Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
393/11.4TBSRT-U.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: CRÉDITOS LABORAIS
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO, FUNDÃO, JUÍZO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: S ARTIGOS 333.º DO CÓDIGO DO TRABALHO E 175.º, N.º 1, DO CIRE,
Sumário: Os créditos laborais, reconhecidos e graduados, devem ser pagos, em primeiro lugar, pelo produto resultante da venda dos bens imóveis, dado o privilégio imobiliário especial de que gozam os trabalhadores da insolvente e só depois, se insuficiente, pelo produto resultante da venda dos bens móveis, dado o privilégio mobiliário geral de que, também, beneficiam.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

No decurso dos autos de insolvência, de que provêm os presentes e em que foi declarada insolvente, por decisão já transitada em julgado, “A..., L.da”, já identificada nos autos, foi proferida a sentença de verificação e graduação de créditos, na qual se decidiu o seguinte:

“1. Em face de todo o exposto, decide-se:

a) Corrigir a lista do Sr. Administrador de Insolvência no que concerne aos créditos da trabalhadora B...., o qual se fixa em € 5.350,00 e da credora I... o qual se fixa em € 502,42;

b) Julgar improcedentes as impugnações à relação de créditos reconhecidos pelo Sr. administrador de Insolvência deduzidas pela C...., S.A., reconhecendo-se, consequentemente, o privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos para a massa insolvente relativamente aos créditos dos trabalhadores D... , E... , F... , G... , H... e B... .

2. Determina-se que se proceda ao pagamento dos créditos, através do produto da massa insolvente, levando-se em consideração que as dívidas da massa saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada um dos bens apreendidos (artigo 172º nº 1 e 2 do C.I.R.E.) e do remanescente, dar-se-á pagamento pela seguinte forma:

 a) Quanto às verbas nºs 1 e 2 do auto de apreensão de bens, imóveis descritos na Conservatória do Registo Predial da Sertã sob os nºs 5594/20011026 e 5593/20011026:

- Em 1º lugar os créditos dos trabalhadores D... , E... , F... , G... , H... e B... em rateio, na proporção dos respectivos montantes, encontrando-se o Fundo de Garantia Salarial sub-rogado nas suas posições na estrita medida do pagamento parcial realizado a cada um (cfr. quadros de pagamentos de fls. 219, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), mantendo-se os mesmos como credores na parte do crédito não satisfeita pelo Fundo, pelo que no rateio final, devem ser incluídos e contemplados, paritária e proporcionalmente, tanto o crédito do Fundo de Garantia Salarial, enquanto credor sub-rogado, como a parte remanescente dos créditos dos trabalhadores, não pagos pelo FGS, de acordo com o disposto no art. 175º do C.I.R.E.;

- Em 2º lugar o crédito garantido da C... , S.A. no valor de €390.794,85;

- Em 3º lugar o crédito garantido do J...., S.A. no valor de € 226.850,70, levando-se em consideração o supra referido no que concerne aos créditos sob condição;

- Em 4º lugar o crédito do INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P., na parte privilegiada, no montante € 36.025,94;

- Em 5º lugar, em igualdade de circunstâncias e por rateio, os créditos classificados como comuns;

- Por fim, em 6º lugar, os créditos subordinados.

b) Pelo produto da venda dos restantes bens móveis apreendidos:

- Em 1º lugar os créditos dos trabalhadores D... , E... , F... , G... , H... e B... em rateio, na proporção dos respectivos montantes, encontrando-se o Fundo de Garantia Salarial sub-rogado nas suas posições na estrita medida do pagamento parcial realizado a cada um (cfr. quadros de pagamentos de fls. 219, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), mantendo-se os mesmos como credores na parte do crédito não satisfeita pelo Fundo, pelo que no rateio final, devem ser incluídos e contemplados, paritária e proporcionalmente, tanto o crédito do Fundo de Garantia Salarial, enquanto credor sub-rogado, como a parte remanescente dos créditos dos trabalhadores, não pagos pelo FGS, de acordo com o disposto no art. 175º do C.I.R.E.;

- Em 2º lugar, em rateio, o crédito do INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P. e da FAZENDA NACIONAL a título de IVA na parte privilegiada, no montante € 36.025,94 e € 1.865,85, respetivamente;

- Em 3º lugar, em igualdade de circunstâncias e por rateio, os créditos classificados como comuns;

- Por fim, em 4º lugar, os créditos subordinados.

Nos termos do disposto no art. 527º do C.P.C., as custas da impugnação serão suportadas pela credora impugnante – C.G.D., S.A. na proporção do respetivo decaimento, sendo neste caso total.

Não obstante, e na impossibilidade de se fixar um efetivo decaimento por reporte à globalidade dos créditos reclamados, ainda que por confronto, aos impugnados (53.193,24), decide-se fixar em 4 U.C.s a taxa de justiça devida, cfr. tabela II anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Valor da ação: o do ativo (art. 301º, in fine, do C.I.R.E.).

Registe e notifique, sendo que ao Sr. Administrador de Insolvência deverá enviado o requerimento do F.G.S., de molde a permitir-lhe compreender os pagamentos já efetuados.”.

Notificados os credores da mesma, no que ao presente recurso interessa, veio o MP, em representação da Autoridade Tributária, reclamar do mapa de rateio, efectuado na sequência do ali decidido, alegando que o mesmo não respeitou a proposta de rateio apresentada pelo AI, que contempla o pagamento de parte do crédito privilegiado reclamado pela AT, referente a IVA, porque o mapa de rateio efectuado pela secretaria teve em conta, em primeiro lugar, o valor referente aos bens móveis e só depois o dos imóveis, em função do que não restou qualquer valor remanescente para o crédito de IVA, o que não sucederia, se se iniciasse o pagamento dos créditos dos trabalhadores, pelo produto da venda dos imóveis.

Notificada a C... (única credora com garantia real, sobre os imóveis apreendidos), defendeu a justeza do modo como foi elaborado o rateio, sob pena de assim não sendo, ser pago o crédito privilegiado da AT, em detrimento do seu crédito, garantido por hipoteca a seu favor.

Conclusos os autos à M.ma Juiz a quo, foi proferida a decisão aqui junta de fl.s 25 a 27, (aqui recorrida) que indeferiu a reclamação deduzida pelo MP, mantendo-se o rateio nos moldes efectuados pela secretaria; ou seja, iniciando-se o pagamento dos créditos dos trabalhadores com o produto da venda dos bens móveis, resumidamente, por se entender que, nos termos do disposto no artigo 175.º, n.º 1, do CIRE, os credores privilegiados devem ser pagos prioritariamente, à custa do produto da liquidação de bens não onerados com garantias reais, mas assim não sendo quando os privilégios devam prevalecer sobre as garantias constituídas, como acontece no caso dos trabalhadores, aderindo ao defendido por Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado, 2.ª Edição, a pág. 688.

 

Inconformado com a mesma, interpôs recurso, o MP, em representação da AT, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 39), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

A – O rateio apenas se realiza quando haja créditos com garantia da mesma natureza;

B- Quando tenham sido graduados créditos de trabalhadores, como é o caso dos autos, os mesmos devem ser graduados em primeiro lugar sobre os bens móveis (imóveis?) a por gozarem de privilégio imobiliário especial e por lhe ser atribuída por lei essa prioridade, cfr. art. 333º do Código do Trabalho, e, consequentemente, pagos em primeiro lugar pelo produto da venda dos bens imóveis em virtude de gozarem de privilégio imobiliário especial;

C- O art. 333º do Código do Trabalho ao atribuir aos créditos laborais privilégio imobiliário especial e mobiliário geral não confere ao privilégio mobiliário geral prioridade sobre o imobiliário especial, antes pelo contrario o privilégio imobiliário especial, por força das disposições legais supra elencadas, prevalece sempre sobre o privilégio mobiliário geral e, consequentemente, o pagamento dos créditos terá que se iniciar tendo em conta esse critério.

 Por todo o exposto e porque o douto despacho recorrido (despacho de fls. 597 a 599) viola os preceitos legais referenciados supra deve ser substituído por outro que ordene o pagamento dos créditos verificados e graduados nos autos se inicie em primeiro lugar pelo produto da venda dos bens imóveis e so depois pelo produto da venda dos bens móveis como é de JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se os créditos laborais, reconhecidos e graduados, devem ser pagos, em primeiro lugar, pelo produto resultante da venda dos bens imóveis, dado o privilégio imobiliário especial de que gozam os trabalhadores da insolvente e só depois, se insuficiente, pelo produto resultante da venda dos bens móveis, dado o privilégio mobiliário geral de que, também, beneficiam, ou vice-versa.

A matéria de facto relevante é a que consta do relatório que antecede.

Se os créditos laborais, reconhecidos e graduados, devem ser pagos, em primeiro lugar, pelo produto resultante da venda dos bens imóveis, dado o privilégio imobiliário especial de que gozam os trabalhadores da insolvente e só depois, se insuficiente, pelo produto resultante da venda dos bens móveis, dado o privilégio mobiliário geral de que, também, beneficiam, ou vice-versa.

Como resulta do relatório que antecede, designadamente, do teor da sentença de verificação e graduação de créditos, reclamação do MP e decisão recorrida, no presente recurso não está em causa nem a verificação dos créditos, nem a sua posterior graduação.

Apenas estando em apreciação o modo como foi efectuado o mapa de rateio, na sequência do decidido na sentença acima referida.

Efectivamente, o MP, ora recorrente, não põe em causa o crédito dos trabalhadores, nem a respectiva graduação, apenas defendendo que devem começar por ser pagos com o produto da venda dos bens imóveis, como corolário do privilégio mobiliário especial que lhes é conferido pelo artigo 333.º do Código do Trabalho.

Dispõe este que os créditos dos trabalhadores, nele referidos, gozam de privilégio mobiliário geral (n.º 1, al. a) e de privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

Quanto à respectiva graduação, estipula-se no seu n.º 2:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes do crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil;

b) O crédito com privilégio mobiliário especial é graduado antes do crédito referido no artigo 748.º do Código Civil.

A regra que estabelece a pedra de toque no procedimento a adoptar em sede de graduação de créditos em processo de insolvência é a ínsita no artigo 140.º, n.º 2, do CIRE, de acordo com a qual:

“A graduação é geral para os bens da massa insolvente e é especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia e privilégios creditórios”.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., a pág. 572, com tal norma “criam-se conjuntos patrimoniais dentro da massa insolvente com diversos regimes de responsabilidade por dívidas. Ao lado dos bens não onerados com garantia, que respondem, em geral, por todos os créditos, há os bens sujeitos a garantias, que respondem preferencialmente pelos créditos por eles garantidos, apenas satisfazendo os créditos comuns no remanescente (cfr. art.os 174.º a 176.º)”.

Entre estes, dispõe o artigo 175.º, n.º 1, que o pagamento dos créditos privilegiados (como o são os dos trabalhadores, nos termos já acima referidos) é feito à custa dos bens não afetos a garantias reais prevalecentes, com respeito da prioridade que lhes caiba, e na proporção dos seus montantes, quanto aos que sejam igualmente privilegiados.

Como daqui resulta e refere Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Abril de 2018, a pág. 293 “Os créditos privilegiados são pagos à custa dos bens não afectos a garantias reais prevalecentes (cfr. art.175.º, n.º 1). Não ficando integralmente pagos, são os respectivos saldos incluídos entre os créditos comuns, em substituição dos saldos estimados, ou seja, o credor privilegiado concorre nos rateios sucessivos (parciais e final) em igualdade com os credores comuns (cfr. art. 175.º, n.º 2, e art. 174.º, n.º 1)”.

No entanto, como assinala Alexandre de Soveral Martins in Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, a pág. 334, a regra plasmada no artigo 175.º, n.º 1, do CIRE, que, como vimos, refere que o pagamento em causa é feito à custa dos bens não afetos a garantias reais prevalecentes, se é certo que “se um bem que integra a massa insolvente está onerado com uma garantia real que prevalece sobre o privilégio, o credor privilegiado deve ser pago à custa de outros bens”, já no caso de se tratar de bem onerado com garantia real não prevalecente sobre o privilégio “o produto da liquidação do bem já será usado para pagar ao credor privilegiado”.

Só que, neste caso, como ali se assinala na nota 8, de pág. 334:

“nesse caso, não é clara qual deve ser a solução adequada. Na verdade, podem colocar-se em cima da mesa pelo menos duas possibilidades: a) O credor privilegiado deve, em qualquer caso, ser primeiro pago através do produto da liquidação do bem onerado com uma garantia real que não prevalece sobre o privilégio; b) O credor privilegiado deve primeiro ser pago através do produto da liquidação de outros bens não onerados com garantia real e só no caso de tal não suceder (ou de ser previsível que não suceda) na totalidade é que pode ser pago através do produto da liquidação do bem onerado com a garantia que não prevalece sobre o privilégio geral”.

Esta é a posição defendida por Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., pág.s 688 e 689, nas quais referem que “Na hierarquia geral dos créditos, os privilegiados assumem, por regra, uma posição intermédia, situada entre os beneficiários de garantias reais e os comuns. Pode, porém, suceder que, por determinação legal, certos créditos privilegiados prefiram a alguns assistidos de garantia”.

Acrescentando que, nos termos do artigo 175.º, n.º 1, do CIRE, “normalmente, os credores privilegiados devem ser pagos à custa do produto da liquidação de bens não onerados com garantias reais.

Só assim não será quando, precisamente, os privilégios que os favorecem deverem prevalecer sobre as garantias constituídas. Mas, mesmo aí, segundo o entendimento que temos por melhor, só quando, real ou estimativamente, os bens livres de garantia real não chegarem para a satisfação integral dos créditos privilegiados”.

Assentando tal tomada de posição no facto de, havendo credores privilegiados e garantidos, sendo aqueles prevalecentes, se daria o favorecimento de credores comuns, dada a extinção da garantia com a venda dos bens, em detrimento dos garantidos.

Não se nega que, por vezes assim possa suceder.

No entanto, há que respeitar as opções do legislador e o facto é que o artigo 175.º, n.º 1, do CIRE, estipula que o pagamento dos créditos privilegiados é feito à custa dos bens não afetos a garantias reais prevalecentes e sem esquecer que, igualmente, dos artigos 140.º, n.º 2 e 174.º, resulta que tem de ser respeitada a prioridade dos créditos garantidos e que a respectiva graduação deve ser feita de acordo com a ordem/natureza dos créditos graduados.

Ora, a concretização da venda dos bens apreendidos, melhor dito, a prioridade com que os bens devem ser vendidos, tem de respeitar aquelas normas, sob pena de se desvirtuar o que, substantivamente, se fixa quanto à prioridade/prevalência de uns créditos (ou classes de créditos) sobre os outros.

É indiscutível que um privilégio creditório mobiliário especial prevalece sobre um geral e resulta do artigo 333.º do Código do Trabalho, que o privilégio imobiliário especial que no mesmo é atribuído aos trabalhadores da insolvente, prevalece sobre os referidos no artigo 748.º do Código Civil, ao passo que o mobiliário geral que lhes é conferido tem um âmbito mais restrito.

Resulta, pois, do cotejo entre os artigos 333.º do Código do Trabalho e 175.º, n.º 1, do CIRE, que os créditos dos trabalhadores deverão ser pagos em primeiro lugar pelo produto da venda dos bens imóveis sobre que incide tal privilégio e sobre os quais inexiste qualquer outra garantia prevalecente.

Assim, face ao exposto, entendemos, que o pagamento dos créditos dos trabalhadores se deve fazer, em primeiro lugar, à custa do produto da venda dos bens imóveis sobre que incide o privilégio imobiliário especial de que gozam.

De igual modo e como defendido na decisão proferida neste Tribunal da Relação, de 06/07/2016, Processo n.º 3144/11.0TBCLD-B.C1, disponível no respectivo sítio do itij, (referida nas alegações de recurso), ainda que os trabalhadores gozem de ambos os privilégios (imobiliário especial e mobiliário geral), o respectivo pagamento deverá iniciar-se pelos bens imóveis e só verificada a insuficiência destes, se completará através do produto da venda dos bens móveis.

Deve, pois, alterar-se a decisão recorrida em conformidade.

Consequentemente, procede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso de apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, que se substitui por outra que ordena que o pagamento dos créditos graduados se inicie, em primeiro lugar, pelo produto da venda dos bens imóveis.

Sem custas, o presente recurso.

Coimbra, 05 de Junho de 2018.