Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
741/16.0T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL
Data do Acordão: 07/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - 1ª SEC.COMÉRCIO - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 17-A, 17-B, 17-F, 195, 215 CIRE
Sumário: I - Em sede de PER, o juiz pode recusar, oficiosamente, a homologação do plano de recuperação aprovado pela maioria dos créditos, se, perante os factos provados, desde logo entender que existe violação não negligenciável de normas aplicáveis ao seu conteúdo – artº 215º ex vi do artº 17º-F nº5 do CIRE - vg., por a situação ser já de insolvência atual ou de insolvência iminente sem perspetivas de recuperação, e/ou por ele não cumprir as especificações do artº 195º do CIRE.

II – Subsume-se nesta previsão o caso do devedor que tem dívidas ante plano de mais de 1.700.000 euros e pós plano de mais de 700.000 euros, que aduz rendimentos de apenas cerca de 1.500 euros mensais oriundos de atividade laboral privada, sendo que no plano se plasma o pagamento durante 33 anos, sem descrição das medidas necessárias à sua execução, e sem demonstração dos previsíveis rendimentos futuros durante aquele dilatado período.

Decisão Texto Integral:






ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

D (…), apresentou-se a processo especial de revitalização.

Alegou para o efeito estar numa situação económica difícil, mas que ainda assim reunia as necessárias condições para a sua recuperação.

Foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, nos termos do art.27.º n.º 1 al. b) do CIRE, a que o requerente respondeu positivamente.

Foi nomeado administrador judicial provisório nos termos do disposto no art.17-C nº 3, al. a) do CIRE tendo junto oportunamente a lista provisória de créditos, a qual veio a ser convertida em definitiva por inexistência de impugnações.

O prazo de dois meses para conclusão das negociações foi prorrogado por um mês, mediante acordo prévio e escrito entre administrador judicial provisório e o devedor – cfr. nº 5 do art. 17-D do CIRE.

Prosseguiu o processo com vicissitudes várias.

Designadamente por o devedor não ter salvaguardado aos credores institucionais um prazo mínimo de 10 dias para avaliação e votação do plano de revitalização e que mereceu a reação do Banco Portugal, S.A., por meio da apelação documentada a fls.145 e ss que, posteriormente, deixou cair.

Ademais tendo sido verificada a falta de documentação nos autos do auto de votação do plano e decorrido o prazo perentório para a sua votação e receção, foi proferido despacho a determinar o encerramento do processo  sem homologação do plano e solicitado ao Sr. Administrador Judicial Provisório o envio do parecer a que alude o art.17-G n.º 4 do CIRE (fls.144).

Em resposta o Sr. AJP informou que o plano de revitalização não havia sido aprovado pela maioria dos votos expressos ( 50,45% contra e 45,95% a favor).

Mais informou que o devedor teria reunido com os credores comuns no dia 27.10.2015 à revelia dos demais credores e do próprio AJP, cuja presença havia sido dispensada no mesmo dia, por telefone, pelo devedor, com a informação que ali não marcaria presença nenhum credor embora haja recebido uma ata de reunião com três dos credores comuns. Salientando que o devedor apenas concedeu 6 dias para a votação do plano.

Nesse seguimento foram remetidos diversos requerimentos dos credores acusando, em suma, a falta de contabilização dos seus votos ((…) – e os primeiros três credores acusando a valoração de um voto emitido para lá do prazo das negociações e a sua não audição previa a propósito do estado de insolvência do devedor) e denunciando (o devedor) as irregularidades que teriam sido levadas a cabo pelo Sr.AJP e a requerer a contabilização dos votos oportunamente expressos e não contabilizados a favor do plano de recuperação.

Por fim o Sr.AJP veio prestar os seus esclarecimentos a respeito da forma como decorreu o processo das negociações, alegando que o mesmo foi pautado pelo seu premeditado afastamento da supervisão das negociações e dos credores hipotecários; plano de revitalização apenas remetido aos credores; pouca credibilidade do plano apresentado; o curto prazo concedido para a votação de apenas 6 dias, incluindo dois dias não úteis, e a situação de insolvência atual do devedor.

O devedor e os credores tomaram  posição sobre aquela pronúncia.

2.

Finalmente foi proferida decisão final na qual se plasmou:

« Repara-se o despacho datado de 04.12.2015 (fls.144) na parte em que tem subjacente a não aprovação do plano apresentado pelos credores do devedor, uma vez que existiu de facto um quórum constitutivo, de deliberação e de aprovação por credores detentores de 75,88% dos créditos reconhecidos.

Mas nos termos do 17-F nºs 5 e 6 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa não se homologa o plano de revitalização apresentado pelo devedor D (…)… por ter incorrido na violação não negligenciável por parte do plano de regras procedimentais – atinentes à superintendência por parte do Sr.AJP e à circunstância de se encontrar em situação de insolvência atual (erro na forma do processo) – e mais importante substantivas decorrentes da falta de verosimilhança dos termos do plano de revitalização para almejar o seu desiderato.»

3.

Inconformado recorreu o devedor.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A sentença sub judice, pese embora reconhecer a aprovação do plano pelos credores e o não pedido de homologação por parte de qualquer credor, recusa a homologação do plano apresentado, com fundamento no facto de os Requerentes se encontrarem em situação de insolvência, aquando da sua apresentação ao PER, e invoca -sem fundamentar - a falta de transparência nas negociações.

2. Faz assim, servindo-se da charneira argumentativa de um acórdão do STJ, uma errada qualificação jurídica dos factos vertidos, errando na determinação da norma aplicável (artº 215) em manifesto abuso do poder judicial em detrimento do poder legislativo, ferindo de morte o escopo do Legislador aquando da criação do Processo Especial de Revitalização e esvaziando-o de sentido.

3. Na sentença recorrida o Tribunal decide contra a lei, com fundamento apenas numa sua convicção que refere, porém, objectiva, conclusão que de facto a Lei não lho permite, pois não define objectivamente os conceitos de “situação económica difícil» e «situação de insolvência meramente iminente», sendo, portanto, estes conceitos susceptíveis de ser interpretados subjectivamente.

4. Se de facto tais conceitos são rasgados de subjectividade, e se permitiram ao Tribunal entender pela insolvência dos devedores (não se fundamentando sequer porquê), terá de se admitir que os devedores estejam, também eles, autorizados a entender que se encontram apenas em situação económica difícil – e por maioria de razão, já que efectivamente conhecem melhor que o Tribunal a sua situação e possibilidades de recuperação.

5. Nulidade que expressamente se arguí, nos termos do artigo 615, nº1, alinea b) do CPC.

6. Não obstante, sempre se dirá que salvo douto melhor entendimento, jamais poderia o Tribunal, com base na sua interpretação subjectiva da situação económica dos devedores (diferente, refira-se, da interpretação dos devedores, dos credores interessados e da Sra. Administradora Judicial) ditar a morte dos devedores, porque o poder jurisdicional não se pode sobrepor ao poder Legislativo, em clara VIOLAÇÃO DO ART. 2º DA CRP.

7. Com efeito, o Per é um processo de natureza maioritariamente extrajudicial, cabendo que as decisões a que a ele digam respeito sejam democraticamente decididas pelos credores interessados.

8. O papel do juiz neste processo é muito restrito, porquanto o legislador faz radicar a defesa daquele interesse público, em que se traduz a saúde da economia, na primazia da vontade da maioria qualificada dos credores, confiando quase plenamente nestes e no administrador judicial (DOC 1)

9. Foi entendida como objectiva aquela situação de recuperação pelos devedores e por todos os credores reclamantes, que nunca aduziram a suposta situação de insolvência, antes aceitando e manifestando desejar participar nas negociações que vieram a decorrer e que no decurso das mesmas levaram a cabo o seu direito de voto sem objecção.

10. Na verdade, se fosse intenção do legislador que o Tribunal aferisse efectivamente dos factos que justificariam a situação económica difícil ou a situação de insolvência eminente, uma vez recebida pelo Tribunal a comunicação do devedor a informar que pretende dar início às negociações conducentes à sua recuperação, a Lei não mandaria que o juiz nomeasse de imediato o Administrador Judicial Provisório e permitiria sim que este, naquele momento, ou, no limite, imediatamente após a publicação da lista provisória de créditos, pudesse fiscalizar tais pressupostos, rejeitando liminarmente o pedido. O que não acontece!

11. Assim, se a Lei não o permite de ínicio, por maioria de razão não o permite no decurso do mesmo, quando o procedimento foi já iniciado, com taxas de justiça pagas, com os seus trâmites legais devidamente observados, e com as expectativas legítimas criadas (nos devedores e seus credores), culminando na apresentação de um plano, votado e aprovado pela maioria dos credores, nos termos do art. 17º F nº 3, e que não viola qualquer regra procedimental ou de conteúdo .

 12. Ademais, sempre se dirá que no Processo Especial de Revitalização a situação de insolvência apenas poderia ser imputada aos devedores, nos termos do Art. 17º G nº 4  do CIRE: isto é, apenas no caso de resultarem infrutíferas as negociações com os credores, e sempre depois de o tribunal pedir o parecer ao Sr. Administrador Judicial Provisório!

13. O que significa que a Lei, antes de permitir ao juiz a fiscalização do plano aprovado nos termos do 215º do CIRE, dita inclusivamente, que mesmo no caso do plano não ser aprovado, não pode o Tribunal decidir-se imediatamente pela insolvência dos devedores, antes obrigando a que se solicite ao Sr. AJP o seu parecer acerca da situação económica dos devedores.

 14. Por último, sempre se dirá que não podia o Douto Tribunal determinar que esta sua convicção se subsumisse em qualquer das violações nos termos do art 215º do Cire (violação de regras procedimentais ou de normas de conteúdo)

 15. Acresce que, como a própria lei indica, as regras procedimentais e normas de conteúdo, que podem ser violadas, dizem respeito ao processo propriamente dito, e não ao que lhe está a jusante. São, pois, coisas distintas: o antes do processo e o processo de revitalização propriamente dito.

16. Conforme referido pela Relação de Coimbra, no processo 5697/12.6TBLRA.C1, de 29/10/2013, as normas procedimentais são todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes — incluindo, por isso, as relativas à sua própria convocatória e funcionamento — e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado.

 17. As normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano (propriamente dito, o que é apresentado para votação), mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele (plano) deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar.

 18. Assim a convicção do tribunal de que os devedores se encontravam em situação de insolvência, não cabe em qualquer das supra referidas violações, porquanto se trata de um alegada ausência de pressuposto de acesso ao Processo, não podendo consubstanciar por isso nenhuma das violações do 215º já que as mesmas dizem respeito ao próprio plano apresentado no âmbito deste processo.

19. O Tribunal decidiu recusar a Homologação do plano aprovado pela retumbante maioria de credores, com base numa convicção, que pese embora legítima, não tem cabimento legal nem factual, sendo consequentemente abusiva quando para este instituto é trazida, e no limite quando é trazida sem sequer vir acompanhada de parecer do AJP sobre a matéria.

20. Pese embora o Tribunal a quo refira um passivo de €1.739.465,97 (pag 7 de 13 da sentença), a verdade é que com a aplicação do perdão previsto no plano (que foi aprovado pelos credores) o passivo passaria a ser de €721.628.54, conforme pag  10,11 e 12 do plano apresentado. Pelo que desde logo partiu o tribunal de premissas erradas.

21. Além disso, e para aferir da situação de insolvência e da inexequibilidade do plano, o tribunal tomou erradamente em consideração que o devedor se propunha pagar prestações de €8 548,60 por mês, o que significaria que o devedor, grosso modo, teria de auferir mais de €16 000,00 brutos mensais.

 22. Tal facto á manifestamente errado e assim impugnado, porquanto o plano aprovado pelos credores, para o qual remetemos, prevê EXPRESSAMENTE o pagamento de 30 prestações não mensais, mas ANUAIS, postecipadas e sucessivas, que os credores anteviram e aprovaram, por entenderem estar perfeitamente ao alcance do devedor.

 23. Nulidade que assim expressamente se argúi, nos termos do artigo 615º do CPC.

24. Pelo que, ainda que douta, a sentença recorrida, em tudo isto, ao decidir pela recusa da homologação do Per em apreço, constitui um atentado grave às garantias legais que norteiam o Processo Especial de Revitalização – em particular ao princípio da legalidade, da liberdade e da autonomia dos credores e do Principio do Estado de direito democrático assente numa clara separação de poderes- princípios institucional e constitucionalmente consagrados.

25. Ademais, padece ainda a sentença recorrida da nulidade que se assaca à falta de fundamentação do 3º pressuposto onde o Tribunal consubstancia a recusa da homologação -de que houve violação não negligenciável por parte do plano de regras procedimentais – atinentes à superintendência por parte do Sr. AJP.

26. Tal afirmação é absolutamente omissa de qualquer fundamento legal ou factual, sendo proferida de forma cabalmente abstrata e desprovida de qualquer facto, de onde se possa subsumir tal conclusão.

27. A este respeito o Tribunal a quo diz apenas que “Cumpre ainda chamar à colação a reportada forma como decorreram as negociações denunciadas pela Sr. AJP e que em termos substanciais não foram contestadas pelo devedor, exceto quanto à intencionalidade atribuída ao seu comportamento de desconvocar o Sr.AJP na reunião que convocou para o dia 27.10.2015.”

28. Pergunta-se: que forma foi essa como decorreram as negociações? O que aconteceu? E em que factos se fixou o Tribunal para chegar à referida conclusão?

29. Ora, fez o Tribunal tábua rasa do facto de a alegada forma denunciada pelo SR. AJP (que apenas se queixou que havia sido colocado fora da negociações por não ter comparecido na reunião que se levou a cabo em Coimbra e que os credores bancários não tinham sido igualmente chamados a negociar) ter sido devida e efectivamente contestada pelo devedor. Vejam-se os requerimentos do devedor de 22 de Dezembro de 2015 e 5 de Fevereiro de 2016- DOCS 2 e 3.

30. O que sucedeu, nesta sentença, foi que o Juiz, sem mais, optou por atender ao invocado pelo Sr. Administrador, descredibilizando sem mais a contestação, quer do devedor quer dos requerimentos dos demais credores. Vejam-se os Requerimentos dos credores (…)- Docs 4 e 5.

31. De facto, quem conduziu mal as negociações foi sim o Sr. AJP, conforme alegado pelo devedor e credores supra referidos – e assumido até (repare-se) pelo tribunal a quo, que refere “(...) as obrigações e os poderes em que o Sr.AJP estava investido e a forma pouco concisa e até desorganizada e intempestiva como procedeu”

32. Assim, sem devidamente fundamentar, optou o Tribunal por colher a razão do invocado pelo Sr. AJP, não assistindo, por isso, qualquer razão ou mérito no aí sentenciado.

33. Foram violadas as normas dos artigos 215, 17º-A, n.º2 e 17º -C, n.º1), 17 G nº 4 todos do CIRE e o Art. 2º da CRP.

Contra alegou o credor Banco (…), S.A., pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

a) Andou bem o Tribunal a quo ao decidir pela insolvência do aqui Recorrente e não pela homologação do Plano Especial de Revitalização.

 b) Desde o início, que o douto Tribunal Recorrido alertou o Recorrente que o barco não iria a bom porto, logo de início por estarmos perante indícios claros de uma situação de insolvência, sendo que a posterior actuação do Recorrente só demonstrou o inevitável naufrágio.

 c) Nas palavras do douto tribunal recorrido, proferidas em sede de despacho liminar, e relembradas na douta sentença recorrida: “Nestas circunstâncias e ao contrário do alegado pelo devedor na sua p. i. mostra-se, a nosso ver, com o que por si é alegado, os factos índices de insolvência actual previstos no art. 20.º nº 1 als. a), b), e) g) iv), pelo menos, do CIRE, e muito provavelmente indiciadas as als. I) e II) deste último normativo.”

d) Logo em sede de Petição Inicial, era possível aferir que o património do Recorrente representava muito menos que 10% do seu passivo, já que o passivo do Recorrente ascende a €1.739.465,97, sendo que o seu activo é composto por apenas um bem imóvel, hipotecado, com o valor patrimonial de €71.339,83

e) A essência do regime legal do PER é visar a recuperação económica do Devedor e, em situações como a dos autos, com um passivo extremamente elevado como este, infelizmente, a aplicação do regime do PER fica esvaziada do seu objectivo.

f) O plano foi elaborado à revelia do Sr. Administrador Judicial Provisório e à revelia dos credores garantidos, já que as negociações – pilar do PER – foram realizadas apenas com os credores comuns, representativos da maior percentagem de voto, o que fere gravemente o princípio da igualdade dos credores, uma das irregularidades procedimentais que este processo está ferido, nos termos do art. 194.º do CIRE.

g) Todos os credores garantidos votaram contra o plano apresentado, já que basta uma leitura rápida do mesmo para se perceber que estes foram seriamente prejudicados, prevendo o plano período de carência de 3 anos de pagamento de capital e juros, e decorridos 4 anos previa um encargo mensal do Devedor de €8.548,60.

 h) Ora, pela conjuntura actual do nosso país, percebe-se o quanto é irreal expectar que um cidadão comum, de 28 anos, aufira tal rendimento, atendendo ainda que o mesmo faz uma operação de futurologia, visto que aponta como certo um montante de rendimento a auferir no futuro, daqui a 4 anos, sem certezas, de facto e comprovadas, que tal ocorrerá.

i) Para além de que o plano prevê pagamentos aos credores quase ad eternum, o que não é de estranhar, pelo montante avultado do passivo, mas sim de repelir, já que os credores teriam de se sujeitar a ver os seus créditos ressarcidos talvez daqui a uns modestos 80 anos.

 j) Para além de que os credores deveriam passivamente aguardar durante 4 anos pelo pagamento de apenas uma parte – bem pequena – dos créditos que reclamaram,

k) Não é de espantar que os credores comuns tenham votado a favor do plano apresentado, visto que de outro modo nunca veriam os seus créditos satisfeitos.

 l) Pelo que também não é de espantar que as negociações encetadas tenham sido realizadas apenas com os credores comuns, ficando os credores garantidos completamente alienados do decorrer do processo, tal como o Sr. Administrador Judicial Provisório.

 m) Razão pela qual andou bem a Sentença recorrida ao declarar expressamente que houve uma preterição substancial do princípio da boa fé e transparência.

n) O Sr. AJP foi colocado à parte de todas as negociações, sendo ele o agente fiscalizador e regulador de todo o processo, conforme o disposto no art.º 17.º- D do CIRE.

o) Verdade é que o plano foi aprovado, mas por lapso do Sr. AJP, que não considerou os votos de alguns credores, considerou o plano não aprovado, pelo que no estrito respeito da lei, emitiu parecer, nos termos do art. 17.º-G, n.º 4. 

p) Parecer este que, como não poderia deixar de ser, denunciou todas as irregularidades procedimentais que ocorreram e que pronunciou-se pela situação de insolvência actual do Devedor.

q) Tal como todos os credores instituições bancárias e credores garantidos, que através de inúmeras comunicações ao processo já o vinham a dizer, manifestaram-se pela concordância com o parecer do Sr. AJP.

r) Ao abrigo do disposto no art.º 17.º - A CIRE, entende-se que o PER apenas se aplica naquelas situações que ainda é possível a recuperação através de negociações que levem à manutenção do devedor no giro comercial. Isto é,

s) Apesar dessa situação de insolvência iminente, o devedor que enfrente a dificuldade séria ainda consiga cumprir pontualmente as suas obrigações e seja susceptível a sua recuperação, o que não é o caso dos autos.

 t) Várias das presunções previstas no art. 20.º do CIRE encontram-se claramente preenchidas, havendo uma suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas e incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas tributárias ou à Segurança Social, nos termos das als. a) e g), i) e ii), do mesmo artigo.

 u) Pelo passivo apresentado e o escasso activo do Devedor, pelo preenchimento das presunções legais previstas no art. 20.º, dúvidas não restam que o Recorrente está, como sempre esteve desde do início, numa situação de insolvência.

v) Pelo que andou bem o Tribunal a quo ao referir na douta sentença ao dar como “(…) comprovada a situação insolvência actual do devedor e a insusceptibilidade da sua recuperação por via do plano por si apresentado e homologado pela maioria dos credores”. Deste modo,

w) Ao contrário do alegado pelo Recorrente, o juiz a quo agiu nos precisos termos legais, já que nos termos do art. 17.º-F, n.º 5, “o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação”. (sublinhado nosso)

x) Nos termos do art. 215.º, o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza.

y) Deste modo, a situação dos presentes autos pedia uma actuação judicial, urgente.

z) O juiz de insolvência está vinculado ao dever de controlar a legalidade

aa) Pois que se aplaude a posição vertida na douta Sentença Recorrida, pois nos termos constitucionais é função dos tribunais interpretar a lei e aplica-la com estrito respeito pelos princípios legais basilares do nosso sistema jurídico.

bb)A situação dos presentes autos feria o objectivo do legislador ao consagrar um regime especial como o do PER, que permite, em especial às empresas, regularizar os compromissos com os credores, antes de uma situação de insolvência irreversível.

cc) Para além de já estarmos perante uma situação de insolvência actual, notória e irreversível, a confiança necessária a qualquer actuação pautada pelo compromisso, entre o Devedor e os seus Credores, estava comprometida.

dd) Se o barco não naufragasse agora, naufragaria mais tarde ou mais cedo, a menos que o Devedor encontrasse um tesouro escondido no fundo do mar.

ee) Pois é óbvio que o Recorrente não teria condições económicas para suportar o plano de pagamentos previsto no plano, o que iria culminar numa inevitável declaração de insolvência.

 ff) Pelo que o Recurso apresentado deverá ser julgado improcedente e a douta Sentença recorrida mantida, com todas as consequências legais.

4.

Sendo que, por via de regra - artºs 635º e 639º-A  do CPC -, de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

(I)legalidade da decisão de recusa de homologação do plano de recuperação aprovado.

5.

Apreciando.

5.1.

A 1ª instância decidiu  a não homologação do plano por razões substanciais e  por motivos formais/procedimentais.

Quanto aquelas considerou  que a situação do devedor é já de  insolvência atual e que o plano apresentado não se alcança idóneo.

Relativamente a estas aduziu que foram  preteridos  pelo devedor, ao longo do processo - por não permitir ao AJP um adequado acompanhamento e participação em todos os  atos pertinentes, vg. atinentes às negociações -,  os  princípios da boa-fé e  da transparência.

No que tange à 1ª ordem de razões alicerçou-se no seguinte, nuclearmente sintetizado, discurso argumentativo:

«estatui o n.º 1 do art.17-A do CIRE que “o processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.”

Como sabemos o procedimento especial de revitalização surge como uma resposta ao ensejo da política legislativa nacional de amenizar o «ADN» estrutural do CIRE predestinado à efetivação da liquidação patrimonial, como forma a dar resposta ao período conjuntural de recessão económica vivenciado internacionalmente desde o ano de 2008, com grande impacto no tecido empresarial, económico, financeiro e das suas famílias. Visou, em suma, combater o exaurimento e empobrecimento do tecido empresarial, por um lado, e por outro promover a sua maior recuperação...

Ora, o art.17-B do CIRE estatui que “para efeitos do presente Código, encontra-se em situação económica difícil o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.”

O mencionado normativo densifica o conceito de situação económica difícil, sendo que o conceito de insolvência meramente iminente já se encontra enunciado no n.º 4 do art.3.º do CIRE por mera delimitação negativa do conceito de insolvência.

Quer isto significar que aqueles dois normativos consagram três graus económicos:

- A situação de insolvência atual que equivale à impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas (art.3.º n.º 1 do CIRE);

- A situação de insolvência meramente iminente que corresponde ao cenário em que o devedor está impedido de cumprir com as suas obrigações ainda que não vencidas, mas a vencer no futuro (art.3.º n.º 1 e 4 e 20.º n.º 1 do CIRE);

- A situação económica difícil corresponde ao cenário em que o devedor tem grandes dificuldades de cumprimento das suas obrigações, em especial por falta de liquidez, por não conseguir obter crédito junto de terceiros …

Se à partida com o recebimento do PER o juiz não terá a maior parte das vezes forma de sindicar a real situação do devedor por referência a qualquer um daqueles enunciados, até porque o devedor tem a obrigação de atestar que se encontra em situação económica difícil mas ainda assim recuperável, e o juiz naquela altura não tem porque duvidar. O certo é que findo o procedimento do PER e estabelecido o valor do passivo e concretizado o seu ativo, com ou sem apresentação de plano, após ser conhecido o parecer qualificado do Sr.AJP, passa a estar o processo habilitado para nele se sindicar o pressuposto substantivo que se mostra incito naquele normativo, especialmente em casos de insolvência atual comprovada.

Cumpre então trazer à colação aquele que foi o teor do despacho liminar proferido nos autos e seu convite ao aperfeiçoamento (fls.17-18):

“- O requerente tem 28 anos de idade e nãos e conhece o seu estado civil por não ter sido junta a competente certidão de nascimento cuja junção se determinará infra – art.1.º da p.i.

- Tem um passivo declarado no valor de 845.283,70 € - art.21.º da p.i.

- Não declarou, à data, uma qualquer fonte de rendimento do seu trabalho ou outra (art.26.º), muito embora tenha a expectativa de vir a auferir 1.500,00 € por mês num contrato de trabalho a executar no estrangeiro e uma renda anual de 3.360,00 € decorrente da outorga de um contrato de arrendamento de que junta uma promessa.

- É proprietário de um imóvel com o valor patrimonial de 71.339,83 € e cujos ónus e encargos não se documentaram.

- Não tem património, mobiliário ou imobiliário, ou liquidez (art.9.º e 10.º da p.i.)

- Na informação constante na Central de Responsabilidades de Crédito que documenta a fls.8 a 9, cujo teor dou aqui por integrado, referente a 31.03.2015, resulta que os créditos detidos:

(i) pelo Banco Santander Totta, S.A., no valor global de 78.000,00 €, estão vencidos á mais de 18 meses e entre 36 meses;

(ii) pelo BCP, S.A., no valor de 82,999,00 €, mostra-se vencido há mais de 24 meses e até 33 meses, nesta altura.

(iii) pelo Banif, S.A., no valor de 34.349,00 €, mostra-se vencido entre 30 e os 39 meses, nesta altura;

(iv) Tem dívidas ao ISS, IP, no declarado valor de 8.000,00 € e ainda à DGCI no valor de 12.000,00 €.

Nestas circunstâncias e ao contrário do alegado pelo devedor na sua p.i. mostra-se, a nosso ver, com o que por si é alegado, os factos índices de insolvência atual previstos no art.20.º n.º 1 als.a), b), e) g) iv), pelo menos, do CIRE, e muito provavelmente indiciadas as als.i) e ii) deste último normativo.

Por outro lado, o seu património (porventura onerado) representa muito menos de 10% daquele que será o seu passivo global, sendo que não declarou qualquer rendimento do seu trabalho ou outro de onde provenha o dinheiro para canalizar para os seus credores. Apenas uma expectativa futuro numa situação de emprego e de exploração da sua habitação que estará por certo onerado e que os credores hipotecários certamente se oporão, nem que não seja, porque os contratos de mútuo com hipoteca preveem, regra geral, uma restrição contratual de ceder a habitação própria a rendimento. (…)

Em resposta o devedor informa que já se mostra empregado e auferirá um salário no valor de 1.950,00 € por mês acrescido de comissões que por esquecimento não havia sido referido;

tem o apoio financeiro dos seus pais e refletiu com base em alguma jurisprudência que cita a forma como deve ser perspetivada a intervenção do juiz do comércio no âmbito deste processo (fls.21 e ss).

O decurso das negociações e o plano de revitalização apresentado pelo devedor não só não dissipou as reservas iniciais que se consignaram como a nosso ver encontram-se francamente corroboradas em face da duplicação do valor do ativo (queria dizer-se, passivo) para uns consideráveis 1.739.465,97 €, face à lista por si junta nos termos do art.24.º n.º 1 al.a) do CIRE.

Mantemos o que então dissemos em despacho liminar e é para nós evidente que de facto o devedor se encontra em situação de insolvência atual uma vez que se verificam os factos índices demonstrativos da sua insolvência nos termos previstos no art.20.º n.º 1 als.a), b), e) g), i, ii e iv) do CIRE. Vejamos a ausência de liquidez, exiguidade do valor do seu património imobiliário no confronto com a dimensão do seu passivo:

- No plano de insolvência apresentado pelo devedor, no seu ponto III, o devedor explica que desde o ano de 2010 exerceu em exclusivo a atividade de sócio e gerente de uma sociedade unipessoal por quotas designada de D (…), lda., com objeto social de compra e venda de automóveis para revenda,  que constituiu outras empresas que se viu obrigado a encerra no ano de 2013, tendo recaído sobre si as responsabilidades financeiras pessoais que havia assumido e deixado de cumprir com as suas obrigações financeiras (fls.176 e 176-v).

- “Vem acumulando um défice mensal recorrente, não conseguindo suprir obrigações, bem como recuperar essas moras nos meses que se seguem…” (sic) – cfr. fls.176-v.

- O seu património é constituído pelo prédio urbano descrito na 2.ª CRP de Leira pela ficha com o n.º 3114/19940325-V, avaliada na matriz no ano de 2014 com o valor patrimonial de 71.339,83 € - vide certidão matricial de fls.10 – e um vencimento mensal ilíquido declarado de 1.950,00 € por mês.

- O seu passivo ascende a 1.739.465,97 € - fls.178 do plano.

- Pretende arrendar o seu apartamento que é bem próprio, onerado com hipoteca a favor de um seu credor hipotecário, e obter um rendimento ilíquido de 280,00 € por mês.

- O plano aprovado prevê um período de carência de 3 anos de pagamento de capital e de juros e decorridos 4 anos prevê um encargo mensal com o reembolso dos credores no valor de 8.548,60 € por mês.

- Se tais rendimentos provierem do trabalho, com uma incidência fiscal atual de 50% em sede de IRS, quer significar que o devedor perspetiva daqui a 4 anos auferir mais de 16.000,00 € brutos por mês só para pagar aos seus credores e sem contar com os valores necessários à sua subsistência.

*

Em face da factualidade que antecede é para nós manifesto que o devedor (não) se encontra…numa situação suscetível de recuperação. Na verdade, e infelizmente, assim não acontece.

Por outro lado o plano apresentado é também ele insuscetível de obter ou potenciar a sua recuperação quando o seu único património imobiliário nem sequer vai ser liquidado para pagamento aos credores e os encargos com a sua execução daqui a 4 anos são de tal monta que não se torna verosímil que o mesmo possa ser por si observado.

*

Este diagnóstico de natureza diferencial impõem-se quando se possuam elementos objetivos para tal, por forma a restringir o acesso ao PER apenas a devedores que não se mostrem insolventes e que possam formular um juízo de prognose de recuperabilidade favorável da sua atividade, como forma de “(…) impedir o uso abusivo do processo de revitalização e preservar a natureza e o fim com que a lei o gizou, bem como a credibilidade que a lei lhe conferiu.” – cfr. douto acórdão da Relação de Coimbra de 05.05.2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

Louvando-nos com a devida unção no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.11.2015 disponível para consulta em www.dgsi.pt, invocado por um dos credores nos autos, a cuja doutrina aí contida aderimos, e passamos a citar o seu sumário.

I. Pese embora o processo especial de revitalização se resolver num procedimento de feição marcadamente extrajudicial, tal não significa que a liberdade e a autonomia da vontade dos intervenientes no processo não sofram limitações e não possam ser contrariadas pelo tribunal.

II. Se o processo revelar inequivocamente que o devedor se encontra numa situação de insolvência atual, o juiz deve recusar oficiosamente a homologação do plano que, ainda assim, foi aprovado.

III. Em tal situação estamos perante uma violação não negligenciável das regras procedimentais e da norma legal basilar (a que define em que situações é admitido o processo de revitalização) que permite a realização ou preenchimento do seu conteúdo.

IV. Acresce que o uso ilegal e abusivo do procedimento implica a nulidade do negócio jurídico subjacente e, inclusivamente, a sua neutralização por excesso manifesto dos limites impostos pelo fim económico do direito.”

Naquele caso…Aí se escreveu a propósito da iniciativa dos devedores em lançar mão daquele processo que por identidade de razão com o caso dos autos se transcreve a seguinte passagem: “(…) limitaram a lançar mão de um expediente legal para o qual não eram elegíveis, procurando assim, de boa ou de má-fé (não importa), contornar indevidamente os efeitos da sua falta de solvabilidade atual. Como acima se apontou, a filosofia subjacente ao procedimento de revitalização é, ademais de recuperar empresas a bem da economia do país e sem gravame intolerável para os credores, apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis, isto é, de indivíduos que estejam realisticamente em condições económicas de responder pelo cumprimento acordado das dívidas. Não é, manifestamente, o caso.”»

5.2.

O presente discurso apresenta-se adequado e curial, desde logo em tese e dogmaticamente, no que à génese, natureza, finalidade do PER e às exigências legais para que este seja aceite.

Correspondendo, como aliás resulta das citações na decisão efetivadas, às posições defendidas pela melhor doutrina na matéria e pela jurisprudência dos tribunais superiores.

Em seu abono e corroborando-o, dir-se-á que é certo que a ratio e teleologia do CIRE, na sua redação matricial, qual seja a liquidação imediata do seu património do devedor com a satisfação dos direitos e interesses dos credores, na mais ampla perspetiva, deu lugar, com a alteração ao processo de insolvência, introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20/04, que aditou as normas reguladoras do PER, a que o fito primeiro e fulcral  do processo de insolvência, passasse a ser a recuperação do devedor.

Assim, o objetivo do legislador do CIRE, na sua redação inicial, de desjudicializar o processo e perspetivar este, essencialmente, como um processo em que aos  interessados é facultada a possibilidade de modelarem as suas pretensões,  parece ter-se acentuado.

Efetivamente, e como dimana dos seus preceitos atinentes – artº 17º A e segs -, todo o processo do PER, ainda que com intervenção, ativa e atual, do Sr. administrador judicial provisório e uma fiscalização, mais a posteriori, do Juiz, assume-se e consubstancia-se, na sua vertente material ou substancial, como uma negociação entre devedor e credores.

Por conseguinte, é evidente que os princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade assumem uma importância acrescida.

Mas não obstante toda a amplitude de atuação que os interessados têm à partida, ex vi  daquele desiderato primordial e destes princípios, é evidente que, como em tudo o mais, ela tem limites.

Pelo que nem os credores podem atuar  de um modo desmedido e atribiliário, porventura em conluio, entre si ou com o próprio devedor, para obterem fitos ilegais; nem, correspondentemente e precisamente para obviar a estes riscos, a intervenção do juiz se pode limitar à de um mero e, quiçá, passivo, árbitro que apenas fiscaliza a infração clamorosa e evidente de regras ou procedimentos de elevada magnitude.

Efetivamente, e no que concerne à atuação dos credores aquando gizam e substanciam o plano de insolvência, devem eles respeitar certas regras e princípios, como sejam, vg., os da igualdade  de tratamento dos credores, e o da clara definição do seu conteúdo – artºs 194º e 195º do CIRE.

Já no que respeita aos poderes de intervenção  do juiz, pode, e deve, ele intervir, pronunciar-se e decidir, oficiosamente ou a pedido, nos termos dos artºs 215º e 216º aplicáveis por força do artº 17º-F nºs 5 e 6 com o seguinte teor:

«5 - O juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título ix, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º

6 - A decisão do juiz vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações… »

Havendo ainda que perspetivar o princípio do inquisitório plasmado no artº 11º do CIRE, nos termos do qual:

«No processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.»

Nesta conformidade estatui o artº 215º do CIRE:

«O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.»

A este respeito, urge chamar à colação o disposto no art. 195.º do CIRE relativa ao plano de insolvência, aplicável subsidiariamente ao plano de revitalização, o qual, para além do mais, prescreve

«1 - O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência.

2 - O plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente:

a) A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor;…

c) No caso de se prever a manutenção em actividade da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiro, e pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, plano de investimentos, conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, e balanço pró-forma, em que os elementos do activo e do passivo, tal como resultantes da homologação do plano de insolvência, são inscritos pelos respectivos valores;

d) O impacte expectável das alterações propostas, por comparação com a situação que se verificaria na ausência de qualquer plano de insolvência;…»

O plano de revitalização deve, pois, indicar com clareza as alterações que comporta para a posição jurídica dos credores, esclarecer a situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor e dar conta do impacte expectável das alterações propostas por comparação com a situação que se verificaria na ausência de plano.

 O que se justifica pela necessidade de esclarecer os credores, chamados a decidir sobre o seu destino, de forma a poderem ponderar convenientemente as vantagens da respetiva aprovação.

E, bem assim, de se poder aquilatar sobre a sua idoneidade e viabilidade futura.

Por outro lado, o apresentante ao PER deve encontrar-se apenas em situação económica difícil ou, no máximo, em situação de insolvência iminente – arº17º-A.

É de notar que este último estado já fundamenta o decretamento da insolvência no caso de apresentação do devedor à mesma – artº 3º nº4.

Parecendo assim existir aqui uma margem de sobreposição da mesma figura ou estado económico que, algo contraditoriamente, fundamenta duas pretensões diversas e claramente diferenciadas nos seus efeitos.

Temos para nós que o quid diferenciador e que pode afastar tal incongruência reside no estado  ou situação mais, ou menos, gravoso do devedor, o qual pode, ou não, clamar um juízo de prognose quanto à possibilidade da sua recuperação.

Destarte, se não obstante a iminência da insolvência, se pode concluir que, com suficiente plausibilidade, o devedor ainda pode recuperar, será admissível o recurso ao PER.

Se, pelo contrário, a gravidade da situação económico-financeira é de tal ordem que tal juízo de recuperação não pode ser formulado, então o caso cabe na insolvência.

É esta a interpretação que mais se compagina com o disposto no artº 17-A nº1, a saber:

«O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.»

5.3.

Aqui chegados entendemos existir respaldo suficiente para se concluir pela sem razão do liminar argumento do recorrente, qual seja, que à julgadora estava vedado recusar a homologação do plano aprovado – aprovação que, diga-se, apesar de ter a maioria de votos, teve uma  minoria de credores votantes -, máxime já numa fase adiantada, que não liminar.

Na verdade, e como vem de demonstrar-se, num processo judicial, a última palavra cabe, como é bom de ver e intuitivo, porque da natureza das coisas e compaginante com o exercício do múnus jurisdicional, ao juiz – cfr. Ac. do STJ de 03.11.2015, p. 1690/14.2TJCBR.C1.S1.

Por outro lado, o facto de ter inexistido indeferimento liminar – o qual, aliás, nem se nos afigura possível, perante a estatuição do artº 17º -C, nº3 al. a) – não significa que, posteriormente, o juiz fique inexoravelmente vinculado à homologação do PER aprovado contra lege lata.

Como se viu, a lei atribui-lhe o poder/dever da não homologação e esta é/pode ser ainda mais adequada/curial/justa numa fase mais avançada, pois que nela certamente existem elementos adicionais que permitem uma decisão mais conscienciosa.

Importa porém salientar, mesmo acedendo, ad absurdo, ao entendimento do recorrente, que desde o início do processo a julgadora teve muitas dúvidas sobre a viabilidade/recuperação do devedor, exarando despachos que apontam claramente no sentido de que a sua convicção desde sempre esteve gizada no sentido da inviabilidade da sua pretensão, a qual apenas não terá sido liminarmente rejeitada porventura no admissível entendimento de que a lei não o permite.

Os factos provados apontam, numa laboração exegética adequada e sagaz, para, mais do que uma situação económica difícil, uma situação de insolvência atual, ou, pelo menos, iminente e sem possibilidade real de recuperação.

Na verdade, e nuclearmente, estamos perante um quadro factual que define um passivo inicial – ante plano de recuperação – de  mais de um milhão e setecentos mil euros, contraposto a um ativo constituído por um alegado rendimento salarial de cerca de mil e quinhentos euros mensais e a propriedade de um imóvel com um valor patrimonial de pouco mais de setenta mil euros e sobre o qual incide hipoteca para garantir um valor superior a cem mil euros.

E mesmo concedendo nesta situação menos intensa de insolvência iminente, urge apurar se ela  apresenta ainda laivos consistentes de recuperação.

E a resposta é, lógica, sensata e razoavelmente, negativa.

Mesmo perante a redução do passivo vertida no plano, ele alcandora-se ainda a  mais de setecentos mil euros; enquanto que  o ativo do recorrente mantém-se  nos valores supra referidos.

Ora este ativo é manifestamente insuficiente para se poder augurar que o plano venha a ser cumprido e o devedor venha a recuperar.

Efetivamente, nele estabelece-se um prazo muito dilatado para a solvência das dívidas – 33 anos – durante o qual naturalmente muitas vicissitudes podem ocorrer, designadamente no atinente à manutenção da principal fonte de rendimentos do recorrente – o seu salário – a qual, naturalmente, e uma vez que estamos no âmbito de uma relação laboral de índole privada, não é minimamente previsível que se mantenha ao longo de tão amplo lapso temporal.

Certo é que no plano não consta que o devedor satisfaça as dívidas à razão de mais de oito mil euros mensais, nem isso seria possível em função dos rendimentos que diz auferir.

Mas nele também não consta qualquer valor concreto relativamente às trinta prestações anuais que se fixaram para pagamento da larga maioria da dívida.

Fixa-se  o pagamento de uma certa percentagem  da dívida para certo numero de prestações – vg. 10% para as primeiras dez, 40% da 11ª à 20ª, 40% da 21ª à 29ª, 10% para a final – mas não se fixam valores, designadamente se as tranches de cada percentagem são de igual montante, ou não.

Ou seja,  para além da enorme discrepância entre o ativo e o passivo, que demonstram ou indiciam suficientemente uma insolvência atual, nem o próprio plano «descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar»; bem como  não demonstra os  previsíveis fluxos de caixa pelo período de ocorrência dos pagamentos aos credores, em que os elementos do activo e do passivo são inscritos pelos respectivos valores.

Isto é, o plano viola, pelo menos, alguns dos requisitos do artº 195º do CIRE e que são conditio sine qua non para a sua aprovação e, mesmo que aprovado, para a sua homologação.

Em suma, o plano viola, desde logo, normas aplicáveis ao seu conteúdo: quer porque contende com as que proíbem um plano relativamente a uma situação insolvencial atual, ou mesmo iminente mas sem possibilidade de recuperação futura; quer porque constrange intoleravelmente aqueloutras que regem para a sua própria e intrínseca formulação e arquitetura, das quais, como se viu, tem de retirar-se um forte juízo prognóstico quanto à sua real e efetiva exequibilidade.

Verificado o insanável vício substancial ou ilegalidade do plano, queda despiciendo  e redundante aquilatar da violação de normas procedimentais, pois que, quer tal violação existisse, ou inexistisse, em qualquer dos casos aquela ilegalidade subsistiria.

Improcede, brevitatis causa, o recurso.

 7.

Sumariando.

I - Em sede de PER, o juiz pode recusar, oficiosamente, a homologação do plano de recuperação aprovado pela maioria dos créditos, se, perante os factos provados, desde logo entender que existe violação  não negligenciável de normas aplicáveis ao seu conteúdo – artº 215º  ex vi do artº 17º-F nº5 do CIRE - vg., por a situação ser já de insolvência atual ou de insolvência iminente sem perspetivas de recuperação, e/ou por  ele não cumprir as especificações do artº 195º do CIRE.

II – Subsume-se nesta previsão o caso do devedor que tem dívidas ante plano de mais de 1.700.000 euros e pós plano de mais de 700.000 euros,  que  aduz rendimentos de apenas cerca de 1.500 euros mensais oriundos de atividade laboral privada, sendo que no plano se plasma o pagamento durante 33 anos, sem descrição das medidas necessárias à sua execução, e sem demonstração dos  previsíveis rendimentos futuros durante aquele dilatado período.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2016.07.06.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos