Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
653/07.9GBAND-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: PENA DE PRISÃO
DESCONTO
LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 61º E 80º CP
Sumário: 1.- A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão a cumprir pelo condenado.
2.- A parte da pena já cumprida pelo agente antes de a decisão condenatória ter transitado em julgado releva para todos os momentos decisivos da contabilização da execução da pena, isto é, releva não só para efeitos de determinação do termo da pena, mas também para os momentos intermédios relevantes para efeitos de concessão de liberdade condicional, quais sejam a determinação do meio da pena, dos dois terços da pena e dos cinco sextos da pena.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO
1.

Nos presentes autos foi proferida decisão liquidando a pena que o arguido A... se encontra a cumprir de forma diferente daquela que havia sido proposta pelo Ministério Público.

2.

Inconformado, o Ministério Público recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«1. Aquando da reformulação da contagem da pena de prisão aqui aplicada ao arguido por força do cumprimento da prisão subsidiária decretada, entendeu o Mº Juiz a quo que a liquidação da pena deverá ser efectuada mediante a "ficção" que o condenado iniciou o cumprimento da pena antes de dar entrada no estabelecimento prisional, em período de tempo igual ao desconto, e que tal resultado beneficia mais o condenado.
2. Contudo, no que toca à forma como o desconto e a imputação do período de interrupção se devem processar, entende o recorrente que, pela leitura conjugada dos arts. 80º, nº 1 e do CP, 479º do CPP, bem como do art. 478º, o desconto tem que se efectuar na pena de prisão a cumprir (6 anos e 4 meses), por referência à data em que o condenado dá entrada no estabelecimento prisional, e não ficcionando-se uma data anterior de início de cumprimento da pena, acrescentando-se posteriormente o período de tempo correspondente às interrupções.
3. Feita de outra forma, tal beneficia injustificadamente o condenado relativamente à pena que se encontra obrigado a cumprir, tida como necessária, justa e adequada aquando da sua aplicação.
4. Atentos os normativos aplicáveis nesta sede, nada permite fundamentar, legalmente, a opção pela contagem feita no despacho recorrido.
5. Efectuada a contagem nos termos defendidos pelo recorrente, conclui-se dever a liquidação realizar-se da seguinte forma:
Início da pena - 24.09.2009;
Metade da pena - 08.01.2013 (9/11/2012+60 dias);
2/3 da pena - 25.01.2014 (26/11/2013+60 dias);
5/6 da pena - 09.02.2015 (11/12/2014+60 dias);
Termo da pena - 25.02.2016 (27/12/2015+60 dias);
6. Não o entendendo assim, o despacho recorrido violou o dispostos nos arts. 80º nº 1 do CP e 479º, nº 2 do CPP».
3.

O recurso foi admitido.

Nesta Relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer defendendo o provimento do recurso.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.


*

*


FACTOS PROVADOS

6.

Na decisão a proferir há a considerar o seguinte:
1 – por acórdão de 29-7-2008, entretanto transitado em julgado, o arguido A... foi condenado, além do mais, na pena de 6 anos e 4 meses de prisão;
2 – o arguido foi detido em 15-12-2007 e esteve preso preventivamente à ordem dos presentes autos até 11-1-2008;
3 – em 11-1-2008 foi desligado deste processo e ligado ao proc. 172/01.2GDCBR;
4 – em 24-9-2009 o arguido foi de novo ligado a este processo;
5 – de 21-6-2011 a 20/08/2011 o cumprimento da pena de prisão foi interrompido para que o arguido cumprisse 60 dias de prisão subsidiária em que o mesmo também fora condenado, por não ter pago o remanescente da pena de multa que também lhe havia sido aplicada nestes autos;
6 – considerando estes factos o Ministério Público liquidou a pena aplicada ao arguido do seguinte modo:
- início da pena – 24-9-2009
- metade da pena – 9-1-2013
- 2/3 da pena – 26-1-2014
- 5/6 da pena – 11-2-2015
- termo da pena – 27-2-2016;
7 – notificado, o arguido não se opôs;
8 – o juiz do processo proferiu o seguinte despacho sobre a mesma liquidação:
«… A questão que nos divide da posição defendida pelo Ministério Público cinge-se à forma como se deve proceder ao desconto nos termos e para os efeitos previstos no art. 80º do Código Penal.
O Ministério Público entende que o desconto deve ser efectuado na pena e calculadas as datas relevantes conjugando o início do cumprimento da pena e a pena restante.
Tem do seu lado alguma jurisprudência nomeadamente:
Acórdão do T.R.Porto de 04-05-2011 (em www.dgsi.pt - Processo nº 1692/09.0JAPRT-B.P1) em cujo sumário se lê:
“I – O cumprimento da pena de prisão inicia-se com a entrada do condenado no estabelecimento prisional, após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
II – A detenção e a prisão preventiva são descontadas por inteiro no cumprimento da pena.
III – Não tem cobertura legal (art. 80º, do CP) a liquidação da pena que "ficciona" que o condenado iniciou o cumprimento antes de dar entrada no estabelecimento prisional, em um período de tempo igual ao do desconto".
No mesmo sentido o acórdão do T.R.Lisboa de 27-03-2008 (em www.dgsi.pt processo 1736/08.9).
Contudo em nosso entender, e sempre e salvo o devido respeito por opinião contrária, é efectivamente a liquidação da pena efectuada mediante a "ficção" referido no acórdão do T.R.Porto que mais beneficia o condenado pois atinge mais rapidamente a primeira data a partir da qual poderá beneficiar de liberdade condicional e que permite um tratamento uniforme entre todas as situações possíveis.
Com efeito, nos casos em que o condenado esteve em prisão preventiva de forma contínua antes de iniciar o cumprimento da pena, temos visto, mesmo quem defende que o desconto se deve realizar na pena, a iniciar a contagem da pena a partir da data do início da prisão preventiva e não da data do trânsito em julgado da decisão condenatória.
Deste modo, por aplicação de um critério único, não vemos fundamento bastante para que nos casos em que a prisão preventiva é interrompida se não ficcione o início do cumprimento da pena fazendo retroceder essa data em idêntica à do desconto a operar.
Em suma, tendo o condenado iniciado o cumprimento da pena a 24-9-2009, deve ficcionar-se tal início retrocedendo os 27 (vinte e sete) dias que há para descontar e avançando os 60 (sessenta) dias de interrupção ocorridos no cumprimento da pena.
Em síntese, para efeitos de reformulação da liquidação da pena de prisão, deve ficcionar-se que o condenado iniciou o cumprimento da pena de 06 (seis) anos e 04 (quatro) meses de prisão a 27/10/2009.
Pelo exposto, nos termos e para os efeitos previstos no art. 477º, nº 4, do C.P.P., são as seguintes as datas relevantes para o cumprimento da pena de prisão aplicada ao condenado:
1/2 pena três anos e dois meses vinte e sete de Dezembro de 2012
2/3 pena quatro anos, dois meses e vinte dias dezasseis de Janeiro de 2014
5/6 pena cinco anos, três meses e dez dias seis de Fevereiro de 2015
termo da pena seis anos e quatro meses vinte e sete de Fevereiro de 2016

»

.


*

*


DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir aos termos como deve ser feito o desconto da pena já cumprida pelo arguido, ao abrigo do art. 80º do Código Penal, para, depois, apurar as datas relevantes para a concessão da liberdade condicional.


*

A diferença entre ambas as posições, e que se repercute decisivamente nos períodos intermédios do cumprimento da pena, relevantes para efeitos de consideração da liberdade condicional, está em que o Ministério Público defende que o desconto do tempo de prisão já cumprido opera quanto ao termo final da pena aplicada, enquanto o senhor juiz entende que a parcela da pena já cumprida pelo arguido terá que relevar sobre todos os momentos da execução, nomeadamente quanto à determinação do meio da pena, dos dois terços da pena e dos cinco sextos da pena.

Integrando o título relativo às consequências jurídicas do facto criminoso, a secção IV do capítulo respeitante à escolha e medida da pena respeita, precisamente, ao instituto do desconto.
E a iniciá-lo temos o art. 80º, que diz, e no que agora releva:
«1 - A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas».
Ora, o que esta norma diz de decisivo é que a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão a cumprir pelo condenado.
Aqui não há dúvida.
E esta contabilização releva, apenas, para a determinação do termo da pena aplicada?
Já neste particular, parece-nos que da norma não resulta qualquer imposição de seguir uma orientação ou a outra.

O art. 61º do Código Penal – que integra, também, o título relativo às consequências do crime -, inicia o capítulo que versa sobre a liberdade condicional.
Diz a norma o seguinte:
«1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.
3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.
4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.
5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena».

Face a esta norma já se vê bem as diferenças que podem derivar de proceder ao desconto dos períodos de detenção, prisão preventiva e permanência na habitação sofridas pelo agente apenas reportando ao termo da pena ou, diferentemente, reportando-os à totalidade da execução da pena.
Avançando, entendemos que a parte da pena já cumprida pelo agente antes de a decisão condenatória ter transitado em julgado releva para todos os momentos decisivos da contabilização da execução da pena, isto é, releva para efeitos de determinação do termo da pena, obviamente, mas também para os momentos intermédios relevantes para efeitos de concessão de liberdade condicional, quais sejam a determinação do meio da pena, dos dois terços da pena e dos cinco sextos da pena.
Conforme diz Figueiredo Dias Direito Penal Português-As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág. 536. a propósito do controlo da verificação do segundo requisito da concessão da liberdade condicional, relativo ao cumprimento de metade da pena de prisão aplicada ao condenado, «para efeito de se considerar “cumprida” metade da pena, contabiliza-se seguramente qualquer redução que a pena tenha sofrido, nomeadamente por via de perdão parcial ou de outra medida graciosa; como igualmente se contabiliza qualquer privação de liberdade sofrida no processo que conduziu à condenação ou por causa dele, nomeadamente o tempo de prisão preventiva». Precisamente por isso, continua este autor, é que o condenado, logo no momento da condenação, pode estar em condições de ser posto em liberdade condicional.
Se, por exemplo, o agente condenado em 4 anos de prisão, estiver detido há 2 anos aquando da condenação, neste momento faltar-lhe-ão outros 2 anos para que a sua pena esteja cumprida. Mas, para além disso, no momento da condenação o agente já cumpriu metade da pena e pode, ao abrigo do nº 2 do art. 61º do Código Penal, beneficiar de liberdade condicional.

Ou seja, para este autor todos aqueles períodos, nomeadamente o tempo de prisão preventiva, contam sem restrições para efeitos de apuramento do cumprimento de metade da pena. E relevando para este efeito relevam, por igualdade de razões, para a determinação dos dois terços e cinco sextos.
Ou seja, tendo o agente cumprido detenção ou prisão preventiva antes do início do cumprimento da pena de prisão «tais períodos contam por inteiro, e sem qualquer restrição, para o cômputo dos prazos relevantes para a liberdade condicional …» Acórdão da Relação de Coimbra de 1-8-2007, processo 558/04.5PBVIS. No mesmo sentido vide os acórdãos também desta relação de 25-3-2009, processo 842/02.2TXCBR, e da Relação do Porto de 25-3-2009, processo 208/04.0GBBAO, e de 2-11-2011, processo 70/09.6JAPRT..


Concordamos inteiramente com uma tal doutrina.
Daí que, e parafraseando uma recente decisão proferida pela Relação de Guimarães Acórdão de 6-2-2012, processo 296/06.4JABRG., diremos que tendo o instituto do desconto sido estabelecido em benefício dos condenados, então eles também «devem beneficiar, no cumprimento das penas de prisão onde os descontos são efectuados, de um regime de contagens que leve em conta esses mesmos descontos como cumprimento de pena. Desta forma … ajusta-se tal tratamento à letra da lei, que manda que os períodos de privação de liberdade sejam descontados por inteiro no cumprimento da pena de prisão».

Então, concordamos com a decisão recorrida quando fixa as seguintes datas correspondentes ao meio das penas, aos dois terços das penas e ao termo das penas:
- meio das penas – 27-12-2012
- dois terços das penas – 16-1-2014
- termo das penas – 27-2-2016

No entanto, quanto à data em que se completará o cumprimento de cinco sextos das penas, a decisão recorrida apenas atendeu aos cinco sextos da pena de 6 anos e 4 meses de prisão, e não também aos 60 dias de prisão, que havia que considerar.
Deste modo o cumprimento dos cinco sextos das penas ocorrerá em 27-1-2015.

*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e na improcedência do recurso, liquidam-se as penas aplicadas ao arguido A..., para efeitos de concessão de liberdade condicional, do seguinte modo:
- meio das penas – 27-12-2012
- dois terços das penas – 16-1-2014
- cinco sextos das penas – 27-1-2015
- termo das penas – 27-2-2016

Sem custas.

Olga Maurício (Relatora)

Luís Teixeira