Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
131/11.1T2AVR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PESSOA SINGULAR
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – AVEIRO – JUÍZO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 230º B) E I) DO CIRE
Sumário: I – A exoneração do passivo restante é uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor, pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração, fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.

II – O critério para determinar a quantia necessária para sustento minimamente digno não reside no que o devedor/insolvente diz que precisa para o seu sustento mas antes no que é necessário, num plano de normalidade e razoabilidade, para o sustento mínimo, independentemente do trem de vida que se teve – e que porventura até gerou a situação de insolvência – ou se pretende manter.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I – Relatório

Na apresentação à insolvência, logo foi pela requerente A..., com os sinais dos autos, requerida a “exoneração do passivo restante”, ao abrigo dos art. 235.º e ss. do CIRE.

Tendo sido declarada insolvente e prosseguindo nos autos – tendo em vista a requerida exoneração do passivo restante – a Ex.ma Juíza proferiu decisão em que:

Admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Determinou que “ (…) durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (para os efeitos em apreço designado período de cessão), o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir considera-se cedido a fiduciário, investindo-se nessa qualidade a Sr.ª administrador de insolvência nomeado nestes autos, cuja remuneração e reembolso de despesas ficam a cargo da devedora/insolvente (art. 240º, nº 1 e 2 e 60º, nº 1 do CIRE)”.

E “ (…) considerando que o legislador ordinário entendeu como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna o salário mínimo nacional e que a insolvente tem a seu cargo filha menor, determina-se que o rendimento disponível da insolvente, objecto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título, com exclusão do montante correspondente a um salário mínimo e meio que para cada ano seja legalmente determinado e que se fixa como o necessário para o sustento minimamente condigno da insolvente (art. 239º, nº 3, al. b)”

Inconformado com tal decisão, interpôs o Banco B... SA (credor) recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que indefira liminarmente o incidente.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

A. O douto despacho recorrido que deferiu o pedido de exoneração do passivo restante relativo à Recorrida deve ser revogado, pois nele não se fez correcta interpretação dos factos e adequada aplicação do Direito.

B. De entre os requisitos do n.º1 do art. 238.º do CIRE e no que ao caso interessa, dispõe a al. d) que deve ser indeferido o pedido se "o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica".

C. A Recorrida não se apresentou à Insolvência no momento legalmente devido, isto é, dentro do período de 6 meses a contar do momento da verificação da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.

D. A Insolvente/Recorrida deixou de cumprir com as suas obrigações em meados de 2008.

E. Ao abster-se de se apresentar à insolvência, recusando todas as evidências quanto ao seu colapso financeiro, a Insolvente conseguiram apenas protelar as suas dívidas, provocando um acréscimo do seu passivo, e, ainda, um maior prejuízo aos seus credores.

F. Tal como refere a decisão do Acórdão da Relação de Coimbra de 7 de Setembro de 2010 (www.dgsi.pt), “ I. No incidente de exoneração do passivo restante, apurado que o requerente incumpriu o dever de apresentação à insolvência ou, não tendo, tal dever, não se apresentou no prazo de seis meses, previsto na al. d) do n.º1 do artº 238º do CIRE, é lícito presumir judicialmente o prejuízo para os credores. II. Com efeito, na generalidade dos casos, verificada a situação de insolvência, quanto maior for a demora do devedor a apresentar-se, maior será o prejuízo dos credores, seja pelo atraso na cobrança, seja pelo aumento, nomeadamente com o acumular de juros, do passivo, seja ainda pela mais provável diminuição do património do devedor decorrente, entre outros factores possíveis, do previsível menor zelo posta na sua conservação ou valorização. II. O entendimento referido não acarreta a inutilidade da inclusão na al. d) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE do requisito do prejuízo para os credores, já que tal inclusão permite ao devedor, ciente da apresentação tardia, alegar e provar factos que impeçam a utilização da aludida presunção judicial.”

G. A Recorrida incumpriu, assim, o dever de não se abster de se apresentar à insolvência, com prejuízo para os seus credores, e sabendo não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua condição económica, preenchendo assim a previsão da alínea d) do n.º1, do art.238.º do CIRE, legitimando desse modo a apelação do despacho do Tribunal “a quo”, ora deduzida.

A insolvente respondeu, sustentando, em resumo, a manutenção do decidido.

Dispensados os vistos, foi, em 18/10/2011, proferido Acórdão neste Tribunal da Relação a conceder parcial provimento à apelação, mantendo-se a decisão recorrida quanto à admissão liminar da exoneração do passivo restante, mas procedendo-se à sua alteração quanto à quantia e excluir da cessão, exclusão que se reduziu ao valor equivalente a um salário mínimo nacional.

Acórdão esse de que a recorrida veio arguir a nulidade, por lhe ter sido coarctado o direito de exercer o contraditório e de se pronunciar sobre o montante do salário a excluir da exoneração.

Nulidade que, “para que a recorrida (…) não se considere constrangida em toda a sua possibilidade de pronuncia sobre a questão em causa”, se deferiu, razão por que, em 13/12/2011, se declarou por tal motivo a nulidade do Acórdão antes proferido, em 18/11/2011, anulando-se todo o processado após o despacho que mandou inscrever o processo em tabela; e se concedeu o prazo de 10 dias à recorrida e ao recorrente para se pronunciarem sobre o montante do salário a excluir da exoneração (isto é, sobre a “redução” da exclusão para um salário mínimo nacional).

Notificados da anulação, pronunciaram-se recorrida e recorrente sobre o montante a excluir da exoneração; a recorrida no sentido de se manter a exclusão em um salário mínimo e meio, o recorrente no sentido da redução da exclusão ao valor equivalente a um salário mínimo nacional.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – Fundamentação

II a) De Facto

A) A requerente – e aqui recorrida – na PI de apresentação à insolvência, entrada em juízo em 26/01/2011, alegou, entre outras coisas, o seguinte:

 - Trabalhar na Loja do Cidadão como assistente técnica do Instituto de Registos e Notariado, recebendo a quantia mensal líquida de € 781,38;

 - Estar obrigada a pagar uma pensão de alimentos ao filho de € 80,00.

 - Ser o seu património – composto pela “metade indivisa” dum prédio urbano (composto de casa de habitação de cave, R/C, 1.ª andar e garagem na cave, descrito na C. R. de Aveiro sob o n.º ... da freguesia de Cacia e inscrito na matriz predial sob o n.º ... da mesma freguesia) – insuficiente para satisfazer os seus débitos de valor superior a 117.500,00.

 - Estar tal prédio urbano onerado com hipoteca a favor do Banco B.., valendo o prédio menos que o montante da dívida ao Banco B...

 - Advirem as suas graves dificuldades económicas e financeiras de ter recorrido a financiamentos junto de instituições bancárias para, juntamente com o seu ex-companheiro, adquirir uma casa; entretanto a relação acabou e o seu ex-companheiro nada paga.

B) O Banco B.. é credor da insolvente do montante global de € 282.757,91.

Concedeu à insolvente, em 28 de Março de 2008, um empréstimo, ao abrigo do Regime Geral de Crédito Habitação, no valor de € 138.000,00, que se encontra em incumprimento desde o dia 22 de Setembro de 2008; apresentando um saldo devedor de € 137.351,59 de capital e € 24.835,95 de juros.

Concedeu à insolvente, também em 28 de Março de 2008, um 2.º empréstimo, no valor de 87.000,00, destinado a fazer face a compromissos financeiros assumidos e à aquisição de equipamento para a sua residência, que se encontra em incumprimento desde o dia 22 de Junho de 2008; apresentando um saldo devedor de € 86.837,50 de capital e € 17.321,47 de juros.

Concedeu à insolvente um crédito titulado por livrança que, com juros e I.S., ascende a € 13.408,55.

Concedeu à insolvente um descoberto em conta bancária que, desde o dia 21/11/2009, apresenta um saldo devedor de € 2.429,30, a que acrescem € 573,55 de juros e I.S..

C) Como caução e garantia de bom pagamento dos 2 primeiros empréstimos referidos em B), a insolvente e C... constituíram 2 hipotecas voluntárias sobre o seguinte bem imóvel:

“Prédio urbano (composto de casa de habitação de cave, R/C, 1.ª andar e garagem na cave) sito na Rua Dr. ..., Lote ..., ..., Cacia, descrito na C. R. de Aveiro sob o n.º ... da freguesia de Cacia e inscrito na matriz predial sob o n.º ... da mesma freguesia.”

D) Os 2 primeiros empréstimos referidos em B) foram accionados judicialmente no processo executivo n.º 513/11.9T2OVR.

E) O empréstimo referido em B), titulado pela livrança, foi accionado judicialmente no processo executivo n.º 514/11.7T2OVR.


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II b) - De Direito

Não será supérfluo começar por referir que o instituto, inovador, da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento.

“Depois do processo de insolvência e durante algum tempo, os rendimentos do devedor são afectados à satisfação dos direitos de crédito remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção dos créditos que não tenha sido possível cumprir por esta via, durante tal período”[1].

Antevendo-se o “sobressalto” que uma tal causa extintiva de obrigações produz sobre a liberdade contratual e a força vinculativa dos contratos[2], não pode a “exoneração” ser concedida ad libitum; devendo antes a sua concessão estar dependente da verificação de requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém[3].

Diz-se a tal propósito, no preambulo do CIRE, que “ (…) o código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica. (…)”.

Tem pois o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e a libertação do devedor e como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores[4].

É pois uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.

Ou seja:

A exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade[5].

A “exoneração” não se pode/deve aplicar aos devedores que se endividaram de forma completamente “leviana”, que se depreende que não pensaram “duas vezes” quando se deram conta que era relativamente “fácil” obter um financiamento, que se recusaram a “fazer contas” e a perceber que jamais iriam ter meios para liquidar as dívidas que estavam a contrair sucessiva e continuamente; a exoneração não pode/deve servir para, contraídas avultadas dívidas[6], se pretender, pura e simplesmente, nada pagar ou quase nada pagar[7].

Em poucas palavras, a “exoneração” não é certamente para quem e de quem, sem embargo das coisas lhe poderem ter objectivamente corrido mal, se sabia e diria, à partida, num juízo de prognose póstuma, que as coisas iriam, em face do montante de endividamento contraído e dos rendimentos disponíveis, segura, forçosa e inevitavelmente correr mal.

É esta, pelo menos, a história e a razão de ser do “instituto”; como, “confessadamente”, o CIRE o assumiu no seu preâmbulo.

Nem sempre, porém, a lei, no seu articulado “nu e cru”, faz jus às intenções que assume nos preâmbulos, exposições de motivos e fundamentos; “dislexia” que tranquilamente se imputa à complexidade e imprevisibilidade das situações da vida.

Vem isto a propósito do debate e “divisão” que a redacção da alínea d) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE – justamente a que está em causa nos autos e no recurso – tem, inevitavelmente, suscitado na Jurisprudência.

Dispõe-se, em tal alínea d), que o pedido de exoneração deve ser liminarmente indeferido se:

 - For incumprido o dever de apresentação atempada à insolvência;

 - Com prejuízo para os credores; e

 - Sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grave não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica.

Girando a controvérsia jurisprudencial à volta da articulação de tais requisitos, procurando encontrar-se, para cada um deles, um conteúdo útil próprio e autónomo; e estabelecer-se fronteiras entre eles.

Começou assim por dizer-se que o “prejuízo para os credores” é de presumir sempre que o devedor haja incumprido o dever de apresentação à insolvência, uma vez que a escassez de bens permite antever a dissipação de património e o subsequente desrespeito pela regra da igualdade entre os credores.

Ao que de imediato se objectou que, se é verdade que o atraso na apresentação à insolvência pode conduzir à desvalorização do activo e ao aumento do passivo, pelo curso dos juros, é também verdade que, assim, o “prejuízo para os credores” não é mais do que um efeito necessário – de nada servindo a sua autónoma alusão legal – da não apresentação oportuna à insolvência.

E, nesta linha de raciocínio, passou a entender-se[8] que a lei, ao exigir o “prejuízo para os credores”, visa os comportamentos do devedor geradores de novos débitos, os comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé; não integrando o conceito normativo de “prejuízo para os credores” o simples aumento global dos débitos do devedor causado pelo mero vencimento e acumular de juros.

Sem prejuízo de, apesar dos esforços, as fronteiras dos requisitos do art. 238.º, n.º 1, d) do CIRE, continuarem necessariamente incertas, concorda-se claramente quanto aos juros; isto é, concorda-se que não integra o requisito do “prejuízo para os credores” o mero curso de juros em obrigações constituídas em data anterior à situação de insolvência[9].

Mas também se entende que, não fazendo a letra da alínea d) qualquer restrição ao alcance da expressão “prejuízo para os credores”, qualquer prejuízo causado aos direitos dos credores pelo não cumprimento do dever de apresentação ou pela apresentação tardia à insolvência é susceptível de obstar à concessão da exoneração do passivo restante.

Na verdade[10], “havendo um conflito de interesses entre o devedor (interessado em libertar-se das dívidas) e os credores (interessados em verem satisfeitos os seus direitos), a prevalência do interesse daquele (aqui representada pela exoneração do passivo restantes) só é digna de ser atendida se lhe não for possível apontar nenhum comportamento que tenha prejudicado os interesses destes últimos.

Em todo o caso, “o prejuízo para os credores” (com o incumprimento do dever de apresentação à insolvência ou com o atraso na apresentação à insolvência), ainda que de pequena monta ou expressão, é algo que tem que ficar “identificado/demonstrado” nos autos.

É por tudo isto que a argumentação exposta no recurso – em que apenas se discute o requisito do “prejuízo para os credores” – não colhe.

É indiscutível que a recorrida não se apresentou à insolvência dentro do período de 6 meses a contar do momento da verificação da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas; todavia, nada foi concretamente alinhado – uma vez que o acumular de juros passivos de obrigações anteriores à situação de insolvência não “conta” – como susceptível de integrar o requisito do “prejuízo para os seus credores”.

A decisão de não indeferir liminarmente o pedido de exoneração deve pois manter-se.

A exoneração – uma vez que destinada aos devedores com um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé – apresenta-se como um estímulo à diligência processual do devedor, podendo assim dizer-se, da recorrida, que a mesma não foi diligente a apresentar-se à insolvência, mas, em matéria de diligência e prudência, o “confronto” entre o banco recorrente e a recorrida é uma equação de resultado “indecifrável”.

Sem prejuízo da escassez dos elementos factuais trazidos para os autos – e de pode haver outros, relevantes, cujo acesso nos é negado – não se entende o “racional” económico/financeiro dos créditos concedidos à recorrida; isto é, não se entende qual foi o critério de avaliação de risco que levou o banco recorrente, em 2008, a emprestar 225.000,00 € à recorrida (que, agora, em 2011, ganha € 781,38 e de quem não é dito possuir ou ter possuído quaisquer activos ou outra fonte de rendimentos).

Pelo que, sem embargo de tudo o que se começou por dizer sobre a história e razão de ser da “exoneração”, se pode/deve colocar a seguinte pergunta e reflexão:

Se as instituições financeiras não são prudentes na concessão de crédito, se emprestam montantes que, à partida e num plano de normalidade, logo se antevê nunca o devedor irá ter possibilidades de pagar, podem legitimamente pretender e aspirar que o devedor (pessoa singular) – que também foi imprudente ao pedir e aceitar empréstimos de montantes que não poderá pagar – fique vinculado vitaliciamente à dívida?

É que, é este o nosso ponto de vista, a exoneração do passivo – ou a possibilidade do recurso a ela, desde 2004, com o CIRE – também tem em vista evitar as situações de imprudência das instituições financeiras; também existe para provocar contracção no crédito e produzir impacto positivo na economia; também existe para impor exigência e responsabilidade a quem concede crédito, uma vez que se assim se proceder menor será o risco de sobreendividamento e menos serão as insolvências dos consumidores.

Sem prejuízo da conduta da instituição financeira não relevar inversamente para o “merecimento” do benefício da exoneração do passivo restante; sem prejuízo da exoneração do passivo restante ser uma medida, favorável ao devedor, que tem como fundamento uma atitude pessoal, recta e honesta do próprio devedor, não pode deixar de reconhecer-se que a “desonestidade” da recorrida – pedir crédito que não poderia pagar – é como que “descaracterizada” pela conivência do recorrente, que, manifestamente, lhe concedeu, duma só vez, num único dia, um crédito que a recorrida não poderia pagar[11].

Não estamos, no caso, perante aquela situação de quem vai contraindo sucessivas e contínuas dívidas ao consumo, a ponto do próprio serviço (da dívida) ser superior a todo o seu rendimento líquido disponível; não estamos perante um ciclo vicioso de dívida; não estamos perante um estilo de vida e consumo, baseado em endividamento.

Estamos perante uma situação em que, em face dos escassos elementos trazidos, parece ser legítimo afirmar-se que a devedora terá ficado “potencialmente” em situação de insolvência[12] no exacto momento em que o crédito (de € 225.000,00) lhe foi concedido para a aquisição duma vivenda.

É também por tudo isto que, no caso, a exoneração do passivo restante não deve ser liminarmente indeferida.

Mas é justamente também por tudo isto – ainda que, com ou sem exoneração do passivo restante, pouco, além do que resultar da liquidação do imóvel, a devedora/recorrida irá pagar aos credores[13] – que a exoneração, até para ser merecida, não deve, dentro do possível, equivaler a uma “remissão”.

É ainda no despacho inicial – em que, como é o caso, não se indefere liminarmente o pedido de exoneração – que o juiz determina a parte do rendimento que fica excluída da cessão à entidade designada por “fiduciário”; que o juiz determina que, durante um período de 5 anos – prazo fixo que não depende do prudente arbítrio do juiz – subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado como período de cessão, o rendimento disponível do devedor se considera cedido a uma entidade, designada fiduciário, para os fins do art. 241.º.

Rendimento disponível” que, segundo o art. 239.º, n.º 3, do CIRE, é integrado por todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão, designadamente, “do que seja razoavelmente necessário para i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional

A exclusão em causa – é uma observação óbvia – é a resposta natural, forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento coloca ao devedor/insolvente (e ao seu agregado familiar).

Assim, na definição da amplitude do “rendimento disponível”, é certo e seguro que, fosse qual fosse a técnica legislativa utilizada, sempre teria que ficar de fora (do “rendimento disponível” a ceder) uma parte do rendimento do devedor/insolvente; parte essa suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência.

Cumprindo tal inevitabilidade, o legislador enunciou, a nosso ver, em termos de limite mínimo da exclusão, o critério “do que seja razoavelmente necessário para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”; logo acrescentado, em termos de limite máximo, que não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional.

É esta a “leitura” que fazemos do preceito em causa; ou seja, o legislador não adoptou um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno.

Efectivamente, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, não estamos autorizados a afirmar que o legislador, quando, ano após ano, fixa o montante do salário mínimo nacional, considera e avalia o montante que para tal efeito fixa como 1/3 do montante necessário a um sustento minimamente digno. Por outro lado, “sustento minimamente digno” não se confunde com mínimo de sobrevivência, uma vez que também no nosso ordenamento jurídico existe, “abaixo” do salário mínimo, como critério orientador de tal limite mínimo de sobrevivência, o rendimento social de inserção[14].

Enfim, encurtando razões, a exclusão imposta pelo art. 239.º, n.º 3, b), i) pode ser do montante do salário mínimo nacional.

Montante em que, no caso, se considera adequado fixar a quantia que a devedora/recorrida deve receber durante o período da cessão.

Alude o art. 239.º, b), i), do CIRE, é certo, ao sustento minimamente digno, não só do devedor, mas também do seu agregado familiar, porém, dos autos não resulta que a devedora/recorrida tenha a filha a seu cargo, mas sim que a mesma paga – ou melhor, que deve pagar[15] – uma prestação mensal de € 80,00, pelo que se nos afigura totalmente justo e equitativo, para a devedora/recorrida “merecer” a por ela requerida extinção de todas as sua obrigações, que imponha a si própria “custos” e sacrifícios durante os 5 anos da cessão, o que, com o devido respeito, não acontecerá se a exclusão da cessão se mantiver em um salário mínimo e meio[16].

Reconhece-se que se trata-se dum montante – o salário mínimo – que obrigará a recorrida a viver, nos próximos cinco anos, com comedimento e modéstia; não é preciso sequer qualquer elemento factual explícito para sustentar tal afirmação, uma vez que pertencem ao domínio dos factos públicos e notórios os gastos/despesas que é imprescindível efectuar para obter o indispensável para o sustento, habitação e vestuário duma pessoa.

De todo modo, não é possível sustentar, sem colocar em causa os limites do estado de direito em que vivemos, que o salário mínimo nacional não permite um sustento minimamente digno; e/ou que será impossível com um salário mínimo fazer face ao sustento mínimo de uma família com um filho menor.

Importa não esquecer – daí o percurso e ênfase inicial – que o escopo do instituto da “exoneração”, requerido pela recorrida, é a extinção de todas as sua obrigações – é o começar de novo, “aprendida a lição”, sem dívidas – o que necessariamente significa, para si própria, a assunção de “custos”, sacrifícios e privações durante os 5 anos da cessão; o que, com o devido respeito, não aconteceria se a exclusão da cessão se fizesse nos termos constantes da sentença e pretendidos pela recorrida.

Em poucas palavras:

O critério decisivo para excluir rendimentos da cessão não reside no que o devedor/insolvente diz que precisa para o seu sustento; o que cada um de nós diz que precisa para o seu sustento é algo especulativo e, por certo e com o devido respeito, as mais das vezes nem serão aqueles que se deixaram cair em situação de insolvência que têm sobre o assunto a melhor “norma”.

O critério decisivo para excluir rendimentos da cessão reside no que é necessário, num plano de normalidade e razoabilidade, para o sustento mínimo; independentemente do trem de vida que se teve – e que porventura até gerou a situação de insolvência – ou pretende manter.

Os sacrifícios, como é justo e equitativo, devem ser repartidos entre os credores, que ficarão sem receber uma parte possivelmente significativa dos seus créditos, e os devedores; a extinção dos créditos e a exoneração dos devedores, no final dos 5 anos, não podem induzir ou incentivar um desvalor comportamental – aquilo a que a teoria económica designa como “risco moral”.

Em conclusão, determina-se que, durante o período da cessão (que se prolongará por 5 anos), fique excluída tão só uma quantia igual a um salário mínimo nacional.


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Questão esta que, embora não explicitamente suscitada, consideramos implicitamente incluída/contida no objecto do recurso; pelo seguinte:

Com o recurso – ao pedir-se o indeferimento liminar da exoneração – pretende o banco recorrente que os rendimentos presentes e futuros da devedora não fiquem em qualquer medida excluídos do cumprimento das suas obrigações; pretende o banco recorrente que o salário e meio, referido na sentença recorrida, não fique excluído do cumprimento das obrigações da devedora.

Assim, ao “reduzir-se” a exclusão para um salário mínimo nacional, estamos ainda a mover-nos, em termos úteis e práticos, dentro da pretensão recursiva do banco recorrente.

Não se está a ir além do pedido/objecto do recurso.

Verdadeiramente, insiste-se, em termo úteis e práticos, o litígio, nesta instância, tinha como limites a não exclusão de qualquer quantia do salário e a exclusão dum salário e meio, pelo que, ao excluir-se uma quantia igual a um salário mínimo nacional, se está a respeitar e nos estamos a mover integralmente em tais limites.


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III – Decisão

Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento à apelação e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida quanto à admissão liminar da exoneração do passivo restante, mas altera-se a mesma na parte em que se ressalva o recebimento pela recorrida/insolvente dum valor equivalente a um salário mínimo e meio; segmento decisório que se substitui pela determinação de, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir, calculado nos termos do art. 239. n. 3, do CIRE – ressalvado o recebimento pela mesma dum valor equivalente a um salário mínimo nacional – se considerar cedido ao fiduciário indicado.

Custas pelo apelante e pela massa, na proporção de 4/5 e 1/5.


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Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133
[2] Tendo presente o que no C. Civil se dispõe sobre as “causas” que podem extinguir obrigações.
[3] Carvalho Fernandes, Estudos sobre a Insolvência, pág. 276.
[4]A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que, depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial. “Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133.
[5] Assunção Cristas, in Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264.
[6] Para o rendimento e património de quem contrai tais dívidas.

[7] A exoneração não pode representar um incentivo a uma actuação descuidada; o que acontecerá se, passado algum tempo, quem assim procedeu tiver como certa a extinção das suas dívidas. Como se escreveu no Acórdão desta Relação, proferido no Proc. nº 575/10.6TBSRT-E.C1, “aquele que sabe não estar integralmente exposto a todas as consequências desvaliosas de um risco decorrente do incumprimento contratual não interioriza os valores virtuosos – porque expressam valores eticamente relevantes – associados ao cumprimento das suas obrigações e, mais do que isso, não adopta, em muitos casos, uma atitude cautelosa e diligente na gestão da sua vida patrimonial, podendo interiorizar a perspectiva do incumprimento e de uma insolvência, a partir de determinado momento, como “custos” ainda assim suportáveis”..

[8] Cfr. v. g. Ac Relação do Porto de 7/10/2010 e de 21/10/2010, in CJ Online, Ref. 5911/2010 e 7270/2010.

[9] Aliás, pode/deve até dizer-se que o atraso na apresentação à insolvência não causa sequer qualquer aumento no montante dos juros; uma vez que, com a apresentação, continuam a vencer-se juros, sendo tais juros, vencidos/constituídos após a declaração de insolvência, considerados créditos subordinados (cfr. artigo 48º, alínea b), do CIRE).
[10] Como se defendeu no Ac. desta Relação de 04/10/2011, proferido no recurso n.º 1784/10.
[11] De tal forma que, dum dos créditos, terão sido pagas 5 prestações e do outro 2 prestações.
[12] Situação de insolvência com o sentido que aqui releva – cfr. art. 3.º/1, do CIRE.

[13] E sem prejuízo dum processo como o presente – em que o administrador tem honorários, o fiduciário tem honorários e a máquina judicial, em custos associados de funcionamento, não lhes fica atrás – só servir para causar despesas; situação, ao que parece, comum a outros países, a ponto de, na Alemanha, “a preocupação mais recente ser a de reduzir os custos que a exoneração acarreta para o Estado” (cfr. Catarina Serra, obra citada, pág. 135, nota 222).

[14] Criado pela Lei n.º 13/2003, de 21 de Maio, e que consiste numa prestação que visa conferir apoios para a satisfação das necessidades essenciais.
[15] Fazemos esta observação, uma vez que ela própria, quando se apresentou, disse dever cerca de € 1.600,00 de tal prestação.
[16] Hipótese em que a exoneração seria obtida com a entrega mensal de € 53,88, quantia que não dará sequer para pagar ao fiduciário.