico, o mesmo adquiriu ao réu, em Outubro de 2017, o veículo supra-referido.
6. Pela venda do ajuizado veículo, o réu recebeu do autor a quantia de € 14.000 (catorze mil euros), tendo parte deste valor (€ 500) sido pago aquando da reserva da viatura, e a restante quantia (€ 13 500) protelada para o acto de compra.
7. Assim, em Novembro de 2017, o autor procedeu ao registo da transferência da propriedade do veículo automóvel a seu favor, na Conservatória do Registo de Automóveis de  (...).
8. Desde então, tem o autor circulado regularmente com o referido automóvel e praticados todos os actos de conservação e manutenção que se afigurem necessários.
9. Por inspecção periódica efectuada a 4 de Março de 2019, foi o autor informado que, de acordo com o histórico do veículo, o conta-quilómetros da referida viatura teria sido adulterado.
10. Naquela data, foi o autor informado que o veículo automóvel em causa possuía, aquando da inspecção periódica de 14 de Dezembro de 2015, 326 243 quilómetros.
11. Quilometragem essa que, conforme resulta da inspecção periódica de 7 de Abril de 2016, sofrera uma redução para cerca de metade do seu valor, uma vez que registava apenas 160.668 quilómetros.
12. A adulteração feita do conta-quilómetros do  BU (...), visou criar a aparência enganosa de que apenas tinha circulado aqueles quilómetros e, consequentemente, valia o preço praticado e apresentava o desgaste correspondente a tal quilometragem, e não superior.
13. O réu não deveria ignorar que, ao apresentar ao autor um veículo com uma quilometragem inferior à real, mormente através da declaração junta, provocava neste a convicção de que o veículo em causa apenas tinha percorrido essa quilometragem, ou seja, 163.512 quilómetros.
14. O valor comercial dos veículos é directa e essencialmente influenciado pelo seu estado de conservação e ainda pela idade e pela quilometragem percorrida.
15. A divergência entre o que o contador mostrava e a quilometragem efectiva constituía um factor essencial para a autor no que concerne à sua opção de comprar, facto que o réu seguramente não deveria ignorar.
16. Caso o autor tivesse conhecimento do valor real dos quilómetros percorridos pelo veículo, jamais o teria adquirido, tendo sido tal factor determinante para a formação da sua vontade negocial.
17. O réu adquiriu o veículo em causa num stand designado por ST CAR, sito no (…), na zona industrial de (...), num negócio celebrado com o Sr. (…).
18. Por contacto telefónico efectuado em data não concretamente apurada, mas compreendida entre 4 de Março de 2019 e 29 de Abril do mesmo ano, o autor comunicou ao réu que o veículo, quando o comprou, já tinha cerca de 326 mil quilómetros e não os 163.512 que o réu lhe indicou”.
19. Com o número de quilómetros real, o veículo valeria, quando o autor o comprou, menos do que € 14 000,0, pagos por ele.
20. O veículo em causa destinava-se a ser usado na agricultura pelo autor.
21. A presente acção deu entrada no dia 29 de Abril de 2019.
22. O réu foi citado para a presente acção em 21 de Maio de 2019.

Factos não provados:
a) Que o nunca o réu adulterou o que quer que fosse e, muito menos, a quilometragem do veículo, pois quando o adquiriu, já a suposta alteração teria sido feita;
b) Que a “compra” feita em 17.º dos factos provados realizou-se durante o mês de Agosto de 2017 e com a intenção de fazer um acerto de contas sobre uns valores que aquela empresa devia ao réu;
c) Que o réu, porque não foi ele que fez a alteração, não tinha forma nem a obrigação de saber se a mesma havia sido feita, pelo que todas as informações que prestou sobre o veículo estavam correctas;
d) Que o réu esteve sempre esteve convencido, aliás tal como o autor, que as informações quilométricas que o veículo apresentava eram as reais e por isso, como se disse, emitiu a declaração junta sob doc. 1;
e) Que o réu apenas vendeu um veículo automóvel com as mesmas condições e características que apresentava no momento em que o adquiriu;
f) Que o réu quando emitiu a declaração junta com a petição inicial estava convencido que o veículo tinha apenas os quilómetros referidos no conta-quilómetros, pois não tinha outra forma de saber se eram ou não os reais.


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Descritos os factos, passemos à resolução das restantes questões.

A questão essencial é a de saber se, ao julgar caducados os direitos invocados pelo autor, a sentença interpretou e aplicou erradamente as regras jurídicas previstas no Decreto-Lei n.º 67/2003 de 8 de Abril.

Antes de entramos na apreciação dos fundamentos do recurso, importa recordar que a sentença impugnada entendeu que a diferença de quilómetros registada no veículo, tratando-se de carro usado, configurava uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava em conformidade com a descrição que dele havia sido feita pelo vendedor, e que, assim, estava afectado de um vício, para efeitos do disposto no artigo 913.º do Código Civil.

Entendeu, no entanto, que o direito de anulação - e os de indemnização que a este direito andavam ligados, subsidiariamente pedidos - estavam caducados, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 916.º, e dos artigos 917.º e 921.º, n.º 4, todos do Código Civil, com base na seguinte fundamentação:
1. A acção havia sido proposta muito para além dos seis meses contados da entrega da coisa, como resultava dos factos dados como provados nos n.ºs 5.º, 24.º e 25.º;
2. O autor não havia provado, tal como lhe competia, nos termos do disposto do art.º 342.º do CC, qualquer facto demonstrativo de que a denúncia dos defeitos tinha ocorrido em momento anterior ao da data da entrada da presente acção, ou seja, no prazo de 30 dias após o seu descobrimento.

Segundo a sentença a igual conclusão se chegaria – caducidade do direito de pedir a anulação – se se enquadrasse o litígio à luz das relações de consumo, de acordo com a legislação de defesa do consumidor (Lei n.º 24/96, de 31.07 e, em especial, Decreto-lei n.º 67/03, de 08.04, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 84/2008, de 21.05,), a qual configurava um regime especial relativamente ao previsto no Código Civil para o contrato de compra e venda.

E chegar-se-ia a igual conclusão, visto que - ainda segundo a sentença - o autor não havia demonstrado, como lhe competia, à luz do disposto do art.º 342.º do Código Civil, que efectuou a denúncia dos defeitos ao réu nos prazos legalmente estipulados.

O recorrente censura a decisão laborando, primeiro, no pressuposto, de que estava provado que o telefonema feito por ele a denunciar a adulteração do número de quilómetros do veículo foi efectuado entre 4 de Março de 2019 e a data da propositura da acção [29 de Abril de 2019]. E laborando, em segundo lugar, no pressuposto de que as normas aplicáveis ao prazo para efectuar a denúncia da adulteração dos quilómetros eram as do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 84/2008, de 21 de Maio e que, à luz destas, os seus direitos não estavam caducados.

Pelas razões a seguir expostas, é de julgar procedente o recurso.

Em primeiro lugar, assiste razão ao recorrente quando alega que o regime jurídico aplicável ao contrato de compra e venda celebrado entre ele e o réu é o da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, constante do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, e não o constituído pelas disposições do Código Civil, relativas à venda de coisas defeituosas, especialmente os artigos 916.º e 917.º.

E é aquele o diploma aplicável porque segundo o seu artigo 1.º-A, n.º 1, ele é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores e o contrato de compra e venda celebrado entre o autor, como comprador, e o réu, como vendedor, que teve por objecto a viatura automóvel de ligeiro de mercadorias, marca “Mitsubishi Strakar”, matrícula  BU (...), ajusta-se a tal tipo de negócio, tendo em conta as definições de consumidor, de bens de consumo e de vendedor, dadas, respectivamente, pelas alíneas a), b) e c), do artigo 1.º-B, do citado Decreto-Lei, e a matéria de facto provada. Vejamos.

 Na definição da alínea a), é consumidor aquele a quem sejam fornecidos bens destinados a uso não profissional, por qualquer pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, e provou-se que o veículo automóvel vendido ao autor destinava-se a ser usado na agricultura, não sendo esta a actividade profissional dele, autor.

Na definição da alínea b), entende-se por bem de consumo, qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão, e o veículo automóvel é um bem corpóreo.

Na definição da alínea c), vendedor é “qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional”, e provou-se que o réu dedica-se à comercialização de veículos automóveis em segunda mão, explorando, para o efeito, um stand, denominado “R(…)”, e foi no exercício desta actividade que vendeu ao autor o veículo automóvel acima mencionado.

Observe-se que a circunstância de o autor ter fundamentado o seu direito em normas do Código Civil, concretamente nas constantes dos artigos 251.º e 247.º, ex vi arts. 905.º, 911º e 913º, não obsta à resolução do litígio segundo o Decreto-Lei n.º 67/2003, visto que, nos termos do n.º 3 do artigo 5.º do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação das regras de direito.

Observe-se, ainda, que a circunstância de o autor ter pedido a anulação do contrato e de o Decreto-lei n.º 67/2003 não prever, entre os direitos do consumidor, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o direito de o anular, também não obsta à aplicação do Decreto-Lei n.º 67/2003.

E não obsta porque o citado diploma prevê, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o direito de resolução [n.º 1 do artigo 4.º] e o artigo 433.º do Código Civil equipara a resolução quanto aos seus efeitos, na falta de disposição em sentido contrário – que no caso não existe – à nulidade ou anulabilidade dos negócios jurídicos, e como se escreveu no acórdão do STJ de 17-12-2015, processo n.º 1174/12.3TVLSB, publicado em www.dgsi.pt. “aquilo que no regime legal que regula a venda de bens de consumo (DL n.º 67/2003, de 08-04, alterado pelo DL n.º 84/2008, de 21-05) se designa como falta de conformidade com o contrato corresponde à noção tradicional de defeitos do bem”.

Diga-se, ainda, que as normas do Código Civil sobre venda de coisas defeituosas, especialmente em matéria de caducidade dos direitos reconhecidos ao comprador de coisas defeituosas, só seriam aplicáveis se elas fossem mais favoráveis ao autor do que as do Decreto-lei n.º 67/2003. Com efeito, socorrendo-nos da lição de João Calvão da Silva [Venda de Bens de Consumo, 4.ª Edição, Almedina, página 123], as normas do Decreto-Lei revestem a natureza de uma protecção mínima dos direitos do consumidor, como o atesa o artigo 8.º da Directiva n.º 1999/44/CE, ao dispor:
1. O exercício dos direitos resultantes da presente directiva não prejudica o exercício de outros direitos que o consumidor possa invocar ao abrigo de outras disposições nacionais relativas à responsabilidade contratual ou extracontratual;
2. Os Estados-Membros podem adoptar ou manter, no domínio regido pela presente directiva, disposições mais estritas, compatíveis com o Tratado, com o objectivo de garantir um nível mais elevado de protecção do consumidor.

E assim sendo, se as normas do Código Civil fossem mais favoráveis ao consumidor não existiria obstáculo à sua aplicação. A favor desta interpretação cita-se o acórdão do STJ proferido em 17-10-2019, no processo n.º 1066/14.1T8PDL, publicado em www.dgsi.pt. Não é, no entanto, o que sucede no caso.

Assente que o regime aplicável ao contrato de compra e venda é o do Decreto-Lei n.º 67/2003, cabe dizer, de seguida, que as normas deste diploma relevantes para a resolução da questão da caducidade são essencialmente as seguintes:
1. O n.º 1 do artigo 4.º que reconhece ao consumidor, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o direito que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato;
2. O n.º 1 do artigo 5.º-A, na parte em que dispõe que os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes;
3. O n.º 2 do artigo 5.º-A, na parte em que dispõe que, para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, a contar da data em que a tenha detectado;
4. O n.º 3 do mesmo preceito, na parte em que dispõe que, caso o consumidor tenha efectuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia.

Dos preceitos acabados de destacar resulta:
1. Que o consumidor, caso queira fazer valer os seus direitos contra o vendedor, tem o ónus de denunciar a falta de conformidade do bem com o contrato e de exercer os seus direitos dentro dos prazos acima indicados;
2. Que a caducidade dos direitos atribuídos ao consumidor pode acontecer: a) por ausência de denúncia; b) por denúncia fora do prazo previsto na lei; c) pelo não exercício dos direitos no prazo de dois anos a contar da data da denúncia.

Este regime é mais favorável ao comprador do que o previsto no Código Civil em matéria de venda de coisas defeituosas, no que diz respeito à denúncia do defeito e à caducidade da acção de anulação pelo seguinte:
1. No Código Civil, a denúncia deve ser feita até 30 dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa;
2. No mesmo diploma, a acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos anteriores sem que o comprador ter feito a denúncia, ou decorrido sobre esta seis meses [artigo 917.º].

Observe-se que, apesar de o consumidor ter o ónus de denunciar a desconformidade do produto com o contrato, não lhe cabe provar que efectuou a denúncia ou que a efectuou dentro do prazo previsto na lei. É ao vendedor que cabe o ónus de provar que o comprador não denunciou a falta de conformidade e/ou que não a denunciou no prazo de dois meses, a contar da data em que a tenha detectado e/ou que a acção judicial visando o exercício dos direitos do consumidor não foi proposta dentro do prazo legal.

E é ao vendedor que cabe o ónus de provar estes factos porque eles determinam a caducidade dos direitos do consumidor, ou seja, a perda dos direitos previstos no artigo 4.º, e segundo o n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, a prova dos factos extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.

Segue-se do exposto que não tem amparo na lei o entendimento subjacente à decisão recorrida de que competia ao autor demonstrar que efectuou a denúncia dos defeitos nos prazos legalmente estipulados. Era ao réu que, tendo invocado a caducidade do direito de anulação, cabia alegar e provar os respectivos factos constitutivos.

Prova que não fez. Ao invés, ao provar-se que, por contacto telefónico efectuado em data não concretamente apurada, mas compreendida entre 4 de Março de 2019 e 29 de Abril do mesmo ano, o autor comunicou ao réu que o veículo, quando o comprou, já tinha cerca de 326 mil quilómetros e não os 163.512 que o réu lhe indicou”, ficou demonstrado que o autor denunciou a falta de conformidade do veículo automóvel com o contrato e que a denúncia foi feita dentro do prazo previsto no n.º 2 do artigo 5.º-A do regime da venda de bens de consumo, ou seja, no prazo de dois meses a contar da data em que o autor a detectou.

Diga-se que, mesmo que se mantivesse a decisão proferida pelo tribunal a quo em relação ao ponto n.º 18, a consequência seria também a improcedência da excepção de caducidade. Em tal hipótese, estaria demonstrado que o autor denunciou a falta de conformidade do veículo com o contrato, mas não o momento exacto ou aproximado em que ela foi feita. A situação era, pois, a de dúvida quanto à data da denúncia.

Esta dúvida levaria à decisão de improcedência da excepção por aplicação do n.º 2 do artigo 342.º do CPC e do princípio enunciado no artigo 411.º do CPC, segundo o qual “a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.

Diga-se, por fim, que vista a questão da caducidade à luz do prazo previsto no n.º 3 do artigo 5.º-A do regime da venda dos bens de consumo, nenhuma dúvida há de que o autor exerceu os seus direitos dentro do prazo nele previsto.

Pelo exposto, é de concluir que a decisão recorrida, ao julgar procedente a excepção de caducidade, violou o n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, bem como o n.º 2 do artigo 5.º-A do regime da venda de bens de consumo, e que a decisão conforme aos factos e à lei é a de julgar improcedente a excepção de caducidade.


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Julgada improcedente a excepção de caducidade, cabia a esta Relação, por aplicação do n.º 2 do artigo 665.º do CPC, conhecer da questão de saber se assistia ao autor o direito de pedir a resolução do contrato de compra e venda e de obter a restituição do preço ou, em caso de julgar improcedente tais pedidos, conhecer da questão da redução do preço.

Sucede que, embora haja elementos para responder à questão de saber se o autor tem o direito de pedir a resolução do contrato, não os há para decidir se, em consequência da resolução, o autor tem direito ao montante de € 14 000,00.

E não há porque o réu alegou na contestação que o autor circulou “regularmente” com o veículo durante cerca de 2 anos, e isso também o desvalorizou, sendo que o A. sempre beneficiou da sua utilização, e nunca teve qualquer problema, pelo que se fosse julgado procedente quer o pedido de anulação quer o pedido subsidiário (redução do preço), sempre deveria ser deduzida uma quantia nunca inferior a 6.000,00€, a título de desvalorização do veículo.

Embora esteja provado que o autor tem circulado regularmente com o referido automóvel e praticados todos os actos de conservação e manutenção que se afigurem necessários, não houve pronúncia do tribunal sobre a alegação da desvalorização do veículo no montante indicado pelo réu.

No entender deste tribunal, a alegação sobre o montante da desvalorização é relevante para a decisão da causa pelo seguinte.

Na hipótese de ser reconhecida a resolução do contrato, os efeitos dela serão os da declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico [artigo 433.º do Código Civil].

Segundo o n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

A aplicação desta solução ao caso significaria que o réu estaria obrigado a restituir o preço recebido e o autor o veículo.

Sucede que, como refere [João Calvão da Silva, obra supracitada, página 109] “a eventual utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir” [João Calvão da Silva, obra supracitada, página 109].

Face ao exposto, entende-se que é relevante para a decisão que o tribunal a quo se pronuncie sobre a alegação de desvalorização do veículo no montante indicado pelo réu.

Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a sentença e substitui-se a mesma por decisão a julgar improcedente a excepção de caducidade.

Considerando que o processo não fornece todos os elementos para conhecer dos pedidos formulados pelo autor, determina-se que o processo prossiga os seus termos a fim de o tribunal a quo se pronunciar sobre a alegada desvalorização do veículo no montante indicado pelo réu e conhecer dos pedidos deduzidos pelo autor.

Coimbra, 10 de Dezembro de 2020.

Emídio Santos ( Relator )

Catarina Gonçalves

Maria João Areias