Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
521/15.0T8PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
PROVA DOCUMENTAL
RECIBOS
CONFISSÃO
MEDIADOR DE SEGUROS
REPRESENTAÇÃO APARENTE
Data do Acordão: 10/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - P.MÓS - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.342, 360, 374, 376 CC, DL Nº 388/91 DE 10/10, DL Nº 178/86 DE 3/7, DL Nº 144/2006 DE 31/7, DL Nº 72/2008 DE 16/4
Sumário: 1. Se a A. afirmar que determinada empresa é mediadora de seguros da R. seguradora, que é um facto de necessário conhecimento pessoal da R., esta tem de tomar posição definida sobre o mesmo, negando ou aceitando tal realidade, não podendo declarar que não é facto pessoal ou de que deva ter conhecimento, sob pena de tal declaração equivaler a confissão, nos termos do art. 574º, nº 3, do NCPC.


2. Se a R. seguradora emitir recibos de prémio referentes a determinados períodos, relativamente a determinado veículo, figurando neles a menção do valor de capital de danos próprios, e tais documentos não forem impugnados, consideram-se os mesmos verdadeiros - nos termos do art. 374º, nº 1, do CC.

3. Sendo documentos particulares verdadeiros fazem prova plena quanto às declarações da R. (sem prejuízo da arguição e prova da sua falsidade) - art. 376º, nº 1, do CC).

4. O que quer dizer que o que deles consta, factos contrários ao interesse da R., se consideram provados plenamente (sem prejuízo da sua indivisibilidade) - art. 376º, nº 2, do CC;.

5. Alegar-se em recurso que tais recibos se referem a meras fracções do prémio, ou seja, o prémio foi fraccionado, e por conseguinte, o valor que lá consta é o da apólice, contratada e para cada veículo, ab initio, e por tal razão, no campo “situação” se refere “Novo”, trata-se de alegação/narração de matéria nova, de uma reserva modificativa, não susceptível de conhecimento em recurso.

6. Tal alegação a ter efeito de infirmar a realidade dos factos declarados - a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, como reza o disposto no art. 360º do CC – devia ter sido feita pela R. seguradora na contestação, lugar onde se devia ter suscitado a eventual e aludida indivisibilidade.

7. Ademais não tem a virtualidade de infirmar o que seja, pois o modo de pagamento trimestral do prémio não arreda a existência e vigência do contrato de seguro, nem da palavra “Novo”, aposta no recibo do documento, se consegue vislumbrar que significará uma simples referência ao contrato inicialmente existente.

8. Se no art. 21º, nº 1, a), das Condições Gerais da Apólice de Seguro, se estabelece que o recibo constitui documento comprovativo da existência do seguro, a existência dos referidos recibos comprovam a existência do seguro nos seus termos, v.g., pagamento do prémio e valor do capital seguro.

9. O indicado regime da prova plena não impede que as declarações constantes do documento sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de a invalidarem; se a R. não alegou nenhum desses vícios, na contestação, limitando-se a impugnar o alegado pela A. na p.i., a mencionada prova plena não fica afastada.

10. No art. 342º do CC, a propósito do ónus de prova, consagra-se o critério da normalidade: aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram; a parte contrária terá de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos (a incapacidade, a falta de vícios da vontade, a impossibilidade do objecto, a fraude à lei, etc, designadamente a inexistência de poderes representativos).

11. Se a A. invoca que a reposição do capital seguro foi aceite pela R. seguradora, através do seu mediador de seguros, cabia à R., para se eximir da sua responsabilidade, comprovar, de acordo com o aludido critério da normalidade, que o seu mediador de seguros era ligado ou agente, em que termos fazia a mediação dos seus produtos e se não tinha poderes de representação para a vincular, dada a simplicidade ou facilidade dessa prova.

12. Sobre a figura da representação aparente, na mediação de seguros, regula o art. 30º, nº 3, da LCS, são requisitos legais da sua aplicação: a) que o tomador esteja de boa fé, ou seja, desconheça, sem culpa, a falta de poderes do mediador; b)- o tomador confie na existência dos poderes de representação em falta, na base de razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso; c) e o segurador tenha contribuído igualmente para fundar a confiança do tomador.

13. Têm-se por verificados estes 3 requisitos legais, se: a A. está de boa fé, por desconhecer, sem culpa, a eventual falta de poderes do mediador; solicitou a reposição do capital seguro e a R. seguradora emitiu os recibos relativos aos prémios, num deles até mencionando o local de pagamento, junto da mediadora de seguros, e fez constar nos mesmos recibos era esse determinado valor inicial do capital seguro, sendo, por isso, sustentada a convicção da A., como tomadora do seguro, em como o mediador de seguros disporia do poderes necessários à reposição do capital seguro; foi com tal descrita actuação que a seguradora contribuiu para a criação da situação de confiança da A., pelo que será de imputar à mesma o fundamento para tal situação de confiança da A.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

 

1. L (…), Lda., com sede na Batalha, demandou Companhia de Seguros (…), S.A. (actualmente S (…), S. A.), com sede em Lisboa, peticionando a condenação da mesma a pagar-lhe a quantia total de 20.000 €, acrescida de juros de mora desde a citação até pagamento.

Alegou, em síntese, que em Outubro de 2013, o condutor da autora, conduzindo o pesado de mercadorias com a matrícula  IX... que fazia conjunto com o semi-reboque de matrícula L- (...) , ao fazer uma curva apertada, não conseguiu controlar o veículo, despistou-se, tombando o semi-reboque na berma da estrada. Em virtude daquele capotamento o semi-reboque sofreu danos avultados na sua estrutura, que ficou completamente inutilizada, no chassis e no pivot, tendo ficado impossibilitado de circular. Que celebrou com a ré um contrato de seguro em que a mesma se obrigava ao pagar-lhe os prejuízos ou danos que adviessem aos veículos seguros em virtude de choque, colisão ou capotamento, contrato esse válido à data do acidente. A ré realizou a peritagem dos danos no veículo sinistrado, tendo orçado o valor da reparação em 25.269,12 €. O semi-reboque encontrava-se seguro pelo valor de 20.000 €. O semi-reboque tinha sido anteriormente interveniente num outro acidente de viação, no qual sofreu também avultados danos, no montante de 17.195 €, que foram pagos pela ré. Nessa altura foi solicitado à ré, através do mediador de seguros A (…), representante da empresa A (…) Lda., mediadora reconhecida pela Ré, a reposição do capital seguro quanto ao semi-reboque, reposição que foi aceite pela ré, tal como consta de recibos de prémio emitidos pela ré, onde se refere expressamente quanto ao semi-reboque “capital danos próprios -20.000,00€”. Concluiu a autora que há data do sinistro o semi-reboque encontrava-se seguro pelo valor inicialmente contratado de 20.000 €, tendo direito a esse montante por força do contrato de seguro.

A ré contestou, impugnando a dinâmica do acidente relatada na petição inicial bem como os danos decorrentes do acidente. Que tendo ocorrido outro sinistro no ano em que ocorreu o que está em causa no processo e tendo pago a respectiva reparação ao abrigo do contrato, apenas está disponível a quantia de 2.085 €.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente.

*

2. A R. recorreu, tendo apresentado as seguintes conclusões:

(…)

3. A A. contra-alegou, concluindo que:

(…)

II - Factos Provados

 

1. A Autora é uma empresa que se dedica à prestação de serviços de transporte nacional e internacional rodoviário de mercadorias por conta de outrem (artigo 1.º da petição inicial).

2. Em 17 de Outubro de 2013, no IC2, ao km 50, em Portugal, F (…), na altura trabalhador da Autora, conduzia por ordem daquela e no seu interesse o veiculo pesado de mercadorias com a matrícula  IX... que fazia conjunto com o semi-reboque de matrícula L- (...)  (artigo 3.º da petição inicial).

3. O referido trabalhador conduzia, no sentido Norte-Sul, na faixa destinada ao seu sentido de trânsito quando ao fazer uma curva apertada, não conseguiu controlar o veículo, despistou-se, tombando o semi-reboque na berma da estrada (artigo 4.º da petição inicial).

4. Em virtude daquele capotamento o semi reloque L- (...)  sofreu danos avultados na sua estrutura, que ficou completamente inutilizada, no chassis e no pivot, tendo ficado completamente impossibilitado de circular (artigos 5.º e 6.º da petição inicial).

5. A Autora procedeu à reparação do semi-reboque entre Fevereiro e Março de 2014 que importou o valor global de €23.534,82 (vinte e três mil, quinhentos e trinta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos) (€19.134,00+ IVA) (artigo 7.º da petição inicial).

6. Em 7 de Novembro de 2012, a Autora celebrou com a Ré um contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0 (...)  em que a Ré se obrigava ao pagamento à Autor dos prejuízos ou danos que adviessem aos veículos seguros em virtude de choque, colisão ou capotamento, o qual se rege pelas respectivas cláusulas contratuais cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (artigo 8.º da petição inicial).

7. No âmbito daquela apólice encontrava-se seguro, entre outros, o semi-reboque de matrícula L- (...)  (artigo 10.º da petição inicial).

8. A Autora efectuou de imediato a participação do sinistro à Ré que realizou a peritagem dos danos no veículo sinistrado tendo orçado o valor da reparação em €25.269,12 (vinte e cinco mil, duzentos e sessenta e nove euros e doze cêntimos) (artigo 11.º da petição inicial).

9. O semi-reboque L- (...)  tinha sido anteriormente interveniente num outro acidente de viação em 14 de Janeiro de 2013, no qual sofreu também avultados danos no valor de €17.915,00 (dezassete mil, novecentos e quinze euros) que foram pagos pela Ré (artigo 13.º da petição inicial).

10. Em 10 de Abril de 2013 foi solicitado à Ré, através do mediador de seguros A (…), representante da empresa “A (…) Lda.”, mediadora reconhecida pela Ré, a reposição do capital seguro quanto ao semi-reboque L- (...)  (artigo 14.º da petição inicial).

11. Tal reposição foi aceite pela Ré, na pessoa do mediador A (…) figurando nos recibos de prémio emitidos pela Ré referente aos períodos de 5 de Maio de 2013 a 7 de Agosto de 2013 e de 7 de Agosto de 2013 a 6 de Novembro de 2013 quanto ao semi-reboque L- (...)  a menção “ capital danos próprios -20.000,00€ “(artigo 15.º da petição inicial).

12. A Autor pagou o prémio pelo capital seguro de €20.000,00 (vinte mil euros) (artigo 16.º da petição inicial).

*

Factos não provados:

O capital disponível para o acidente de viação é de €2.085,00 (dois mil e oitenta e cinco euros).

*

 

III - Do Direito

 

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as únicas questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Responsabilidade da Ré.

 

2. (…)

2.2. Em relação à análise da restante factualidade torna-se desnecessário ouvirmos o depoimento das referidas testemunhas. Expliquemos.

O facto provado 11. corresponde, no essencial, à alegação da A., constante do art. 15º da p.i., suportada nos docs. 8 (a fls. 74/78) e 9 (a fls. 79/83). Na contestação a R. não impugnou os docs. por si elaborados (cfr. art. 8º de tal peça) e impugnou o alegado no dito art. 15º da p.i. (cfr. art. 14º do mesmo articulado).

Os mencionados docs. 8 e 9 (fls. 74/83) são recibos de prémio emitidos pela R. referente aos períodos de 5 de Maio de 2013 a 7 de Agosto de 2013 e de 7 de Agosto de 2013 a 6 de Novembro de 2013 (este com o local de pagamento na dita mediadora A(…), como se vê de fls. 79), relativos ao semi-reboque L- (...)  figurando neles a menção “capital danos próprios -20.000,00€” (concretamente a fls. 76 e 81). Como foram emitidos pela R., e não foram impugnados consideram-se verdadeiros, nos termos do art. 374º, nº 1, do CC. Sendo documentos particulares verdadeiros fazem prova plena quanto às declarações da R., sem prejuízo da arguição e prova da sua falsidade, arguição não deduzida pela R. (art. 376º, nº 1, do CC). O que quer dizer que o que deles consta foi efectivamente declarado pela R. Como tal, e porque os factos declarados são contrários ao interesse da R., os mesmos consideram-se provados plenamente, sem prejuízo da sua indivisibilidade (art. 376º, nº 2, do CC).

Na contestação a R. não narrou nenhum facto ou circunstância tendente a infirmar a realidade dos factos declarados - a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, como reza o disposto no art. 360º do CC. Só agora, em recurso, vem dizer, que tais recibos referem-se a meras fracções do prémio, ou seja, o prémio foi fraccionado, e por conseguinte, o valor que lá consta é o da apólice, contratada e para cada veículo, ab initio, e por tal razão, no campo “situação” se refere “Novo” (suas conclusões 7- a 9-).

Trata-se, por um lado, de alegação/narração de matéria nova, de uma reserva modificativa, não susceptível de conhecimento em recurso.

Por outro lado, não tem a virtualidade de infirmar o que seja, pois o modo de pagamento trimestral do prémio não arreda, obviamente, a existência e vigência do contrato de seguro, nem da palavra “Novo”, aposta no recibo do documento, se consegue vislumbrar que significará uma simples referência ao contrato inicialmente existente.

Portanto, afastada essa hipótese de indivisibilidade, os factos compreendidos na declaração documentada consideram-se provados plenamente. O mesmo é dizer que depois de um primeiro acidente e pagamento dos danos pela R. (facto provado 9.) e do pedido da A. de reposição do capital seguro atinente ao identificado semi-reboque (facto provado 10.), a R. aceitou-o, tanto que emitiu os recibos de prémio referente aos períodos de 5 de Maio de 2013 a 7 de Agosto de 2013 e de 7 de Agosto de 2013 a 6 de Novembro de 2013 quanto ao semi-reboque L- (...) , que aliás se mostram pagos pela A. (facto provado 12., não impugnado), figurando neles a menção “capital danos próprios -20.000,00€”.

Por conseguinte está provado o aludido facto 11. e por antinomia, necessariamente, não provado o único facto assim apontado. O que, inclusive, se mostra de conformidade, com o estipulado no art. 21º, nº1, a), das Condições Gerais da Apólice de Seguro, onde se estabelece que o recibo constitui documento comprovativo da existência do seguro, nos seus termos (cfr. apólice a fls. 36).

Acrescente-se a seguinte nota. É verdade que este regime da prova plena não impede que as declarações constantes do documento sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de a invalidarem, como ensina A. Varela em CC Anotado, Vol. I, 3ª Ed., nota 1. ao indicado artigo 376º, pág. 330 – por ex. erro, dolo, coacção, simulação, etc. Ora, a R. não alegou nenhum desses vícios, pois, com dissemos, e repetimos, limitou-se a impugnar o alegado pela A. no dito art. 15º da p.i., conforme art. 14º do mesmo articulado.

Pelo explicitado, indefere-se a impugnação do facto provado 11. e do único facto não provado, apresentada pela apelante.

3. Na sentença considerou-se, e bem, que entre A. e R. foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil, o qual é definido no art. 1º, nº 1, do DL 72/2008 de 16 de Abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro, doravante LCS) como um contrato no âmbito do qual “o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”. Sendo tal contrato subsumível ao contrato de seguro de danos facultativo (previsto no art. 123º e segs. do RJCS).

Por outro lado, da matéria de facto resulta provada a ocorrência de sinistro, para efeito de pagamento de indemnização, por ocorrência de capotamento, como previsto no aludido contrato de seguro, no art. 39º, nº 1, b), das Condições Gerais da Apólice de Seguro Automóvel.

Até aqui é questão indisputada entre as partes.

Na fundamentação jurídica exarada na sentença recorrida, o tribunal a quo assentou a mesma na consideração de que o que se discutia era se o mediador de seguros tinha poderes para a prática de actos de execução do contrato já validamente celebrado, concretamente para aceitar a reposição de capital solicitada pela A. E partindo deste pressuposto, afirmou que o contrato de mediação de seguros é um contrato de distribuição comercial, que se encontra regulado no DL 388/91, de 10 de Outubro, prevendo-se, no art. 4º, nº 1, que o mediador não pode dar como celebrado um contrato em nome de uma seguradora, sem prévia autorização desta. Contudo é de aplicar as regras do regime de agência, que se aplicam a outros contratos de distribuição comercial, entre as quais a prevista no art. 23º, nº 1, desse regime, constante do DL 178/86, de 3 de Julho, que prevê a figura da representação aparente.

Discorda-se destas 3 considerações, porque estão menos correctas, embora a solução do litígio a que se chegou seja a acertada para o caso concreto em apreço.

3.1. Primus, não se discutia nos autos se o mediador tinha poderes de representação para aceitar a reposição de capital solicitada pela A. Na verdade, face à matéria provada, concretamente que a A. em consequência de um primeiro acidente de viação, por força do qual foi paga a indemnização de 17.915 € (facto 9.), solicitou à R. a reposição do capital quanto ao semi-reboque (facto 10.), reposição que foi aceite por aquela, tendo a R. emitido os correspondentes recibos, referentes a pagamentos trimestrais do prémio, e de onde consta que o capital seguro era de 20.000 € (facto 11.), prémio esse que a A. pagou (facto 12).

Ora, se a reposição foi aceite pela R. não se pode afirmar que se põe um problema de poderes de representação do mediador de seguros, pois essa questão está ultrapassada, pela prova do facto 11., de que foi a R., ela própria, que aceitou a mencionada reposição do capital seguro.

Daí que, decorrendo do art. 406º, nº 1, do CC, que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, o que significa que ao devedor incumbe realizar a prestação a que, por força do estipulado pelas partes, está adstrito, que o devedor só cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, como resulta do art. 762º, nº 1, do CC, que não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o respectivo cumprimento, nos termos preceituados no art. 817º e segs. do CC, que ao faltar culposamente ao cumprimento da obrigação o devedor torna-se responsável pelo prejuízo causado ao credor, incumbindo ao devedor provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua, como dispõem os arts. 798º e 799º do CC, e que nos termos do art. 128º da LCS a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro, então, daí decorre, dizíamos, que a pretensão da A. tem fundamento, e a condenação da R. está perfeitamente acertada.

3.2. Secundus, mesmo que se aceitasse, agora como hipótese de trabalho, que o que estava em jogo era realmente uma questão de poderes de representação do mediador, a solução não seria diferente.

A começar diga-se que o DL 388/91 referido na sentença recorrida já não está em vigor, tendo sido revogado pelo ante mencionado DL 144/2006, que hoje regula o exercício da actividade de mediação de seguros.

A mediação de seguros é a actividade que consista em apresentar ou propor um contrato de seguro ou praticar outro acto preparatório da sua celebração, em celebrar o contrato de seguro, ou em apoiar a gestão e execução de contrato, em especial em caso de sinistro (cfr. art. 5º, c), do falado DL 144/2006). As categorias de mediadores de seguros vem elencadas no art. 8º, e para o caso que nos interessa nas a), i) e b), respectivamente o mediador de seguros ligado e o agente de seguros, sendo que o primeiro exerce a actividade em nome e por conta de uma empresa de seguros (ou com autorização desta, de várias empresas de seguros, desde que que os produtos que promova não sejam concorrentes), não recebendo prémios ou somas destinados aos tomadores de seguros, segurados ou beneficiários e actuando sob inteira responsabilidade dessa (ou dessas) empresas de seguros, no que se refere à mediação dos respectivos produtos, enquanto que o segundo exerce a actividade em nome e por conta de uma (ou mais empresas de seguros) ou outro mediador de seguros, nos termos do (ou dos) contratos que celebre com essas entidades. Por outra parte, o mediador de seguros ligado deve celebrar um contrato escrito com uma (ou várias empresas de seguro) através do qual cada empresa de seguros assume inteira responsabilidade pela sua actividade, no que se refere à mediação dos respectivos produtos (art. 15º, nº 1), enquanto o agente de seguros deve celebrar um contrato escrito com cada uma das empresas de seguros que vai representar, através do qual a empresa de seguros mandata o agente para, em seu nome e por sua conta, exercer a actividade de mediação, devendo aquele contrato delimitar os termos desse exercício (art. 17º, nº 1, a), do mesmo DL). Finalmente, são deveres gerais do mediador de seguros, celebrar contratos em nome da empresa de seguros apenas quando esta lhe tenha conferido, por escrito, os necessários poderes (art. 29º, a), do falado DL).

Significa isto que, agindo quer o mediador de seguros ligado como o agente de seguros em nome e por conta de uma empresa de seguros, é em função dos contratos escritos e seus respectivos termos, que ambos celebrem com a respectiva empresa de seguros, que fica delimitada a sua actuação em concreto perante terceiros, designadamente saber se têm ou não os necessários poderes escritos de representação. Ora, estes contratos internos celebrados entre a empresa de seguros e o seu mediador de seguros (ligado ou agente) são necessariamente do conhecimento da seguradora mas não serão, naturalmente, do conhecimento de terceiros que querem e tentam contratar com uma seguradora, através de um mediador de seguros, e para os quais é difícil percepcionar, na prática quotidiana, se o mediador de seguros dispõe poderes de representação. Daí que quem domina essas circunstâncias de facto é a seguradora e assim, só ela, poderá dizer e provar, dada a facilidade de tal comprovação, se o seu mediador de seguro é ligado ou agente, em que termos - âmbito e extensão - faz a mediação dos seus produtos, se tem poderes de representação ou não, etc.

Daqui resulta para nós, que incide sobre a seguradora, num litígio judicial, comprovar tais circunstâncias, designadamente que o seu mediador, embora contrate com terceiro em seu nome e por sua conta, não tem poderes de representação que a possam vincular, como emana da correcta interpretação do art. 342º, nº 2, do CC. Como ensina A. Varela (ob. acima cit., nota 3. ao art. 342º, pág. 304) impondo o ónus de provar os factos impeditivos do direito invocado àquele contra quem a invocação é feita, o art. 342º aproxima-se bastante do critério da normalidade. Aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram; a parte contrária terá de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos (a incapacidade, a falta de vícios da vontade, a impossibilidade do objecto, a fraude à lei, etc, designadamente a inexistência de poderes representativos).

Ora, tendo presente o referido critério da normalidade, entendemos que no caso concreto, como hipótese de trabalho, relembre-se, cabia à R., para se eximir da sua responsabilidade, comprovar que o seu mediador de seguros era ligado ou agente, em que termos - âmbito e extensão - fazia a mediação dos seus produtos e se não tinha poderes de representação para a vincular, dada a simplicidade ou facilidade dessa prova. Se o lograsse ficava assente que ela não ficou vinculada pela actuação do seu mediador, e por isso a alteração contratual por via da reposição do capital seguro era ineficaz em relação a ela seguradora, salvo ratificação da própria, nos termos do art. 30º, nº 1, da LCS. Todavia, a R. na sua contestação calou todo este acervo de circunstâncias factuais, limitando-se a uma simples impugnação genérica, e ainda agora, em recurso, alega que se desconhece se o mediador tinha poderes de representação da seguradora !? (cfr. conclusão 41-).

Ou seja, mesmo na presente hipótese de trabalho, a acção teria de proceder e a R. ser condenada no pedido.

3.3. Tertius, ainda que se concebesse que se estava perante uma situação de representação aparente, também aqui a solução não seria diferente.

Principiando, é de referir que o regime do contrato de agência (constante do DL 178/86, de 3.7) e seu artigo 23º, nº 1, chamados à colação na sentença recorrida não têm razão de ser, porque, sobre a mediação de seguros e a figura da representação aparente, legem habemus.

Efectivamente, o art. 30º, nº 3, da LCS, debruça-se sobre essa figura, dispondo que “O contrato de seguro que o mediador de seguros, agindo em nome do segurador, celebre sem poderes específicos para o efeito é eficaz em relação a este se tiverem existido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem a confiança do tomador do seguro de boa fé na legitimidade do mediador de seguros, desde que o segurador tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do tomador do seguro”.

Note-se que atento o texto da lei e a categoria de mediadores a LCS reporta a representação aparente ao mediador em geral e não, apenas, ao agente de seguros (no mesmo sentido Menezes Cordeiro, Manual dos Seguros, 1ª Ed., pág. 412).

Está aqui em causa a necessidade de tutelar a legítima confiança de terceiros no tráfico jurídico e conferir segurança aos vínculos contratuais.

São requisitos legais da sua aplicação: que o tomador esteja de boa fé, ou seja, desconheça, sem culpa, a falta de poderes do mediador; - o tomador confie na existência dos poderes de representação em falta, na base de razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso; - e o segurador tenha contribuído igualmente para fundar a confiança do tomador (vide M. Cordeiro, ob. cit., pág. 657, e M. Eduarda Ribeiro, em LCS Anotada, 3ª Ed., nota 13. ao artigo 30º, págs. 203/204).

Embora a propósito da representação aparente prevista no contrato de agência escreveu-se na sentença recorrida que:

“No caso vertente, entende o tribunal que os pressupostos aludidos se encontram preenchidos na medida em que a Autora, tomadora do seguro, confiou legitimamente na actuação do mediador e a Ré, seguradora, não podia desconhecer o modo de actuação do mediador, tendo, aliás, contribuído para fundar a confiança da Autora no sentido que a reposição do capital foi aceite por ter continuado a fazer menção nos recibos ao capital seguro de €20.000,00 (vinte mil euros).

Assim, o acto jurídico referente à aceitação da reposição de capital pelo mediador de seguros é eficaz perante a Ré, seguradora, mesmo que não tivessem sido conferidos poderes de representação por se estar perante uma situação óbvia de representação aparente, razão pela qual a reposição do capital aceite pelo mediador vale como tendo sido aceite pela Ré.

(…)

Conclui-se, assim, que a Autora, tomadora, por via da actuação do mediador, confiou legitimamente na efectivação da reposição do capital e na manutenção do contrato pelo capital seguro de €20.000,00 (vinte mil euros).

À Ré, como seguradora, tendo em conta a relação com o mediador e o facto de ter emitido a apólice de seguro e os recibos relativos aos prémios, imputa-se a mencionada situação de confiança, sendo, por isso, responsável.”.

Concorda-se com esta argumentação. Também nós temos por verificados os mencionados 3 requisitos legais.

Como tínhamos assinalado, os contratos internos celebrados entre a empresa de seguros e o seu mediador de seguros (ligado ou agente) são necessariamente do conhecimento da seguradora, se o seu mediador de seguro é ligado ou agente, em que termos - âmbito e extensão - faz a mediação dos seus produtos, se tem poderes de representação ou não, etc. Mas não serão, naturalmente, do conhecimento de terceiros que querem e tentam contratar com uma seguradora, através de um mediador de seguros, e para os quais é difícil percepcionar, na prática quotidiana, se o mediador de seguros dispõe poderes de representação. Não havendo outros factos apurados, é, por isso, de concluir que a A. estaria de boa fé, por desconhecer, sem culpa, a eventual falta de poderes do mediador.

Por seu turno, a R. seguradora emitiu os recibos relativos aos prémios, num deles (a fls. 79), como previamente notámos, até mencionou o local de pagamento, junto da Activisegur, e fez constar nos mesmos recibos que o valor do capital seguro relativo ao semi-reboque era de 20.000 €. Era, por isso, perfeitamente sustentada a convicção da A., como tomadora do seguro, em como o mediador de seguros disporia do poderes necessários à reposição do capital seguro.

Finalmente, foi com a descrita actuação concreta que a seguradora contribuiu para a criação da mencionada situação de confiança da A., pelo que seria, sempre, de imputar à mesma o fundamento para tal situação de confiança da A.

E por conseguinte, ficou estabelecida a sua responsabilidade.

3.4. Considerando o acima explicado, não procede o recurso.

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Se a A. afirmar que determinada empresa é mediadora de seguros da R. seguradora, que é um facto de necessário conhecimento pessoal da R., esta tem de tomar posição definida sobre o mesmo, negando ou aceitando tal realidade, não podendo declarar que não é facto pessoal ou de que deva ter conhecimento, sob pena de tal declaração equivaler a confissão, nos termos do art. 574º, nº 3, do NCPC;

ii) Se a R. seguradora emitir recibos de prémio referentes a determinados períodos, relativamente a determinado veículo, figurando neles a menção do valor de capital de danos próprios, e tais documentos não forem impugnados, consideram-se os mesmos verdadeiros - nos termos do art. 374º, nº 1, do CC; iii) Sendo documentos particulares verdadeiros fazem prova plena quanto às declarações da R. (sem prejuízo da arguição e prova da sua falsidade) - art. 376º, nº 1, do CC);

iv) O que quer dizer que o que deles consta, factos contrários ao interesse da R., se consideram provados plenamente (sem prejuízo da sua indivisibilidade) - art. 376º, nº 2, do CC;.

v) Alegar-se em recurso que tais recibos se referem a meras fracções do prémio, ou seja, o prémio foi fraccionado, e por conseguinte, o valor que lá consta é o da apólice, contratada e para cada veículo, ab initio, e por tal razão, no campo “situação” se refere “Novo”, trata-se de alegação/narração de matéria nova, de uma reserva modificativa, não susceptível de conhecimento em recurso;

vi) Tal alegação a ter efeito de infirmar a realidade dos factos declarados - a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, como reza o disposto no art. 360º do CC – devia ter sido feita pela R. seguradora na contestação, lugar onde se devia ter suscitado a eventual e aludida indivisibilidade;

vii) Ademais não tem a virtualidade de infirmar o que seja, pois o modo de pagamento trimestral do prémio não arreda a existência e vigência do contrato de seguro, nem da palavra “Novo”, aposta no recibo do documento, se consegue vislumbrar que significará uma simples referência ao contrato inicialmente existente;

viii) Se no art. 21º, nº 1, a), das Condições Gerais da Apólice de Seguro, se estabelece que o recibo constitui documento comprovativo da existência do seguro, a existência dos referidos recibos comprovam a existência do seguro nos seus termos, v.g., pagamento do prémio e valor do capital seguro;

ix) O indicado regime da prova plena não impede que as declarações constantes do documento sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de a invalidarem; se a R. não alegou nenhum desses vícios, na contestação, limitando-se a impugnar o alegado pela A. na p.i., a mencionada prova plena não fica afastada;

x) No art. 342º do CC, a propósito do ónus de prova, consagra-se o critério da normalidade: aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram; a parte contrária terá de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos (a incapacidade, a falta de vícios da vontade, a impossibilidade do objecto, a fraude à lei, etc, designadamente a inexistência de poderes representativos);

xi) Se a A. invoca que a reposição do capital seguro foi aceite pela R. seguradora, através do seu mediador de seguros, cabia à R., para se eximir da sua responsabilidade, comprovar, de acordo com o aludido critério da normalidade, que o seu mediador de seguros era ligado ou agente, em que termos fazia a mediação dos seus produtos e se não tinha poderes de representação para a vincular, dada a simplicidade ou facilidade dessa prova; xii) Sobre a figura da representação aparente, na mediação de seguros, regula o art. 30º, nº 3, da LCS, são requisitos legais da sua aplicação: a) que o tomador esteja de boa fé, ou seja, desconheça, sem culpa, a falta de poderes do mediador; b)- o tomador confie na existência dos poderes de representação em falta, na base de razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso; c) e o segurador tenha contribuído igualmente para fundar a confiança do tomador;

xiii) Têm-se por verificados estes 3 requisitos legais, se: a A. está de boa fé, por desconhecer, sem culpa, a eventual falta de poderes do mediador; solicitou a reposição do capital seguro e a R. seguradora emitiu os recibos relativos aos prémios, num deles até mencionando o local de pagamento, junto da mediadora de seguros, e fez constar nos mesmos recibos era esse determinado valor inicial do capital seguro, sendo, por isso, sustentada a convicção da A., como tomadora do seguro, em como o mediador de seguros disporia do poderes necessários à reposição do capital seguro; foi com tal descrita actuação que a seguradora contribuiu para a criação da situação de confiança da A., pelo que será de imputar à mesma o fundamento para tal situação de confiança da A.

 

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas a cargo da R./recorrente.

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Coimbra, 17.10.2017

 

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias