Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1679/10.0T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO DO RECURSO
Data do Acordão: 06/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – AVEIRO- JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional:
ARTIGOS 63º, 64º E 65º DO RGCO
Sumário: 1.- Com o recurso de impugnação da decisão administrativa não é todo o processo que se converte em acusação, mas apenas a decisão administrativa;
2.- Fora das situações previstas no artº 63º nº 1 do RGCO o Juiz não pode rejeitar o recurso de impugnação judicial;
3.- Caso não ocorra nenhuma dessas circunstâncias, o recurso não pode deixar de ser recebido, decidindo-se em audiência de julgamento, ou por simples despacho se a decisão administrativa impugnada deve manter-se, ou ser revogada.
Decisão Texto Integral:        Relatório

            Por decisão da Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade, proferida em 8.4.2010, no processo de contra-ordenação n.º 5212/2007, foi a arguida “MMM…, Lda ”, condenada, pela prática de uma contra-ordenação, por não facultar o livro de reclamações, p. e p. nos termos dos artigos 3.º, n.º1, al. b) e 9.º, n.º1, al. a), do Dec.Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, na coima de € 5.000,00 e respectivas custas no montante de € 300,00

A arguida “MMM…, Lda ”, apresentou recurso de impugnação judicial da decisão da Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade, concluindo pela sua absolvição ou, caso assim não se entenda, que lhe seja aplicada uma simples admoestação.

Recebido o processo na Comarca do Baixo Vouga, Aveiro – Juízo de Média Instância Criminal – Juiz 2, o Ex.mo Juiz, por despacho de 13 de Dezembro de 2010, admitiu o recurso de contra-ordenação e, em seguida, como questão prévia, e no mesmo despacho, decidiu rejeitar a acusação/decisão de folhas 38 a 41v,  e determinar o oportuno arquivamento dos presentes autos. 

            Inconformado com o despacho de 13 de Dezembro de 2010, dele interpôs recurso para o Ministério Público, para o Tribunal da Relação, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

I- A omissão do cumprimento do preceituado no art.64.º, n.º 2 do RGCOC, por parte do Mmo Juiz, consubstancia uma nulidade insanável – cfr. art.119.º, al. f) do Cód. Proc. Penal.

II- Da decisão da Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade, de fls. 38 e ss. dos autos, constam todos os elementos – objectivos e subjectivos – necessários à imputação da infracção contra-ordenacional ora em apreço, não padecendo, tal decisão administrativa, de qualquer vício que ponha em causa a sua validade formal.

Termos em que Vossas Excelências, julgando procedente o presente recurso e , em consequência, revogando o despacho recorrido e substituindo-o por outro que determine o cumprimento do disposto no art.64.º do RGCOC, farão Justiça.

            A arguida respondeu ao recurso pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

            O Ex.mo Juiz proferiu despacho de sustentação da decisão recorrida.

            A Ex.ma Procuradora-geral adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.

            Cumprido o disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal respondeu a arguida voltando a sustentar que a decisão recorrida deve ser mantida.  

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            O despacho recorrido tem o seguinte teor:

            «Porque tempestivamente apresentado e obedecer ao formalismo legal, admito o recurso de impugnação judicial apresentado, a fls. 48 a 66, pela arguida MMM…, Lda.

                A. como recurso de contra-ordenação.

                QUESTÃO PRÉVIA:

                Nestes autos de recurso de contra-ordenação constata-se que, em 08/04/2010, pela Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade, foi proferida a decisão de fls. 38 a 41vº, por via da qual foi aplicada à arguida a coima de €5.000, em virtude desta ter praticado os seguintes factos:

      “no dia 14 de Julho de 2007. pelas 11,00 horas. foi constatado e recolhido em auto de notícia a fls. 3, por uma patrulha da GNR, que a sociedade arguida MMM…,LDA, no seu estabelecimento de venda de automóveis, comercialmente denominado por "Mazda", o qual se encontrava em pleno funcionamento,  quando lhe foi solicitado o livro de reclamações pelo consumidor NG..., o mesmo foi-lhe recusado, tendo para o efeito solicitado a presença da autoridade policial a fim de remover a recusa, já no local a patrulha autuante apurou que, o livro não tinha sido facultado, por o funcionário da firma desconhecer o local onde o mesmo se encontrava, após contacto com um gerente da firma o livro foi facultado e o consumidor redigiu a reclamação.”

                Cumpre apreciar e decidir ao abrigo do preceituado no art. 64° do D.L. nº 433/82, de 27 de Outubro (diploma a que se reportarão as demais disposições legais sem expressa menção de origem).

                O D.L. nº 232/79, de 24-07 introduziu no nosso país o chamado "direito das contra-ordenações" ou "direito de ordenação social", autonomizando substantiva e processualmente tal ramo do direito em face do direito penal (clássico). Seguindo a orientação dada por aquele diploma inovador, o DL nº 433/82, de 27 de Outubro (com as entretanto introduzidas pelo DL nº 244/95, de 14 de Setembro) regula actualmente o igualmente denominado "ilícito de mera ordenação social".

                Não obstante a sua menor (ou até nula, segundo alguns) relevância ética, essa zona de ilicitude não deixa de constituir "espaço jurídico-repressivo", segundo a expressão de Costa Andrade (in Contributo Para o Conceito de Contra-Ordenação", RDE, 6/7 (1980/1981), pag. 86). Por isso vigora inelutavelmente em tal âmbito o princípio da legalidade (cfr. art. 2º).

                Desse modo resulta com naturalidade que o respectivo processamento se revista de garantias processuais bastante próximas das consagradas no processo criminal. Para além disso, o próprio conceito de infracção contra-ordenacional (contra-ordenação) assemeIha-se ao conceito de infracção recortado no Código Penal - "constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima" -cfr. art. 1º. Daqui se pode observar também que no domínio contra-ordenacional vigora o princípio da tipicidade.

                Acentuando tal ideia-força dispõe o art. 32° nº 10 da C.R.P. que "nos processos de contra-ordenação (...) são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa". Não admira, pois, a possibilidade de "recurso" judicial das decisões tomadas pelas entidades administrativas competentes para o processamento destas infracções - cfr. art. 59° nº 1

                Porém, as aludidas garantias de defesa só estarão plenamente asseguradas quando, além do mais, a decisão condenatória respeitar os requisitos postulados no art. 58°, semelhantes aos previstos no processo penal para o libelo acusatório ( cfr. art. 283°, nº 3 do C.P.P.). E como a apresentação dos autos em juízo pelo Ministério Público vale como acusação (cfr. art. 62° nº 1), a sanção da omissão de tais requisitos determina inelutavelmente o arquivamento do processo (pois as outras duas opções previstas no art. 64° nº 3 - a absolvição do arguido e a manutenção ou alteração da condenação - pressupõem o conhecimento de mérito, inexistente na presente hipótese, sendo ainda certo que o regime das nulidades - quer da sentença, quer da acusação penais - é inaplicável na presente hipótese, como refere Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina Coimbra, 2ª ed. pag 105).

                Desta forma, e analisando a decisão condenatória de fls. 38 a 41vº - que, repita-se, apresenta o valor de acusação -, facilmente se constata que a descrição dos factos imputados se revela por demais insuficiente.

                E é insuficiente porque a infracção contra-ordenacional para ser punida pressupõe a imputação do facto ao agente a título de dolo ou negligência. Com efeito, dispõe o nº 1 do art. 8º que: "Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência".

                Os factos versados na acusação, e atrás descritos, por si sós, não levam a integrar a conduta da arguida na previsão da contra-ordenação para que a arguida pudesse ser punida.

                São alegados, naquela decisão/acusação, tão só factos materiais, factos objectivos e de puro resultado. E não são alegados quaisquer factos tendentes a demonstrar a forma de imputação (se é que existe) dolosa ou negligente à arguida - factos esses omitidos.

                Há que considerar que uma censura ou advertência, mesmo de carácter social, supõe também uma imputação subjectiva.

                Para que a arguida fosse submetida a julgamento, e neste viesse a ser condenada, seria necessária a prova (para além dos factos referidos na decisão/acusação) que a arguida, obviamente através dos seus orgãos ou representantes, pelo menos, por não proceder com o cuidado a que estivesse obrigada e de que era capaz, tivesse representado como possível a realização do facto integrador de uma contra ordenação e, não obstante, tivesse actuado ou devesse ter actuado, independentemente de se conformar com essa realização. Seria esta uma situação que, em termos fácticos, teria que ser alegada por forma a configurar, ao menos, a negligência - e foi omitida no elenco dos factos provados da acusação/decisão.

                Ora, na acusação, como atrás dissemos, apenas faz referência ao resultado. E o direito contra-ordenacional não se basta com mera responsabilidade objectiva, antes assenta no primado da culpa do arguido.

                Faltam assim na acusação elementos essenciais - o dolo ou a negligência - para a verificação da contra-ordenação imputada à arguida.

                Assim, e do modo como está deduzida a acusação, da mesma não resulta a imputação à arguida de todos os elementos constitutivos do tipo legal da contra-ordenação por que está acusada, necessários para, em julgamento, vir a ser aplicada à mesma uma coima (cfr. art. 285º, conjugado com o disposto no art. 283 nº 2 do CPP, ambos estes artigos aplicáveis com as necessárias adaptações "ex vi" do art. 41º do DL nº 433/82).

                Dir-se-á ainda que, em processo penal e contra-ordenacional - diferentemente do que acontece no processo civil, no que toca á petição inicial - não há lugar a qualquer despacho de convite ao aperfeiçoamento da acusação.

                Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se em rejeitar a acusação/decisão de fls. 38 a 41vº e, em consequência, determinar o oportuno arquivamento dos presentes autos.»

                                                                                                *
                                                                         *
                                                  
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do Ministério Público a questão a decidir é a seguinte:

- se a omissão do cumprimento do preceituado no art.64.º, n.º 2 do RGCOC, por parte do Mmo Juiz, consubstancia uma nulidade insanável, nos termos do art.119.º, al. f) do C.P.P., e  a decisão administrativa de fls. 38 e ss. dos autos, contém todos os elementos objectivos e subjectivos necessários à imputação da infracção contra-ordenacional ora em apreço, pelo que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine o cumprimento do disposto no art.64.º do RGCOC.

            Passemos ao conhecimento da questão.

A introdução do Direito de Mera Ordenação Social no sistema jurídico português, através do DL n.º 239/79, de 24 de Julho - posteriormente substituído pelo DL n.º 433/82, de 27 de Setembro -, tem subjacentes preocupações de natureza politico-criminal que se centralizam na afirmação de que aquele novo ramo do sistema sancionatório público « estaria vocacionado para dar atenção a certas áreas de intervenção de que, nomeadamente pela sua componente social », o Estado « se não podia alhear, como a tutela do ambiente, aspectos diversos da economia nacional ou uma intervenção preventiva na área dos direitos dos consumidores.». Tratar-se-iam de áreas « carentes de tutela jurídica de carácter sancionatório e finalidades preventivas nas quais, de acordo com as valorações então dominantes, não se justificava uma resposta penal, já então orientada para uma intervenção de ultima ratio, conforme apontava o disposto no artigo 18.º, n.º2, da Constituição de 1976[4].

A autonomia do Direito de Mera Ordenação Social face ao Direito Penal vai-se materializar em soluções de natureza substantiva e processual diversas das vigentes para este direito.

Pese embora o reforço de aproximação do Direito de Mera Ordenação Social ao Direito Penal e Direito Processual Penal que se faz sentir com as sucessivas alterações ao RGCOC aprovados pelo DL n.º 433/82, e a que não serão alheias as elevadas coimas e sanções acessórias previstas no direito contra-ordenacional, as linhas de estrutura do processo de contra-ordenação subsistem.

No âmbito do processo de contra-ordenação costuma falar-se em duas fases de natureza distinta: uma fase administrativa do processo e uma fase judicial.

A primeira fase processual, decorre sob a direcção de uma autoridade administrativa. Começa pela notícia da infracção e, após investigação e instrução, culmina com uma decisão propriamente dita, que pode ser de arquivamento ou condenatória.

O art.58.º do RGCOC, estabelece os requisitos a que deve obedecer a decisão administrativa condenatória.

De acordo com este art.58.º, n.º1, «A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

      a) A identificação dos arguidos;

      b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;

      c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

     d) A coima e as sanções acessórias.».

É pacífico que a fase administrativa do processo de contra-ordenação tem como características, a celeridade e a simplicidade processual e, daí, que o dever de fundamentação tenha uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal.

« O que de qualquer forma deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e direito que levaram à sua condenação, possibilitando ao arguido um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial permitir ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa. Tal percepção poderá resultar do teor da própria decisão ou da remissão por esta elaborada[5].

A segunda fase do processo de contra-ordenação, chamada de fase judicial, inicia-se com o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa, designando um conjunto de actos processuais que vão da interposição do recurso à decisão do mesmo nos tribunais ( art.62.º e seguintes do RGCOC).

Interposto recurso de impugnação judicial os autos são enviados ao Ministério Público, « que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação ».( art.62.º, n.º 1 do RGCOC). Há jurisprudência que interpreta este preceito no sentido de que a “acusação” é todo o processo e que “ os actos passíveis de apreciação pelo tribunal são os que resultam de todo o processo[6] , ou dito de outro modo, que “ a acusação se plasma no conjunto do processo administrativo[7].

Pese embora a lei mencione que a remessa dos autos ao Ministério Público vale como acusação, entendemos que com o recurso de impugnação da decisão administrativa não é todo o processo que se converte em acusação, mas apenas a decisão administrativa.  

Como refere o Dr. Manuel Ferreira Antunes “ Quando o recorrente interpõe o recurso, ainda não há acusação, mas , logo que o recurso seja introduzido em juízo, tudo se passa como se , desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse a acusação […]. Na verdade, com a interposição do recurso, a decisão condenatória transforma-se na acusação.”[8].   

Neste sentido, também o STJ no “Assento n.º1/2003”, refere que « …a decisão administrativa de aplicação de uma coima só virtualmente constituirá uma “condenação”, pois que, se impugnada, “tudo se como se , desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse a acusação.”[9].

Nos termos do art.63.º, n.º1, do RGCOC, « O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma.».

As exigências que determinam a rejeição do recurso, a que alude este preceito, são as indicadas no art.59.º, n.º 3, do mesmo diploma: « o recurso é feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de vinte dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões.”. 

Fora destas duas situações o Juiz não pode rejeitar o recurso de impugnação judicial.

O art.65.º do RGCOC, estatui que « Ao aceitar o recurso o juiz marca a audiência, salvo o caso referido no n.º 2 do artigo anterior.».

A audiência de julgamento assegura todas as garantias de defesa e de realização da justiça, uma vez que aí é aplicado com toda a sua amplitude o princípio do contraditório.

O art. 64.º, do RGCOC, estabelece, por sua vez, designadamente, o seguinte:

« 1. O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.

     2. O juiz decide por despacho quando não considere necessário a audiência de julgamento e o arguido e o Ministério Público não se oponham.

     3. O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou alterar a condenação

Resulta do exposto que sendo o recurso feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de vinte dias após o seu conhecimento pelo arguido, com alegações e conclusões, deve o recurso de impugnação judicial ser admitido.

Sendo aceite o recurso, o juiz deve obrigatoriamente marcar audiência, salvo se o juiz tiver como verificados dois requisitos cumulativos:

- não considerar necessária a audiência de julgamento;  e

- o arguido e o Ministério Público não se tiverem oposto à decisão do recurso por despacho.

O acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20 de Maio de 1997, decidiu que “ se ao direito de audiência do arguido passou a ser conferível dignidade constitucional, a postergação de tal direito só tem protecção adequada se tal omissão se considerar nulidade insanável, tal como sucede com a ausência do arguido nos casos em que a lei exige a respectiva comparência. – art.119.º c) do CPP.” [10]

Os hoje Conselheiros do STJ, António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, sustentam que “ Caso o MºPº ou o arguido se oponham à decisão através de despacho o processo contra-ordenacional necessariamente terá que comportar a audiência. Assim, se não obstante, a oposição formulada, o juiz decide através de despacho comete-se uma nulidade que, em nosso entendimento, se perfila como integrante do art.120.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, por aplicação do art.41.º ”.[11]  

No caso em apreciação, o Ex.mo Juiz começou por admitir o recurso de impugnação judicial interposto pelo arguido.

Pese embora quer o recorrente, quer o Ministério Público tenham arrolado prova testemunhal, o Ex.mo Juiz, sem haver dado cumprimento ao disposto no art.64.º, n.º2 do RGCOC,  invocando uma “questão prévia”, por alegadamente os factos dados como provados na decisão administrativa não preencherem todos os elementos constitutivos da contra-ordenação imputada à arguida, determinou o arquivamento dos autos.

Salvo o devido respeito, não concordamos com o despacho recorrido.

A decisão administrativa condenatória, que se transformou em acusação, contém não só os elementos objectivos, mas ainda os elementos subjectivos da contra-ordenação imputada à arguida “MMM…, Lda ”.

Do ponto III da acusação constante de folhas 38 a 41 verso, sob a epigrafe “Factos provados, indicação das provas e sua apreciação, nos termos do art.58.º do RGCO” , não consta apenas a parte reproduzida no despacho recorrido:

- « no dia 14 de Julho de 2007. pelas 11,00 horas. foi constatado e recolhido em auto de notícia a fls. 3, por uma patrulha da GNR, que a sociedade arguida MMM…, LDA, no seu estabelecimento de venda de automóveis, comercialmente denominado por "Mazda", o qual se encontrava em pleno funcionamento, quando lhe foi solicitado o livro de reclamações pelo consumidor NG..., o mesmo foi-lhe recusado, tendo para o efeito solicitado a presença da autoridade policial a fim de remover a recusa, já no local a patrulha autuante apurou que, o livro não tinha sido facultado, por o funcionário da firma desconhecer o local onde o mesmo se encontrava, após contacto com um gerente da firma o livro foi facultado e o consumidor redigiu a reclamação.»

Consta ainda da decisão administrativa, transformada toda ela em acusação, designadamente:

- « a sociedade arguida bem sabia que estava obrigada por lei a facultar imediatamente o livro de reclamações quando solicitado, sabia ainda que, ao não facultar aquele livro estava a limitar um direito dos consumidores e com isso violava a Lei, contudo, prosseguiu a sua actividade conformando-se com a infracção em que incorreu e com o resultado que ela produziu, agindo de livre vontade, consciente e deliberadamente.”.

Já na parte “Da aplicação do Direito” , da mesma decisão administrativa consignou-se que se verifica a “culpa subjacente aos factos” , pois « a sociedade arguida conhecia as regras que estabelecem a obrigatoriedade de facultar de imediato o livro de reclamações por todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral, no entanto nada fez para obviar aquela situação.».   

Constando da acusação todos os elementos constitutivos da contra-ordenação imputada à arguida, não podia o Ex.mo Juiz rejeitar a mesma acusação e ordenar o arquivamento dos autos.

Cremos, aliás, que a subsunção ao direito, dos factos dados como imputados à arguida na acusação/decisão administrativa, ou seja, a decisão de que os factos descritos na decisão administrativa/acusação não preenchem todos os elementos constitutivos da contra-ordenação,  não constitui uma “questão prévia” ao conhecimento do recurso de impugnação judicial.

O Ex.mo Juiz ao subsumir ao direito os factos imputados na acusação à arguida, e ao concluir que são insuficientes para a sua condenação, conheceu do mérito da causa, pois a verificação dos respectivos elementos constitutivos da contra-ordenação é objecto do recurso de impugnação judicial por parte da arguida.

Tendo sido aceite o recurso de impugnação judicial, a lei exigia que antes de se decidir o recurso de impugnação, o Ex.mo Juiz devia notificar a arguida e o Ministério Público para dizerem se se opõem ou não a que a decisão seja proferida por despacho.

No caso em apreciação, não tendo a arguida e o Ministério Público renunciado à realização da audiência de julgamento, não se verifica o segundo dos requisitos a que alude o n.º2 do art.64.º do RGCOC, para poder ser proferido o despacho recorrido.

A ausência de declaração de não oposição da arguida e do Ministério Público para permitir a decisão do recurso por despacho, com a consequente não marcação de audiência de julgamento, e não exercício do contraditório, constitui, quanto a nós, uma omissão de diligência que pode reputar-se essencial para a descoberta da verdade.

Não tendo sido asseguradas as garantias dos vários sujeitos processuais, designadamente do recorrente, que não foi notificado para declarar a sua não oposição a que o recurso seja decidido por despacho judicial, nem fez tal declaração, verifica-se a nulidade prevista no art.120.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do Código de Processo Penal.

Tendo a nulidade sido arguida tempestivamente, impõe-se declarar a nulidade da decisão recorrida.

Padecendo a decisão recorrida de nulidade e não se verificando qualquer questão prévia que obsta à apreciação do mérito da causa, não pode manter-se a decisão de rejeição da acusação e arquivamento dos autos.

           Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e revogar o douto despacho recorrido, que deve ser substituído por outro ordenando o prosseguimento dos autos.

            Sem custas.

                                                                         *

Orlando Gonçalves (Relator)

Alice Santos

                                                                                             


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[4] cfr. Dr. Costa Pinto, “ O Ilícito de Mera Ordenação Social e a Erosão do Princípio da Subsidariedade da Intervenção Penal”, Direito Penal Económico e Europeu – Textos Doutrinários, Vol. I, Coimbra Editora, 1998, pág.19 e ss.       

[5] cfr. os hoje Conselheiros, António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2.ª edição, pág. 159 e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4 de Junho de 2003, CJ, n.º 167, pág.40.



[6] Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23 de Março de 2001, CJ, ano XXVI, 3.º, pág. 38.
[7] Acordão do Tribunal da Relação deÉvora, de 23 de Abril de 2002, CJ, ano XXVII, 2.º, pág. 285.
[8] “Reflexões sobre o Direito Contra-Ordenacional”, SPB Editores, 1997, pág. 172.
[9] DR., I Série-A, de 25 de Janeiro de 2003.
[10] CJ, ano XXII, 2.º Tomo, pág. 283.
[11] Obra citada, pág. 177.