Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
74/09.9GAMDA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: QUEIXA
CRIME DE DIFAMAÇÃO
ACUSAÇÃO PARTICULAR
COMPARTICIPAÇÃO CRIMINOSA
Data do Acordão: 06/01/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 180º Nº 1 CP E 115º Nº 3 CPP
Sumário: Tratando-se de crime particular, a acusação tem que ser deduzida contra todos os arguidos, sob pena de extinção do procedimento criminal quanto a todos eles também
Decisão Texto Integral: Nos autos supra identificados, decidiu o tribunal rejeitar “a acusação deduzida por ser a mesma manifestamente infundada, nos termos do disposto no art.º 311.º n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do CPP.”

Inconformado com o decidido, o assistente interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
“1 - Entendeu o douto tribunal a quo que a imputação feita ao ora recorrente "não constitui a formulação de um juízo de valor mas sim a mera imputação de um determinado facto ou comportamento", interpretação esta com a qual o ora recorrente não pode concordar.
2 - Em primeiro lugar, porque constitui um juízo de valor a escolha de, pela primeira vez e sem que nunca tal tivesse ocorrido, incluir numa lista de "dadores", 11m "não dador"; depois, porque tal "opção" não deveria ter sido tomada, precisamente porque traduz um juízo de valor na distinção entre os dignos, respeitados e honrados "dadores", contra os indignos, desonestos e desonrados "não dadores"; finalmente, porque volta a traduzir um juízo de valor a escolha do nome do assistente para ser anunciado publicamente como "não dador".
3 - Ao contrário do alegado no douto despacho recorrido, o "anúncio" de quem não entregou nada à Comissão - correcção: de que o assistente não entregou nada à Comissão - é muito mais do que um "mero facto objectivo", encerrando claramente um juízo de valor depreciativo acerca do carácter do ora recorrente, ofensivo da sua honra e consideração.
4 - Para se tratar de um "mero facto objectivo", teria de conter o nome de todas
a." pessoas que, como o ora recorrente, optaram por contribuir para a festa através do peditório da eucaristia a tal destinado, bem como de todas aquelas que pura e simples
mente não quiseram, ou não puderam, para ela contribuir - e ainda assim, a di­vulgação/anúncio de tal "lista" não deixaria de se traduzir num juízo de valor depreci­ativo: os "sovinas e indignos da festa", comparativamente à lista "dos bons", os que contribuíram, com pouco que fosse ...
5 - Não existe qualquer tipo de explicação, motivo, ou razão atendível para que um tal anúncio seja feito numa qualquer igreja, por uma qualquer co­missão de festas ou do que quer que seja, e muito menos numa terra pequena como K... ...
6 - Independentemente da veracidade da imputação que lhe é feita pelos arguidos, sempre o ora recorrente a reputaria de ofensiva, dado ser o tipo de "facto" que não pode/deve ser divulgado, por se referir à esfera íntima e pessoal da vida privada de cada um - abrangida, portanto, pelo nº 3 do artigo 180º do Código Penal - o que deixou bem expresso nos artigos 5° e 6° da acusação particular por si deduzida.
7 - A conduta dos arguidos é censurável criminalmente, uma vez que o juízo de valor ínsito no "facto" anunciado, que faz parte da intimidade da vida privada de qualquer pessoa e também do ora recorrente, é ofensivo do seu bom nome, honra, fama e consideração e este sentiu-se, efectivamente, ofendido no seu bom nome, honra. fama e consideração, encontrando-se, consequentemente, preenchidos todos os requisitos do tipo legal do crime de difamação, não assistindo. consequentemente, qualquer razão ao douto despacho recorrido quando entende que os factos não constituem crime.
8 - Também não assiste qualquer razão ao douto despacho recorrido, quando entende que o ora recorrente "desistiu ou renunciou ao exercício do direito de queixa contra um dos comparticipantes", no caso, o pároco de K.... o que beneficiaria os restantes, pois "o procedimento criminal não poderia prosseguir contra qualquer um dos denunciados".
9 - Com efeito, o ora recorrente apresentou queixa contra "incertos", precisamente por não saber quem havia feito o quê, quem tinha elaborado o comunicado e quem havia decidido a sua leitura (tendo, obviamente, conhecimento do teor do comunicado) - os autores destes comportamentos seriam os autores do crime de difamação cometido contra o ora recorrente.
10 - O ora recorrente nada "escolheu" - limitou-se a denunciar os factos, requerendo que os "incertos" que os praticaram fossem descobertos e identificados pelo Ministério Público, após o que, notificado para o efeito, contra estes deduziu acusação particular.
11 - Está o ora recorrente absolutamente convencido de que o Sr. Pároco de K... não teve conhecimento do teor do documento senão no momento da sua leitura e por causa dela e que, portanto, em nada contribuiu para o cometimento do crime planeado pelos arguidos e ainda de que, se o pároco tivesse tido conhecimento prévio do teor do documento, o não teria lido.
12 - No entanto, se assim não for, se em sede de audiência de discussão e julgamento se vier a demonstrar que o pároco de K... conhecia o teor do documento e que, ainda assim, quis lê-lo, então terá o ora recorrente prazo para contra ele concretamente participar criminalmente pela prática do crime de difamação de que, agora, por indicação do Ministério Público, apenas acusou os arguidos.
13- Temos, pois, que os factos denunciados constituem crime, existem indícios suficientes de o mesmo se ter verificado e os seus autores foram identificados pelo Ministério Público e indicados ao ora recorrente, que contra eles deduziu acusação particular, pelo que podia e devia a acusação particular deduzida ter sido recebida e, consequentemente, admitido o pedido cível deduzido.
14 - Ao decidir da forma explanada no douto acórdão recorrido, violou, entre outros, o douto despacho recorrido, os artigos 283°, 285° e 311º do Código de Processo Penal e os princípios, penal e constitucionalmente consagrados, da legalidade, da tipicidade e do acusatório.
Termos em que e nos mais de direito deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente por provado e, em consequência, ser o douto despacho proferido revogado e substituído por outro que receba a acusação e admita o pedido de indemnização civil deduzidos, com todas as legais consequências.”

Respondeu o Ministério Público defendendo a procedência do recurso.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs visto.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questões a decidir:

- não apresentação de queixa contra um dos co-autores de um crime de difamação, previsto e punido pelo art. 180°, nº 1, do Código Penal

- erro do tribunal a quo ao rejeitar a acusação com o fundamento de que a mesma é manifestamente infundada por os factos não constituírem crime

- não admissão do pedido de indemnização civil

O despacho sob recurso tem o seguinte teor (transcrição):

“O tribunal é competente.
Não existem nulidades, ilegitimidades, outras excepções ou quaisquer outras questões prévias que cumpre conhecer.
*
Nos presentes autos deduziu o assistente SF... acusação contra os arguidos NN…, FM…, AR…, nos termos da qual lhes imputa a prática, em co-autoria, de um crime de difamação, previsto e punido pelo art. 180.º do Código Penal, cfr. fls. 122 e 123.
Assenta a aludida acusação na seguinte factualidade:
“Durante a celebração Eucarística de Domingo 13 de Setembro de 2009, em K..., Concelho de Mêda, foi lido pelo pároco um comunicado, alegadamente destinado a publicitar as ofertas que haviam sido recebidas para a festa em honra de Nª Srª de Z..., designadamente quem havia efectuado ofertas e quais os seus montantes.
Tal comunicado foi elaborado e entregue ao referido pároco pela Comissão de Festas de 15 de Agosto de 2009 em honra de Nª Srª de Z..., da qual fazem parte todos os arguidos, sendo certo que todos os arguidos conheciam o teor do referido comunicado e pretenderam que o mesmo fosse divulgado tal como estava escrito.
Do referido comunicado constava o nome do assistente seguido de “Não deu nada”, pelo que o pároco, durante a eucaristia e perante a assistência que se encontrava na igreja e que a enchia completamente, leu bem alto o nome do ora participante seguido da referida expressão “Não deu nada”.
Ora, tal “facto” não corresponde à verdade, uma vez que o assistente contribuiu para a festa no peditório da igreja, não tendo entregue qualquer quantia à comissão de festas, apenas e só por não ter sido abordado por nenhum dos arguidos para o efeito.
Mas ainda que assim não fosse (e é), não existe qualquer motivo – e muito menos atendível – que justifique um tal comportamento por parte dos arguidos, sendo absolutamente inqualificável anunciar numa eucaristia que uma determinada pessoa não entregou dinheiro para um determinado evento, principalmente quando tal se trata de um acto voluntário e de cariz perfeitamente íntimo e pessoal.
Ora, fazer toda a assistência presente na igreja, bem como toda a população de K... – assim acontece nas terras pequenas – crer e julgar, ainda por cima erradamente, que o assistente não havia contribuído monetariamente para a festa de Nª Srª de Z..., é ofensivo e gravemente atentatório do bom nome, honra, fama e consideração do assistente.
Sendo certo que o assistente sentiu uma imensa vergonha e humilhação, sentindo-se profundamente angustiado, vexado, oprimido, ansioso, constrangido e desonrado, nunca antes tendo passado por semelhante humilhação.
Tanto mais que o assistente era o Presidente da Junta de Freguesia de K... e vivia-se já o período de pré-campanha eleitoral autárquica, cujas eleições iriam ocorrer, como ocorreram, a 11 de Outubro de 2009 e todos os arguidos pertenciam à lista sua opositora.
Os arguidos agiram livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei e pretendendo, como lograram, ofender o assistente na sua honra, fama, bom nome e consideração e denegrir a sua imagem política”.
*
Dispõe o n.º 2 do art. 311.º, do CPP, na parte com relevo para o caso em apreço, que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada.
No que diz respeito ao que se deva entender por acusação manifestamente infundada, estabelece a al. d), do n.º 3, do mesmo preceito legal, que tal sucede se “os factos não constituírem crime”.
Ora, constata-se que é o que ocorre na situação sub judice, uma vez que os factos em causa, tal como se encontram descritos no libelo acusatório, não constituem crime.
O direito penal tem carácter subsidiário, destinando-se a salvaguardar os bens jurídicos fundamentais e essenciais à vida do homem em sociedade, só devendo intervir sempre que o dano causado possua dignidade penal, onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais ao livre desenvolvimento e realização da personalidade humana e quando os outros meios de intervenção de bens jurídicos menos gravosos se mostrem insuficientes (princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade).
Compete ao legislador prever os factos que devem ser considerados crime. Contudo, “O legislador não é completamente livre nas suas decisões de criminalização e de descriminalização. Tais decisões seguem sempre muito de perto a evolução histórica da sociedade para a qual são tomadas, revelam-se estritamente condicionadas pelos dados da estrutura social, por substratos directamente políticos, pelos interesses de grupos sociais e pelas representações axiológicas neles prevalecentes em certo momento histórico” [1].
Determina, o artigo 1.º do Código Penal e o artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, que consagram os princípios da tipicidade e da legalidade, que para haver infracção penal é necessário que o comportamento humano coincida formalmente com a descrição objectiva e subjectiva feita na norma incriminadora. Daí que antes de o facto voluntário ser punível e imputável a título de culpa deve a acção corresponder a um dos esquemas ou delitos tipo objectivamente descritos na lei penal. O que não se ajusta ao tipo não é crime.
Em suma, o crime é uma conduta humana, voluntária e culposa que preencha um tipo descrito na lei e que tenha sido lesivo de algum interesse juridicamente protegido.
«Pouco importa que alguém haja cometido um facto anti-social, excitante de reprovação pública, francamente lesivo do minimum de moral prática que o direito penal tem por função assegurar, com as suas reforçadas sanções, no interesse da ordem, da paz, da disciplina social: se esse facto escapou à previsão do legislador, isto é, se não corresponde, precisamente, a parte objecti e a parte subjecti, a uma das figuras delituosas anteriormente recortadas in abstracto pela lei, o agente não deve contas à justiça repressiva, por isso mesmo que não ultrapassou a esfera da licitude jurídico-penal” [2].
De facto, nem todos os factos da vida social constituem um ilícito com relevância penal, podendo até suceder um facto ser ilícito sob o ponto de vista criminal e sê-lo sob o ponto de vista civil, o que aparenta suceder na situação sub judice. Efectivamente, o âmbito do punível não coincide em toda a sua extensão e medida com a amplitude do ilícito, sendo o campo de definição deste mais amplo.
No caso em apreço, foi deduzida acusação contra os arguidos imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do Código Penal.
Nos termos do artigo 180.º, do Código Penal “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração ou reproduzir uma tal imputação ou juízo é punido com pena de prisão até seis meses ou multa até 240 dias”.
O bem jurídico aqui protegido e, ainda, constitucionalmente tutelado (cfr. artigo 26.º, da C.R.P.), consiste na honra e consideração pessoal.
E por honra deve entender-se o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui tais como o carácter, lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja a dignidade subjectiva, o património pessoal de cada um.
Assim, a “honra” é vista como um “bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior”[3].
Desde modo, o bem jurídico protegido é a honra, entendida como a dimensão pessoal da pessoa, nas suas múltiplas refracções.
Para a verificação do tipo objectivo de ilícito da difamação será, portanto necessário haver a imputação, dirigida a terceiros, de um facto (visto como dado real da experiência) ou juízo (percebido como a valoração de um dado ou ideia) ofensivos da honra ou consideração de outrem, ou da sua reprodução, imputação que, por seu turno, pode ser directa ou indirecta (ser dirigida sob a forma de suspeita).
No plano dos elementos subjectivos do tipo, trata-se de um crime doloso, que embora se baste com um dolo genérico, é necessária a intenção de querer imputar, formular sobre outra pessoa facto, ou juízo ofensivo da honra ou consideração de outrem.
No entanto, nem todos os factos que envergonhem, perturbam ou humilhem, quando lançados sobre terceiros, cabem na previsão do artigo 180.º, do Código Penal, tudo dependendo da intensidade e do perigo da ofensa.
Com efeito, a liberdade de crítica deve corresponder ao fim para que tal liberdade é concedida, e não atender a outros fins, e deve ser exercida de modos correctos. Quando se ultrapassam os limites da necessidade, ou os processos usados são, de per si, injuriosos (insultos, difamações pessoais et similis), a critica é ilegítima.
A resposta à questão de saber quando é que um facto ou um juízo é ofensivo da honra ou consideração da pessoa em nada é facilitada afirmando que tal sucede quando a honra interior ou a boa reputação exterior da pessoa são minimizadas ou mesmo totalmente desrespeitadas, porque logo surge, naturalmente, a questão de saber quando é que tal sucede: se há expressões que, do ponto de vista social, quase nenhuma utilização útil têm que não seja a de permitir a quem as usa atingir a pessoa a quem elas sejam dirigidas naquilo que convencionalmente se designa a sua honra (e mesmo assim, nem sempre…), outras há que, tendo à partida (e aparentemente) um conteúdo neutro relativamente ao bem jurídico honra, podem, porém, atingi-lo profundamente, muitas vezes de forma mais devastadora do que aqueloutras expressões que se poderiam, na ausência de um contexto que lhes retire tal carga, considerar-se, quase mecanicamente, injuriosas ou difamatórias.
De qualquer modo, mantêm plena actualidade as palavras de Beleza dos Santos([4]), quando alertava que “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível...”. Daí que “aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas de um certo país e no ambiente em que se passarem os factos, não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena”. “Em conclusão, não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais”.
Em suma, a honra é um conceito relativo e mutável, dependente das normas, valores e ideias sociais vigentes em cada momento histórico, podendo ser categorizada como um conceito jurídico indeterminado, que é necessário integrar não apenas a partir dos valores (constitucionais, civilísticos e penais) pertinentes, mas também do próprio contexto histórico e sociológico em que nos movemos.
     No caso dos autos, atenta a factualidade descrita na acusação deduzida, somos forçados a concluir que as condutas imputadas aos arguidos não são susceptíveis de integrar o referido tipo de ilícito penal, nem qualquer outro legalmente previsto.
Senão vejamos:
O assistente limita-se a afirmar que os arguidos, elementos da constituída Comissão de Festas, elaboraram um determinado documento escrito no qual elencavam de quais pessoas tinham recebido contribuições, e respectivos montantes, para a festa em honra de Nª Srª de Z..., sendo que em relação ao assistente aí constava que o mesmo “não deu nada”.
Ora, desde logo decorre que tal imputação não constitui a formulação de um juízo de valor mas sim a mera imputação de um determinado facto ou comportamento. No entanto, verifica-se que, neste caso, tal não encerra em si mesmo um carácter ofensivo da honra e consideração do assistente, tratando-se de um mero facto objectivo.
O carácter difamatório ou não de determinada imputação tem de ser aferível em função do carácter e contexto em que a mesma é proferida e não simplesmente do facto de a mesma não corresponder a verdade. Isto porque, no caso em apreço, o assistente só atribui carácter desvalioso à expressão proferida porque a mesma, segundo refere, não corresponde à verdade.
Não obstante, o certo é que a prova da verdade ou não da imputação efectuada não pode constituir o critério determinante para o preenchimento do tipo legal em apreço. Pelo contrário, esta correspondência com a verdade funciona apenas como requisito legal para que, quando é formulado um juízo ou imputado um facto ofensivos da honra e consideração pessoais, a conduta não seja punível, se o arguido tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira, cfr. n.º 2, do art. 180.º, do Código Penal.
Assim sendo, verifica-se que o facto imputado ao arguido não é em si mesmo ofensivo da sua honra e consideração, dado que o mesmo poderia efectivamente não ter pretendido contribuir para a aludida festa da paróquia. É o próprio quem refere na acusação deduzida que tal se trata de um “acto de cariz voluntário”.
Em acréscimo, resulta desde logo da acusação deduzida pelo assistente que o mesmo confirma a veracidade da imputação que lhe foi feita, concretamente, de que não entregou à Comissão de Festas qualquer oferta pecuniária tendo em vista a realização da festa da Nª Srª de Z.... De facto, se por um lado o assistente refere que o documento em apreço, lido pelo pároco na eucaristia, se destinava a enumerar as contribuições recebidas pela comissão de festas, por outro, refere expressamente que não o fez (se bem que referindo que não foi interpelado para tal e que contribuiu no peditório da igreja). Assim sendo, nunca poderia tal documento mencionar a entrega de uma soma pecuniária à comissão de festas, uma vez que o próprio refere que tal não sucedeu.
Por último, o assistente insurge-se contra o facto de tal anúncio ter sido realizado na Eucaristia de Domingo, perante toda a assistência presente na igreja. Mais referindo que tal se deveu a motivações políticas, por os membros da comissão de festas pertencerem a diversa facção politica e se tratar de período pré eleitoral.
Neste aspecto em particular, e de acordo com a factualidade que se encontra descrita na acusação deduzida, resulta evidente que a responsabilidade pelo anúncio público efectuado na eucaristia dominical apenas pode ser assacada a quem o fez e permitiu, ou seja, o pároco que presidiu a tal eucaristia. Na realidade, para além de só a este incumbir a determinação do que é ou não lido em tal acto religioso, o assistente refere que foi o pároco que “leu bem alto o nome do ora participante seguido da referida expressão Não deu nada”.
Ora, se o assistente considera, como parece também fazer na acusação deduzida, que a simples leitura/anúncio numa eucaristia que uma pessoa não entregou dinheiro para um determinado evento (ou que entregou um determinada quantia, acrescentamos nós) encerra em si mesmo a prática de um acto difamatório, o certo é que tal responsabilidade só pode ser assacada a quem o pratica (ou seja, a quem determina tal leitura), e não à aludida comissão de festas, que era constituída pelos aqui arguidos.
     Temos assim de concluir que, mesmo que em sede de audiência de julgamento se viessem a provar todos os factos descritos na acusação, tal não teria a virtualidade de conduzir à condenação dos arguidos, uma vez que as suas condutas não são criminalmente puníveis.
Deste modo, conclui-se que os factos imputados ao arguido não se encontram previstos na lei como crime, ou seja, a sua conduta não preenche todos os elementos essencialmente constitutivos de qualquer tipo legal qualificado como crime.
Por outro lado, mesmo que assim não fosse, sempre seria preciso ter em atenção o dispositivo no artigo 114º do Código Penal, segundo o qual “A apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes”.
O artigo 115º n.º 1 estatui que «O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver conhecimento do facto e dos seus autores (...)».
O n.º 2 deste artigo estatui que «O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa».
O artigo 117º do Código Penal estatui que «O disposto nos artigos deste título é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender de acusação particular».
Anotando o artigo 114.º Do Código Penal, refere o Código Penal Anotado de Simas Santos/Leal Henriques que “ (...) o que não pode de maneira nenhuma é escolher-se a pessoa que há-de ser punida. Seria essa uma solução que se reputa de todo desrazoável e que, em certa medida, faria reviver ou relembrar a instituição primitiva da vingança privada”. Transcrevendo escrito inserto no BMJ-68, mais continua “Que a lei possa escolher as pessoas, objectivamente, em função de certas qualidades, parece evidente; que o possa o ofendido é solução que parece ser de todo em todo de repudiar”.
E no Código Penal Anotado de Maia Gonçalves refere-se em anotação ao artigo 115º que “(...) com o dispositivo do n.º 2 [do artigo] consagrou-se e generalizou-se princípio da indivisibilidade das consequências do não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes do crime. Em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido no caso de comparticipação; o que está em causa é o crime. Assim, numa violação praticada por vários comparticipantes(...) [a vítima ] não pode escolher quais as pessoas contra quem pretende queixar-se”.
Naquele Código Penal Anotado de Simas Santos/Leal Henriques também se refere que “ O n.º 2 [do art.º 115º] consagra o princípio da indivisibilidade passiva da renúncia tácita (o não exercício tempestivo da queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa).
O Prof. Germano Marques da Silva refere ( cfr. fls. 265/266 do vol.1, 2ª ed., do seu Curso de Processo Penal) que com o regime estabelecido nos arts. 114.º, 115.º e 116.º pretendeu-se obstar a que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos comparticipantes, perdoando aos demais, caso em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em razão do crime praticado. E continua: “Relativamente à acusação particular importa atender a que se a queixa inicial deduzida apenas contra um dos comparticipantes torna o procedimento extensivo aos demais, já o mesmo não pode suceder com a acusação propriamente dita.
Findo o inquérito, o assistente é notificado para deduzir acusação( art.º 285º). Tratando-se de crime cometido em comparticipação, se o assistente apenas acusar um dos comparticipantes parece-nos que se verifica um caso de renúncia do direito de acusação particular relativo a um dos comparticipantes, renúncia que aproveita aos restantes( art.ºs 116º/3 e 117º)”.
A queixa traduz-se na manifestação de vontade de instauração de um processo para a averiguação da notícia do crime e do respectivo procedimento contra os agentes responsáveis (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., pág. 59), constituindo um direito que deve ser exercido contra todos os comparticipantes do crime. O não exercício desse direito de queixa ou de acusação particular relativamente a um dos comparticipantes aproveita aos restantes visto que o que essencialmente está em causa é a perseguição do crime praticado e não apenas a satisfação de interesses de natureza pessoal.
Aliás, já Luís Osório afirmava Comentário ao C. P. Penal Português, I, 153 que a participação é indivisível pelo que ou abrange todos os agentes ou não tem existência. Doutrinava aquele insigne penalista que não pode o participante limitar a acção da justiça a determinadas pessoas ou excluir outras, pelo que qualquer limitação deve ter-se por não escrita.
No caso dos autos, atenta a factualidade descrita na acusação e a própria queixa apresentada, verifica-se que também o pároco em causa teria de ser indubitavelmente considerado como comparticipante dos factos alegadamente ilícitos denunciados e constantes da acusação. Porém, o assistente, apesar de referir expressamente que foi o pároco local quem procedeu à leitura e divulgação do documento contra o qual se insurge, em acto presidido pelo mesmo (concretamente, a Eucaristia Dominical), o certo é que nada contra ele refere ou pretende criminalmente. Deste modo, daqui resulta que o mesmo desistiu ou renunciou ou exercício do direito de queixa contra um dos comparticipantes, o que aproveitaria aos restantes (nos termos do n.º 3, do art. 116.º, do Código Penal). Em suma, e em conformidade com o artigo 115.º/3 do Código Penal, o procedimento criminal não poderia prosseguir contra qualquer um dos denunciados.
Estatui o art. 311.º, n.º 2, al. a), que a acusação é rejeitada se for considerada manifestamente infundada, concretizando o n.º 3 do mesmo preceito, na parte que releva para o caso concreto, que a acusação considera-se manifestamente infundada se os factos não constituírem crime.
Face ao exposto, e atendendo aos fundamentos acima expostos, determina-se a rejeição da acusação deduzida por ser a mesma manifestamente infundada, nos termos do disposto no art.º 311.º n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do CPP.
*
Custas a cargo do assistente, que se fixam no mínimo legal.
*
Em consequência, decide-se não receber o pedido de indemnização civil formulado pela assistente SF... contra os arguidos.”
*
Arquive, após trânsito.”


******

Basta uma simples leitura do recurso e uma breve passagem pelo restante processado para concluirmos que aquele improcede.

Vejamos:

Consta da acusação particular que
“(…)
Durante a celebração Eucarística de Domingo 13 de Setembro de 2009, em K..., Concelho de Mêda, foi lido pelo pároco um comunicado, alegadamente destinado a publicitar as ofertas que haviam sido recebidas para a festa em honra de Nª Srª de Z..., designadamente quem havia efectuado ofertas e quais os seus montantes.
Tal comunicado foi elaborado e entregue ao referido pároco pela Comissão de Festas de 15 de Agosto de 2009 em honra de Nª Srª de Z..., da qual fazem parte todos os arguidos, sendo certo que todos os arguidos conheciam o teor do referido comunicado e pretenderam que o mesmo fosse divulgado tal como estava escrito.
Do referido comunicado constava o nome do assistente seguido de “Não deu nada”, pelo que o pároco, durante a eucaristia e perante a assistência que se encontrava na igreja e que a enchia completamente, leu bem alto o nome do ora participante seguido da referida expressão “Não deu nada”.”

Ora, admitindo que os factos referidos na acusação particular são ofensivos da honra do assistente, a uma conclusão teríamos que de imediato chegar: os factos dela constam são de imputar aos arguidos e ao pároco, uma vez que foi este que os publicitou de comum acordo com os demais.

Com efeito, o pároco não estava obrigado a ler o comunicado da comissão de festas e se o fez foi porque quis.

Consequentemente, estamos perante um caso de comparticipação criminosa (dando de barato que existe crime de difamação) em que são co-autores os arguidos contra quem foi deduzida a acusação particular e o pároco.

Com efeito, o art.º 26º do C. Penal[[5]], sob a epígrafe de autoria, estatui que “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.

Engloba-se a figura da comparticipação criminosa, sobre a qual escreveu o Dr. Faria da Costa, in “Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal”, pg. 169 e segs.:

“(…), para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime juntamente com outro ou outros. É evidente que na sua forma mais nítida tem de existir um verdadeiro acordo prévio – podendo mesmo ser tácito – que tem igualmente de se traduzir numa contribuição objectiva conjunta para a realização típica. Do mesmo modo que, em princípio, cada co-autor é responsável como se fosse autor singular da respectiva realização típica...”.

No caso dos autos, dúvidas não há de que o comunicado foi elaborado pelos arguidos contra quem foi deduzida a acusação e foi divulgado pelo pároco aos presentes na missa.

Assim, se o comunicado é ofensivo da honra do assistente, a responsabilidade criminal será de imputar a todos.

Estamos, pois, perante uma situação de comparticipação criminosa.

Prosseguindo

O crime imputado pelo assistente aos arguidos é o de difamação, previsto e punido pelo artº 180.º, do Código Penal, e assenta, como acima já se referiu, em imputação inserta num comunicado da comissão de festas que foi divulgado pelo pároco durante a missa.

Estaríamos, assim, neste âmbito, perante um caso de comparticipação, ou seja, duma acção conjunta na realização de um tipo legal de crime.

No caso dos autos e partindo do princípio que os factos descritos na acusação constituem crime de difamação, previsto e punido pelo art. 180°, nº 1, estamos perante uma situação em que para instauração do procedimento criminal, é necessária a apresentação de queixa e, posteriormente, a constituição de assistente e a dedução de acusação particular — artº 188º, n.º 1.

Ora, tendo o assistente apresentado queixa contra “Incertos, nomeadamente todos os “mordomos” da comissão de festas organizadora da Festa de 15 de Agosto em Honra de N. Srª de Z... em K... – Meda”, não se pode dizer que não tenha apresentado queixa, uma vez que, dispondo o artº 114º que “a apresentação de queixa contra um dos participantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes” e não impondo o artº 50º, nº 1 do Código de Processo Penal que na queixa seja identificado o autor do crime, temos que concluir que a queixa apresentada reunia os requisitos legais para que o procedimento criminal (no sentido de investigação ou inquérito) fosse instaurado.

No entanto, é preciso notar que embora houvesse uma queixa formal contra «todos os “mordomos” da comissão de festas», já o mesmo não acontecia quanto ao pároco (que, nos termos em que é apresentada a queixa, não seria “mordomo”), sendo certo que nela estavam descritos factos que, a constituírem crime, os implicariam a todos como co-autores: “mordomos e pároco”

Em suma: o assistente não apresentou queixa contra um dos comparticipantes, embora descrevesse na participação a sua conduta “criminosa”.

Realizado o inquérito, o assistente deduziu acusação particular onde, reproduzindo o teor fáctico da queixa, apenas imputou prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo art. 180°, nº 1 aos arguidos .

Quanto ao pároco, embora da queixa e da acusação resulte que praticou os factos ditos criminosos em co-autoria com os demais arguidos, o assistente apresentou-o como testemunha.

Ora, ao não ter sido apresentado queixa contra um dos comparticipantes e determinando o artº 115º, nº 3 do Código de Processo Penal que “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”, temos que concluir que a não apresentação de queixa se estende aos demais e, consequentemente, falta uma condição legal de procedibilidade, o que importa a declaração de extinção do procedimento criminal.

**

Prejudicada fica, por isso, a análise das outras questões invocadas no recurso: erro do tribunal a quo ao rejeitar a acusação com o fundamento de que a mesma é manifestamente infundada por os factos não constituírem crime não admissão do pedido de indemnização civil.

**

**

Face ao exposto, ainda que por fundamentos diversos, acorda-se em julgar improcedente o recurso.

*

Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça.

*

Coimbra,


[1] - Figueiredo Dias, in «Lei criminal e Controlo da Criminalidade», pág. 72.
[2] - Cfr. Nélson Hungria, citado por Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2002, I volume, 3ª. Edição, p. 90.
[3] cfr. Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, 1999, pág. 607
[4] - Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria, em «Revista de Legislação e de Jurisprudência», ano 92.º, pág. 167.
[5] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem