Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9791/15.3T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: PENHOR
PENHOR DE ALVARÁ
PENHOR DE ESTABELECIMENTO
FARMÁCIA
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.280, 601, 666, 680, 681 CC, DECRETO Nº 29833 DE 17/8/1939, DL Nº 307/2007 DE 31/8
Sumário: 1. O penhor do alvará de farmácia é nulo, por estar legalmente impossibilitada, dada a natureza desta licença, a sua venda ou transmissão isolada do estabelecimento que a detém.

2.O penhor do estabelecimento de farmácia, realizado em 2012, é válido por constar de documento escrito e é oponível a terceiros por ter sido averbado ao alvará daquela.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

S (…) & Filhos, Lda., foi declarada insolvente por sentença de 23 de novembro de 2015, transitada em julgado, que fixou em 20 dias o prazo para a reclamação de créditos.

Findo o prazo para a reclamação, o Administrador da insolvência apresentou a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos.

A “U (…)” e a “D(…)” impugnaram a qualificação dos créditos reclamados pelo N (…), S.A., como créditos garantidos por penhores, invocando a nulidade destas garantias.

O N (…), S.A., respondeu às impugnações.

O Administrador da insolvência não se pronunciou.

O único bem apreendido para a massa foi o estabelecimento comercial, composto pelo alvará de farmácia e todos os bens móveis que o integram.

Foi depois proferida a seguinte decisão:

I- Reconheço aos créditos da S (…) SARL e U(…)CRL, a natureza de créditos garantidos por penhor mercantil sobre o estabelecimento comercial de farmácia apreendido nos autos;

II-Reconheço aos créditos reclamados pelo N (…), S.A., a natureza de créditos comuns;

III-Reconheço os restantes créditos discriminados na lista junta de fls. 19 a 29, cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, no que concerne à origem, montante e natureza dos créditos;

IV- Procedo à graduação dos créditos referidos em I, II e III sobre o produto do estabelecimento comercial de farmácia nos seguintes termos:

Em primeiro lugar o crédito pignoratício da U (…), CRL;

Em segundo lugar o crédito pignoratício da S (…) SARL;

Em terceiro lugar os créditos dos ex-trabalhadores;

Em quarto lugar os créditos privilegiados da Segurança Social e os créditos da Fazenda Nacional a título de IVA e IRS;

Em quinto lugar, e se necessário rateadamente, os restantes créditos reconhecidos com exceção dos créditos subordinados;

Em sexto lugar os créditos subordinados, ou seja, os juros dos créditos anteriormente referidos vencidos após a declaração da insolvência;

As dívidas da massa insolvente serão pagas nos termos do disposto no art.º 172º, nºs 1 e 2 do CIRE.


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            Inconformado, o N (…) recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1. Para garantia dos créditos concedidos pelo Banco, ora Recorrente, à Insolvente, no valor total de € 1.240.939,74, foram por esta constituídos a favor daquele primeiros penhores sobre o alvará e estabelecimento comercial emitido para o funcionamento da “Farmácia (…)” sita em Coimbra, (…) ao qual foi atribuído pelo Infarmed o número (...).

2. O valor do crédito e as garantias reclamadas foi reconhecido pelo Administrador de Insolvência (AI), na Relação Definitiva de Créditos.

3. Consignou-se na referida Relação a natureza garantida do credito do Recorrente previamente aos demais créditos reclamados atenta as válidas constituições de penhor sobre alvará/estabelecimento comercial de farmácia.

4. A insolvente proprietária do estabelecimento comercial dado em penhor não impugnou a qualificação conferida pelo AI.

5. Em resposta à impugnação da Relação Definitiva Créditos deduzida pelos credores U (…), CRL e D (…) que pugnaram pela nulidade dos penhores do estabelecimento comercial, por falta de forma, em virtude de não constarem documento autêntico ou autenticado, respondeu o Recorrente alegando que em causa estava um penhor sem desapossamento.

6. Determina a lei, concretamente no caso do penhor sem dessapossamento, a não sujeição do penhor de créditos, de títulos de crédito, de cotas ou de coisas imateriais, ao regime de exigência de, o qual, mesmo quando dado em garantia de operações bancárias, se submete ao regime geral (cfr. o artigo 3.º do Decreto n.º 29833 de 17 de Agosto de 1939).

7. Nos termos da lei, o penhor de direitos de alvará, mesmo que constituído em garantia de créditos de estabelecimentos bancários, não tem de constar de documento autêntico ou autenticado, considerando o quanto dispõe o artigo. 3.º do Decreto n.º 29.833 de 17 de Agosto, ao excluir do âmbito dessa imposição de forma o penhor de créditos, e títulos de crédito, de cotas e de coisas imateriais.

8. A exigência constante do art. 2.º do Decreto n.º 29.833 de 17 de Agosto de 1939 vale apenas para o penhor de coisas corpóreas e, dentro deste, só para o penhor de coisas corpóreas que não seja acompanhado entrega física ou real do bem ao credor.

9. A constituição da garantia pignoratícia em apreço está apenas sujeita às exigências de forma e publicidade que valem para a transmissão dos direitos empenhados, por força do art. 681.º, n.º1 do CC que estipula que a constituição de penhor está sujeita à forma e publicidade exigente para a transmissão do direito empenhado.

10. De acordo com o disposto no art. 18.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 307/2007 de 31 de Agosto, o penhor de direitos do alvará tem apenas de constar de escritos particulares.

11. O penhor de direitos constantes do alvará, não carece de constar de documento autêntico ou autenticado para ser válido.

12. Apesar de não carecer, in casu, verifica-se o requisito do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 29.833 de 17 de Agosto, ao mostrarem-se transcritas nos escritos contratuais as disposições do artigo 1º deste decreto.Em cada uma das cláusulas 20ª das Condições Gerais Contratuais, pontos 6. dos três documentos juntos aos autos com o requerimento de 21/11/2016 apresentado sob referência 2850846), todos eles rubricados e assinados pela insolvente, pode ler-se que “Quando o objecto dado em penhor permaneça na posse do respetivo titular, não sendo entregue ao BES, (…), o penhor de bens e o penhor de estabelecimento comercial aplica-se ainda o seguinte: a) o objecto do penhor fica em poder do respectivo titular, a título gratuito, aplicando-se o disposto no Decreto-Lei n.º 29.833 de 17 de Agosto de 1939, cujos n.ºs 1 e 2 do artigo 1º se

transcrevem - 1º: se o objeto empenhado ficar em poder do dono, este será considerado, quanto ao direito pignoratício, possuidor em nome alheio e as penhas de furto ser-lhe-ão impostas se alienar, modificar, destruir ou desencaminhar o objecto sem autorização escrita do credor e bem assim se o empenhar novamente sem que no contrato as mencione, de modo expresso, a existência de penhor ou penhores anteriores que, de qualquer caso, preferem por ordem de datas (…)”.

13. Dito isto, dúvidas não restam quanto ao facto de serem válidos, por não padecerem de vício de forma, os três contratos de penhores sobre o Alvará e Estabelecimento Comercial retro melhor identificados.

14. Sendo, em consequência, garantidos os créditos reclamados pelos penhores validamente constituídos sobre o Alvará e Estabelecimento Comercial denominado Farmácia (…)” sita em Coimbra, (…) ao qual foi atribuído pelo Infarmed o número (...).

15. Em aditamento, diga-se que tem vindo a ser defendida pela doutrina e seguida pelos tribunais a inaplicabilidade do citado decreto-lei directamente aos penhores em apreço.

16. Os negócios atinentes ao estabelecimento comercial encontram-se sujeitos à forma escrita; da mesma forma se encontram sujeitos a tal forma os penhores sem dessapossamento.

17. A lei exige portanto a forma escrita para o trespasse para a cessão de exploração, sendo que quanto aos penhores sem desapossamento a lei exige para o penhor do EIRL (artigo 21º. n.º 2,do DL 248/86) a sua redução a escrito e para os penhores mercantis entre comerciantes (por valor superior ao então Esc. 200.000$00) para que produzam efeitos com relação a terceiro, a sua redação a escrito (cfr. artigo 400º do Código Comercial), sendo razoável entender, por analogia, que há um regra segundo a qual o penhor sem desapossamento tem sempre que ser celebrado por escrito, o que in casu se verificou e é o bastante.

18. Em suma, conclui-se que no caso vertente que todos os três negócios jurídicos constitutivos de penhores se encontram reduzidos a escrito, não sendo exigível qualquer outra formalidade legal.

19. Não havendo como não concluir pela sua validade jurídica.

20. No que respeita à consideração pelo douto Tribunal a quo de que os penhores constituídos sobre o alvará em apreço (dissociados dos restantes elementos corpóreos e

incorpóreos que compõem o estabelecimento comercial), são igualmente nulos por corresponderem a uma prestação originariamente impossível, cumpre concluir que a lei não impede um devedor de constituir garantias que tenham por objecto bens ou direitos individuais que integram um estabelecimento comercial, em vez de constituir a garantia sobre o próprio estabelecimento.

21. Nada na lei impede que um proprietário de um estabelecimento seja livre de o desmembrar, v.g., através da alienação de uma ou mais partes que o compõem, de tal forma que comprometa a sua unidade, i. e., o seu funcionamento enquanto universalidade (de facto e de direito).

22. É inequívoca a validade dos negócios de um proprietário do estabelecimento que tenham por efeito o seu desmembramento,

23. Não pode por isso deixar de reconhecer-se a validade da constituição de ónus que incidam apenas sobre elementos individuais do mesmo e que, enquanto tais e só por si, não comprometam a subsistência do estabelecimento.

24. A lei é, aliás, clara quanto à admissibilidade de negócios que tenham por objecto as coisas singulares que constituem a universalidade: é precisamente esse o regime consagrado no art.206.º, n.º 2, do Código Civil para as universalidades de facto, aplicável igualmente às universalidades de direito, encontrando-se tal permissão no princípio da autonomia privada e para utilidade do titular.

25. À admissibilidade de negócios sobre o conjunto não corresponde a proibição de negócios sobre as partes que o compõem, ainda que em causa esteja um estabelecimento comercial de farmácia.

26. Por fim, e no que especificamente diz respeito à constituição de penhor sobre estabelecimento comercial, a história da evolução doutrinal demonstra precisamente o que se acaba de dizer, i.e., que a aceitação da possibilidade de constituir o penhor sobre o estabelecimento veio alargar a liberdade de acção do titular, não podendo agora ser deturpada, adquirindo um sentido limitativo.

27. O que inicialmente foi controvertida na doutrina foi possibilidade de constituição de penhor sobre o estabelecimento, atenta, entre outras razões, a variabilidade permanente dos elementos que o compõem e a exigência legal de o penhor incidir sobre coisa

28. Sempre foi pacífica na doutrina a validade da constituição de penhor sobre os elementos isolados que constituem o estabelecimento (posto que, por si mesmos, pudessem ser objectos idóneos de penhor e desde que observado o respectivo regime de constituição).

29. Em suma, além de não existir qualquer razão capaz de sustentar a proibição de constituir penhor sobre alvará, existem várias razões que apoiam (positivamente) tal permissão, a saber, o princípio da autonomia privada e a consideração do estabelecimento comercial enquanto instrumento ao serviço do seu titular apto a ampliar — e não a limitar — as potencialidades da sua actuação.

30. Improcederá igualmente a tese do Tribunal a quo ao considerar que nunca poderia ser conseguida a consistência prática-económica dos penhores de alvará, porquanto o estabelecimento comercial no presente caso foi vendido na sua totalidade e sem individualização de qualquer valor referente ao respetivo Alvará de acordo com a escritura pública junta a fls. 51 a 56 do Apenso da liquidação.

31. Proferida que seja a sentença de graduação e verificação de créditos e encerrada a liquidação, caberá ao Administrador de Insolvência, nos termos do artigo 182º do CIRE, apresentar na secretaria do Tribunal – com base na Relação Definitiva de Créditos e referida sentença – uma proposta de distribuição e de rateio final acompanhada da respectiva documentação de suporte que será, depois, validada por decisão judicial.

32. In casu, no seguimento de comunicação dirigida pelo Recorrente ao Administrador de Insolvência e resposta datada de 31/05/2016, fixou este como valor de venda do alvará – e somente Alvará - note-se, o valor de € 770.000,00 (cfr. Doc. 1 cuja junção se requer seja admitida em virtude da necessidade de contraditar posição tomada pelo Tribunal a quo e se reproduz para os legais efeitos)

33. Quanto aos bens móveis foi atribuído o valor de € 20.000,00 e quanto a outras existências não inventariadas foi atribuído o valor de € 25.000,00, tudo no montante de € 815.000,00, valor que foi indicado no anúncio de venda.

34. Em sede de rateio encontrar-se-á o Administrador de Insolvência habilitado de suporte documental bastante para propor (e comprovar) ao Tribunal distribuir ao credor pignoratício, com preferência sobre os demais, a parte do produto da parte da venda do estabelecimento comercial num total de € 1.100.300,00, que proporcionalmente respeita ao alvará cujo valor se fixou em € 770.000,00.

35. Atento o exposto o penhor constituído a favor do Recorrente sobre o alvará para funcionamento da “Farmácia (…)” ao qual foi atribuído pelo Infarmed o número (...) é, além de inteiramente válido, plenamente oponível a terceiros, encontrando-me, por conseguinte, garantidos desde 18/09/2008 os créditos reclamados no valor toral de € 1.240.939,74 e assim (bem) reconhecidos pelo Administrador de Insolvência.

36. Sendo, por conseguinte, graduados previamente aos demais créditos ao arrepio do que entende a sentença sob recurso e serem reconhecidos ao Novo Banco S.A. como garantidos desde 18/09/2008 os créditos reclamados no valor toral de € 1.240.939,74.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            Questões a decidir:

            A nulidade do penhor do alvará da farmácia, decorrente do facto de incidir sobre prestação legalmente impossível.

A nulidade do penhor do estabelecimento, decorrente da falta de forma legal.


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            Factos tidos por provados pelo tribunal recorrido, respeitantes às questões suscitadas:

1º Em 18 de setembro de 2008, Banco (…), S.A. e S (…) & Filhos, Lda. subscreveram o documento intitulado de Financiamento nº 3102/08 junto de fls. 161 a 165, cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, até ao valor máximo de €1.000.000,00, com a finalidade de apoio ao investimento;

2º Para garantia do pagamento do crédito referido em 1º foi constituído a favor do Banco (…), S.A. penhor dos direitos emergentes do alvará para funcionamento da Farmácia (…) sita em Coimbra, (…) ao qual foi atribuído pelo Infarmed o número (...), nos termos que constam de fls. 62 verso a 163, cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos;

3º Em 18 de junho de 2012, Banco (…), S.A. e S (…) & Filhos, Lda. subscreveram o documento intitulado de Alteração ao contrato de financiamento nº 3102/08, junto de fls. 167 verso a 168, cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, do qual consta, designadamente:

Garantias de Crédito:

(…);

- Penhor de Estabelecimento Comercial Farmácia:

1. Penhor de estabelecimento comercial denominado Farmácia (…), instalado na (…), cujo contrato de comodato se anexa;

2. Direitos emergentes do alvará e/ou outras licenças para funcionamento da farmácia, emitido pelo Infarmed-Instituto Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde I.P. sob o número (...) cuja cópia simples se anexa (…);

4º O penhor mercantil sobre o estabelecimento de farmácia descrito em 3º encontra-se averbado no Infarmed, no alvará nº (...), referente à Farmácia (…) desde 3 de abril de 2012;

5º Referente ao acordo descrito em 1º, a insolvente deve ao N (…), S.A., a quantia global de €948.543,07 (€794.802,63 a título de capital e €153.740,44 a título de juros de mora);

6º Em 18 de setembro de 2008, Banco (…), S.A. e S (…) & Filhos, Lda. subscreveram o documento intitulado de Financiamento nº 3104/08, junto de fls. 173 a 177, cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, até ao valor máximo de €250.000,00, com a finalidade de apoio ao investimento;

7º Para garantia do pagamento do crédito referido em 6º, foi constituído a favor do B (…), S.A., penhor dos direitos emergentes do alvará para funcionamento da Farmácia (…) sita em Coimbra, (…)ao qual foi atribuído pelo Infarmed o número (...), nos termos que constam de fls. 174 verso a 175, cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos;

8º Em 18 de junho de 2012, Banco (…) S.A. e S (…) & Filhos, Lda. subscreveram o documento intitulado de Alteração ao contrato de financiamento nº 3104/08, junto de fls. 179 verso a 180, cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, do qual consta, designadamente:

Garantias de Crédito:

(…);

- Penhor de Estabelecimento Comercial Farmácia:

1. Penhor de estabelecimento comercial denominado Farmácia (…) instalado na (…), cujo contrato de comodato se anexa;

2. Direitos emergentes do alvará e/ou outras licenças para funcionamento da farmácia, emitido pelo Infarmed-Instituto Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde I.P. sob o número (...) cuja cópia simples se anexa (…);

9º O penhor mercantil sobre o estabelecimento de farmácia descrito em 8º encontra-se averbado no Infarmed, no alvará nº (...), referente à Farmácia dos (…) desde 3 de abril de 2012;

10º Referente ao acordo descrito em 6º, a insolvente deve ao N (…) S.A. a quantia global de €237.477,32 (€198.701,49 a título de capital e €38.775,80 a título de juros de mora);

11º Em 18 de setembro de 2008, B (…) S.A. e S (…) &Filhos, Lda. subscreveram o documento intitulado de Financiamento nº 3107/08, junto de fls. 184 a 189, cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, até ao valor máximo de €50.000,00, com a finalidade de apoio à tesouraria;

12º Para garantia do pagamento do crédito referido em 11º foi constituído a favor do B (…), S.A. penhor dos direitos emergentes do alvará para funcionamento da Farmácia (…) ao qual foi atribuído pelo Infarmed o número (...), nos termos que constam de fls. 186 a 186 verso, cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos;

13º O penhor de alvará descrito em 12º não se encontra averbado no Infarmed, no alvará nº (...) referente à Farmácia (…);

14º Referente ao acordo descrito em 11º, a insolvente deve ao N (…), S.A. a quantia global de €54.919,35 (€50.000,00 a título de capital e €4.919,36 a título de juros de mora).


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A nulidade do penhor do alvará da farmácia, decorrente do facto de incidir sobre prestação legalmente impossível, como o entendeu a decisão recorrida.

Estão em causa três penhores com este objeto, de setembro de 2008.

As garantias têm por função proteger os direitos de crédito, sendo certo que a garantia geral dos credores é constituída pelo património do devedor, nos termos do disposto pelo artigo 601º do Código Civil (doravante CC).

A esta garantia geral das obrigações pode acrescer um especial reforço através de garantia real dada pelo devedor.

O penhor é uma garantia real que confere ao credor, de acordo com o estatuído pelo artigo 666º, nº 1, do CC, “…o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”.

Assim, podem ser dados em penhor coisas móveis, créditos ou outros direitos não hipotecáveis.

No penhor de direitos, como o acentua a norma do art.680º do CC, exige-se que estes tenham por objeto coisas móveis e sejam transmissíveis.

Por seu lado, o alvará, em geral, é um documento que serve de título aos atos de autoridades que decidem de forma favorável pretensões várias, licenças e autorizações e que têm, normalmente, como pressuposto um interesse público.
No caso que nos interessa, o alvará de farmácia tem subjacente o controle do interesse público derivado do facto das farmácias prosseguirem uma atividade de saúde pública (art.2º do DL 307/2007, de 31.8, a lei temporalmente aplicável).
Conforme o artigo 25.º desta lei, o licenciamento de novas farmácias é precedido de concurso público; as farmácias só podem abrir ao público depois de lhes ser atribuído o respectivo alvará, emitido pelo Infarmed; a alteração da propriedade ou a transferência da localização da farmácia dependem de averbamento no alvará.
Feito este enquadramento, podemos concretizar as seguintes considerações:
Em primeiro lugar, a licença que constitui o alvará atribui um direito que não tem por objeto certa coisa móvel (exigência do referido art.680º do CC). O seu objeto é uma declaração de conformidade da farmácia com os requisitos legais de funcionamento. O Infarmed analisa um conjunto de circunstâncias e verifica o respeito de certas condições administrativas em função de certa farmácia ou estabelecimento de farmácias.
Em segundo lugar, sendo o alvará essa declaração de conformidade do estabelecimento, ele integra a universalidade que este constitui. Sendo desta separável, o alvará perde o seu significado. Não tem interesse uma declaração de conformidade de certa farmácia ou estabelecimento para outra pessoa que não detenha aquela ou este.
Haverá a possibilidade de negociar certos elementos do estabelecimento desde que eles tenham um valor em si mesmos.

A licença de funcionamento do estabelecimento, só por si, considerando a sua especial natureza, de nada vale. Ela só faz sentido no conjunto de elementos que foram controlados pelo Infarmed (uma titularidade, o serviço prestado, uma direção técnica, entre outros).
O alvará, só por si, não realiza uma função económica, não assegurando a sua ulterior venda.  Ele serve sim ao controle da transmissão do estabelecimento.
Por fim, no caso, o objeto da apreensão (para a massa insolvente) e da venda foi o estabelecimento e não uma qualquer parte sua, nomeadamente o alvará. Assim se terá feito porque os elementos do estabelecimento “valem alguma coisa mais do que valeriam considerados isoladamente, e também o valor do todo sendo superior ao da soma das suas partes.” (Acórdão do STJ, de 06.04.2006, proc. 06B336, em www.dgsi.pt.)
Tudo considerando, podemos concluir:
O penhor do alvará de farmácia é nulo, por estar legalmente impossibilitada, dada a natureza desta licença, a sua venda ou transmissão isolada do estabelecimento que detém aquela. (arts.280º, nº1, 401º, nº1 e 680º do CC.)
Se fosse válida a garantia, ela não incide sobre o objeto da apreensão e venda feitas nos autos, não sendo possível atribuir com rigor o valor da parcela atinente àquela.

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A nulidade do penhor do estabelecimento, decorrente da falta de forma legal.

Estão em causa dois penhores com este objeto, datados de junho de 2012.

Os mesmos constituíram-se por documentos particulares.

A decisão recorrida entendeu que era exigível documento autêntico, exarado por notário, ou documento particular confirmado pelas partes perante o notário.

Todos aceitam a admissibilidade do penhor do estabelecimento. (Também o Ac. do S.T.J., de 6 de maio de 1993, no proc. 043114, disponível em www.dgsi.pt).

Os penhores foram constituídos em garantia de créditos bancários, no âmbito de mútuos.

Para estes vigorava o Decreto nº 29.833, de 17 de agosto de 1939, a lei que foi aplicada pela decisão recorrida.

No seu âmbito, o penhor produz os seus efeitos, quer entre as partes, quer em relação a terceiros, sem necessidade do dono do objeto empenhado fazer entrega dele ao credor ou a outrem (art.º 1º).

A previsão legal visa facilitar a concessão do crédito sem o desapossamento do objeto do penhor, com a vantagem deste continuar a exercer a sua função produtiva.

Se o objeto empenhado ficar em poder do dono, este, quanto àquele, será considerado possuidor em nome alheio e as penas de furto ser-lhe-ão impostas se alienar, modificar, destruir ou desencaminhar o objeto sem autorização escrita do credor e bem assim se o empenhar novamente sem que no novo contrato se mencione, de modo expresso, a existência do penhor ou penhores anteriores, que, em qualquer caso, preferem por ordem de datas (art.º 1º § 1).

O art.º 2 deste diploma dispõe que este contrato deverá constar de documento autêntico ou autenticado.

Neste documento têm de se transcrever obrigatoriamente as disposições do art.º 1º, cumprindo ao notário assegurar a observância desse preceito (art.º 2º § único).

O Recorrente entende que a exigência do art. 2.º vale apenas para o penhor de coisas corpóreas e, neste, no caso de não ser acompanhado da entrega do bem ao credor.

Com efeito, diz, o art. 3.º do referido Decreto exclui do âmbito da imposição de forma o penhor de créditos e títulos de crédito, de cotas e de coisas imateriais.

Esta arguição esbarra na consideração de que o estabelecimento pode ser também coisa corpórea, apesar da universalidade especial que é, em que se pode detetar aquele desapossamento. (Cfr. arts.205º e 206º do CC.)

Posteriormente, com o artigo único do Decreto nº 32.032, de 22 de maio de 1942, admitiu-se a utilização de documento particular, ainda que o dono do objeto empenhado não seja comerciante.

Porém, o seu § único salvaguardou o disposto no art.º 2º do Decreto nº 29.833, já referido. Esta salvaguarda compreende-se com o apoio do seu preâmbulo: “cumpre, no entanto, ressalvar os casos em que, à sombra do D. nº 29.833, de 17 de agosto de 1939, o dono do objeto empenhado o conserva em seu poder” (…), acrescentando que “são de manter as formalidades exigidas no referido decreto, pois representam pelo menos a garantia de uma certa publicidade.”

Percebemos aqui que as formalidades tinham preocupações de publicidade. É que, no penhor sem desapossamento, os terceiros não detetam o ónus. (Desta perspectiva é expressão o Ac. da R.P., de 20 de junho de 1996, no proc. 9630347, disponível em www.dgsi.pt).

Se a preocupação das formalidades é a publicidade do ónus, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, esta passa a ser conseguida com as menções no alvará de todos os atos relevantes sobre o estabelecimento.

 Daí que, a partir de então, possamos ver de forma diferente as exigências documentais porque a salvaguarda da publicidade permite aligeirar as exigências da forma.

Voltando à regra geral, conforme o art. 681.º, n.º1, do CC, a constituição da garantia em análise está sujeita às exigências de forma e publicidade que valem para a transmissão dos direitos empenhados.

Ora, de acordo com o disposto no art. 18.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de agosto, a venda, o trespasse, o arrendamento e a cessão de exploração do estabelecimento far-se-ão por escrito particular. E, face ao seu art.19º, a constituição do ónus é levada a registo no alvará respetivo.

A existência deste registo, com uma publicidade mais conseguida do que a resultante do anterior documento autêntico, permitiu aligeirar a exigência relativa à forma das declarações.

Serve isto para concluir que, com a lei de 2007, o sistema basta-se com o documento particular, acompanhado com as obrigações de registo, sendo a violação destas sancionada em diferentes previsões do diploma.
Sendo assim, podemos concluir:

O penhor do estabelecimento de farmácia, realizado em 2012, é válido por constar de escrito e é oponível a terceiros por ter sido averbado ao alvará daquele.

No caso, o N (…) invoca a constituição de penhores sobre o estabelecimento de farmácia da titularidade da insolvente, resultante de uma mudança/reforço de garantias dos valores financiados desde 2008.

Os penhores estão documentados por escritos de 18 de junho de 2012.

Estes penhores encontram-se averbados no alvará nº (...), referente à Farmácia (…) desde 3 de abril de 2012.

Tais penhores garantem os financiamentos de €948.543,07 e de €237.477,32.

Estes penhores, respeitando os demais termos da sentença, não impugnados, devem ser graduados em 2º lugar porque posteriores ao de abril de 2008 (U (…)) e anteriores ao de julho de 2012 (S(…)).


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Decisão.

            Julga-se o recurso parcialmente procedente, revoga-se parcialmente a decisão recorrida e, mantendo o demais decidido, altera-se o seguinte:

I- Reconheço aos créditos da S (…) SARL, U (…) CRL e aos dois descritos do N (…), SA, a natureza de créditos garantidos por penhor sobre o estabelecimento comercial de farmácia apreendido nos autos;

II-Reconheço ao restante crédito reclamado pelo N (…), S.A. a natureza de crédito comum;

III- (…);

IV- Procedo à graduação dos créditos referidos em I, II e III sobre o produto do estabelecimento comercial de farmácia nos seguintes termos:

Em primeiro lugar o crédito pignoratício da U (…), CRL;

Em segundo lugar os assinalados dois créditos do N (…), SA, conforme supra identificados, nos valores de €948.543,07 e de €237.477,32.

Em terceiro lugar, o crédito pignoratício da S (…) SARL;

(…)

            Custas nesta instância pelas Recorridas U (…) e D (…) (também vencidas) e pelo Novo Banco, na proporção do decaimento.

            Coimbra, 2017-04-27


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(Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator)

 (António Carvalho Martins)

 (Carlos Moreira)