Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
203/10.0JELSB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
CONDENAÇÃO
PENA DE PRISÃO
REVOGAÇÃO
MEDIDAS DE COACÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.ª SECÇÃO DA VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 202.º, 204.º E 212.º DO CPP
Sumário: Sem ofensa do princípio da presunção de inocência, a condenação em pena de prisão, enquanto único “(novo) fundamento”, não pode conduzir à agravação da medida de coacção com que o arguido se apresenta em julgamento.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

                       1. No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 203/10.0JELSB, da Vara de Competência Mista de Coimbra – 1.ª Secção, por acórdão de 18.02.2013 foi o arguido A..., melhor identificado nos autos, condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do D.L. 15/93, de 22.01, como reincidente na pena de 6 [seis] anos e 6 [seis] meses de prisão e pela prática de um crime de falsificação, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, al. c) do Código Penal na pena 6 [seis] meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 [seis] anos e 9 [nove] meses de prisão.

                        2. Por ocasião da leitura do acórdão [18.02.2013], mediante promoção do Ministério Público, e após cumprido o contraditório, em acta, decidiu o Exmo Juiz Presidente aplicar ao arguido a medida de coacção prisão preventiva.

                        3. Inconformado com tal decisão [estatuto coactivo], recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

                        1. O arguido não possui antecedentes criminais;

                        2. O arguido está a exercer as funções de músico numa banda, tendo remuneração suficiente para a sua subsistência;

                        3. O arguido deixou os seus hábitos de consumo, tendo iniciado acompanhamento no Centro de Atendimento ao Toxicodependente;

                        4. O arguido está inscrito no Centro de Emprego para conseguir emprego mais vantajoso;

                        5. A medida de prisão preventiva só é admissível quando se verificam os pressupostos do artigo 204º do Código de Processo Penal;

                        6. Não existe respeito, nesta aplicação de medida de coacção, pelos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade;

                        7. O douto despacho recorrido não fundamenta a existência dos pressupostos do artigo 204.º do Código de Processo Penal, sendo certo que tais pressupostos não se verificam;

                        8. Não existiu, até ao momento, continuidade da prática criminosa pela qual foi condenado, sendo que prova ou indício algum existe que possa refutar isso.

                        9. Estão volvidos mais de dois anos desde o último comportamento ilícito do arguido.

                        10. O arguido sempre foi cooperante com as autoridades e com o tribunal comparecendo a todas as diligências para as quais foi convocado.

                        11. Nunca existiu nenhuma tentativa de fuga por parte do arguido em qualquer altura do processo.

                        12. O arguido sempre manteve familiares no estrangeiro, nunca tendo usado esse facto para tentar a evasão.

                         13. O contacto com os familiares referidos supra é quase inexistente, sendo que o familiar mais próximo é o seu tio, B..., que exerce a função de Procurador – Geral da República Adjunto, em Angola, e que, como se deve imaginar, não compactuaria com um evadido à justiça portuguesa.

                         14. O arguido sofreu uma gravíssima agressão, que levou à perda do seu globo ocular direito, pelo que mantém regulares consultas médicas em Coimbra e no Porto, e que necessita ainda de intervenções muito sensíveis.

                         15. Todos os médicos do arguido se encontram em Portugal, assim como o seu historial clínico, fazendo com que uma fuga do país o colocasse em risco de perder completamente a visão.

                         16. O arguido mantém um relacionamento estável com a sua namorada.

                     17. O arguido é lesado, vai constituir-se assistente e realizar um pedido de indemnização cível no processo relativo à agressão supra referida e do qual existe despacho de acusação no processo n.º 180/11.0PBCBR, a correr termos na 2.ª secção do DIAP de Coimbra.

                     18. A indemnização que, inevitavelmente irá receber ficaria sem efeito se o arguido fugisse de Portugal, o que é impensável para este.

                     19. Depois de todo o comportamento do arguido durante o processo, sempre em liberdade e com uma postura inatacável, esta aplicação da mais gravosa medida de coacção reveste-se da mais flagrante injustiça.

                     20. O douto despacho recorrido fez incorrecta apreciação dos factos e violou o art.º 28.º, n.º 2 da CRP, e o art.º 204º do C.P.P., pelo que deve ser revogado, ordenando-se a libertação imediata do arguido, devendo aguardar os ulteriores trâmites do processo em liberdade.

                      21. Sem prescindir, mas caso assim se não entenda, bastaria a aplicação ao arguido da medida prevista no art.º 201º do C.P.P., ser revogado o despacho e substituído por outro que substitua a medida de coacção de prisão preventiva pela de obrigação de permanência na habitação.

                      Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido por V. Exas. deve conceder-se provimento ao presente recurso, fazendo-se a costumada JUSTIÇA!

                      4. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:

                      1. Com o presente recurso visou, o arguido recorrente, manifestar a sua discordância para com a douta decisão que, após leitura do acórdão condenatório, o sujeitou a prisão preventiva, porquanto em seu entender se não verificavam os pressupostos de aplicabilidade dessa medida de coacção, aferidos pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.

                     2. No entanto, contrariamente ao que o recorrente pretende, a douta decisão recorrida, fundamentando a aplicação da prisão preventiva com a existência de concretos perigos de continuidade criminosa e de fuga do arguido, não só a considera uma medida de coacção proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente será aplicada ao arguido, como entende, justificadamente, tratar-se da única medida de coacção necessária e adequada a acautelar os apontados riscos.

                       3. O alegado pelo recorrente não tem relevância impugnatória dessa decisão, cuja fundamentação apenas em parte tentou impugnar e, mesmo assim sem consistência e em manifesta falência.

                        4. Ao colocar o arguido, ora recorrente, condenado já em primeira instância, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e de um crime de falsificação de notação técnica, na pena de seis (6) anos e nove (9) meses de prisão, a decisão recorrida fez correcta apreciação da factualidade atendível e demonstrada e pesou, equilibradamente, conforme o disposto no artigo 193º, do CPP, as exigências cautelares em equação.

                        5. No caso, perante a natureza de um dos crimes censurados (tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro); às circunstâncias específicas em que ocorreu a actividade criminosa (que prosseguiu, durante meses, para além de uma diligência de busca e apreensão), aos hábitos de consumo de estupefacientes, por parte do arguido, à inexistência de actividade profissional ou de outors rendimentos lícitos que assegurem as suas necessidades de subsistência e o financiamento desse consumo, as sanções criminais já decididas e que previsivelmente virão a ser aplicadas, as relações parentais e os contactos de que o arguido dispõe em diversos países, há justificadas razões para concluir pela existência de concretos perigos de continuidade criminosa e de fuga, tornando insuficiente qualquer outra medida de coacção e, nomeadamente, a obrigação de permanência na habitação face a essas exigências cautelares.

                      6. Pelo que essa decisão não ofendeu qualquer preceito legal e, designadamente, o artigo 28º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e o artigo 204.º, do Código de Processo Penal.

                      Nestes termos e pelo mais que, Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores, segura e sabiamente não deixarão de suprir, julgando-se improcedente o recurso e, consequentemente, confirmando-se a decisão recorrida, far-se-á Justiça.

                     5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este tribunal.

                      6. Na Relação, pronunciou-se o Exmo. Procurador – Geral Adjunto, o qual, acompanhando a resposta apresentada em 1.ª instância pelo Ministério Público, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

                      7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve reacção.

                      8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

               II. Fundamentação

                      1. Delimitação do objecto do recurso

                       De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente ainda que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.

                       A questão, tal como colocada pelo recorrente, traduz-se em saber se, ao decidir pela aplicação da prisão preventiva, violou o tribunal os artigos 204.º do CPP e 28.º, nº 2 da CRP.

                       2. A decisão recorrida

                       É o seguinte o teor do despacho recorrido:

                       «Tendo presente que a medida de coacção de prisão preventiva só deve ser aplicada quando nenhuma outra seja adequada às exigências cautelares, na situação em apreço teremos que considerar os elementos que já referimos supra, dos quais destacamos os seguintes:

· o facto de o arguido ter sido condenado num pena única de 6 anos e 9 meses de prisão;

· ser um consumidor regular de estupefacientes sem que lhe seja conhecida uma atividade profissional da qual possa o arguido obter meios para sustentar o seu vício.

                         Estas duas circunstâncias levam-nos a concluir que existe o perigo do arguido continuar a praticar os factos pelos quais foi agora condenado.

                         Ora, esse risco não será obviado, de todo, pelo facto de o arguido vir a ser sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação. Porém, admitindo que, de alguma forma, essa medida, menos gravosa que a prisão preventiva, pudesse acautelar o risco de continuação da atividade criminosa, nunca será suficiente para prevenir o risco de fuga que se verifica. Isto porque, como o arguido referiu, tem familiares próximos (tios, primos e irmãos) a residir em Angola, Brasil e França. Por outro lado, socorreu-se para aquisição de estupefacientes, de alguém seu conhecido que se encontra na Índia.

                         Tudo visto e com base nos dispositivos legais citados na promoção que antecede, decide-se aplicar ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, por se entender que é a única que acautela os riscos indicados, sendo também a adequada face às razões invocadas e à pena aplicada.

                          Emita os competentes Mandados de Condução ao EP, contacte a PSP para conduzir o arguido e demais diligências necessárias.

                          Notifique.»

                          3. Apreciando

                         Dissente o recorrente da medida de coacção que lhe foi aplicada [prisão preventiva], o que teve lugar, por despacho exarado em acta, proferido imediatamente após a publicação do acórdão condenatório, em virtude de – aduz - não se verificarem os pressupostos do artigo 204.º do CPP, sendo que, ainda que não fosse esse o entendimento, sempre a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação seria suficiente.

                               Como disposições violadas indica os artigos 28.º, n.º 2 da CRP e o artigo 204.º do CPP.

                               A dilucidação do caso não dispensa um excurso sobre a evolução da situação processual do recorrente – estatuto coactivo - nos presentes autos.

                               Vejamos, pois.

                               a. No âmbito dos presentes autos foi o arguido sujeito a 1.º interrogatório judicial de arguido detido no dia 07.05.2010, findo o qual ficou indiciado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 25º, al. a) do D.L. n.º 15/93, de 22/01, com referência às tabelas I – B e I – C anexas.

                               Fez, então, o Exmo. Juiz consignar:

            «O arguido não tem antecedentes criminais, é cidadão estrangeiro mas residindo em Portugal há cerca de 20 anos e admitiu ser consumidor de estupefacientes.

                        (...)

                        Dos autos não resulta, em termos concretos, a verificação de nenhum dos perigos a que alude o artº 204º do CPP, pelo que o arguido deverá aguardar os ulteriores trâmites do processuais sujeito a TIR, já prestado …»;

                               b. Na sequência, de nova detenção do arguido, em 14.12.2010 – no âmbito dos presentes autos -, voltou o mesmo a ser submetido a 1.º interrogatório judicial de arguido detido, findo o qual, foi exarado despacho, do qual se respiga:

                            «O arguido, cidadão angolano, diligencia no sentido de adquirir a nacionalidade portuguesa conforme cópia do pedido na Conservatória do Registo Civil de Coimbra.

                               O arguido possui contactos em vários países do mundo e não exerce qualquer actividade profissional.

                               (…)

                               Dos factos indiciados pode concluir-se com suficiente segurança, haver indícios da prática pelo arguido de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21, nº 1 do Dec. Lei 15/93 de 22/01…

                               O arguido assume-se como consumidor de vários tipos de estupefacientes, afirma ter como rendimento certo 100 euros provenientes de uma pensão, mais referindo que é ajudado economicamente pela sua família.

                               Paga 200 euros de renda de casa, o que significa que os seus rendimentos lícitos e certos são insuficientes para fazer face tão só à renda de casa.

                               Neste momento não exerce qualquer profissão e não tem qualquer outra forma lícita de obtenção de rendimentos. Por isso, entende-se que existe perigo de continuação da actividade criminosa. Em concreto, perigo que o arguido continue a proceder à venda de estupefacientes a fim de arranjar dinheiro para o seu sustento.

                               Acresce, que não é crível que todo o estupefaciente apreendido fosse para consumo do arguido, atendendo às quantidades e natureza dos mesmos.

                               Entende-se igualmente que existe perigo de fuga uma vez o arguido, como afirma, tem contactos com pessoas de vários países. Aliás, tem familiares no estrangeiro.

                               É de ponderar igualmente que o arguido é primário.

                               A situação referida na factualidade indiciária referente a 27.04.2010, onde foi apreendida a maior quantidade de cannabis, já foi considerada no interrogatório a que o arguido foi sujeito a 7 de Maio de 2010 do corrente ano. Na altura qualificou-se o crime como tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 25º … e entendeu-se que não seria previsível a aplicação ao arguido de uma pena de prisão efectiva, o que invalidava a aplicação da prisão preventiva. Assim, o arguido, ficou apenas sujeito a TIR.

                               Para além da situação de 27.04.2010 e das apreensões de 06.05.2010, também já consideradas no referido interrogatório, temos depois a situação de 28.08.2010 e a de 13 de Dezembro do corrente ano.

                               Atendendo à natureza e quantidade de drogas apreendidas, como resulta da factualidade indiciada, e ao facto do arguido ser primário, entende-se desproporcionada a medida de coacção de prisão preventiva. De facto, não é previsível que ao arguido venha a ser aplicada uma pena de prisão efectiva.

                               Nestes termos e ao abrigo do disposto nos arts. 191º, 193º, 195º, 196º, 198º, 200º, nº 1, al. d), 204º, als. a) e c), todos do CPP, decide-se que o arguido deve aguardar os ulteriores termos do processuais em liberdade, sujeito à obrigação de apresentação periódica diária a efectuar no OPC da área da sua residência e ainda à proibição de contactar, por qualquer meio, com pessoas ligadas ao tráfico ou ao consumo de estupefacientes»;

                               c. Em 30.03.2012 foi deduzida acusação contra o arguido, nada tendo, contudo, sido requerido em sede de «medidas de coacção»;

                               d. Requerida, pelo arguido, a fase da instrução, veio, por despacho de 02.07.2012, a ser pronunciado nos precisos termos constantes da acusação.

                               No mesmo despacho foi ainda decidido julgar extintas, por já haver decorrido o prazo legal [máximo] por que podiam perdurar, as medidas de coacção de apresentação periódica e de proibição de contactos, passando, então, o arguido a aguardar os ulteriores trâmites processuais sujeito, apenas, a TIR;

                               e. No despacho a que alude o artigo 311º do CPP, exarado em 04.10.2012, foi determinado que o arguido continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo mediante o TIR, já prestado, condição em que se manteve até à alteração provocada pela decisão em crise.

                               Feito, assim, o esquisso dos aspectos que se nos afiguram relevantes, é altura de precisar os parâmetros da apreciação, para deixar muito claro que a questão só pode, agora, ser equacionada à luz do que vulgarmente se designa por alteração das circunstâncias, compreendendo-se aqui quer a alteração do quadro factual, quer a alteração dos perigos concretos que, por intermédio da aplicação das medidas de coacção, se visam acautelar.

                               Com efeito, estamos perante um quadro de alteração das medidas de coacção, em abstracto, consentido, conforme decorre dos artigos 203º e 212º do CPP, sendo comum ver neste último preceito o afloramento do princípio de que as medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, no sentido de que a primitiva decisão permanece intocável/imodificável enquanto não sobrevierem motivos que legalmente justifiquem um juízo de atenuação ou, pelo contrário, de agravação, das exigências cautelares que estiveram na base da determinação de uma concreta medida de coacção.

                               Tal princípio, não raras vezes convocado, no decurso dos processos, para contrariar a pretensão no sentido da substituição de uma medida mais restritiva da liberdade por outra menos lesiva, com o argumento de que nenhuma alteração – ao nível dos factos/das exigências cautelares - relevante que pudesse conduzir a tal resultado, entretanto, se produziu, vale, igualmente, em sentido inverso, isto é impede um agravamento do estatuto coactivo, sempre que seja de concluir não haverem sobrevindo circunstâncias – outras, que não as já anteriormente ponderadas – capazes de justificar o endurecimento.

                               Não obstante a lei não usar a mesma clareza no sentido da agravação daquela que utiliza no percurso inverso, ou seja no sentido da atenuação, parece inequívoco tratar-se de uma relação com as duas valências.

                               A propósito, escreve Germano Marques da Silva «A falta de referência expressa do legislador, quanto à possibilidade de agravamento das medidas de coacção não constitui óbice à sua leitura – que é a corrente na doutrina e na jurisprudência: as medidas de coacção, não têm carácter definitivo, sendo sempre susceptíveis de alteração, tanto no sentido da sua atenuação como no da sua agravação, em função da modificação das circunstâncias, vigorando neste domínio o princípio da sua sujeição à condição rebus sic stantibus, do regime legal, pois a previsão expressa da lei, relativamente à atenuação das exigências cautelares, justifica-se pelo favor rei» – [cf. Curso de Processo Penal, II, pág. 310].

                               No mesmo sentido Maia Gonçalves quando, em anotação ao artigo 212º do CPP, aduz «A previsão deste artigo abrange os casos de revogação das medidas de coacção a da sua substituição por outras menos gravosas. Daqui não deve tirar-se a ilação de que a lei rejeita a possibilidade de aplicação de medida de coacção mais gravosa, em substituição da que já foi aplicada. Para tanto bastará que surja novo circunstancialismo que dê fundamento legal à aplicação dessa medida mais gravosa. Sucede isso v.g. no caso de violação das obrigações impostas aquando da aplicação de uma medida de coacção, como resulta do art. 203.º. É mais um afloramento do princípio rebus sic stantibus, que domina esta matéria» - [cf. Código de Processo Penal, Anotado, 16.ª edição, pág. 474].

                               E outra coisa não resulta das palavras de Paulo Pinto de Albuquerque quando refere «O juiz pode substituir a medida de coacção por outra mais grave ou determinar uma forma mais gravosa da sua execução quando se verificar um agravamento das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção. O agravamento destas exigências não depende da violação das obrigações decorrentes da medida de coacção, já que pode haver agravamento das exigências cautelares sem violação das ditas obrigações. Ocorrendo um desagravamento destas exigências cautelares, o juiz pode substituir a medida aplicada por outra menos grave ou determinar uma forma menos gravosa da sua execução.» - [cf. Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, pág. 608].

                               No mesmo sentido vd. os acórdãos do STJ de 98.01.21 (proc. n.º 1166/97), do TRP de 91.10.16 (proc. n.º 9120589), do TRL de 95.07.12 (CJ, XX, 4, 144), do TRL de 02.02.19 (CJ, XXVII, 1, 149).

                               Retomando o caso concreto, tendo em conta o esboço da evolução acima delineado, relevante nas mutações do estatuto coactivo do arguido/recorrente ao longo do processo, impõe-se perguntar o que de novo ocorreu capaz de justificar, nessa sede, semelhante agravamento?

                               Do ângulo do quadro fáctico cremos que nada, posto que os factos pelos quais o arguido sofreu condenação foram considerados nos despachos supra identificados, proferidos na sequência dos interrogatórios judiciais a que foi submetido no âmbito dos presentes autos.

                               Vejamos, então, na perspectiva das exigências cautelares.

                               Dois foram os perigos identificados no despacho que determinou a sujeição do arguido às medidas de coacção de apresentações periódicas e de proibição de contactos, a saber: o perigo de continuação da actividade criminosa e o perigo de fuga.

                               A suportar o primeiro surgia, então, a circunstância de o arguido ser consumidor de estupefacientes; não exercer qualquer profissão e não possuir outra forma lícita de obtenção de rendimentos, sendo considerada insuficiente, para fazer face às suas despesas, a ajuda económica da família, donde, a verificação, em concreto, do perigo de que continuasse a vender estupefacientes para prover ao seu sustento.

                               A fundamentar o segundo, o facto de o arguido ser cidadão angolano, possuir contactos com pessoas em vários países do mundo, ter familiares no estrangeiro e não exercer qualquer actividade profissional, quadro que levou à consideração da existência, em concreto, do perigo de fuga.

                               Cotejando, assim, os motivos considerados, no que à conformação do estatuto coactivo concerne, no despacho judicial de 14.12.2010 com os invocados na decisão ora em crise, apenas é possível identificar ex novo o facto de contra o arguido ter acabado de ser proferida [no âmbito dos autos] decisão condenatória numa pena única de 6 anos e 9 meses de prisão, aspecto que, de resto, se mostra bem ilustrado quando, imediatamente, após a leitura do acórdão, o tribunal fez consignar em acta: «Em face da pena em que veio a ser condenado o arguido, do tipo de ilícito praticado, do facto de reconhecidamente ter ligações familiares a outros países e de ser um consumidor assumido de estupefacientes sem que lhe seja conhecida atividade profissional que lhe permita rendimentos regulares, o Tribunal concede a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público e à Ilustre Defensora para que tomem posição»

                               Quer dizer, excepção feita à condenação em si mesma, o tribunal recorrido não cuidou de fundamentar a alteração provocada em sede de medidas de coacção em qualquer modificação de circunstâncias, respeitante aos factos e/ou ao surgimento de novos perigos - que não os já considerados - e/ou à agravação do nível destes em consequência de aspectos, entretanto, apurados, capazes de justificar o reforço das exigências cautelares, o que, em nosso juízo, não podia ter acontecido.

                               Note-se que não está em causa a possibilidade de aplicação de medida de coacção mais gravosa por ocasião da publicação da decisão condenatória [cf. artigo 375.º, n.º 4 do CPP] - situação que, aliás, já mereceu a atenção do Tribunal Constitucional [vg. no ac. n.º 720/97] e sobre a qual não se detecta divergência de maior ao nível dos Tribunais Superiores - mas, antes, o facto de o tribunal, alheando-se do princípio da alteração das circunstâncias/ rebus sic stantibus – a ter sempre presente em caso de modificação do estatuto coactivo [quer no sentido da atenuação, quer no da respectiva agravação] - não haver cuidado de justificar a agravação por referência a alguma das circunstâncias acima evidenciadas, tendo-se, apenas, socorrido, sem alteração sequer de grau, dos aspectos já anteriormente considerados que ditaram a aplicação [cf. o desenvolvimento acima traçado do processo] de medidas de coacção menos restritivas da liberdade, entretanto, parcialmente extintas, é certo, mas por razões [decurso do respectivo prazo (legal) máximo] não imputáveis ao recorrente.

                               Ora, perfilhando nós o entendimento de que a condenação em pena de prisão, não pode, sem ofensa do princípio da presunção de inocência, conduzir enquanto único (novo) fundamento à agravação da medida de coacção com que o arguido se apresenta em julgamento, da mesma forma que, ao longo do processo, não pode, sem que sobrevenha alteração das circunstâncias, proceder-se à modificação, seja no sentido da atenuação, seja no sentido da agravação, de medida anteriormente, nos autos, aplicada, não fundamentando a decisão recorrida a alteração do estatuto coactivo do arguido na «alteração das circunstâncias», impõe-se revogar o despacho recorrido, restituindo, em consequência, o arguido/recorrente à liberdade, situação em que aguardará o trânsito em julgado do acórdão condenatório.

                              

                   III. Decisão

                               Termos em que, na procedência do recurso, se decide revogar o despacho recorrido, com a restituição, imediata, do arguido/recorrente à liberdade, aguardando o mesmo os ulteriores termos do processo na condição – estatuto coactivo - em que se encontrava antes da decisão, agora, revogada.

                               Mandados de libertação imediata.

                               Sem custas

               

                               (Maria José Nogueira -Relatora)

                               (Isabel Valongo)