Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
467/12.4JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: SEQUESTRO AGRAVADO
TRATAMENTO DESUMANO
Data do Acordão: 01/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA CENTRAL DE CASTELO BRANCO, SECÇÃO CRIMINAL, J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 158.º, N.º 2, AL. A), DO CP
Sumário: I - É tratamento desumano, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 158.º do CP, toda a actuação constitutiva de uma séria ofensa à dignidade da pessoa humana, excedendo o meio mínimo necessário para levar a cabo a privação da liberdade.

II - A sucessão de actos traduzidos no encerramento de alguém num espaço fechado, exíguo e escuro, de um veículo em movimento, até à sua libertação, nu, depois de arrastado, espancado e atirado para debaixo de uma ponte, atentando gravemente contra a dignidade da pessoa humana, deve ser integrado na previsão da referida norma.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum com intervenção do tribunal colectivo 467/12.4JACBR da Comarca de Castelo Branco, Instância Central de Castelo Branco, Secção Criminal, J2, após realização da audiência de julgamento com documentação da prova oral, foi proferido acórdão em 2 de Junho de 2015 com o seguinte dispositivo:

Em face do exposto, o Tribunal Colectivo decide:

- Considerando a extinção do procedimento criminal instaurado contra os arguidos relativamente aos crimes de ofensa à integridade física simples que lhes foram imputados, atrás consignada, julgar parcialmente improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, absolver os arguidos A ...e B ...da prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1, e 204º, n.º 1, alínea d), ambos do Código Penal, e do crime de omissão de auxílio agravada, p. e p. pelo artigo 200º, n.º 1 e 2, do Código Penal, que lhes foram imputados.

- Julgar parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, condenar os arguidos A ...e B ...pela prática, como co-autores materiais e em concurso efectivo, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, e de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158º, n.º 1 e 2, alínea b), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

- Proceder ao cúmulo jurídico das duas penas aplicadas nestes autos aos arguidos e, em consequência, condenar o arguido A ...na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante de € 600,00 (seiscentos euros), e de 4 (quatro) anos de prisão, condenando o arguido B ...na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante de € 720,00 (setecentos e vinte euros), e de 4 (quatro) anos de prisão.

- Suspender a execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos A ...e B ...pelo período de 4 (quatro) anos, com sujeição a regime de prova, de acordo com o plano que vier a ser elaborado pelos serviços de reinserção social.

- Condenar os arguidos A ...e B ...nas custas da acção penal, fixando-se a taxa de justiça devida em três UC’s, sem prejuízo do apoio judiciário que possa vir a ser-lhes concedido.

Relativamente às peças de roupa que ainda se encontrem apreendidas à ordem dos presentes autos, assim como aos demais suportes que contenham vestígios biológicos obtidos com vista à realização do exame pericial efectuado nos presentes autos, o Tribunal Colectivo determina que se proceda à respectiva destruição, nos termos previstos no artigo 156º, n.º 7, do CPP, após o trânsito em julgado deste acórdão.

Solicite aos serviços de reinserção social a elaboração dos planos de reinserção social a que atrás se aludiu (cfr. artigo 494º, n.º 3, do CPP).

Inconformados, recorreram o Ministério Público e os arguidos A ...e B ....

O Ministério Público extraiu da motivação do recurso as seguintes conclusões:

A. Os arguidos A ...e B ..., foram absolvidos da prática de um crime de furto qualificado p. e p. nos termos dos artigos 203º nº 1 e 204º nº 1 alínea d), ambos do CPenal;

B. e condenados pela prática, como co-autores materiais, de um crime de furto simples, p. e p. nos termos do artigo 203º nº do CPenal;

C. uma vez que considerou como não provado – ponto 4, que o valor dos bens furtados não excedia uma unidade de conta.

D. Todavia conforme sessão datada de 26.05.2015 e gravada em suporte digital 2150526152307_1100905_2870664 do 13m e 27s ao 13m e 44s. foi furtado ao assistente, para além artigos constantes do ponto 11 dos Factos provados, ainda um relógio no valor jurado de 40,00 €.

E. Pelo que ao ponto 11 dos Factos provados  deve ser aditado  um relógio

F. e impugna-se, não se podendo aceitar, o ponto 4 dos factos não provados;

G. aditando-se um novo facto provado nos seguintes termos “o assistente avaliou os anéis furtados em cerca de 10,00 €, o relógio em 40,00 € e os telemóveis, um em 40,00 € e outro em 50, 00 €”.

H. O acórdão recorrido fez errada interpretação da prova, nos termos da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPPenal, violando o disposto nos artigos 203º nº 1 e 204º nº 1 alínea d) ambos do CPenal.

O acórdão recorrido deve ser revogado na parte que condena os arguidos como co autores materiais de um crime de furto simples p. e p. nos termos do artigo 203º nº 1 do CPenal e substituí-lo por outro que condene os arguidos como co autores materiais de um crime de furto qualificado p. e p. nos termos dos artigos 203º nº 1 e 204º nº 1 alínea d) ambos do CPenal.

Mas VOSSAS EXECELÊNCIAS, farão, como sempre a costumada JUSTIÇA!

Os arguidos condensaram a sua motivação de recurso nas seguintes conclusões:

            1º) Os arguidos foram condenados pela prática do crime de sequestro agravado p. e p. pelo artigo 158º n.º 2 alínea b) do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, suspensa por igual período;

            2º) Os arguidos não foram condenados pela prática de qualquer crime de ofensa à integridade física grave, pois os mesmos apenas vinham acusados da prática do crime de ofensas à integridade física simples;

            3º) A detenção do assistente pelos arguidos, não foi precedida nem acompanhada de qualquer ato de tortura ou tratamento cruel, degradante ou desumano, pois toda a atuação dos arguidos e do próprio assistente teve na sua base, o estado de embriaguez em que se encontravam, pelo que não se encontram preenchidos os requisitos do crime de sequestro agravado;

            4º) Inexistem na decisão factos provados dos quais se possa extrair que os arguidos praticaram na pessoa do Assistente o crime de ofensas à integridade física grave, bem como, factos reveladores de atos de tortura ou tratamento cruel e desumano, não se enquadrando a atuação dos arguidos no n.º 2 do artigo 158º do C. Penal;

5º) Após o assistente ter sido deixado no local identificado na matéria de facto provada, este não ficou privado de se mover e afastar do local mesmo nas condições em que se encontrava;

            6º) Inexistem na decisão factos que esclareçam a hora em que os recorrentes deixaram o assistente no entroncamento de estradas em terra batida depois da ponte Palhais;

            7º) A partir do momento em que foi retirado da bagageira o assistente não ficou impedido de se ausentar do local e não ficou privado na sua liberdade de locomoção;

            8º) A situação de sequestro do assistente iniciou-se em hora não apurada, quando os arguidos agarraram o assistente e o colocaram na bagageira do veículo (ponto5º) e terminou quando os arguidos deixaram o assistente no entroncamento de estradas em terra batida depois da ponte de Palhais a meio da encosta entre o nível da ponte e a Ribeira da Isna (Ponto13);

            9º) Não se mostram preenchidos os requisitos para a prática pelos Arguidos do crime de sequestro na sua forma agravada, devendo estes ser condenados como co-autores pela prática do crime de sequestro nos termos do preceituado no n.º 1 do artigo 158º do C. Penal;

            10º) A considerar-se que os Arguidos praticaram o crime de sequestro na sua forma agravada, a pena de quatro anos suspensa na sua execução, tendo em conta que o período de tempo em que o arguido ficou privado da sua liberdade de locomoção, se verificou apenas nos termos já referidos na conclusão n.º 8, e tendo em conta os demais critérios de determinação da medida concreta da pena, as condições pessoais dos recorrentes e respetiva situação económica, a conduta posterior aos factos, entende-se que a pena deve quanto a este crime deve ser reduzida para dois anos e meio e suspensa por igual período;

            11º) E quanto ao crime de furto cuja pena foi fixada em 120 dias de multa para cada um, deve a mesma ser reduzida para 80 dias de multa;

            12º) Mostra-se violado o preceituado no artigo 158º n.º 2 alínea b) do Código Penal;

            13º) Mostra-se também violado o preceituado no artigo 410º n.º 2 alíneas a) e c) do C.P.Penal;

14º) A douta decisão deve ser revogada e substituída por outra que tenha em consideração o vertido nas conclusões das alegações dos recorrentes.


JUSTIÇA!!!                                                  


Os recursos foram objecto de despacho de admissão

Os arguidos responderam ao recurso do Ministério Público, concluindo o seguinte:

            1º) O ponto 4) dos factos não provados deve manter-se;

            2º) Ao ponto 11) dos factos provados não deve ser aditada qualquer matéria;

            3º) A avaliação efectuada pelo Assistente não foi validada por qualquer perícia pelo que é inconsequente;

            4º) Dentro do princípio da livre apreciação de prova, o Tribunal entendeu não incluir no rol dos bens furtados um relógio, que nem sequer constava da acusação, pelo que nada há a apontar á decisão nessa parte;

5º) Todas as conclusões do recurso devem ser julgadas improcedentes.

            A finalizar ainda se impetra o douto suprimento de V. Exa. para as deficiências do nosso patrocínio clamando-se …


JUSTIÇA!!!                                      

O Ministério Público respondeu ao recurso dos arguidos, concluindo o seguinte:

1. O acórdão recorrido face ao apurado em julgamento, nomeadamente;

2. das declarações do assistente gravadas em suporte digital 20150526152307_1160905_2870664 do 03m59s, do 04m01s ao 04m29s, do 05m36s ao 05m55s, do 06m16s ao 06m30s , do 06m52s ao 06m58s do 07m10s ao 7m18s e do 07m35s ao 07m50s.

3. das declarações da testemunha D... gravado em suporte digital 20150526160816_1100905_2870664 do 01m30s ao 02m04s, do 02m15s ao 02m44s

4.  das declarações da testemunha C... gravadas em suporte digital 20150526163344_1100905_2870664 do 02m18s ao 02m30s e do02m32s ao 03m01s.

5. deu como provados os Pontos 13, 14, 19, 20, 21 e 22. De III. Fundamentação de Facto – Factos Provados

6. e, consequentemente, considerou que a conduta dos recorrentes preencheu os elementos objectivo e subjectivo do crime de sequestro agravado p. e p. nos termos do artigo 158º nº 2 alínea b) do CPenal.

7. Os recorrentes foram ainda condenados em co-autoria, pela prática de um crime de furto simples p. e p. nos termos do artigo 203º do CPenal nas penas de 120 dias de multa à taxa de 6,00 €/dia o arguido B ...e à taxa diária de 5,00 € o arguido A ....

8. Sem abdicarmos das alegações de recurso apresentadas quanto ao ilícito em apreço (furto simples/furto qualificado) diremos que a considerar-se que os recorrentes cometeram um crime de furto simples os dias de multa e o seu montante diário estão de acordo com o disposto no artigo 71º e seguintes do CPenal e com as condições socio económicas e familiares referidas por ambos em audiência de discussão e julgamento.

9. O acórdão recorrido não violou o disposto nos artigo 158º nº 2 alínea a) do CPenal nem o artigo 410º nº 2 alíneas a) e c) do CPPenal, ou outros dispositivo legal, nem quaisquer princípios gerais de direito.

Mas VOSSAS EXCELÊNCIAS, como sempre farão a costumada JUSTIÇA!

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que os recursos não merecem provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, os arguidos responderam remetendo para o alegado no recurso e na resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:

            Factos provados

            Analisada toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, resultaram provados, com relevo para a decisão a proferir, os seguintes factos:
1. Os arguidos são irmãos e sempre residiram na mesma localidade que o assistente E... .
2. Na noite de 15 para 16 de Julho de 2012 ocorreu um arraial popular numa festa que teve lugar na localidade de Ribeira, Fundada, Vila de Rei, no qual estiveram presentes os arguidos e o assistente E ....
3. Cerca das 05h30, os arguidos e o assistente, todos aparentemente alcoolizados, abandonaram o recinto da festa popular, tendo o assistente aceitado a oferta de boleia até casa que lhe foi dirigida pelo arguido B ....
4. Em consequência, dirigiram-se os três para o veículo de matrícula QN (...) , habitualmente conduzido pelo arguido B ...e pertencente a F... , ocupando o arguido B ...o lugar do condutor, o arguido A ... o lugar existente ao lado do condutor e o assistente o banco traseiro do veículo.
5. A dada altura do percurso, na sequência de um plano delineado por ambos e em conjugação de esforços e de meios, os arguidos agarraram no assistente e colocaram-no na bagageira do veículo.
6. De seguida, os arguidos entraram novamente no veículo, ocupando os mesmos lugares, e transportaram o assistente para junto da ponte de Palhais, existente sobre a ribeira de Isna, situada nos limites das freguesias de Fundada e de Palhais.
7. O arguido B ...imobilizou o veículo que conduzia num pequeno largo em terra batida existente antes da mencionada ponte, do lado direito, tendo em conta o sentido de marcha Fundada-Palhais.
8. Ambos os arguidos saíram então do veículo e retiraram o assistente do interior da bagageira do mesmo.
9. De seguida, os arguidos arrastaram o assistente pelo chão, até meio do tabuleiro da ponte, onde lhe desferiram estalos, murros e pontapés, atingindo-o em diversas zonas do corpo.
10. Depois disso, os arguidos retiraram ao assistente todo o vestuário que o mesmo trazia vestido, atirando-o da ponte abaixo, para o vale da ribeira, e deixando o assistente totalmente despido.
11. Nessa altura, os arguidos apropriaram-se da carteira pertencente ao assistente, de dois telemóveis do mesmo e dos três anéis que trazia colocados, dizendo-lhe ainda que o iriam atirar da ponte abaixo.
12. De imediato, os arguidos regressaram ao veículo e ausentaram-se do local, apoderando-se da carteira, dos telemóveis e dos anéis pertencentes ao assistente, que fizeram seus.
13. Os arguidos abandonaram o assistente no entroncamento de estradas em terra batida, depois da ponte de Palhais, a meio da encosta, entre o nível da ponte e a ribeira de Isna, deixando-o prostrado no chão, despido e com múltiplas escoriações ao nível da cabeça.
14. O assistente acordou nesse local com muitas dores, apresentando sangue na cabeça e nos membros e encontrando-se desorientado e com sede.
15. Tendo ido beber água à ribeira, o assistente recuperou a sua camisola, o casaco, os boxers e uma meia, que vestiu e calçou.
16. Em momento posterior, o assistente iniciou o seu percurso em direcção a Vilar do Ruivo, altura em que foi encontrado pela testemunha D ..., quando eram cerca de 21h45.
17. Nessa altura, o assistente caminhava com grandes dificuldades na berma da estrada, apresentando sangue na cabeça.
18. O assistente foi transportado pelos Bombeiros de Vila de Rei até ao Hospital de Abrantes, onde ficou internado até ao dia 23 de Julho de 2012.
19. Em consequência dos factos a que se aludiu, os arguidos A ...e B ...provocaram ao assistente uma escoriação na região occipital com 1,2 cm, três escoriações na região frontal, de forma linear, com 1,6, 1 e 1,2 cm de comprimento, abrasão na região lombar com 12x5 cm, cinco abrasões na região dorsal com 6,2x4 cm, 7,9x4 cm, 3x3,5 cm, 2x1,4 cm e 2x9x4,7 cm, cicatriz avermelhada na face lateral direita com 1x1 cm ao nível do quinto espaço intercostal direito, ferida de forma linear na face externa do cotovelo com 1,8 cm de comprimento, abrasão na região glútea do membro inferior direito com 7x4 cm, escoriações no terço superior da face lateral externa da coxa direita, abrasão na região glútea do membro inferior esquerdo com 9x4,3 cm e escoriações na face lateral externa da coxa esquerda.
20. Tais lesões causaram mal-estar psicológico e dores ao assistente, tendo determinado, de forma directa e necessária, trinta dias para a consolidação médico-legal, dez dos quais com afectação da capacidade de trabalho geral.
21. Os arguidos quiseram provocar dores físicas e mal-estar psicológico na pessoa do assistente, bem sabendo que os provocariam, tendo em conta as zonas do corpo que procuraram e conseguiram atingir, bem sabendo que as suas condutas eram adequadas para produzir esses efeitos.
22. Os arguidos agiram de forma livre e com o propósito concretizado de privar o assistente da sua liberdade de locomoção, obrigando-o a ser transportado, contra a sua vontade, na bagageira do veículo e conduzindo-o para cima do tabuleiro da ponte de Palhais, o que representaram e quiseram.
23. Os arguidos agiram com o propósito de retirar e fazer seus os bens pertencentes ao assistente, sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade do proprietário dos referidos bens.
24. Quando abandonaram o assistente, ambos os arguidos tinham pleno conhecimento de que tinham o dever de lhe prestar assistência e não ignoravam que a omissão da mesma era proibida e punida por lei.
25. Mais sabiam os arguidos que deixavam de prestar auxílio a pessoa que do mesmo necessitava, devido aos ferimentos por ambos provocados, e que não dispunha de qualquer meio a que pudesse recorrer para solicitar auxílio.
26. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.
27. O arguido A ...é o mais novo de três irmãos, encontrando-se todos autonomizados do agregado familiar de origem.
28. O pai dos arguidos, que se encontra aposentado, exerceu actividade profissional como guarda-rios e a mãe dos mesmos dedica-se à produção e venda de queijos.
29. O arguido A ...concluiu o 9º ano de escolaridade, após o que registou alguma instabilidade comportamental que determinou a instauração de processos disciplinares e, posteriormente, a interrupção da frequência escolar.
30. Com cerca de 16 anos de idade, o arguido iniciou o seu percurso laboral, primeiro na área da construção civil e, posteriormente, numa serração, onde trabalhou durante cerca de três anos, após o que ficou desempregado.
31. O arguido A ...vive com os seus pais, na casa destes.
32. Encontra-se desempregado, tendo frequentado, no mês de Maço, um curso de formação profissional na área da marcenaria promovido pelo IEFP de Castelo Branco.
33. Por vezes, o arguido A ...presta serviços ocasionais, beneficiando ainda do apoio que lhe é prestado pelos pais ao nível da alimentação e alojamento.
34. O arguido A ...não apresenta quaisquer antecedentes criminais.
35. O arguido B ...é o segundo de três irmãos.
36. Concluiu o 6º ano de escolaridade, após o que iniciou o seu percurso laboral.
37. O arguido B ...saiu de casa dos seus pais numa altura em que ainda era menor de idade, tendo trabalhado em campanhas agrícolas em Espanha e, posteriormente, na área da construção civil em Lisboa.
38. O arguido B ...trabalhou também como sucateiro e no corte de madeira.
39. Há cerca de quatro anos concluiu um curso profissional como manobrador de máquinas, tendo obtido equivalência ao 9º ano de escolaridade.
40. O arguido B ...casou quando tinha 19 anos de idade, tendo dois filhos menores de idade.
41. Vive em casa própria com a sua esposa e com os dois filhos, suportando o pagamento do empréstimo que lhe foi concedido para aquisição de habitação.
42. O arguido B ...dedica-se ao corte de madeira e a sua esposa trabalha numa padaria.
43. Por sentença transitada em julgado a 09/07/2009, proferida nos autos de Processo Sumário n.º 57/09.9GTCTB, do Tribunal Judicial de Abrantes, o arguido B ...foi condenado na pena de 50 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de quatro meses, por ter incorrido na prática, a 02/06/2009, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
44. Por sentença transitada em julgado a 18/03/2013, proferida nos autos de Processo Sumário n.º 12/13.4GDSRT, do Tribunal Judicial da Sertã, o arguido B ...foi condenado na pena de 75 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses, por ter incorrido na prática, a 15/03/2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.


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            Factos não provados

            Após a realização da audiência de julgamento nos presentes autos, não resultaram provados quaisquer outros factos relevantes para a decisão a proferir, não se tendo demonstrado, nomeadamente:
1. A dada altura do percurso, enquanto circulavam no interior do veículo de matrícula QN (...) , o arguido A ...e o assistente desentenderam-se, envolvendo-se ambos fisicamente já fora do veículo.
2. De imediato, o arguido B ...foi em auxílio do seu irmão e começaram ambos a desferir murros e pontapés em diversas zonas do corpo do assistente.
3. Quando subtraíram os bens pertencentes ao assistente, os arguidos aproveitaram-se da situação de especial debilidade em que o mesmo se encontrava.
4. O valor dos bens identificados em 11. dos factos considerados provados é superior ao montante de € 102,00.


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            Convicção do Tribunal

            Para formar a sua convicção acerca dos factos considerados provados, o Tribunal Colectivo atendeu a toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, a cuja análise crítica e conjugada procedeu.

            De todo o modo, importa começar por esclarecer que as alegações constantes da acusação que não se encontram incluídas no elenco dos factos considerados provados, nem no elenco dos factos considerados não provados contêm apenas alusões de natureza conclusiva ou factos irrelevantes para a decisão a proferir, tendo em conta, desde logo, a extinção do procedimento criminal instaurado contra os arguidos na parte relativa aos crimes de ofensa à integridade física simples que lhes foram imputados.

            No que diz respeito aos factos considerados provados, verifica-se, em primeiro lugar, que os mesmos foram confirmados, de forma que se afigurou sincera e convicta, pelo assistente E ....

            De facto, o assistente prestou as suas declarações com alguma emoção e revolta por ter sido vítima dos factos que descreveu.

            Assim, não tendo sido detectadas quaisquer hesitações ou incongruências que comprometessem as declarações prestadas pelo assistente em sede de audiência de julgamento, não poderia deixar de lhe ser concedida credibilidade.

            Acresce ainda que, para além de terem sido descritos pelo assistente, os factos indicados em 2. a 18. do elenco dos factos provados obtiveram confirmação através dos exames periciais a cuja realização se procedeu no âmbito dos presentes autos, assim como dos demais elementos de prova recolhidos.

            Com efeito, importa começar por referir que, tal como decorre do teor da informação de serviço prestada a fls. 14 a 30, conjugada com o relatório de exame junto a fls. 68 a 83, os Inspectores da Polícia Judiciária que se deslocaram à residência do arguido B ...lograram localizar, nas proximidades da mesma, o veículo de matrícula QN (...) , onde foram recolhidos vestígios hemáticos e localizada uma carteira que continha documentos do assistente, bem como um anel pertencente ao mesmo.

            Deste modo, resultaram confirmadas as declarações prestadas pelo assistente quando garantiu ter permanecido fechado no interior da bagageira do veículo conduzido pelo arguido B ..., pois, de outra forma, não existiria explicação para a detecção dos vestígios mencionados, nem para a localização de tais bens.

            Por outro lado, resultando do teor do relatório de exame a que se aludiu que o mencionado veículo se encontrava fechado à chave, dúvidas não restam de que o mesmo se encontrava na disponibilidade do arguido B ..., por ter sido a pessoa abordado pelos Inspectores da Polícia Judiciária a quem foi facultado o acesso ao interior do veículo.

            Efectivamente, a carteira e o anel pertencentes ao assistente vieram a ser apreendidos pela Polícia Judiciária, conforme resulta do teor do auto de apreensão junto a fls. 31 a 33 dos autos, no interior do veículo de matrícula QN (...) .

            Para além do mais, o mesmo auto de apreensão confirma que, sob a ponte de Palhais, foram também apreendidas as peças de roupa e demais objectos aí discriminados, o que reitera as declarações prestadas pelo assistente quando afirmou que os arguidos lhe retiraram a roupa que trazia vestida, atirando-a pela ponte.

            De facto, tanto o porta-chaves apreendido nesse local, como os documentos que se encontravam no interior da carteira atrás indicada pertenciam ao assistente, tendo-lhe sido restituídos a fls. 113.

            Aliás, o assistente confirmou também, em audiência de julgamento, ter logrado recuperar os anéis que trazia no momento em que ocorreram os factos, sendo certo que dois deles, como decorre do teor do auto de apreensão junto a fls. 31 a 33, foram apreendidos pela Polícia Judiciária na posse do arguido A ....

            Nestes termos, é patente que ambos os arguidos estiveram em contacto com o assistente na ocasião em que ocorreram os factos.

            Por outro lado, decorre da observação das fotografias constantes do relatório de exame junto a fls. 68 a 83, assim como do teor do próprio relatório, que na ponte de Palhais, mencionada pelo assistente nas suas declarações, foram detectadas manchas de sangue, embora não tenha sido possível apurar se se tratava de sangue do próprio assistente (cfr. relatório pericial de fls. 151 a 153).

            Mais uma vez, a localização dos mencionados vestígios hemáticos confirma que, tal como foi salientado pelo assistente, no local a que se aludiu foram perpetradas agressões que provocaram ferimentos nalgum dos contendores.

            Acresce ainda que o relatório pericial junto a fls. 151 a 153 dos autos permitiu comprovar que, no veículo de matrícula QN (...) , assim como nalgumas das peças de roupa pertencentes ao arguido B ...que se encontram identificadas no relatório de exame de fls. 84 a 89, foi detectada “a presença de um perfil genético singular de origem masculina (XY), idêntico ao perfil genético da vítima E ... nos marcadores analisados”.

            Em face da infalibilidade da prova pericial a que se aludiu, é inequívoco que o assistente esteve no interior do veículo de matrícula QN (...) e que o arguido B ...esteve em contacto com o assistente durante ou após as agressões que lhe foram infligidas.

            No entanto, o assistente admitiu não saber se ambos os arguidos o agrediram ou se foi agredido apenas por um dos arguidos, acrescentando não ter memória do momento em que foi colocado no interior da bagageira do veículo de matrícula QN (...) .

            De todo o modo, a este propósito importa salientar que o assistente garantiu ter entrado no interior do mencionado veículo, sentando-se no banco traseiro, na mesma altura em que o arguido B ...se sentou no lugar do condutor e o arguido A ...ocupou o lugar ao lado deste.

            Após esse momento, o assistente apenas logrou recordar-se de ter sido retirado do interior da bagageira do veículo por ambos os arguidos.

            Ora, embora não tenha sido possível apurar as concretas circunstâncias em que ambos os arguidos fizeram deslocar o assistente do interior do veículo para o interior da bagageira, o certo é que não podem ter deixado de o fazer em conjugação de esforços.

            Na verdade, podendo o assistente encontrar-se inconsciente nessa altura, seria difícil a uma pessoa, sem qualquer colaboração, conseguir retirar o assistente do banco traseiro do veículo e levantá-lo de forma a colocar o mesmo no interior da bagageira.

            Por outro lado, o assistente garantiu recordar-se de ter sido retirado do interior da bagageira do veículo por ambos os arguidos, que o arrastaram pelo chão até ao local onde foi agredido.

            Como é bom de ver, essa actuação conjunta dos arguidos significa que os mesmos agiram em conjugação de esforços e de acordo com um plano comum a ambos.

            A ser assim, e fazendo apelo a critérios de normalidade, assim como às regras da experiência comum, não é plausível que, depois de ambos, em conjugação de esforços, terem arrastado o assistente até ao local onde o mesmo foi agredido, nessa altura apenas um dos arguidos tenha desferido os murros e pontapés atrás mencionados.

            Aliás, a própria extensão das lesões sofridas pelo assistente indicia que o mesmo foi agredido por mais do que uma pessoa.

            Assim, ainda que o assistente não se recorde dos factos atrás mencionados, não subsistem quaisquer dúvidas a respeito dos mesmos.

            Também as agressões descritas pelo assistente em sede de audiência de julgamento foram confirmadas através da prova documental e pericial produzida no âmbito dos presentes autos.

            Desde logo, os elementos clínicos juntos a fls. 57, 58, 127 e 128 confirmam que o assistente foi assistido no Hospital de Abrantes muito pouco tempo depois de ter sido localizado, apresentando lesões que se mostram compatíveis com as agressões que descreveu em sede de audiência de julgamento.

            Por outro lado, o documento junto a fls. 127 confirma que o assistente permaneceu internado até ao dia 23 de Julho de 2012, razão pela qual não poderia esse facto deixar de se considerar demonstrado.

            Para além disso, também os relatórios de perícia de avaliação do dano corporal que se encontram juntos a fls. 120 a 123, 268 a 271 e 346 a 349 demonstram as lesões sofridas pelo assistente nos moldes descritos em 19., assim como os períodos de doença e de incapacidade para o trabalho a que se alude em 20..

            Por fim, importa apenas acrescentar que a identificação do proprietário do veículo de matrícula QN (...) decorreu da análise do documento junto a fls. 61, embora não deixe de se salientar que o mencionado veículo, como foi constatado pela entidade policial competente no decurso da diligência documentada a fls. 14 e seguintes, estava na posse do arguido B ....

            Relativamente às circunstâncias em que o assistente veio a ser localizado pela testemunha D ..., assim como ao estado em que se encontrava nessa altura, assumiram relevo não só as declarações pelo mesmo prestadas, como também o depoimento da citada testemunha.

            Na verdade, a testemunha D ... confirmou que o assistente apresentava ferimentos na cabeça, caminhando com muita dificuldade, quando o encontrou na estrada, ao fim do dia.

            Tendo em conta que a testemunha citada prestou um depoimento que se revelou desinteressado, consistente e coerente, não poderia deixar de lhe ser concedida credibilidade.

            Em face do exposto, conjugando todos os elementos de prova mencionados, não subsistem quaisquer dúvidas a respeito dos factos descritos sob os números 2. a 20. do elenco dos factos considerados provados.

            Os elementos de identificação constantes dos presentes autos relativamente aos arguidos permitiram confirmar que os mesmos são irmãos, sendo certo que as declarações prestadas pelo assistente revelaram que todos residem na mesma localidade.

            Assim, não poderia deixar de se considerar demonstrado o facto indicado em 1. dos factos provados.

            Apreciando os factos praticados pelos arguidos à luz das regras da experiência comum, é manifesto que os mesmos actuaram com o propósito de provocar dores e mal-estar psicológico ao assistente, assim como de o privar da sua liberdade de locomoção.

            Com efeito, qualquer pessoa que execute factos idênticos aos que resultaram provados no âmbito dos presentes autos não poderá ter outra intenção que não seja a mencionada.

            Para além disso, tendo subtraído a carteira, os telemóveis e os anéis que o assistente tinha em seu poder, dúvidas não restam de que os arguidos actuaram com o propósito de se apropriar desses bens, tanto mais que dois dos anéis em causa vieram a ser apreendidos na posse do arguido A ...(cfr. auto de apreensão de fls. 31 a 33).

            Acresce que os arguidos não poderiam ignorar que o assistente apresentava ferimentos que careciam de assistência médica e que o abandonavam em circunstâncias que inviabilizavam o recurso a qualquer meio que lhe permitisse solicitar o auxílio de terceiros.

            Já os factos referentes às condições pessoais, económicas e sociais de cada um dos arguidos resultaram provados com base na análise do teor dos relatórios sociais que se encontram juntos a fls. 555 a 558 e 561 a 564 dos autos.

            No que diz respeito à ausência de antecedentes criminais por parte do arguido A ..., assim como aos antecedentes criminais apresentados pelo arguido B ..., o Tribunal Colectivo atendeu aos CRC’s de fls. 503 a 510.

            A decisão proferida a propósito dos factos considerados não provados ficou a dever-se à circunstância de não ter sido produzida prova suficientemente consistente, de forma a fundamentar a formulação do juízo de certeza necessário nesta fase processual.

            Com efeito, decorre do que já foi mencionado que o assistente não logrou recordar-se de ter sido agredido pelos arguidos em momento anterior àquele em que foi pelos mesmos retirado do interior da bagageira do veículo de matrícula QN (...) e arrastado até à ponte de Palhais.

            Não deixará de se salientar que a circunstância de terem sido recolhidos vestígios de sangue pertencente ao assistente no mencionado veículo revela que o mesmo já teria sido agredido em momento anterior ao mencionado.

            De todo o modo, a prova produzida em audiência de julgamento não permitiu apurar se o foi nas concretas circunstâncias indicadas em 1. e 2. dos factos considerados não provados, razão pela qual não poderiam esses factos ser incluídos no elenco dos factos provados.

            Por outro lado, embora resulte do que já foi mencionado que os arguidos subtraíram os bens pertencentes ao ofendido depois de o terem agredido, o certo é que não foi produzida prova que revele terem os mesmos aproveitado a situação de debilidade em que o assistente se encontrava para conseguirem subtrair-lhe os bens mencionados.

            Por fim, importa apenas acrescentar que a prova produzida em sede de audiência de julgamento não revelou que o valor dos bens subtraídos ao assistente ultrapasse a quantia correspondente a uma unidade de conta.

            Com efeito, o próprio assistente atribuiu a dois dos anéis que lhe foram subtraídos o valor de € 3,00 e ao terceiro anel que lhe foi retirado o valor de € 30,00.

            Para além disso, o assistente acrescentou que a carteira subtraída pelos arguidos valeria € 3,00, tendo um dos telemóveis sido adquirido por € 40,00 e o outro por € 50,00.

            Acontece que, como decorreu também das declarações prestadas pelo assistente, os mencionados telemóveis tinha sido por si adquiridos há cerca de um ano, razão pela qual é patente que o respectivo valor seria já bastante inferior ao preço de aquisição dos mesmos.

            Nestes termos, não tendo sido apurado o concreto valor de cada um dos bens a que se aludiu, ficou por demonstrar que os mesmos atingissem valor global superior a € 102,00.


***

            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.

Vistas as conclusões dos recursos, as questões a apreciar são as seguintes:

Recurso do Ministério Público:

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto devendo esta ser alterada nos termos pugnados pelo recorrente com a consequente condenação dos arguidos pelo crime de furto na forma qualificada tal como fora imputado na acusação.

Recurso dos arguidos:

- Se a sentença recorrida padece dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.

- Se a factualidade provada não integra a circunstância qualificativa do crime de sequestro prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 158º do Código Penal, devendo os arguidos ser condenados por crime de sequestro simples;

- Se as penas em que os arguidos foram condenados devem ser reduzidas.

Da impugnação da matéria de facto (recurso do Ministério Público)

Alega o recorrente a existência de erro de julgamento da matéria de facto no que concerne essencialmente ao valor dos bens furtados, peticionando que do ponto 11 dos factos provados que descreve os bens furtados passe a constar um relógio e que o ponto 4 dos factos não provados, no sentido de que o valor dos bens provados excedia uma unidade de conta, seja eliminado e aditado facto “o assistente avaliou os anéis furtados em cerca de 10,00 €, o relógio em 40,00 € e os telemóveis, um em 40,00 € e outro em 50, 00 €”, tudo em conformidade com as declarações prestadas pelo assistente.

Por via de tal alteração factual pretende que os arguidos sejam condenados pela prática de um crime de furto qualificado previsto no artigo 204º, nº 1, alínea d) do Código Penal como constava imputado na acusação.

Em primeiro lugar cabe esclarecer que embora na acusação se imputasse aos arguidos a autoria do referido crime de furto qualificado nada constava dessa peça processual sobre o valor dos bens furtados, como igualmente nada constava sob o furto de um relógio, sendo certo que no decurso da audiência de julgamento não foi dado cumprimento ao disposto ao artigo 358º do Código de Processo Penal, o que seria pressuposto para a adição da factualidade que agora se pretende.

Por outro lado, o aditamento que o recorrente pretende sobre o valor dos bens furtados sempre seria irrelevante para a qualificação jurídica a efectuar porque o que o recorrente propõe é que se consigne o valor que o assistente atribuiu aos bens que lhe foram furtados, quando o valor relevante é o seu valor efectivo que não coincide necessariamente com aquele.

E porque assim, também facilmente se constata a inexistência do apontado erro de julgamento quando o Tribunal a quo não se bastou com as declarações do assistente para atribuir um determinado valor aos bens, como resulta do seguinte trecho “Por fim, importa apenas acrescentar que a prova produzida em sede de audiência de julgamento não revelou que o valor dos bens subtraídos ao assistente ultrapasse a quantia correspondente a uma unidade de conta.

Com efeito, o próprio assistente atribuiu a dois dos anéis que lhe foram subtraídos o valor de € 3,00 e ao terceiro anel que lhe foi retirado o valor de € 30,00.

Para além disso, o assistente acrescentou que a carteira subtraída pelos arguidos valeria € 3,00, tendo um dos telemóveis sido adquirido por € 40,00 e o outro por € 50,00.

Acontece que, como decorreu também das declarações prestadas pelo assistente, os mencionados telemóveis tinha sido por si adquiridos há cerca de um ano, razão pela qual é patente que o respectivo valor seria já bastante inferior ao preço de aquisição dos mesmos.

Expõe o Tribunal a quo raciocínio estritamente fundado nas regras da experiência a que o recorrente nada contrapõe, como deveria se, fundadamente, pretendia que tal convicção fosse substituída por outra.

Verifica-se ainda que o recorrente convoca o disposto no artigo 410º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal como norma que se refere ao erro de julgamento da matéria de facto. Trata-se de manifesta confusão de conceitos porque o preceito invocado se refere ao erro notório na apreciação da prova, ou seja, ao que é patente em face do próprio texto da decisão recorrida, sem apelo ao conteúdo da prova, enquanto o fundamento de recurso em causa – erro de julgamento da matéria de facto – tem assento legal no artigo 412º, nºs 3 e 4 do mesmo diploma e diz respeito àquele que não se evidenciado do texto da decisão recorrida, apenas é constatável através do conteúdo concreto da prova produzida.

Em suma não se reconhece no caso a existência de erro de julgamento da matéria de facto.

Dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (recurso dos arguidos)

Os arguidos alegam na conclusão 13ª que se mostra violado o artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal.

Tal normativo refere-se a vícios da decisão recorrida que podem fundamentar recurso, não sendo a decisão recorrida susceptível de violar esse normativo, mas antes de padecer dos vícios aí contemplados.

Embora invocando o preceito, na verdade os recorrentes não configuram a existência dos apontados vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que ocorre quando os factos provados são insuficientes para a decisão de direito proferida por ter ocorrido lacuna no apuramento factual e de erro notório na apreciação da prova que tem o conteúdo já acima assinalado.

Com efeito os recorrentes apenas fundam o seu recurso em questões de direito, aparecendo a referência ao artigo 410º descontextualizada.

Não obstante sempre deverá ser afirmado que a decisão recorrida está isenta de qualquer dos vícios a que se refere o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal e que a matéria de facto provada se encontra definitivamente assenta.

Ainda no que respeita ao recurso do Ministério Público, e depois de afastada a existência dos referidos vícios, importa concluir que deve manter-se quer a matéria de facto relativa ao imputado crime de furto, quer a qualificação jurídica efectuada na decisão recorrida.

Do crime de sequestro (recurso dos arguidos)

Entendem os recorrentes/arguidos que os factos provados não revelam que praticaram na pessoa do assistente crime de sequestro agravado pela ocorrência de ofensa à integridade física grave ou actos de tortura ou tratamento cruel e desumano.

Pretendem, pois, a desqualificação do crime e a sua condenação pela prática de crime de sequestro simples.

Está em causa a circunstância agravante prevista no artigo 158º, nº 2, alínea b) do Código Penal “privação da liberdade precedida ou acompanhada de ofensa à integridade física grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano”.

A decisão recorrida não oferece qualquer dúvida no sentido de haver integrado a conduta dos arguidos na categoria de “tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano”.

Elucidativas nesse sentido são as seguintes passagens: 

Quanto à circunstância “tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano”, abrange toda uma multiplicidade de violências (excluídas as ofensas corporais graves) ou sofrimentos físicos ou psíquicos. De acordo com o art. 243º-3, pode considerar-se “tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano, o acto que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave, ou no emprego de produtos químicos, drogas ou outros meios, naturais ou artificiais”. Exemplos: encerrar a vítima num armário, separar a criança da mãe (ambas sequestradas), dizer ao pai sequestrado que o seu filho já foi morto, cuspir na cara, etc.”.

(…)

No que respeita à circunstância agravante do crime de sequestro imputado aos arguidos, é também inequívoco que o modo de actuação atrás descrito revela especial crueldade e desprezo pela dignidade humana, integrando, portanto, o conceito de tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano.

De facto, os arguidos começaram por colocar o assistente no interior da bagageira do veículo de matrícula QN (...) , após o que o arrastaram pelo chão e o agrediram, nos moldes atrás mencionados, tendo-lhe retirado todas as peças de roupa que o mesmo trazia vestidas.

Acrescentamos, aliás, que além do referido, também os arguidos atiraram o assistente de uma ponte para o chão, como se consigna na factualidade provada.

Como decorre do ensinamento doutrinário de Taipa de Carvalho, em anotação ao artigo 358º em Comentário Conimbricense do Código Penal (citado na decisão recorrida) bastaria a circunstância de o assistente ter sido encerrado dentro da bagageira do carro para que pudesse integrar-se o conceito de tratamento desumano.

Com efeito, merece a integração em tal conceito toda a actuação que, para além da privação da liberdade constitua uma séria ofensa à dignidade da pessoa humana e que exceda o meio mínimo necessário para levar a cabo a privação da liberdade.

Desde o encerramento do assistente num exíguo espaço fechado e escuro de um veículo em movimento, até à sua libertação nu, depois de arrastado, espancado e atirado para debaixo de uma ponte, temos uma sucessão de actos que atentam gravemente contra a dignidade da pessoa humana e que sem qualquer hesitação merecem a qualificação de tratamento cruel e desumano.

Importa por consequência concluir que a qualificação jurídica efectuada na decisão recorrida não merece qualquer censura, importando mantê-la.

Das penas (recurso dos arguidos)

Entendem os recorrentes que as penas aplicadas de quatro anos de prisão pelo crime de sequestro e de 120 dias de multa pelo crime de furto devem ser reduzidas.

O crime de sequestro é punível com pena de prisão de 2 a 10 anos e ao crime de furto corresponde moldura de multa de 10 a 360 dias.

O Tribunal a quo na concretização dos critérios legais de doseamento das penas constantes dos artigos 40º e 71º do Código Penal mencionou o seguinte:

A este respeito, dir-se-á, em primeiro lugar, que a intensidade do dolo revelado pelos arguidos é elevada, já que os mesmos agiram com dolo directo.

Por outro lado, o grau de ilicitude dos factos afigura-se menos intenso no que diz respeito ao crime de furto, tendo em conta que o valor dos bens subtraídos será bastante reduzido.

Ao invés, o modo de execução do crime de sequestro agravado revela um grau de ilicitude elevado, atendendo, por um lado, ao longo período de tempo durante o qual o assistente permaneceu privado da sua liberdade de locomoção.

Por outro lado, o facto de os arguidos não só terem colocado o assistente no interior da bagageira de um veículo como, em momento posterior, terem subtraído as roupas que o mesmo trazia vestidas revela elevado desprezo pela dignidade da pessoa humana.

Acresce ainda que os arguidos actuaram em conjugação de esforços, encontrando-se numa situação de superioridade numérica relativamente ao assistente, o que inviabilizaria qualquer tentativa de defesa que o mesmo pudesse encetar.

Por outro lado, decorre da fundamentação de facto que antecede que o assistente sofreu lesões físicas e considerável abalo psicológico em consequência dos factos praticados pelos arguidos.

Em todo o caso, não deixará de se considerar também que os arguidos estão socialmente inseridos e assumiram já, em sede de transacção celebrada nos presentes autos, a obrigação de compensar o assistente pelos danos que lhe foram causados em consequência dos factos que se encontram em apreciação.

Para além disso, dir-se-á ainda que, embora o arguido B ...apresente já antecedentes criminais, contrariamente ao que sucede relativamente ao arguido A ..., o certo é que os mesmos respeitam à prática de crimes cuja natureza nada tem a ver com a dos crimes que lhe foram imputados nestes autos.

Assim, afigura-se que essa circunstância não justifica a aplicação de penas distintas a cada um dos arguidos, tanto mais que a factualidade considerada provada revela que a intervenção dos arguidos na execução dos factos foi idêntica.

Como se encontra acentuado, estamos perante grau de ilicitude elevado quer do ponto de vista do desvalor da acção, quer do resultado no que respeita ao crime de sequestro, o grau de culpa dos arguidos é igualmente elevado, tendo revelado nos factos praticados elevado desprezo pela dignidade da pessoa humana. Não fora as restantes circunstâncias de algum peso atenuante devidamente salientadas na decisão recorrida e as penas a aplicar teriam de se situar num patamar manifestamente superior. O que se pode dizer das penas fixadas é que se limitaram ao mínimo indispensável à satisfação das necessidades de prevenção geral, de grau elevado sempre que estão em causa crimes que atentam de forma grave contra bens de natureza pessoal.

Quanto às penas correspondentes ao crime de furto e não descurando as circunstâncias do seu cometimento que traduzem um elevado desvalor da acção, também é patente que se mostram doseadas com proporcionalidade.

Devem, por consequência, ser mantidas as penas aplicadas.      


***

IV. Decisão

Nestes termos acordam em negar provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelos arguidos, mantendo o acórdão recorrido.

Pelo seu decaimento em recurso condenam os arguidos em custas, fixando a taxa de justiça devida por cada um em quatro UC.

Quando ao recurso do Ministério Público não há lugar a tributação por dela estar isento.


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Coimbra, 27 de Janeiro de 2016

(Texto elaborado e revisto pela relatora; a primeira signatária)


(Maria Pilar de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Martins - adjunto)