Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
538/19.6JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 06/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 286.º, N.º 1, DO CPP
Sumário: I – A instrução deve ser requerida, quer relativamente a factos quer a questões jurídicas, com a finalidade definida no artigo 286.º, n.º 1, do CPP, qual seja, a de obtenção de uma decisão de pronúncia ou de não pronúncia.

II – Assim, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido não pode extravasar o pretendido escopo de não ser submetido a julgamento.

III – O critério definidor da submissão (ou não) da causa a julgamento funda-se num juízo valorativo abrangente de todo o processo e não apenas incidente sobre fragmentos do mesmo.

IV – Deste modo, a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamentação da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como objectivo a não pronúncia do arguido quanto a todos os crimes que lhe são imputados na acusação.

V – Dito de outro modo, se a diversa qualificação jurídica dos factos descritos na acusação não é passível de produzir aquele resultado (não pronúncia do arguido), mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento, sendo, em consequência, a instrução legalmente inadmissível.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

P., arguido nos autos, veio interpor recurso do despacho judicial, de fls. 303/306, que por inadmissibilidade legal da instrução, rejeitou o requerimento para abertura da instrução por si apresentado.


*

A sua discordância encontra‑se expressa na motivação de recurso de onde retirou as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do Douto despacho que ao abrigo do disposto no artigo 286.º do CPP, nega ao arguido a abertura da instrução por inadmissibilidade legal.

2. O requerimento de abertura de instrução deve ser admitido mesmo quando a final o arguido não requer a sua não pronúncia, estando no direito de expurgar factos que não são suportados por quaisquer indícios nos autos e bem assim discutir a qualificação jurídica tal qual vem vertida na Acusação Pública.

3. De resto, essa qualificação dada pode também ter em abstracto consequências práticas, nomeadamente quanto ao tribunal materialmente competente e a eventual possibilidade de aplicação de institutos como a suspensão provisória do processo.

4. Na realidade cada um dos crimes de que vem acusado deve ser visto como uma causa em si.

5. Com o despacho em apreço foram violados os artigos 286.º, n.º 1, 287.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4 do CPP, assim como o artigo 32.º, n.º 1 e 5 da CRP, sendo inconstitucional, por violação deste último princípio de garantias de defesa, a interpretação dada ao artigo 286.º do CPP no sentido de que não é admissível a abertura de instrução para discussão da qualificação jurídica dada aos factos de que este vem acusado, se esta não procurar evitar a submissão do arguido a julgamento.

Nestes termos e nos melhores de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e substituído o despacho recorrido por outro que declare aberta a instrução, por legalmente admissível no caso em apreço.


*

A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido pronunciou-se pela improcedência do recurso, tendo rematado a sua resposta com as seguintes conclusões:

1. No encerramento do inquérito o arguido P. foi acusado pela prática, em concurso efetivo, de um crime de abuso sexual de crianças, p. p. pelo artigo 171°, n.º 3 b), um crime de abuso sexual de crianças, p. p. pelo artigo 171°, n° 3 a), um crime de pornografia de menores, p. p. pelos artigos 176°, n.º 1 b) e 177°, n.º 7 e um crime de pornografia de menores, p. p. pelos artigos 176°, n.º 1 c) e n.º 5 e 177°, n.º 7, todos do Código Penal.

2. Não se conformando com a acusação, requereu a abertura de instrução, pugnando pela sua não pronúncia por alguns dos factos imputados e pela alteração da qualificação jurídica de outros, que importaria a diminuição do limite máximo da(s) pena(s) de prisão aplicável(eis);

3. concluindo pela não pronúncia pelos crimes de pornografia de menores agravados e pela pronúncia por um crime de abuso sexual de crianças p. p. pelo artigo 171°, n.º 3 a), um crime de pornografia de menores p. p. pelo artigo 176°, n.º 5 e um crime de aliciamento de menores para fins sexuais, p. p. pelo artigo 176º-A, n.º 1, todos do CP, pelo que não tendo antecedentes criminais, poderia ser equacionada a realização de julgamento por tribunal singular (cf. art. 16°, n.º 3 do CPP).

4. Tal requerimento foi rejeitado pelo Exmo. Senhor Juiz, por inadmissibilidade legal, por não cumprir as finalidades da instrução - comprovação judicial da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cf. art. 286°, n.º 1 CPP) -, entendimento com que concordamos.

5. O RAI apresentado não visa evitar (nem pode) que o processo prossiga, tendo o julgamento de se realizar quantos aos factos com os quais o arguido se conformou e ainda que, em relação a alguns, por crimes diversos; ainda que viesse a ser proferido despacho em conformidade com o pretendido, sempre o processo prosseguiria para julgamento, pelo que o RAI é inócuo quanto à finalidade da instrução.

6. Sendo indiferente que estejamos perante crimes diversos, com molduras penais diferentes, pois o objeto do processo é definido e limitado pela acusação, que engloba todos esses factos e crimes, pelo que também a causa é única e a sua submissão a julgamento será inevitável.

7. Mais se refira que os crimes imputados e aqueles a que alude o arguido revestem natureza pública e em relação a todos eles era possível a suspensão provisória do processo, nos termos do preceituado nos artigos 178°, n.º 4 do CP e 281°, n.º 8 do CPP;

8. já as medidas de coação não foram alteradas após a acusação, em que é imputado crime mais grave do que aquando do interrogatório em que ao arguido foi aplicado o estatuto coativo, e a possibilidade de julgamento por tribunal singular não constitui fundamento para a admissibilidade do requerimento de abertura de instrução.

9. Assim, não podendo a instrução requerida cumprir a sua finalidade legal e carecendo a mesma de utilidade, impõe-se a sua rejeição por inadmissibilidade legal, que se funda na violação das finalidades da instrução e em razões de economia processual, que proíbe a prática de atos inúteis.

10. A ausência de instrução não limita os direitos de defesa do arguido, que os pode exercer em pleno na audiência de julgamento, fase fulcral do processo penal, em que mantém todas as garantias e direitos que lhe estão assegurados.

11. Não se vislumbrando que a rejeição da instrução e a prossecução para julgamento implique a violação dos princípios do contraditório e do acusatório.

12. O recurso à instrução está limitado pelas suas finalidades legais e respetivas consequências, tendo os direitos de defesa de se compatibilizar-se com outros direitos e interesses que enfermam o processo penal.

13. Pelo que a decisão recorrida está devidamente fundamentada, não é nula, nem padece de inconstitucionalidade, e assim sendo deverá ser mantida na íntegra.


*

Nesta instância o Exmº Procurador da República emitiu parecer no mesmo sentido, acompanhando a resposta do Ministério Público junto do tribunal recorrido.

Cumprido o n.º 2 do artigo 417º do CPP, o arguido respondeu reiterando os fundamentos do recurso.

Os autos tiveram os vistos legais.


***


II - FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido (por transcrição):

Da inadmissibilidade legal do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido:

Findo o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, contra o arguido P., melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática, como autor material e em concurso efectivo, de:

- 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art.º 171.º, n.º 3, al. b), do Código Penal,

- 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelos art.ºs 171.º, n.º 3, al. a), e 170.º, do Código Penal,

- 1 (um) crime de pornografia de menores, previsto e punido pelos art.ºs 176.º, n.º 1, al. b), e 177.º, n.º 7, do Código Penal, e,

- 1 (um) crime de pornografia de menores, previsto e punido pelos art.ºs 176.º, n.ºs 1, al. c), e 5, e 177.º, n.º 7, do Código Penal,

nos termos dos factos narrados naquela peça processual, cujos aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Em requerimento subscrito pelo respectivo ilustre defensor, requereu o arguido, tempestivamente, a abertura da instrução, nos seguintes termos que, a final, sintetizou: “… deve a acusação ser expurgada da factualidade não indiciada quanto à intenção concretizada de divulgação de material pornográfico contendo menores e a final ser o arguido pronunciado, em concurso efectivo, de:

• um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º, todos do CP, punível até 3 anos de prisão;

• um crime de aliciamento de menores para fins sexuais, p.p. pelo artigo 176.º- A, n.º 1 do CP, com pena de prisão até 1 ano;

• um crime de pornografia de menores, p.p. pelo artigo 176.º, n.º 5 do CP, com pena de prisão até 2 anos;

De resto, entende a defesa que face a estas qualificações, aliadas à ausência de antecedentes criminais por parte do arguido, nada obstaria (antes se impunha) o julgamento do arguido em tribunal singular, lançando-se mão, a requerimento do MP, à aplicação do artigo 16.º, n.º 3 do CPP, ao que desde já se alude”.

A fase processual da instrução, de carácter facultativo, traduz-se em um controlo judicial do despacho final do Ministério Público proferido no inquérito, de acusação ou de arquivamento (in casu, de acusação), ou seja, tem em vista, nas palavras da lei, a “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (art.º 286.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Processo Penal).

A legitimidade para requerer a instrução cabe ao arguido ou ao assistente, nos moldes delineados no art.º 287.º, n.º 1, do citado compêndio adjectivo: “A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:

a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou

b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação”.

Nos termos do art.º 287.º, n.º 2, do Cód. de Processo Penal, o requerimento para abertura da instrução, embora não esteja sujeito a formalidades especiais, “deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar”, dispondo o n.º 3 do mesmo art.º que “o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.

Não sendo pacífica, na doutrina e na jurisprudência, a resposta à questão de curar de saber da admissibilidade da instrução requerida pelo arguido quanto não pretende uma não pronúncia, mas uma diversa subsunção normativa dos factos, mais favorável, ou uma pronúncia parcial, seguimos de perto, pelo rigor da análise do problema, o Ac. da RE de 08/05/2012:

Segundo Germano Marques da Silva [1], a fase da instrução foi estruturada com uma dupla finalidade: obter a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, por uma parte, e a fiscalização judicial da decisão processual do Ministério Público de acusar ou arquivar o inquérito, por outra, nela se compreendendo, entre outros actos, o ''debate sobre questões de direito de que dependa o sentido da decisão instrutória e da decisão judicial sobre se a causa deve ou não ser submetida à fase de julgamento.''

Sobre se estas ''questões de direito'' podem ser a motivação exclusiva da instrução, o referido Autor parece pronunciar-se afirmativamente, quando diz: ''À semelhança do que sucedia no direito anterior, a instrução pode ser requerida pelo arguido com o fim de ilidir ou enfraquecer a prova indiciária da acusação, mas também por razões exclusivamente de direito material ou adjectivo, que viciem a acusação.''[2]

Ivo Miguel Barroso[3] aponta-nos uma síntese de posições doutrinárias (de Frederico Isasca, Souto Moura, José Noronha e Silveira, Frederico Lacerda da Costa Pinto e Cecília Santana) sobre esta questão, onde se pode descortinar alguma tendência para uma pronúncia igualmente afirmativa quanto à questão aludida, muito embora com algumas nuances. Aliás, a posição de Souto Moura, ali referida como de impossibilidade de instrução nos casos em que inexiste discordância sobre factos carece, pelo seu interesse, de explicação detalhada, que a consulta do respectivo texto impõe. Com efeito, começa o mencionado Autor por questionar se aquela discordância diz respeito a factos em sentido naturalístico / histórico ou a factos normativos, pronunciando-se sobre tal opção nos seguintes termos: ''A discordância do arguido (…) em relação ao M.º P.º, poderá incidir sobre a dimensão normativa do facto. Isto é, sobre o desvalor jurídico-penal do facto. (…) O requerente da instrução quer a não comprovação da decisão do M.º P.º. Ora o motivo dessa não comprovação pode ser uma questão jurídica, assente embora numa factualidade concreta. (…) A instrução serve uma decisão sobre se há ou não crime, e qual. Se a pretensão dirigida ao juiz é duma decisão que reconhece e qualifica factos, o motivo do requerimento poderá assentar exactamente num diferendo sobre a relevância dos factos, e em mais nada.''[4]

Por último, e ao invés das citadas posições, Paulo Albuquerque [5] afirma peremptoriamente que a instrução não pode, em regra, ser requerida para discutir apenas a qualificação jurídica dos factos, uma vez que a lei admite o exercício dessa faculdade pelo arguido relativamente a factos da acusação, concentrando-se na audiência de julgamento a discussão de todas as soluções jurídicas pertinentes, nos termos do artº 339º, nº 4 do CPP.

A jurisprudência que localizámos tende claramente para a admissibilidade da instrução requerida pelo arguido visando exclusivamente uma qualificação jurídica diversa da constante na acusação, muito embora sejam em concreto variáveis os termos de tal admissibilidade. [...]

No que respeita à questão em toda a sua latitude, parece-nos que nada na lei inculca a ideia de que a instrução (requerida pelo arguido) deva obrigatoriamente basear-se na existência de uma divergência factual face ao acervo constante do libelo acusatório. Assim, parece-nos meridianamente claro que uma diversa qualificação daquele acervo (que não se contesta) poderá ser o motivo exclusivo do requerimento de abertura da instrução. Tal divergência, porém, só poderá fundamentar a realização da instrução se couber no escopo legal que esta visa (decisão de não pronúncia), sob pena de ilegalidade manifesta.

Como começámos por referir, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de (no que agora nos interessa) deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Parece-nos, deste modo, que a concepção legal da instrução repousa numa perspectiva processual utilitarista, ou seja, trata-se de uma fase processual que se justifica quando existe a possibilidade de extinguir o processo, evitando o julgamento; caso contrário, ou seja, quando o objecto da discussão não é susceptível de produzir esse resultado, apenas se reflectindo em qualquer modo específico do seu prosseguimento, a mesma não é admissível, dada a sua inutilidade e eventual redundância face ao julgamento subsequente.

Também entendemos que não procede o argumento de que a admissibilidade alargada da instrução (como pugnada pelo recorrente) poderá ter outras eventuais consequências favoráveis ao arguido, pois estas são absolutamente alheias à justificação legal do instituto, tal como acima referimos.

Com efeito, no que respeita a eventuais reflexos em medidas de coacção já decretadas, não vemos por que motivo uma pronúncia do JIC nesta fase possa ser sobrevalorizada relativamente à pronúncia do JIC que fixou anteriormente o estatuto coactivo do arguido; por outro lado, eleger este reflexo secundário de uma eventual re-qualificação jurídica a efectuar em sede de instrução para justificar a própria existência desta fase não nos parece tecnicamente acertado.

Por outro lado, também nos parece que alterações decorrentes da decisão instrutória na competência do tribunal de julgamento (p. ex. passando a competência do tribunal colectivo – por o crime acusado tal determinar / ex. roubo – para o tribunal singular – em virtude da moldura punitiva do crime pronunciado isso impor / ex. furto simples) não são passíveis de integrar fundadamente qualquer argumento no sentido da admissibilidade da instrução para exclusiva qualificação diversa dos mesmos factos da acusação, sem que esteja em causa o prosseguimento dos autos: com efeito, sempre o tribunal de julgamento poderá operar nova re-qualificação, podendo até, no exemplo que apontámos, tal circunstância implicar nova demora processual por este tribunal se declarar incompetente, sendo necessária então a intervenção do tribunal colectivo[8].

Por último, quaisquer efeitos outros que uma diferente qualificação através da instrução possa implicar, das duas uma, ou impedem o prosseguimento dos autos para julgamento (ex. amnistia) e aí entendemos que aquela é admissível ou não o impedem, o que gera a admissibilidade da mesma.

O critério para avaliar da admissibilidade da instrução é, com efeito, sempre o mesmo e encontra-se alternatividade recortada pela lei: arquivar os autos ou submeter a causa a julgamento. […]

Só que o critério da submissão ou não da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito impõe, um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo. Assim, entendemos que a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados. Se essa diversa qualificação jurídica dos factos da acusação não é passível de produzir tal resultado, mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento e, como tal a instrução é legalmente inadmissível” ([1]).

Ora, semelhante situação sucede nos presentes autos, não pretendendo o arguido obter, finda a instrução, um despacho de não pronúncia, mas um despacho de pronúncia parcial, com um diverso enquadramento normativo, que reputa mais favorável, não sendo, pois, nesses moldes, e seguindo o entendimento supra exposto, admissível a instrução, cabendo, por conseguinte, rejeitar o requerimento peticionando a sua abertura, nos termos do art.º 287.º, n.º 3, do Cód. de Processo Penal.

Pelo exposto, rejeito o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido.


*

Custas a fixar a final – art.º 513.º, n.º 1, do Cód. de Processo Penal.

*

Oportunamente, remetam-se os autos à distribuição para julgamento.”


***

APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão suscitada e a decidir consiste em saber se: o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido, deve, ou não, ser admitido, quando não pretende o arguido obter, finda a instrução, um despacho de não pronúncia, mas um despacho de pronúncia parcial, com diversa qualificação jurídica dos factos dada na acusação pelo Ministério Público.


*

Alega o recorrente:

“O arguido foi acusado, em concurso efectivo, pelo cometimento em autoria material de 4 crimes, a saber:
· Um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea b) do CP;
· Um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea a) do CP, por referência ao artigo 170.º do CP.
· Um crime de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea b) e 177.º, n.º 7 do CP;
· Um crime de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 7) do CP.

O arguido, além de com o seu requerimento de abertura de instrução de pretender expurgar da acusação factos que pura e simplesmente não estão indiciados nos autos, (mormente a expurgação do facto essencial a consubstanciar a acusação por aquele quarto crime: - foi defendido no RAI, além do mais, que inexistiam nos autos de inquérito quaisquer indícios do arguido ter efectivamente procedido à divulgação de material pornográfico com menor por terceiros, pelo que se requeria a final que esta factualidade fosse pura e simplesmente retirada da acusação e em consequência, fosse rectificada a qualificação jurídica dada com base neste facto) discordava igualmente da qualificação jurídica dada aos outros, pretendendo a final ser antes pronunciado, em concurso efectivo, "apenas" por:
· um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º, todos do CP,
· um crime de aliciamento de menores para fins sexuais, p.p. pelo artigo 176.º- A, n.º 1 do CP
· um crime de pornografia de menores, p.p. pelo artigo 176.º, n.º 5 do CP,

Saliente-se o óbvio: a diferença entre a qualificação dada na Acusação e a que se impunha com a procedência do RAI é brutal, quer com a expurgação de factos pretendida quer desde logo atentas as molduras penais em causa.

Se apenas com o último dos crimes constante da Acusação (ou seja, já desconsiderando os 3 outros crimes de que vem acusado) o arguido incorrerá em julgamento à partida numa pena com uma moldura de máximo punível até 7 anos e seis meses de prisão, teríamos que com uma eventual pronúncia nos termos requeridos no RAI, este incorreria, no máximo possível, em não mais que 3 anos pelo crime de abuso sexual de crianças, 1 ano pelo aliciamento de menores e 2 anos de prisão pelo crime de pornografia de menores. Bem menos, portanto.

Ora não se justifica que o arguido seja submetido a julgamento por uma factualidade e qualificação que está (no caso até cremos que manifestamente) errada, e desde logo se pretender - e é seu direito - peneirar antes de julgamento, no caso com a abertura da instrução, discordando quer dos factos quer do direito.

Com o despacho em apreço foram violados os artigos 286.º, n.º 1, 287.º, n.º 1 alínea a) e n.º 4 do CPP, assim como o artigo 32.º, n.º 1 e 5 da CRP, sendo inconstitucional, por violação deste último princípio de garantias de defesa, a interpretação dada ao artigo 286.º do CPP no sentido de que não é admissível a abertura de instrução para discussão da qualificação jurídica dada aos factos de que este vem acusado, se esta não procurar evitar a submissão do arguido a julgamento.”.


*

A instrução, sendo facultativa, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, n.º 1, do CPP). E, ocorrerá quando requerida pelo arguido quanto a qualquer crime pelo qual tenha sido acusado (pelo Ministério Público, ou pelo assistente em caso de procedimento dependente de acusação particular), ou pelo assistente relativamente a crimes públicos ou semi-públicos não abrangidos na acusação do MP – n.º 1 do art. 287º do CPP.

De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 287º do CPP o requerimento para a abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar.

Com efeito, o processo criminal tem estrutura acusatória (artigo 32º, n.º 5 da CRP), o que significa que o objecto do processo é fixado pela acusação, a qual delimita o poder cognitivo do juiz, de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido (n.º 1 do artigo 32º).

Acresce que, como estabelece o n.º 3 do citado artigo 287º, tal requerimento (RAI) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução. Sendo que, quanto à inadmissibilidade legal os fundamentos de rejeição reconduzem-se a realidades de que deriva a inutilidade da instrução (cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 14º, n.º 3, Julho-Set. de 2004, pág. 3).

Por regra, o arguido ao requerer a instrução pretende contrariar os fundamentos da acusação e, demonstrar que as suas razões são válidas, e que verificada a pertinência das mesmas, não tem de ser submetido a julgamento.

No caso vertente, foi deduzida acusação pública, imputando ao arguido dois crimes de abuso sexual de crianças e dois crimes de pornografia de menores agravado.

Sucede que, com a instrução requerida visava o arguido, ora recorrente:

-- que fossem retirados da acusação factos, que em seu entender, não estavam indiciados nos autos, designadamente, (quanto ao quarto crime) “ter o arguido efectivamente procedido à divulgação de material pornográfico com menor por terceiros” e, em consequência, fosse rectificada a qualificação jurídica dada com base neste facto;

-- e, quanto aos outros crimes, por dela discordar, ser alterada a qualificação jurídica constante da acusação.

Daí que,

O despacho recorrido tenha considerado, e bem, que o arguido pretendia um despacho de pronúncia parcial, com um diverso enquadramento normativo, que reputava mais favorável … e, determinou a rejeição do RAI por inadmissibilidade legal da instrução.

E, afigura-se-nos, que correctamente.

Desde logo, com a requerida instrução, o arguido não visava uma decisão de não pronúncia, quanto à totalidade dos crimes que lhe foram imputados pelo Ministério Público.

E, resulta da argumentação do recorrente e da análise do RAI que o arguido jamais poderia deixar de ser submetido a julgamento, pois, mesmo que a decisão instrutória fosse concordante com as razões do arguido, o processo transitaria para a fase de julgamento por via da acusação dos demais crimes (mesmo que, com a pretendida alteração da qualificação jurídica).

A situação já seria diferente se, com a requerida instrução, o arguido pudesse evitar a sua submissão a julgamento.

A notar também que, o arguido não demonstrou interesse na instrução a fim de obter uma decisão de não pronúncia relativamente aos crimes, na perspectiva de vir a obter do autor da queixa uma desistência da mesma, pois, in casu tal não seria possível visto que todos os crimes - quer com a qualificação jurídica dada na acusação pública, quer com a indicada pelo arguido no RAI - têm natureza pública, donde, em relação a nenhum deles podia o arguido beneficiar de desistência de queixa.

Ora,

A instrução deve ser admitida, quer relativamente a factos, quer a questões jurídicas, mas, sempre dentro da finalidade da instrução, ou seja, sempre com a finalidade de se obter uma decisão de pronúncia ou de não pronúncia. – cfr. ac. RP de 4-6-2014, proc. n.º 1584/13.9JAPRT-A.P1

Concordamos, assim, com o ac. da RE de 8-5-2012, proc. n.º 226/09.1PBEVR.E1, também citado pela decisão recorrida, quando considera que “o critério da submissão, ou não, da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito (art. 286º, n.º 1) impõe, a um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo. Assim, entendemos que a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados. Se essa diversa qualificação jurídica dos factos da acusação não é passível de produzir tal resultado, mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento e, como tal a instrução é legalmente inadmissível.”.

Por outro lado,

Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque ([2]) “a instrução não pode, em regra, ser requerida para discutir apenas a qualificação jurídica dos factos, uma vez que a lei admite o exercício dessa faculdade pelo arguido relativamente a factos da acusação [pública ou particular, ou pelo assistente relativamente a factos pelos quais o MP não tenha deduzido acusação – art. 287º, n.º 1, als. a) e b)]. O legislador fez uma opção clara por concentrar na audiência de julgamento a discussão de “todas as soluções jurídicas pertinentes” (art. 339º, n.º 4).”

Com efeito, dispõe o n.º 4 do artigo 339º do CPP que: «Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º».   é nosso o sublinhado

“A instrução não é um julgamento ´antecipado`, com o mesmo nível de garantias e direitos de defesa, com a mesma intensidade de produção e apreciação da prova. A instrução visa apenas a comprovação da acusação, isto é, saber se existe fundamento para abrir a fase de julgamento, que é a fase central e paradigmática do processo penal, segundo o modelo garantista herdado do iluminismo.” – Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1000.

Por conseguinte,

Contrariamente ao que defende o recorrente, a decisão recorrida não pôs em causa as garantias de defesa do arguido, violando o disposto no artigo 32º da CRP, porquanto, o arguido pode apresentar contestação à acusação pública alegando todo o circunstancialismo de facto e de direito que entende pertinente, nomeadamente, com os mesmos fundamentos que motivaram o RAI, a fim de serem apreciados em sede de audiência de discussão e julgamento.

Concordamos, assim, com a Magistrada do Ministério Público quando, na resposta ao recurso, refere: “entendemos que não estão limitados os direitos de defesa do arguido com a não realização da instrução e a prossecução dos autos para julgamento, sendo que esta é a fase fulcral do processo penal, mantendo o arguido todas as garantias e direitos de defesa que lhe estão assegurados, não sendo de forma alguma beliscado o princípio da presunção de inocência.

Assim sendo, entendemos também que a decisão recorrida não padece de qualquer inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, pois que não estão precludidos os direitos de defesa do arguido, não se mostrando violado o princípio do contraditório, que poderá exercer plenamente em audiência de discussão e julgamento.

Nem tão pouco, cremos, com a ausência de instrução é posto em causa o princípio acusatório, pois o arguido será julgado pelo órgão julgador, distinto da entidade que o acusou, sendo a acusação condição e limite do julgamento e da atividade do juiz; e a tal não obsta o facto de não ser realizada instrução, que o seria por um juiz também distinto do de julgamento.”.

Tendo, nesta instância, o Exmº Procurador da República acrescentado, no seu Parecer: “Relativamente à alegada violação do direito do disposto pelo art. 32º, 1 e 5, da CRP, para além das razões invocadas pela Ex.ma Magistrada do Ministério Público na sua resposta, diremos apenas que, não pretendendo impedir que os factos constantes da acusação sejam conhecidos em julgamento, e vindo os mesmos a serem aí tidos como provados, ao arguido assistirá sempre o direito de impugnar a qualificação jurídica operada pelo tribunal em sede de recurso, qualquer que venha a ser essa qualificação.”.

Como sublinha o Ac. do STJ, de 12-3-2009, proc. n.º 08P3168:

“- A inadmissibilidade legal constitui uma das três formas legalmente previstas de rejeição do requerimento para abertura de instrução.

- Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de actos inúteis, conforme estabelece o art. 137.º CPC (actual art. 130º CPC/2013), aplicável ao processo penal nos termos do art. 4.º do CPP, por o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal.

- Há afloramentos deste princípio em diversas normas do CPP, nomeadamente no art. 311.º, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada, e no art. 420.º, que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência.”.

Ora,

No caso em apreciação, verifica-se pela análise do RAI apresentado pelo arguido, que este não deixaria de ser submetido a julgamento; e, assim sendo, estamos perante uma fase instrutória inútil, por redundar, necessariamente, numa ida do arguido a julgamento, com vista à discussão dos factos que lhe foram imputados na acusação pelo MP.    Neste sentido, acs. RE de 6-12-2016, proc. n.º 169/14.7GBSLV-A.E1 e, de 8-10-2019, proc. 1003/17.1GBABF-A.C1, disponíveis em www.dgsi.pt

Deste modo, não se vislumbra que o despacho recorrido tenha violado os artigos 286º, n.º 1, e 287º, n.º 1, al. a) e n.º 4 do CPP, assim como o artigo 32º, n.ºs 1 e 5 da CRP.

Improcede, assim, a argumentação do recorrente.


*****

III - DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça.


*****

Coimbra, 30-6-2021

Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Ac. da RE de 08/05/2012, Proc.º N.º 226/09.1PBEVR.E1, www.dgsi.pt; no mesmo sentido, Ac. da RP de 04/06/2014, Proc.º N.º 1584/13.9JAPRT-A.P1, www.dgsi.pt.

[2] - Comentário do Código de Processo Penal, Univ. Católica Editora, 2ª edição, 2008, pág. 751.