Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6414/16.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: DESCOBERTO BANCÁRIO
ÓNUS DA PROVA
CAUSA DE PEDIR
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
Data do Acordão: 03/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 342 CC, 581, 607, 640 CPC
Sumário: 1.- Dispondo o art. 640º, nº 1, c), do NCPC, que quando seja impugnada a decisão da matéria de facto o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a decisão que no seu entender deve ser proferida sobe os pontos de facto impugnada, os impugnantes devem especificar qual a resposta em concreto a dar a tais pontos da matéria de facto – se provados com respostas restritivas/explicativas, se não provados ou provados por inteiro – e não advogar a sua eliminação, pois a mesma acaba por redundar numa não resposta, o que a lei processual veda (art. 607º, nº 3 e 4º, 1ª parte, do NCPC).

2.- A causa de pedir, nas acções de condenação, é o facto jurídico concreto que se invoca para obter o efeito pretendido; e não o conceito abstracto de direito.

3.- Para se concluir que estamos perante um descoberto bancário, quem o alega, tem o ónus de indicar e provar os diversos específicos actos ocorridos – levantamentos ou saques sobre a conta de depósito à ordem - e respectivas circunstâncias.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. C (…) , SA, com sede em (…), instaurou acção contra os réus A (…) e A (…), residentes em (…), peticionando a condenação dos mesmos no pagamento da quantia de 193.203,66 €, acrescida de juros à taxa de 22,5% ao ano desde 21.12.2016, até integral pagamento.

Alegou, a concessão aos réus de um crédito, sob a forma de descoberto em conta, a partir de Janeiro de 2002, que teve origem, entre outros, em descontos/recâmbios de várias letras e livranças, e que em Setembro de 2002, atingia o valor de 86.394,64 €. A dívida dos réus para com a autora, incluindo capital, juros (no montante de 99.177,45 €), imposto de selo (no montante de 7.368,59 €) e comissões (no montante de 262,98 €) na data da interposição da acção era de 193.203,66 €.

Os réus contestaram, dizendo não terem acordado qualquer descoberto em conta, apenas existiu entre as partes um contrato de abertura de crédito, iniciado em Novembro de 1997 e solvido em Janeiro de 2006. Acresce que a autora juntou documentos que nada têm a ver com os contestantes, e que, com excepção das livranças juntas, a ré não foi interveniente, nem subscritora nos demais títulos, sendo alheia às operações que fundamentam o crédito em discussão nos autos. Os réus alegaram, ainda, a prescrição do direito de crédito invocado pela autora (nos termos do art. 482º do CC), por entenderem que a acção proposta pela autora se configura como um enriquecimento sem causa. Tendo ainda invocado a excepção de caducidade do direito de acção cambiária contra o réu, por a autora não ter apresentado as letras atempadamente a pagamento, além de que também não apresentou as letras a protesto por falta de pagamento. Também há muito prescreveu o direito cambiário da autora contra o réu, relativamente a tais letras, prescrição que também ocorreu no respeitante às livranças. Consideram, também, que a autora litiga com abuso de direito. Concluíram que a acção deve ser julgada improcedente, com a sua consequente absolvição do pedido, ou caso assim não se entenda, deverá ser julgada procedente a excepção de prescrição da acção por alegado enriquecimento sem causa, ou, se assim não for entendido, procedentes as excepções de caducidade do direito da acção cambiária e prescrição cambiária, devendo, caso assim não se entenda, a ré ser absolvida do pedido.

A autora respondeu, considerando que a defesa dos réus é improcedente.

*

A final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, e, em consequência:

- condenou os RR no pagamento à A. do capital de 86.394,64 €, acrescida dos juros de mora aplicáveis às operações bancárias, devidos desde o dia 21 de Dezembro de 2011, e do respectivo imposto de selo;

- absolveu os RR do demais peticionado.

*

2. Os RR apelaram, tendo concluído (reduzidas para, ainda assim, longas 83 conclusões depois de despacho de aperfeiçoamento relativamente a 149 conclusões !!) que:

(…)

3. A A. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

II - Factos Provados

5.1 – A autora é sucessora por incorporação do Banco (…), SA, nos direitos e obrigações deste (artigo 1º da petição inicial);

5.2 – A autora desenvolve a atividade bancária (artigo 3º da petição inicial);

5.3 – No âmbito da sua atividade e a solicitação dos réus, a autora concedeu-lhes um crédito sob a forma de descoberto, na conta de depósitos à ordem de que eram titulares, aberta na agência de (…) do Banco (…) com o número (…) que atualmente, por ter sido objeto de remuneração interna, tem o nº (…) (artigo 4º da petição inicial, artigo 52º do articulado de resposta às exceções);

5.4 – Tal conta foi aberta pelos réus no Banco (…), em data anterior à fusão mencionada em 5.1, em data que, em concreto não foi possível apurar mas situada há mais de 20 anos e podia ser movimentada por qualquer um dos seus titulares, por se tratar de conta solidária (artigos 8º e 9º da contestação e artigo 8º do articulado de resposta às exceções);

5.5 – No dia 18 de fevereiro de 2002, a conta mencionada no artigo anterior apresentava um descoberto de € 1.019,61 (artigo 5º da petição inicial);

5.6 – Tal descoberto teve origem em, além do mais descontos/recâmbios de várias letras e livranças, operações estas efetuadas por vontade de ambos os réus (artigos 1º e 9º da petição inicial);

5.7 – Desde 18/2/2002 até 16/9/2002 o saldo negativo da conta supra mencionada aumentou de € 1.019,61 para 86.394,64 (artigo 10º da petição inicial);

5.8 – A agência da autora de (…) enviou aos réus as cartas cujas cópias constam de fls 13 e 14v, datadas de 4 de abril de 2005 e de 15 de maio de 2006, nas quais além do mais aí exarado, solicita o pagamento do saldo devedor da conta DO (…), solicitação que também lhes foi efetuada por funcionários da agência de (…) aos réus (artigo 11º da petição inicial, artigo 23º da contestação);

5.9 – Os réus não liquidaram o saldo devedor de € 86.394,64, relativo a capital que se mantinha em dívida em 21/12/2016, embora conhecessem, pelo menos desde os contactos mencionados no artigo anterior, a existência do descoberto em conta em causa nestes autos, expressamente mencionado nas cartas que lhes foram enviadas em 4 de abril de 2005 e 15 de maio de 2006 (artigos 12º da petição inicial e 31º, 32º, 35º, 60º do articulado de resposta às exceções);

5.10 – Em 26 de novembro de 1997, entre os réus e o B(…) foi celebrado um contrato de abertura de crédito em conta corrente, até ao limite de 5.000.000$00 (correspondente a € 24.990,89) para apoio a tesouraria, contrato esse que veio a ser renovado e renegociado através de documento particular celebrado em 29 de fevereiro de 2000, pelo prazo de três anos, prorrogável automaticamente por iguais períodos, nos termos e com o teor constante de fls 119 a 120 dos autos, aí se prevendo, designadamente que “(…) todos os pagamentos, quer de capital, quer dos juros, quer das comissões ou de outras despesas serão efetuados por débito na nossa conta DO nº (…)” (artigos 19º, 20º, 21º da contestação e artigos 51º e 53º do articulado de resposta às exceções);

5.11 – As obrigações emergentes para os réus do contrato mencionado em 5.10 foram por eles integralmente liquidadas em 25 de janeiro de 2006 no âmbito da ação executiva instaurada pela autora no Tribunal Judicial de Mangualde e que correu os seus termos sob o nº 15/06.5TBMGL (artigos 22º, 25º, 82º, 86º, 87º, 88º da contestação);

5.12 – Tal execução foi instaurada pela autora contra os réus em 23 de dezembro de 2005 por estes não terem regularizado a situação de incumprimento decorrente do contrato mencionado em 5.10, aí reclamando dos executados o pagamento da quantia de € 33.205,95 (artigo 24º da contestação);

5.13 – A celebração do contrato mencionado em 5.10 decorreu de dificuldades temporárias de tesouraria por parte dos réus (artigo 70º da contestação);

5.14 – Na carta supra mencionada, datada de 4 de Abril de 2005, é solicitada aos réus a regularização quer da operação nº2(…), relativa ao descoberto em discussão nestes autos e ainda a regularização da operação (…), referente ao contrato de abertura de crédito mencionado em 5.10 (artigos 38º e 57º do articulado de resposta às exceções);

5.15 – Em 1 de janeiro de 2002 vigoravam entre a autora e os réus os acordos mencionados em 5.3/5.4 e 5.10 (artigo 49º do articulado de resposta às exceções);

*

Factos não provados:

(…)

- … 6º, 14º, 15º…, 18º, 20º (parcialmente), 21º (parcialmente), …, 24º (parcialmente), …, 38º (na parte em que não se reconduz a mera impugnação), 42º, 44º, …, 52º, 60º, 63º, 65º, 66º, 67º, 76º, 79º, 82º (parcialmente), 85º, 86º (parcialmente), 87º (parcialmente), 88º (parcialmente), 90º (parcialmente),da contestação;

(…)

*

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade da sentença.  

- Alteração da matéria de facto.

- Crédito da A. por força do “descoberto” que invoca.

- Juros atribuídos não devidos.

- Abuso de direito da A.

2. Defendem os recorrentes que a sentença é nula, nos termos do art. 615º, nº 1, d), do NCPC, por omissão de pronúncia relativamente à questão da prescrição do enriquecimento sem causa, de 3 anos, prevista no art. 482º, nº 1, do CC (cfr. conclusões de recurso C. e D.). O preceito referido assim determina, efectivamente.

No entanto, foram os recorrentes que alegaram que a acção instaurada pela A., configuraria um pedido de enriquecimento sem causa. Ou seja, foram os RR que “inventaram” uma questão que realmente não existe, pois a causa de pedir da A. está claramente delimitada na p.i., nos seus arts. 4º e 9º, a concessão de um crédito sob a forma de descoberto, na conta de depósitos à ordem que estes tinham no Banco, com origem, entre outros, em descontos de letras e livranças e recâmbio dos efeitos.

Ora, sendo assim, o tribunal não estava obrigado a conhecer uma questão que realmente não existia, e que apenas foi hipoteticamente levantada pelos RR, sem qualquer base credível, pois jamais a recorrida  C (...)  alvitrou que os estava a demandar com fundamento em enriquecimento sem causa.

Portanto, neste condicionalismo, não pode ter cometido uma nulidade por omissão de pronúncia. Arguição de nulidade esta que, por isso, tem de ser indeferida.     

3. Os RR impugnam a decisão da matéria de facto, pretendendo que os factos provados 5.3, 5.5 a 5.7 passem a não provados, que os factos provados 5.9, e 5.14 sejam eliminados, que o facto provado 5.15 tenha uma resposta restritiva e que os factos não provados 6º, 14º, 15º, 18º, 20º, 21º, 24º, 38º, 42º, 44º, 52º, 60º, 63º, 65º a 67º, 76º, 79º, 82º, 85º a 90º da contestação sejam também eliminados (cfr. conclusões de recurso E. a NNN.).

3.1. A referida impugnação tem a particularidade de os RR quererem que dois factos provados, os 5.9. e 5.14., sejam eliminados. É caso para perguntar, e passavam para onde, para provados com respostas restritivas/explicativas, para não provados ou desapareciam por completo ?

E tem a curiosidade de os próprios apelantes pretenderem que sejam eliminados do elenco dos factos não provados todos os factos acima indicados, factos que eles próprios alegaram na sua contestação. Mais uma vez sendo caso para nos interrogarmos, como acabámos antes de precisar, e passariam para onde ?      

Ora, dispõe o art. 640º, nº 1, c), do NCPC, que quando seja impugnada a decisão da matéria de facto o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnada.

Por conseguinte os impugnantes deviam ter especificado qual a resposta em concreto a dar a tais pontos da matéria de facto – se provados com respostas restritivas/explicativas, se não provados ou provados por inteiro – e não advogar a sua eliminação, pois a mesma acaba por redundar numa não resposta, o que a lei processual veda (art. 607º, nº 3 e 4º, 1ª parte, do NCPC).

Consequentemente, face à cominação processual referida, rejeita-se a impugnação da decisão da matéria de facto, relativamente aos apontados factos provados 5.9 e 5.14 e factos não provados 6º, 14º, 15º, 18º, 20º, 21º, 24º, 38º, 42º, 44º, 52º, 60º, 63º, 65º a 67º, 76º, 79º, 82º, 85º a 90º da contestação.

3.2. Respeitante aos factos provados 5.3, 5.5 a 5.7 e 5.15, os impugnantes baseiam a mesma no depoimento das testemunhas (…) e docs. nº 2, 3, 4 e 5, juntos com a p.i.

Na motivação da decisão da matéria de facto exarou-se o seguinte:

“A factualidade apurada, para além do acordo colhido dos articulados, resultou da conjugação e da análise crítica da prova produzida e examinada em audiência.

*

Foram ponderados os seguintes documentos:

(…)

- extrato de fls 8 v e ss;

Relativamente à força probatória deste documento, correspondente ao extrato da conta bancária em questão, desde logo se deve referir que, como decorre inequivocamente das regras regais de experiência comum, a informação dele constante, cronologicamente ordenada, refletindo as diversas operações a débito (financiamentos concedidos) e a crédito (pagamentos/depósitos efetuados) foi certamente sendo comunicada e regularmente consultada pelos réus que não alegaram terem alguma vez reclamado junto do banco autor da respetiva inexatidão. Aliás, os réus não alegaram na contestação qualquer omissão de comunicação dessas diversas operações bancárias registadas imputável ao banco autor. Só nesta ação é que os réus, demandados para pagar o saldo final dessa diversas operações bancárias, vieram colocar em questão a sua veracidade e inexatidão, não explicando cabalmente porque só agora o fazem. Por outro lado, o banco autor produziu vários outros meios de prova designadamente documentais e testemunhais corroborando a veracidade desse documento, mais concretamente das operações nele documentadas. Todos estes elementos concorrem assim no sentido de fundamentarem a credibilidade do documento em questão, cujo relevo probatório foi aceite plenamente pelo tribunal, traduzindo-se no apuramento do saldo final devedor aí mencionado. Em síntese, salienta-se que, corporizando o extrato o documento que corporiza a conta-corrente subjacente à abertura de conta, não deixa de consistir no documento essencial para o apuramento do saldo do cliente, o que, aliado à circunstância de estar em causa elemento documental que recebeu corroboração nos demais meios de prova que de seguida se analisarão, determinou a sua ponderação;

- documento junto com a petição inicial sob o nº 3 (fls 89 e ss), documentando várias operações bancárias mencionadas no extrato junto como doc nº 2, bem como os títulos de crédito às mesmas subjacentes. Este documento reforça o valor probatório e a credibilidade do extrato junto aos autos. Tal conclusão não resultou abalada da junção (por manifesto lapso) dos documentos de fls 22 e 89, que não correspondem a operações documentadas no extrato, constituindo este o fundamento para a pretensão deduzida nestes autos contra os réus. Já a junção dos títulos de fls 85 e 85v, nos quais o réu apôs a sua assinatura na qualidade de sacador, evidenciam a sua qualidade de obrigado cambiário. Ou seja, embora o principal obrigado cambiário seja o aceitante, o facto destes títulos terem sido sujeitos a desconto vincula também o próprio sacador/descontante, que, aliás, foi o beneficiado pelo financiamento em que o desconto se traduz;

- cartas enviadas aos réus, constantes de fls 13 e ss, das quais resulta, de forma inequívoca, que nas datas aí mencionadas (4 de abril de 2005 e 15 de maio de 2006), lhes foi solicitado o pagamento do capital em discussão nestes autos. Salienta-se que na primeira carta enviada, é também solicitado o pagamento da dívida decorrente do contrato de abertura de crédito invocado pelos réus, o que já não sucede na segunda, enviada em momento posterior ao do pagamento de tal dívida e em que, consequentemente, subsistiam apenas as responsabilidades em causa nestes autos. Tal prova documental contribuiu assim, de forma decisiva, para o apuramento de que o contrato invocado pelos réus na respetiva contestação não foi o único celebrado com a autora e ainda que o pagamento obtido na ação executiva mencionada nos factos provados visou a regularização de dívida diversa da que está em discussão nestes autos;

(…)

*

Foram ainda ponderados os depoimentos das seguintes testemunhas:

- M (…), funcionária da  C (...) , há 27 anos, aí exercendo funções de gerente. Prestou um depoimento isento e credível, referindo que conhece os réus quer por serem clientes da autora, quer por residirem em (….) onde também reside. Esclareceu que exerceu funções na agência da autora de (….) de junho de 2002 a 6 de fevereiro de 2003. Nessa altura (junho de 2002) houve uma fusão do  B (...)  com a  C (...)  e foi a depoente que detetou o descoberto em causa nos autos. Conversou com os réus, que manifestaram conhecimento de que tinham tal descoberto, no montante de cerca de € 80.000, e disponibilizaram-se a negociar com a C (…) , designadamente em duas ou três reuniões que a depoente manteve com ambos. A ré era professora de francês e o réu empresário em nome individual, sabendo a depoente que beneficiavam de um plafond extraordinário por serem bons clientes, situação que era frequente no  B (...)  que, perante a idoneidade dos clientes, os autorizava a terem a conta a descoberto. Há quatro ou cinco anos a depoente encontrou a ré que lhe transmitiu que não tinham aceite a proposta da  C (...) . Certo é que como os réus iam fazendo depósitos na conta em questão e manifestavam vontade de resolver a sua situação, a  C (...)  foi protelado a resolução definitiva do litígio. Esclareceu ainda que os movimentos que levaram a este descoberto foram cheques a descoberto, re-câmbios de letras e livranças e que a  C (...)  exige a celebração de um contrato para desconto de títulos de crédito, o que não sucedia no  B (...) . A depoente analisou ainda o extrato bancário junto aos autos e referiu que os réus sabiam que as operações de desconto lhe estavam a ser autorizadas pois levavam as letras ao banco para desconto;

-I (…) bancária do  B (...)  desde 1994 e mais tarde da  C (...) . Depôs de forma consciente e credível, referindo que quando era funcionária do  B (...)  contactava com os réus. No  B (...)  o casal tinha uma conta à ordem e uma conta corrente. Analisando a ficha de abertura de conta junta aos autos, concluiu tratar-se de uma conta solidária. A conta à ordem dava origem a muitos movimentos e a conta corrente era de movimentação livre. A depoente referiu que a dívida em causa nestes autos decorre de um descoberto numa conta à ordem, titulada pelos réus e que, na presente data, após ter consultado o sistema informático, verificou que tal conta foi aberta em 1978.O réu era empresário em nome individual, no ramo das tintas, a ré era professora. O financiamento de curto prazo era recorrente no  B (...)  e o réu descontava com regularidade letras e livranças, entregando um “efeito” (letra nova ou reforma) acompanhado de uma proposta de desconto. Nos extratos aparecia “desconto de efeito”. Sucede que a conta à ordem em causa entrou em descontrolo, mantendo um saldo negativo desde 2002, que resultava de títulos não pagos pelo aceitante e de cheques sem provisão. Por esse motivo, houve reuniões e tentativas de renegociação da dívida com os clientes, tendo sido proposto um financiamento para esse efeito que não foi aceite. Referiu ainda que no  B (...)  não eram celebrados contratos para o descoberto, quando estavam em causa clientes idóneos com “bom conceito na praça”. A partir de 11 de junho de 2002, por força da incorporação do  B (...) , os extratos foram “exportados” para o sistema da  C (...) , razão pela qual apresentam um lay out diferente, como é percetível do que se encontra junto aos autos. O descoberto na conta surgiu por iniciativa do cliente que sempre o assumiu, embora não houvesse um descoberto autorizado, pois caso contrário, constaria do extrato. Na sua perspetiva, o extrato constitui uma prova documental dos montantes que foram disponibilizados aos réus. A depoente preparou uma proposta para ser apresentada ao cliente e sabe que não foi aceite.

*

Não obstante a distância temporal decorrida desde as movimentações que deram origem ao descoberto em causa nos autos, e as vicissitudes inerente à incorporação do  B (...)  pela autora, a prova testemunhal produzida de forma articulada com os documentos juntos, permitiu concluir pela existência da dívida em discussão nos autos. Aliás, segundo foi referido pelas testemunhas, tal dívida não foi contestada pelos réus em fase prévia à da instauração da presente ação que analisaram proposta de resolução do litígio que lhes foi apresentada pela autora. Dos depoimentos testemunhais também resultou que o financiamento que deu origem à dívida em causa foi destinado pelo réu à atividade a que, à data, se dedicava.

(…)

*

Em síntese, salienta-se que a factualidade apurada evidenciou a celebração de dois contratos, designadamente o invocado pela autora e o invocado pelos réus, nos respetivos articulados. Esta realidade desmente a alegação dos réus, efetuada na contestação, por via da qual tentaram lançar confusão entre dois débitos perfeitamente autónomos.

Acresce que a prova testemunhal evidenciou que os réus eram conhecedores do descoberto em conta em causa nestes autos, tendo estabelecido reuniões com os representantes da autora com vista à sua regularização.”.

Ouvimos o depoimento das referidas 2 testemunhas, que está gravado em CD.

A testemunha (…), disse o que consta da motivação exarada pela julgadora de facto. Precisou, ainda, e mais em concreto, que a conta à ordem dos RR, quando a detectou, estava a descoberto, ou seja, estava com saldo negativo. Descoberto autorizado não existia no  B (...) . Quando refere que contactou com os RR para estes pagarem o montante em dívida era para pagarem o saldo negativo. O que apelida de descoberto era uma facilidade que o  B (...)  permitia de ir até um determinado limite negativo uma conta à ordem, o que os clientes às vezes nem sabiam. Não tem conhecimento se foram explicadas as condições gerais dessa facilidade ao cliente. Não sabe de onde vêm o 1º saldo negativo de cerca de 1.009 €. Confirmou que visto todo o documento número 3, não localizou um único documento que estivesse lançado no documento 2 com data anterior a 21 de Maio de 2002.

A testemunha  I (...)  referiu o que o que consta da motivação exarada pela julgadora de facto. Precisou, ainda, e mais em concreto, que aos bons clientes o  B (...)  permitia descontos de letras e livranças à vontade. Cada lançamento que esteja efectuado tem de ter sempre documentos de suporte. No  B (...)  não havia descobertos autorizados. O que o  B (...)  fazia era facilitar que uma conta à ordem ficasse até um determinado plafond com saldo negativo, limite que os clientes não sabiam. Não sabe se a pedido e solicitação dos réus, a Caixa concedeu aos mesmos um crédito sob a forma de descoberto na conta de depósitos à ordem nº (…). No  B (...)  não existia um crédito sob a forma de descoberto na conta de depósitos à ordem. Se existisse, estaria contido na diferença entre saldo contabilístico e saldo disponível. Não encontra, no doc. nº 3, com data anterior a 21 de Maio de 2002, um único documento que titule um débito no extracto, o doc. nº 2. Só após a 5ª página encontraram o primeiro suporte do movimento debitado, sendo que no momento imediatamente anterior a este movimento o saldo era negativo no montante de 38.628,30 €, sem qualquer suporte documental !

Analisando, agora, a prova produzida. 

Sobre a matéria vital constante do facto 5.3. - a existência de um descoberto, solicitado pelos RR, e anuído pela A., e suas condições, por ex. prazo, taxas de juro, comissões, etc., na conta à ordem dos recorrentes -, as referidas testemunhas M (…) e  I (...)  em concreto sabem nada !

Falam em descoberto sem se perceber porquê ? Do depoimento das mesmas resulta que não havia descobertos autorizados/contratados no  B (...) . Aliás, se descoberto houvesse, segundo elas, tinha de aparecer mencionado no extracto de conta, o doc. nº 2, e nada aparece !   

Usam a palavra descoberto porque a conta à ordem dos RR a partir de certa altura apresentou continuadamente saldo negativo. Mas nada mais que isso.

Do que desses depoimentos decorre é coisa diferente, é que o  B (...)  tinha a prática de permitir nas contas à ordem saldos negativos a bons clientes, até um certo limite que os clientes inclusive desconheciam. E que os RR tinham autorização para efectuar descontos de letras e livranças, operações que acabaram com reflexo negativo na conta à ordem.

Por outro lado, compulsados os docs. nºs 4 e 5, as 2 cartas enviadas aos RR (em 4 de abril de 2005 e 15 de maio de 2006, juntas a fls. 13 e 14V) em nenhuma delas se menciona o descoberto.

De outra parte, segundo o depoimento testemunhal, relativamente ao extracto, cada lançamento que esteja efectuado tem de ter sempre documentos de suporte. Ora, nenhuma das testemunhas encontrou, no doc. nº 3, contendo várias letras e livranças, desconto e cobrança de efeitos, com data anterior a 21 de Maio de 2002, um único documento que titule um débito lançado no extracto, o doc. nº 2.  Só após a 5ª página encontram o primeiro movimento debitado. No momento imediatamente anterior a este movimento o saldo era negativo no montante de 38.628,30 €, ou seja, até ao montante deste saldo inexiste qualquer suporte documental ! E suporte documental relativo a cheques nem sequer existe, apesar de as testemunhas referirem que o que apelidam de “descoberto” também provinha de cheques.

Perante a prova produzida, as conclusões a que podemos chegar são as seguintes: não foi produzida qualquer prova testemunhal sobre a existência de algum descoberto, até porque nenhuma delas teve intervenção no alegado processo de pedido e concessão de crédito sob a forma de descoberto; no aludido doc. 2, o extracto, não consta qualquer lançamento a débito alusivo a descoberto, designadamente comissões de descoberto, reclamadas pela A., o que é estranho, porque significaria que ao longo dos 7 meses em que a A. alega que existia um descoberto, nunca lhes debitou uma única comissão a esse título; as testemunhas não souberam explicar a origem do saldo inicial negativo; a análise conjugada dos mencionados docs. 2 e 3 revela grave ausência de suporte documental para os alegados movimentos, registados no doc. 2 que a A. imputa aos RR; até 21 de Maio de 2002, ao longo de mais de 4 páginas, estão lançados 331 movimentos, a débito e a crédito, ao longo de quase 3 meses, sem que se encontre nos autos qualquer suporte documental dos mesmos, apesar de nesse momento já o extracto evidenciar um saldo negativo de 38.628,30 €; o referido doc. 2 tem a natureza de particular e foi impugnado pelos RR, pelo que a sua força probatória é de apreciação livre, não sendo apto a provar a existência do crédito de que a A. se arroga titular; o mesmo acontece quanto ao doc. 3, constituído por um aglomerado de fotocópias de notas de desconto e cobrança de efeitos, letras e livranças apenas; o doc. 2 tem registadas várias centenas de movimentos, a débito e a crédito, só que a A. não especificou a que se deve o alegado descoberto, alegando de forma genérica; os doc. 2 e 3 vistos conjuntamente não apresentam credibilidade; em nenhum dos docs. 4 e 5 se refere a existência de um descoberto ou se consegue estabelecer uma ligação hipotética ao mesmo.

Agindo nós sob o império da livre apreciação, nos termos do art. 663º, nº 2, ex vi do art. 607º, nº 5, 1ª parte, do NCPC, chegamos a uma convicção diversa da julgadora de facto, à convicção que a A. não logrou provar aquilo que alegou e que, consequentemente, a julgadora a quo não proferiu uma decisão da matéria de facto correcta.

Aliás, pode seguramente afirmar-se que perante as sérias dúvidas que emergem da prova produzida seria, em última instância, caso para fazer aplicar o disposto no art. 414º do NCPC e, portanto, resolver a dúvida sobre a realidade dos factos contra a A., a quem os factos aproveitavam.

Por conseguinte, julgando parcialmente procedente a impugnação de facto dos apelantes, expressamos a nossa convicção na aludida matéria de facto impugnada nos seguintes termos (a negrito, ficando a redacção anterior em letra minúscula):   

5.3 - Os réus eram titulares da conta de depósitos à ordem aberta na agência de (…) do Banco (…) com o número (…) que actualmente, por ter sido objeto de remuneração interna, tem o nº (…).

5.5 – A autora emitiu o extracto bancário de fls. 8v. a fls. 13, relativo à conta mencionada no artigo anterior, no qual fez registar que no dia 18 de fevereiro de 2002 tal conta apresentava um saldo negativo de € 1.019,61.

5.6 – O registo de tal saldo negativo teve origem em operações não concretamente apuradas.

5.7 – Em tal extracto a autora fez registar que desde 18/2/2002 até 16/9/2002 o saldo negativo da conta supra mencionada aumentou de € 1.019,61 para 86.394,64.

5.15 – Em 1 de janeiro de 2002 vigoravam entre a autora e os réus o acordo mencionado em 5.10.

3.3. Perante a decisão da matéria de facto por nós agora tomada verifica-se que ela entra em colisão com parte da matéria dada por provado nos factos não impugnados 5.9 e 5.14. A fim de evitar contradições há, pois, que superar as mesmas, fazendo os devidos ajustes na redacção de tais factos no que aos alegados descobertos diz respeito, cujas menções, assim, devem ser eliminadas, ao abrigo do art. 662º, nº 1, conjugado com o nº 2, c), do NCPC.

Nestes termos, os aludidos factos passam a ter a seguinte redacção (a negrito, ficando a anterior em letra minúscula):

5.9 – Os réus não liquidaram o saldo devedor de € 86.394,64 referido em 5.7, que se mantinha em 21/12/2016, que conheciam, pelo menos desde os contactos mencionados no artigo anterior, expressamente mencionado na carta que lhes foi enviada em 15 de maio de 2006.

5.14 – Na carta datada de 4 de Abril de 2005, é solicitada aos réus a regularização da operação nº(…) e ainda a regularização da operação (…), referente ao contrato de abertura de crédito mencionado em 5.10.

4.1. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“… O descoberto bancário consiste no “contrato pelo qual o banco autoriza, dentro de certos limites, a existência de saldo negativo na conta do cliente” – Engrácia Antunes 1Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, pág. 506.

Tal descoberto, também conhecido como “facilidades de caixa”, visa permitir que o cliente responda a necessidades ocasionais de tesouraria, realizando operações que o saldo disponível não lhe permitiria, correspondendo a uma forma especial de concessão de crédito que pode ter origem num acordo prévio e expresso ou apenas num acordo tácito “resultante de atos de consentimento de descobertos em contas pontuais para fazer face a necessidades momentâneas ou imprevistas 2Autor e ob. cit, pág. 507.

Trata-se de contrato atípico, regulado pelo regime decorrente das “cláusulas contratuais gerais constantes do contrato nuclear de conta bancária, aplicando-se ainda, no demais, as regras do empréstimo bancário com as necessárias adaptações” 3Ob e autor cit., pág. 507. Em si, o descoberto corresponde à existência de um saldo negativo para o cliente subjacente a uma abertura de conta, tolerado pelo bancário como forma de facilitar a tesouraria de certos clientes – Menezes Cordeiro 4Manual de Direito bancário, 3ª edição, pág. 545. 

De tal contrato resulta, para o cliente, a obrigação de proceder à restituição da quantia a descoberto ou “mutuada”, pois está em causa uma forma especial de concessão de crédito, concretizada no consentimento pelo banco de que o cliente efetue operações para além de que o seu saldo lhe permitiria – Fernando Baptista de Oliveira 5Contratos Privados, Vol. I, pág. 586. Efetivamente, quando a conta fica a descoberto e o banco paga para além dos limites do seu saldo positivo “torna-se credor do depositante, financiando-o” – Ac STJ de 7/10/2010 6Proferido no processo nº 383/05.0TBCHV.S1, disponível em www.dgsi.pt. ”.

Ou, como explica outro autor (M. Januário da Costa Gomes, Contratos Comerciais, 2013, págs.331/333), normalmente os descobertos destinam-se a permitir ao cliente acudir a situações pontuais de dificuldade de tesouraria, sendo também utilizados para financiamentos de actividades sazonais ou créditos de campanha. Tipicamente, estamos perante situações de crédito de curto prazo.

Podendo ser descoberto contratado, que se baseia num acordo entre o Banco e o cliente, que traça os termos em que o Banco aceita conceder crédito através de levantamentos ou saques a descoberto; ou descoberto tolerado, em que não havendo necessariamente esse prévio acordo o Banco aceita ou tolera pontualmente levantamentos ou saques a descoberto para acudir a situações pontuais ou ocasionais.   

Ou como diz, ainda, outro autor (F. Gravato Morais, Contratos de Crédito ao Consumo, 1ª Ed., 2007, pág. 53) O descoberto bancário configura, pois, um crédito, normalmente a curto prazo, caracterizado pela realização de um ou vários levantamentos não provisionados junto da conta bancária subjacente, saques esses admitidos e negociados (descoberto negociado) ou apenas consentidos pela instituição de crédito (descoberto tolerado).

No primeiro caso, enquadram-se também os casos em que, inexistindo, embora, um acordo expresso entre o banqueiro e o cliente, se gera, ao longo do tempo, uma relação continuada, que deve ser tratada como descoberto contratado, na medida em que os específicos descobertos ocorridos e respectivas circunstâncias permitam gerar uma fundada confiança do cliente na concessão de novos créditos, através de descobertos. No segundo caso, não há, tipicamente, um acordo contratual, pois o descoberto é decidido pontualmente pelo banco, amiúde no momento e mesmo sem uma expressa manifestação de vontade de obtenção de crédito por parte do cliente. Refira-se finalmente, que, mesmo nos casos em que não há vontade de concessão de crédito ou sequer factos concludentes que apontem para um negócio de descoberto, não deixa, de acordo, com a praxis bancária, de se efectuarem lançamentos a descoberto, feitos por imperativo contabilístico. Mas neste caso, o regime aplicável será o que resultar do contrato de conta, das suas cláusulas gerais (M. Januário da Costa Gomes, ibidem).

4.2. No nosso caso a A. alegou na p.i. (como acima referimos no ponto 2.), no seu art. 4º, que a causa de pedir da sua pretensão era a concessão de um crédito sob a forma de descoberto, na conta de depósitos à ordem que os RR tinham no Banco. Todavia o descoberto bancário é uma figura jurídica.

Para se chegar a essa qualificação jurídica, a essa conclusão de direito, a A. devia ter alegado e provado - nas palavras do citado M. Januário da Costa Gomes - “os diversos específicos descobertos ocorridos e respectivas circunstâncias”, porque só eles efectivamente constituem a causa de pedir.

Efectivamente a causa de pedir, nas acções de condenação, é o facto jurídico concreto que se invoca para obter o efeito pretendido (vide o art. 581º, nº 4, do NCPC, e a noção de causa de pedir). E não o conceito abstracto de direito.

Ora, como resulta da decisão da matéria de facto provada, a A. não logrou provar qualquer descoberto bancário ou factos concretos específicos e respectivas circunstâncias que permitissem concluir, de direito, que estávamos perante um descoberto bancário, contratado expressamente ou factos concludentes que para isso apontassem, ou simplesmente tolerado  !

Quais foram os levantamentos efectuados pelos RR sobre a sua conta de depósitos á ordem, quais os saques permitidos pela A. sobre a mesma, e em que circunstâncias ? Não se sabe porque a A., neste aspecto, não logrou provar o que quer que fosse !

Dir-se-á, contudo. Atenção que a A. no art. 9º da p.i. (como acima referimos no ponto 2.) referiu a origem do descoberto: entre outros, descontos de letras e livranças e recâmbio dos efeitos.

Bom, “entre outros”, é um nada jurídico, dada a vacuidade da expressão. Resta-nos, pois, os falados descontos de letras e livranças. Então o que temos, como alegado são os falados descontos de letras e livranças. Verificando-se, então, o seguinte: - a A. juntou à p.i. o documento nº 3 (a fls. 18v. a 96), do qual constam várias notificações ao R. de proposta de efeitos descontados (várias letras e três livranças), devolução por não cobrança e recâmbio de efeitos, bem como fotocópias do anverso de diversas letras, em que o R. foi sacador, e três livranças subscritas por ambos os RR, que depois lançou no extracto bancário, junto como doc nº 2, como valores negativos. 

Portanto, os mencionados descontos bancários, com títulos de crédito aparentemente não cobrados, foi o que motivou o lançamento negativo no extracto de conta dos RR. Isto não é descoberto bancário, juridicamente falando. Se bastasse apresentar um extracto de conta com cada um dos movimentos, uns a débito e outros a crédito, efectuados nessa conta, e o adveniente saldo negativo em determinados momentos/datas, teríamos que esse saldo negativo resultante dos lançamentos feitos pelo Banco seria sempre um descoberto, o que nós não concebemos.

Em suma e conclusão, face à causa de pedir alegada pela A., descoberto bancário, e à não demonstração dos necessários factos, sendo que o ónus era da A. (art. 342º, nº 1, do CC), a acção terá de improceder, designadamente os RR terão se ser absolvidos da condenação contra si decretada no montante do capital de 86.394,64 €.

4.3. Algo mais se pode acrescentar.

Importa relembrar que os contratos de desconto bancário não se identificam com as obrigações cambiárias resultantes dos títulos descontados. No contrato de desconto bancário, a entidade bancária - descontador - procede ao adiantamento (crédito) da quantia correspondente ao valor nominal do título de crédito submetido a desconto, mediante o pagamento (por meio de compensação imediata) da remuneração devida pela antecipação do crédito e pelos encargos inerentes à operação, e a entrega pelo descontário do título o que facultará, na data do seu vencimento, ao Banco – descontador - a cobrança do seu crédito.

Assim, do contrato de desconto bancário decorre que o descontador fica munido de dois títulos ou causas de pedir com a entrega do título de crédito em dação pro solvendo: o mútuo, em relação ao crédito causal; e o endosso e posse da letra, com referência ao crédito cambiário - apresentando-se a obrigação decorrente do mútuo como autónoma em relação à obrigação cambiária.

De modo que é lícito ao banco descontador, portador legítimo do título de crédito descontado, accionar o descontário com base no mútuo (obrigação causal), ou qualquer dos intervenientes no título com base no seu direito de crédito cambiário (obrigação cartular).

Por conseguinte, a aqui A., enquanto descontador e portador legítimo dos títulos de crédito descontados, pode optar por demandar o descontário com fundamento no contrato de desconto bancário (mútuo) com ele firmado, ou qualquer dos intervenientes cambiários com base na relação cartular. Com base em descoberto bancário é que não.

Retornando aos ensinamentos de M. Januário da Costa Gomes (ob. cit., págs. 347/348), afigura-se-nos que não obstante essa identificação do desconto com um mútuo a mesma não pode ser hiperbolizada, já que o adiantamento do capital está intimamente associado a um efeito que o Banco tomou e que é suposto, salvo cláusula em contrário, fazer valer face aos obrigados cambiários.

De sorte que primacialmente o Banco deve accionar contra os obrigados cambiários uma acção cambiária exigindo a sua responsabilidade.

Por conseguinte se a presente acção fosse vista como cambiária estava destinada ao insucesso, pois não só a A. não alegou a apresentação dos efeitos/títulos a pagamento, como também não a demonstrou, com comprovação do não pagamento – não estão juntos aos autos os originais de tais títulos e as fotocópias só mostram o anverso dos títulos, sem qualquer daquelas menções de apresentação a pagamento e não pagamento.

Por outro lado, se fosse vista com base na relação causal de desconto, o resultado final seria idêntico, pois nem sequer estão juntos aos autos as respectivas propostas de desconto e suas condições/cláusulas contratuais que permitam aferir dos descontos efectivamente contratados e possibilidade de demanda directa e imediata do descontário, os RR.       

De todo o modo, não fica excluído que a A. poderá, no futuro, demandar os RR com base ou nas obrigações cambiárias, ou responsabilidade derivada dos descontos bancários ou, eventualmente, enriquecimento sem causa derivado do saldo negativo que se venha apurar.  

5. Do acima exposto, em 4.2., resulta que a final de contas a A. não tem direito a cobrar os juros moratórios que lhe foram fixados na decisão recorrida à taxa legal aplicável às operações bancárias. 

6. Face ao explicitado e ao que iremos decidir, queda pois inútil conhecer a remanescente questão referente ao invocado abuso de direito.

7. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC).

i) Dispondo o art. 640º, nº 1, c), do NCPC, que quando seja impugnada a decisão da matéria de facto o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a decisão que no seu entender deve ser proferida sobe os pontos de facto impugnada, os impugnantes devem especificar qual a resposta em concreto a dar a tais pontos da matéria de facto – se provados com respostas restritivas/explicativas, se não provados ou provados por inteiro – e não advogar a sua eliminação, pois a mesma acaba por redundar numa não resposta, o que a lei processual veda (art. 607º, nº 3 e 4º, 1ª parte, do NCPC);

ii) A causa de pedir, nas acções de condenação, é o facto jurídico concreto que se invoca para obter o efeito pretendido; e não o conceito abstracto de direito;

iii) Para se concluir que estamos perante um descoberto bancário, quem o alega, tem o ónus de indicar e provar os diversos específicos actos ocorridos – levantamentos ou saques sobre a conta de depósito à ordem - e respectivas circunstâncias.

IV – Decisão

Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida, indo os RR absolvidos.

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Custas pela A./recorrida.

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  Coimbra 3.3.2020

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Alberto Ruço