Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
211/15.4GATND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: DIREITOS DE AUTOR
USURPAÇÃO
ACTIVIDADE DE DIFUSÃO
TELEVISÃO
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (SEC. INST. CRIMINAL DA INST. CENTRAL DE VISEU - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 68.º, 149.º, 195.º E 197.º DO CDADC
Sumário: I - A simples actividade de audição/visionamento de canal televisivo, em cafés, restaurantes, bares, e outros estabelecimentos abertos ao público em geral, não dependendo de prévia autorização dos autores das obras transmitidas, não é idónea à verificação do crime de usurpação.

II – Assim é porquanto em causa está tão só a captação, por aparelho de TV, dos sinais de sons e imagens difundidos pelo transmissor e não a reutilização de obra, prevista no n.º 2 do artigo 149.º do CDADC, reportada a situações em que a transmissão, acrescentando, modificando ou inovando - através de meios técnicos na forma de recepção - constitui uma nova utilização de determinada obra.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

Sociedade Portuguesa de Autores, C.R.L., assistente nos autos, veio interpor recurso da decisão proferida pela Mmª Juiz de Instrução de não pronúncia do arguido A..., pela prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), ou qualquer outro, mantendo o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.

São as seguintes as conclusões da motivação de recurso:

a) No dia 27 de Novembro de 2015, pelas 12h20, no estabelecimento comercial denominado “Restaurante Café X... ”, e que no momento se encontrava aberto ao público e em funcionamento, com cerca de 4 clientes, encontravam-se a ser difundidas obras musicais e literário-musicais, protegidas pelo direito de autor, sendo que essa difusão era efectuada através da exibição do canal RTP1;

b) As obras transmitidas neste estabelecimento comercial são protegidas pelo direito de autor;

c) O arguido não dispunha de autorização da Recorrente, que o habilitasse a difundir tais obras em espaço público;

d) A questão a apreciar nos autos é saber se a utilização que o arguido fazia das obras configura o conceito de “comunicação pública”, tal como previsto no artigo 3º n.º 1 da Directiva 2001/29;

e) O CDADC tem a sua fonte de inspiração na Convenção de Berna;

f) O artigo 149º do CDADC, que tem a sua referência directa no artigo 11º bis da Convenção de Berna, prevê o direito exclusivo do autor autorizar a utilização das suas obras de três formas diferentes: a radiodifusão; a retransmissão e a comunicação pública de obras radiodifundidas;

g) A previsão destas três formas de utilização das obras pretende assegurar que a autorização dada para uma fase (a radiodifusão) não seja automaticamente considerada extensiva às fases posteriores, por exemplo, a retransmissão ou comunicação pública das obras radiodifundidas;

h) O autor considera a sua autorização de radiodifusão no sentido de abranger apenas a audiência directa que recebe o sinal, num círculo familiar;

i) A Directiva 2001/29 consagrou o direito exclusivo do autor autorizar qualquer comunicação pública das suas obras, estipulando que “Os Estados Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras”;

j) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo, pelo menos desde 2007, em sucessivos Acórdãos, a proferir decisões que nos permitem, com segurança e de modo uniforme a toda a União Europeia, circunscrever e entender este conceito;

l) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem entendido que a transmissão de obras radiodifundidas, através de aparelhos de televisão ou rádio em espaços públicos, configura o conceito de comunicação pública, uma vez que o detentor do aparelho de televisão, ao permitir a escuta ou a visualização da obra, tal intervenção deve ser considerada um acto de comunicação ao público, nos termos do artigo 3º n.º 1 desta Directiva;

m) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem circunscrito o conceito de “comunicação pública” em diversos Acórdãos, de entre os quais os Acórdãos SGAE, C-306/05; Football Association Premier League, C-403/08 e C-429/08 e OSA, C-351/12;

n) O Tribunal a quo afirmou conhecer a Directiva 2001/29, mas interpretou-a de forma diferente do sentido e alcance que tem de acordo com esta directiva;

o) As normas nacionais devem ser interpretadas no sentido que resulta da letra e do espírito da Directiva;

p) No âmbito de um processo de reenvio promovido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que “o conceito deve ser interpretado como abrangendo a transmissão de obras radiodifundidas através de um ecrã de televisão – que se estende ao aparelho de rádio – e de colunas aos clientes que se encontrem presentes num estabelecimento comercial. Em tal situação estamos perante uma nova comunicação ao público e não perante uma mera recepção de uma obra”;

q) Uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferida em casos de reenvio prejudicial para efeitos de interpretação vincula, quer quanto às conclusões, quer quanto à fundamentação, os tribunais nacionais.

r) O Tribunal a quo estava vinculado a seguir a interpretação que o Tribunal de Justiça da União Europeia deu ao conceito de “comunicação pública” no processo de reenvio suscitado pelo Tribunal da Relação de Coimbra;

s) Ao ter decidido de forma diferente o Tribunal a quo violou os princípios do primado e da interpretação conforme;

t) Bem andou o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão proferido em 30 de Junho de 2016, no âmbito do processo 170/15.3GCMFR.L1, em que, referindo-se, e transcrevendo, o Despacho proferido pelo TJUE em 14.07.2015, já aqui referido, entende aquele Tribunal da Relação de Lisboa que Assistiria razão ao MºPº neste entendimento acerca da aplicação do acórdão nº 15/2013 se não tivesse sido proferido, posteriormente ao mesmo acórdão ter sido tirado, o despacho.

u) Concluindo que Assim analisada a questão colocada pela recorrente Sociedade Portuguesa de Autores, o recurso tem de ser decidido no sentido de o mesmo merecer provimento, e de ser revogada a decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por outra que pronuncie a arguida, conforme vem pedido.

v) A decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo deve, por isso, ser alterada, pronunciando-se o arguido pela prática de um crime de usurpação.

Termos em que deve ser revogada a decisão proferida em primeira instância, pronunciando-se o arguido A... pela prática de um crime de usurpação, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 195º e 197º do CDADC.


*


Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, defendendo a improcedência do recurso, por considerar que “A transmissão de programa por televisão em estabelecimento comercial não é, por si só, reutilização da obra. Sê-lo-á se forem empregues meios técnicos que recriem de qualquer forma a difusão da mesma, produzindo um espectáculo diferente do que é teledifundido.”.

Nesta instância também o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não foi obtida resposta.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II – FUNDAMENTAÇÃO

Vejamos como a Mmª Juiz a quo fundamentou a sua decisão de não pronúncia:

 “ I- Relatório:

Iniciaram-se os presentes autos com a notícia de que no dia 27 de Novembro de 2015, pelas 12h20m, no restaurante café X... , sito na Avenida (...) , no Caramulo, explorado pelo ora arguido, estavam a ser transmitidas imagem e som através de televisão, sem que o estabelecimento fosse detentor de licença para o efeito.

O Ministério Público arquivou os autos com fundamento no ac. do STJ n.º 15/2013.

A assistente veio requerer a abertura de instrução, pedindo a pronúncia do arguido por um crime de usurpação, p.p.p artigo 195 do CDADC

Foi admitida a instrução.

Procedeu-se à realização de debate instrutório.

(…)


***

II- Fundamentação da decisão:

Cabe agora proferir a decisão a que alude o art. 307° do CPP.


***

Tal como refere o art. 286°, n.º 1 do CPP “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

De acordo com o artigo 308º do mesmo diploma preceitua que: "Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia".

Por sua vez o art. 283º, n.º 2 refere que: "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".

Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a prolação de despacho de pronúncia ou de não pronúncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se puder formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança".

Desde logo, na situação concreta há que ter em conta os seguintes artigos 68°, 149°, 155°, 195° e 197°, todos do CDADC.

Assim, o artigo 68, n.º 2, al. e) estipula que:

"- A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos atualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser.

2 - Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:

a) ( ... );

e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras óticas, cabo ou satélite, quando essa comunicação for feita por outro organismo que não o de origem;

(...)".

Por seu turno o artigo 149 estipula que:

"1- Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto direta como por retransmissão, por qualquer modo obtida.

2 - Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.

3 - Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão".

O artigo 155 estipula que:

"É devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida, por altifalante ou por qualquer outro instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens".

O artigo 195 acrescenta que:

"1 - Comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código.

2 - Comete também o crime de usurpação:

a) Quem divulgar ou publicar abusivamente uma obra ainda não divulgada nem publicada pelo seu autor ou não destinada a divulgação ou publicação, mesmo que a apresente como sendo do respetivo autor, quer se proponha ou não obter qualquer vantagem económica;

b) Quem coligir ou compilar obras publicadas ou inéditas sem autorização do autor;

c) Quem, estando autorizado a utilizar uma obra, prestação de artista, fonograma, videograma ou emissão radiodifundida, exceder os limites da autorização concedida, salvo nos casos expressamente previstos neste Código.

3 - Será punido com as penas previstas no artigo 197.° o autor que, tendo transmitido, total ou parcialmente, os respetivos direitos ou tendo autorizado a utilização da sua obra por qualquer dos modos previstos neste Código, a utilizar direta ou indiretamente com ofensa dos direitos atribuídos a outrem".

Finalmente o 197 estipula que:

"1- Os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infração, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infração não tipificar crime punível com pena mais grave.

2 - Nos crimes previstos neste título a negligência é punível com multa de 50 a 150 dias.

3 - Em caso de reincidência não há suspensão da pena".

Dúvidas não existem que a criação literária e artística carece de proteção e recebe a tutela do Direito de Autor, vertida no CDADC.

Com o CDACD protegem-se bens de carácter pessoal e direitos patrimoniais.

A questão a decidir nos presentes autos resume-se a uma discussão de direito, nomeadamente de saber se não fazendo as colunas que ampliam o som parte integrante do rádio, a distribuição do som, que por elas é feita, extravasa a mera receção, passando a configurar uma nova transmissão do programa.

Tal questão de direito originou na jurisprudência alguma divisão, terminando com o ac. do STJ a que alude a Digna Procuradora Adjunta no seu despacho de arquivamento.

A nosso ver, que art.° 149°, n.º 2 do CDADC não prevê a mera receção de emissões de radiodifusão, que é livre, mas a transmissão daquelas emissões.

A mera receção de uma emissão radiodifundida em estabelecimentos comerciais é livre, sendo que o que se discutia é se a futura transmissão daquela receção, nomeadamente através de colunas constituía, ou não crime.

A este propósito escrevia Oliveira Ascensão: “Princípio fundamental nesta matéria é o da liberdade de recepção ( ... ) seria absurdo sujeitar as duas autorizações o mesmo programa, com a consequente dupla cobrança, na fonte e no destino. Na realidade, quem possuir um receptor pode utilizá-lo livremente, pois a autorização inicial para a radiodifusão abrange já a posterior recepção”.

Os defensores de que não constituía crime argumentavam, basicamente que a mera existência de colunas de ampliação do som difundido por radiofonia ou televisor não transforma o ato de receção livre em (re)transmissão do programa, não se adulterando por essa forma a utilização da obra transmitida através daqueles aparelhos. De facto, o que se dizia era que a utilização das colunas em nada alterava a utilização da obra transmitida através da televisão uma vez que quer a imagem quer o som eram exatamente os que o canal sintonizado transmitia.

Os defensores de que não constituía crime, salientavam, ainda, a necessidade de distinguir entre a mera receção e a reutilização da obra, pois só quando se dava esta última é que fazia sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração.

Acontece que esta questão ficou decidida através do UF de 13.11.2013, DR, I SÉRIE, 243, 16.12.2013, que estipulou que: "A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149°, 195° e 197° do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos".

Ora, concordamos na integra com os fundamentos que constam do acórdão, aplicável, por maioria de razão às situações do som ser difundido não por televisão, mas por rádio.

Assim, e não obstante, o mesmo, nos termos do artigo 445, n.º 3 do CPP não constituir jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, nada mais temos a acrescentar, sendo que, só em caso de divergência do acórdão é que a mesma deveria ser fundamentada.

Aliás, ainda muito recentemente e, precisamente sobre um recurso que incidiu sobre uma decisão desta instância central de instrução criminal decidiu o TRC (ac. de 20.1.2016, in http://www.dgsi.pt/jtrc.) nos seguintes termos:

"I - A usurpação é um crime comum e de execução vinculada, que tutela o bem jurídico criação intelectual, artística e científica sendo que, parte significativa da acção típica está remetida para as formas de utilização de obra ou prestação previstas no CDADC, essencialmente contidas no seu art. 68.

II - O estabelecimento comercial gerido pelo arguido [frutaria] é, face à matéria de facto que se mostra indiciada, obviamente, um lugar público.

III - Deste modo, o que há a decidir é saber se a difusão de obra radiodifundida em local público através de colunas que, ampliando e distribuindo o som, não faziam parte integrante do aparelho que sintonizava a estação emissora de rádio, configura uma mera recepção [recepção - ampliação] da obra ou antes traduz uma nova utilização, uma recepção ­transmissão, da mesma obra.

IV - Constitui mera recepção e não reutilização da obra transmitida, a difusão de música ambiente através de várias colunas de som, distribuídas pelo tecto da frutaria, aberta ao público e gerida pelo arguido, ligadas a um circuito integrado de som, marca Efapel, sintonizado em determinada estação emissora de rádio;

V - Por isso, esta actividade de difusão de música ambiente não carece de autorização dos autores das obras radiodifundidas por aquela estação emissora".

É certo que, em abono da sua tese, alega a assistente uma diretiva comunitária, mais concretamente a diretiva 2001/29/CE e o princípio do primado.

Acontece que, este Tribunal não se recusa a aplicar a mencionada diretiva, entende é que a mesma deve ser interpretada nos termos por nós já exposto, e pelos fundamentos que consta do citado UF, e isto, como todo o respeito pelas decisão do TJ invocados, proferidas no âmbito de processos distintos deste e anteriores ao acórdão do STJ.

Na verdade do TJ tem feito uma interpretação distinta da da nossa jurisprudência da diretiva 2001, o que não significa que este Tribunal, bem como o STJ esteja a violar a diretiva comunitária, bem como o princípio do primado.

Bem andou a Sr.ª Procuradora Adjunta ao arquivar os autos, não assistindo razão ao assistente.

Perante tal, e tratando-se exclusivamente de uma questão de direito, o Tribunal não descrimina os factos indiciados e os não indiciados, não obstante dúvidas não existirem que os factos que constam do auto de notícia se encontram suficientemente indiciados.

Pelo exposto:

III- Decide-se:

Não Pronunciar o arguido, por um crime de usurpação, p.p.p artigo 194, 195 e 197 do CDADC, ou qualquer outro, mantendo o despacho de arquivamento.

 (…).


***

APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão suscitada e a decidir, consiste em saber se, face aos factos que constam do auto de notícia e se encontram suficientemente indiciados, deveria o arguido ser pronunciado pela prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 149º, 195º e 197º Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC),


*

A assistente notificada do despacho que, nos termos do art. 277º do CPP, determinou o arquivamento dos autos, requereu a abertura de instrução, visando a pronúncia do arguido pela prática do aludido crime de usurpação.

Como refere o despacho recorrido dúvidas não existem que os factos que constam do auto de notícia se encontram suficientemente indiciados.

São tais factos:

“No dia 25 de Novembro de 2015, pelas 11:33, procedeu-se à fiscalização do estabelecimento de restauração e bebidas, denominado “ X... ”, sito na (...) , Caramulo – Tondela, explorado pelo Sr, A... ;

Durante a fiscalização, constatou-se que no espaço dedicado aos clientes do café, na parede lateral direita, encontrava-se um televisor LCD, encontrando-se ligado a uma BOX do operador de telecomunicações MEO, a qual comunicava publicamente, na presença de quatro clientes, as obras provenientes do canal RTP1 naquele horário;

Questionado o Sr. A... se se encontrava habilitado pela licença SPA, para emissão pública das obras difundidas naquele canal, o mesmo não soube responder, apresentando licenças SPA dos anos de 2011, 2012 e 2013.”

Coloca-se, assim, a questão de saber se com base nos mencionados factos o arguido deve ser pronunciado pela prática do crime de usurpação p. e p. pelos artigos 149º, 195º e 197º do CDADC.

Tendo em conta o disposto nos artigos 68º, n.º 2, al. e), 149º, 155º, 195º e 197º, todos do CDADC (já transcritos na decisão recorrida), sendo o estabelecimento em causa um lugar público (de acordo com a definição do n.º 3 do art. 149º do CDADC), pergunta-se se a audição/visionamento de estações de televisão em cafés, restaurantes, bares, e outros estabelecimentos abertos ao público em geral determinará a obrigação para os seus responsáveis de obter autorização dos autores das obras transmitidas?

A esta pergunta respondeu o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 15/2013 (DR, 1ª série, n.º 243, 16 Dez. de 2013), nos seguintes termos:

«Para decidir tal questão, há que operar a distinção entre receção e comunicação. A receção consiste na captação pelos equipamentos adequados dos sinais de sons e imagens difundidos pelo transmissor. A receção é o terminus do processo de transmissão e só ela o justifica: transmite-se (radiodifunde-se) para o recetor.

Esta utilização das obras pelo recetor confere naturalmente aos autores o direito de a autorizarem (e o consequente direito à remuneração por essa utilização), nos termos do n.º 1 do artigo 149º.

Mas, uma vez autorizada, a receção é livre, ou seja, o recetor pode organizá-la como bem entender. Ponto é que se mantenha no âmbito da receção.

É necessário, pois, distinguir entre a mera receção (captação dos sinais) e a reutilização da obra, situação prevista no n.º 2 do artigo 149º. Este preceito tem de reportar-se a situações em que a transmissão acrescenta, modifica ou inova, constituindo assim uma nova utilização da obra. Só assim tem sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração.

Esta nova utilização passa necessariamente por uma qualquer modificação por meios técnicos na forma de receção, em ordem a aproveitá-la para produzir um efeito visual ou sonoro espetacular, para criar uma encenação que a mera receção do programa radiodifundido não provocaria.

Assim, sempre que a situação se configure como de mera receção, ainda que alterada por quaisquer equipamentos, mas desde que limitados à função de a aperfeiçoar ou melhorar, não se aplica o disposto no n.º 2 do artigo 149º. Doutra forma, seriam cobrados direitos a dobrar sobre a mesma utilização da obra, uma vez que pela autorização da radiodifusão da obra já o autor recebeu a correspondente remuneração».

Como escreveu Oliveira Ascensão ([1]) «Princípio fundamental nesta matéria é o da liberdade de recepção. Poder-se-ia pensar na sujeição de recepção a autorização do autor, ou pelo menos em atribuir uma remuneração ao autor em consequência da recepção. Mas seria absurdo sujeitar a duas autorizações o mesmo programa, com a consequente dupla cobrança, na fonte e no destino. Na realidade, quem possuir um receptor pode utilizá-lo livremente, pois a autorização inicial para a radiodifusão abrange já a posterior recepção.

(…) A lei não pode pois pretender limitar uma recepção que se quer sem barreiras, e está já prevista na autorização para a radiodifusão.

(…) A recepção é livre, qualquer que seja o modo como se realiza. Não tem a ver com o uso privado. Mesmo a recepção pública não altera esta situação».

Portanto, tendo os direitos de autor sido já pagos pela entidade difusora que presta o serviço televisivo ao arguido, este na qualidade de explorador do estabelecimento, não carece de autorização da SPA, dado que é mero receptor do serviço (teledifundido). 

Deste modo, estando a situação dos autos no domínio da mera recepção, não havendo qualquer recriação, não se verifica o crime de usurpação imputado pela assistente/recorrente ao arguido.

Acresce que, acompanhamos a opinião segundo a qual “os estabelecimentos dotados de aparelhos receptores de televisão, ligados ao respectivo sinal difundido pelo distribuidor de cabo, pelo qual pagam o respectivo serviço, se integram nos casos que se prevêem no considerando da Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Maio de 2001, segundo o qual “a mera disponibilização de meios materiais para permitir ou realizar uma comunicação não constitui só por si uma comunicação na acepção da presente directiva”.

Como salienta o Exmº PGA no seu parecer “Quanto à jurisprudência do TJ da UE e consequente questão prejudicial anote-se apenas que o AFJ, cujo acolhimento é obrigatório, teve em conta o conceito de comunicação definido pelo TJ das Comunidades nas referências que faz para decisões deste sobre o assunto, designadamente quando refere a recepção multiplicada em estabelecimento hoteleiro, onde indica, na nota 7, o ac. de 15.3.2012, proc. n° C­162/10 (a que se poderia acrescentar o de 7/12/2006 proc. C-306/05), ou quando alude à transmissão televisiva em cafés, mencionando em sentido contrário ao que aí se afirma o ac. de 4.10.2011, procs. n.ºs 403/08 e 429/08 (importando contudo atentar que, neste último caso, a destrinça no conceito de comunicação se reporta a público presente ao evento - o que estava em causa era a transmissão televisiva de jogos de futebol através de retransmissores não comercializados no país em causa - e público dele ausente, mas que pode visualizar, através da retransmissão, aquele, o que no caso da transmissão de espectáculo de um estúdio, como ocorre na situação dos autos, não se verifica, sendo certo que a situação ali em apreço, pela ambiência que envolve, bem diferente da que referem os presentes autos, se poderá enquadrar na visualização de eventos desportivos a que se reporta o AFJ, o qual também menciona, a propósito das transmissões televisivas, o seu carácter anódino - normalmente apenas serve a clientela habitual, para a qual não constitui nenhum atrativo). Daí que não pareça existir a divergência mencionada pela recorrente, sendo diferentes as situações e não tendo aqui aplicação a aludida jurisprudência do TJUE.”.

Deste modo, não se vislumbrando no despacho recorrido qualquer violação das orientações legais e jurisprudenciais da União Europeia a que o Estado Português está obrigado e, dado que os factos indiciados não preenchem o tipo do crime de usurpação, não merece censura o despacho impugnado.


*****

III - DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso, confirmando-se, consequentemente, o despacho recorrido.

Sem tributação (dado a recorrente estar isenta de custas – art. 4º, n.º 1, al. f) do Regulamento das Custas Processuais).


***

Coimbra, 22 de Fevereiro de 2017

(Elisa Sales – relatora)

(Paulo Valério – adjunto)


[1] - in Direito de Autor e Direitos Conexos, 2008, págs. 301 e 302.