Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2292/16.4T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
SUA VERIFICAÇÃO
Data do Acordão: 12/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JL CÍVEL DE CAST. BRANCO – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1º E 6º, NºS. 2 E 3, DA LEI Nº 7/2001, DE 11/05, NA REDAÇÃO DADA PELO LEI Nº 23/2010, DE 30/08.
Sumário: A união de facto – nomeadamente para efeitos de atribuição de prestação de morte ao membro sobrevivo da união – pressupõe (e nisso se traduz) a existência entre os membros da união de um projeto de vida em comum, análogo à vivência marital, que deve ser concretizado por uma comunhão plena de vida, nomeadamente por uma comunhão de mesa, leito e habitação que deve perdurar, em termos de estabilidade, por um período temporal superior a dois anos, comportando-se os membros dessa união, no fundo, como se efetivamente de marido e mulher se tratassem.
Decisão Texto Integral:






Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. No Juízo Local Cível de Castelo Branco, do atual Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, o autor, Instituto de Segurança Social/Centro Nacional de Pensões, IP (ISS/CNP), instaurou (em 20/12/2016) contra a ré, M..., divorciada, residente em Castelo Branco, a presente ação declarativa de simples apreciação, sob a forma de processo comum, pedindo que seja julgada não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a última e o beneficiário falecido, H...

Para o efeito, e em síntese, alegou:

H..., falecido em 23/12/2015, no estado de divorciado, era beneficiário do ISS/CNP, sendo que na sequência do seu falecimento veio a ré, em 22/02/2016, requerer as prestações por morte, na qualidade de unida de facto àquele.

Acontece que à data do falecimento do referido benificiário do ISS/CNP a ré não vivia com ele em condições análogas às dos cônjuges, ou seja como se de marido e mulher efetivamente se tratassem.

2. Contestou a ré, alegando, em síntese, o contrário do afirmado pelo A., ou seja, de que à data da morte do referido H..., e desde 16/05/2007, viviam juntos, em união de facto, em condições análogas às dos cônjuges, ou seja como se de marido e mulher efetivamente se tratassem.

E daí que tenha terminado pedindo a improcedência da ação.

3. Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador no qual se afirmou a validade e regularidade da instância, fixando-se o objeto do litígio e os temas da prova.

4. Realizou-se depois a audiência de julgamento (com a gravação da mesma).

5. Seguiu-se a prolação da sentença que, no final, decidiu julgar a ação procedente, declarando que a ré “não viveu em situação de união de facto com H... até à data da sua morte em 23 de Dezembro de 2015.”.

6. Não se tendo conformado com tal sentença dela apelou a ré, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

...

7. O autor não contra-alegou.

8. Corridos os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


II- Fundamentação
1. Do objeto do recurso.

Como é sabido, e é pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, e 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC)
1.1 Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso da ré, verifica-se que as questões nelas colocadas e que cumpre aqui apreciar são as seguintes:

a) Da impugnação/alteração da decisão da matéria de facto;

b) Do erro do julgamento de direito (quanto ao mérito da causa).
2. Pelo tribunal da 1ª. instância foram dados como provados os seguintes factos:

1. H... nasceu em 28 de Dezembro de 1933 e faleceu em 23 de Dezembro de 2015, no estado de divorciado, com última residência na Av. ...

2. H... era o beneficiário da Segurança Social/Centro Nacional de Pensões nº ...

3. M... nasceu em 29 de Abril de 1939 e é divorciada.

4. Em 2005 a Ré foi a Lisboa e visitou a mãe de H... que também residia na Av. ..., mas no 5º andar, e reencontrou o referido H... que já não via há muitos anos.

5. A partir dessa data a Ré e o referido H... passaram a falar com regularidade, tendo iniciado uma relação de cumplicidade.

6. Nessa altura a Ré ia a Lisboa encontrar-se com H... mas ficava em casa da mãe deste.

7. Em 16 de Maio de 2007 H... ofereceu à Ré um anel gravado com os seguintes dizeres “H.16-05-07”.

8. A partir da data referida no número anterior a Ré ia frequentemente a Lisboa, para onde se deslocava de autocarro, e pernoitava por vários dias na casa de H..., sita na Av..., partilhando a mesma cama que o referido H..., ou seja relacionando-se afectivamente.

9. Quando a Ré pernoitava em casa do H... tomavam as refeições em conjunto.

10. Passeavam e saíam juntos.

11. A Ré tinha como bens pessoais em casa de H... roupa e sapatos.

12. A Ré tem residência em Castelo Branco: até 2009 na Rua ... e a partir desse ano na Rua ..., onde adquiriu, por compra, nesse ano, a fracção autónoma correspondente ao 1º andar.
13. A correspondência da Ré sempre foi recebida em Castelo Branco.

14. A Ré sempre teve um veículo automóvel que se encontra estacionado na garagem da sua casa em Castelo Branco e que usa nas suas deslocações no concelho de Castelo Branco.

15. As contas referentes às propriedades da Ré sitas em Castelo Branco sempre foram pagas por esta, nomeadamente água, luz e condomínio.

16. H... raras vezes foi a Castelo Branco.

17. A Ré tem pelo menos um irmão e sobrinhos.

18. H... não convivia com os familiares e amigos da Ré.

19. Os amigos e familiares da Ré não a visitavam quando esta estava em Lisboa em casa de H....

20. A Ré há cerca de 12 anos que frequenta aulas de pintura em Castelo Branco, inicialmente duas vezes por semana e mais tarde apenas uma vez por semana, às quintas-feiras.

21. A Ré é proprietária juntamente com o seu irmão de uma casa em S... que está a ser reconstruída.

22. H... tomava o pequeno almoço praticamente todos os dias no estabelecimento de pastelaria sito na Av. ... e às vezes almoçava.

23. Quando a Ré estava em Lisboa na casa de H... ia com este à referida pastelaria tomar o pequeno-almoço e, por vezes, almoçavam.

24. H... e a Ré fizeram um cruzeiro com a filha, o genro do referido H... e com a sogra da filha e passaram alguns períodos na casa do Algarve da filha daquele quando esta ia de férias.

25. A Ré, o H... e a família deste passaram alguns períodos festivos juntos e festejavam o dia 16 de Maio como o início do seu relacionamento.

26. A filha de H... tinha por hábito fazer calendários anuais de cada um dos familiares e no calendário referente ao pai, no ano de 2012 está assinalado o dia 17 de Maio com uma fotografia do pai e da Ré e a frase “5 anos de <3”.
27. H... era uma pessoa doente e a Ré cuidava dele quando pernoitava em casa dele.

28. H... foi hospitalizado em 13 de Novembro de 2015.

29. A única filha de H..., C..., convidou a Ré para ficar na sua casa mas a Ré preferiu ficar na casa do referido H...

30. A filha do H... emprestou à Ré a chave que tinha da casa do pai e ficou com as chaves do pai já que continham quer as chaves de casa quer as chaves da caixa do correio.

31. Durante o período em que H... esteve internado, 40 dias, a Ré deslocou-se pelo menos uma vez a Castelo Branco.

32. Foi a filha de H..., C..., quem tratou, decidiu e pagou o funeral daquele.

33. Após a morte de H... a Ré passou o Natal com a filha deste e no dia 6 de Janeiro de 2016 levou os seus pertences pessoais e foi para Castelo Branco sem devolver a chave que a filha de H... lhe havia emprestado.

34. Em 21 de Fevereiro de 2016 a Ré requereu prestações por morte na qualidade de “unida de facto”.

35. A instruir o pedido referido no número anterior, a Ré juntou uma declaração denominada “Atestado”, datada de 16 de Fevereiro de 2016, passada pela junta de freguesia de C... do seguinte teor:

“A Junta de Freguesia de ... atesta, com base em declarações do(a) próprio(a), documentação arquiv. e em abonação de testemunha(s) para efeitos de ser presente na Segurança Social que M..., portador(a) do Cartão de cidadão nº..., nascido(a) a 1939/04/29 em S..., Divorciado(a), reside na Avenida ..., área desta Freguesia.

Mais declara que viveu em união de facto na morada acima indicada com H... desde 16/05/2007 até à data do seu falecimento ocorrido a 23/12/2015 conforme Assento de Óbito nº... de 2015.
E para constar e nos ter sido pedido se passa o presente que vai assinado e autenticado com o selo branco desta Junta.”.

36. Para além do documento referido no número anterior a Ré preencheu e assinou um documento impresso denominado “Declaração Situação de União de Facto” pelo qual declara que “(…) vivi com o beneficiário identificado no quadro 1 em situação de união de facto no período de 2007/05/16 a 2015/12/23, na seguinte morada Avenida ...”.

37. Após a morte do H... a Ré tentou mudar a sua residência oficial para a Av. ... através da alteração do cartão do cidadão.

38. C..., filha de H... enviou uma carta à Segurança Social em 25 de Maio de 2016, do seguinte teor:

“Exmºs Senhores,

Venho por este meio responder à vossa carta datada de 16-05-2016 conforme solicitado.

Reafirmo que o meu Pai não residia em união de facto com ninguém.

Conheço a requerente M... desde 2008. Ela fazia visitas esporádicas a Lisboa. Inicialmente foi-me apresentada como amiga e posteriormente como namorada de meu pai. Vinha de tempos a tempos a Lisboa ficando alguns dias, passou alguns períodos de férias comigo e com o meu pai, muito raramente por mais de uma semana, e sempre residiu em Castelo Branco.

Lembro-me inclusivamente do meu pai se queixar da escassez de visitas numa fase em que começou a ficar mais fragilizado mas a referida senhora alegava responsabilidades com as propriedades lá em Castelo Branco, aula semanal de pintura, rega das árvores da propriedade, obras nas casas que possui e outros afazeres que não lhe permitiam ficar por mais tempo …

Também fui sempre eu quem ajudava o meu pai com a declaração de IRS todos os anos e nunca houve qualquer menção a esta senhora nem qualquer partilha de rendimentos.
Mais acrescento que durante a fase de hospitalização no meu pai nos 40 dias anteriores à sua morte, fui eu mesma quem lhe emprestou uma chave da casa do meu pai para que ela lá pudesse ficar a dormir enquanto acompanhava em Lisboa essa fase de hospitalização, uma vez que ela não tinha chave, justamente porque não residia com o meu pai. No fim do período de visita devolveu-me a chave.

Na véspera da morte, liguei-lhe a sugeriu que ela viesse para Lisboa, pois fui alertada pelo médico que a situação se agravara. Quando ela chegou, no dia seguinte, dei-lhe guarida algumas noites em minha casa, mas quando ela pediu para ir antes para casa do meu pai, disse-lhe que poderia ficar lá enquanto precisava de se recompor. Tentei acompanhá-la nesse período, como sempre o fiz anteriormente.

Ela foi-se embora de volta para Castelo Branco, onde de facto residia, nos primeiros dias de Janeiro, sem me dar conhecimento de que voltava para casa e sem sequer me devolver a chave da casa do meu pai.

No dia 9 de Janeiro fui a casa do meu pai e tive também conhecimento que a senhora tentou alterar a morada do cartão do cidadão dela, em data posterior à morte do meu pai, pois recebi a carta dos códigos do Cartão do Cidadão nesse dia no correio, que abri quando a senhora me pediu que visse de que se tratava, e que a guardasse, tendo cerca de 1 mês depois pedido que lha fizesse chegar – justamente porque não residia naquela casa, nem sequer em Lisboa.

Quando perguntei à dita senhora o que pretendia ela com esta alteração de residência, que não correspondia à verdade, a sua reacção foi ameaçar-me de estar a reter correspondência alheia e avisar que tinha um advogado.

Optei por devolver a carta ao remetente indicando que a Sra. em questão não reside, nem nunca residiu, naquela morada.

A partir dessa altura deixou de me atender o telefone.

Toda esta situação me surpreendeu imenso e é bastante dolorosa para mim, mas cumpre-me informar a verdade, que era o grande lema do meu pai, que eu tanto amava.

Para quaisquer esclarecimentos adicionais que entendam necessário estou ao vosso dispor.”.

Factos não provados:

a) A Ré viveu até à morte de H... com ele.

b) A Ré ausentava-se apenas por curtos períodos quando tinha de vir à terra tratar das propriedades que tem na zona de ....
c) O que fazia sozinha, habitualmente, por decisão do casal.
d) A Ré tinha chave da casa do H... mas por vezes deixava-a em casa porque era costume ser aquele a levar a chave dele.

e) H... e a Ré tinham o mesmo círculo de amigos.

f) H... e a Ré contribuíam ambos para as despesas do casal e para aquisição de bens alimentares.

g) H... cuidava da Ré quando esta se encontrava doente.

h) H... e a Ré auxiliavam-se mutuamente no dia-a-dia.
i) H... e a Ré eram reconhecidos e tratados como marido e mulher por todos com quem se relacionavam.

3. Quanto à 1ª. questão.

3.1 Da impugnação/alteração da decisão da matéria de facto.

...

3.1.2 Aqui chegados, reportemo-nos aos concretos factos impugnados acima elencados.

3.1.2.1 Quanto ao primeiro daqueles factos dado como não provado: “A Ré viveu até à morte de H... com ele.”

O que se pretende, no fundo, com tal facto (tal como, aliás, com os demais impugnados), tendo em vista o fim da presente ação, é demonstrar que até à morte do referido H... a ré vivia como ele em condições análogas às dos cônjuges, ou seja, e por outras palavras, o que está em causa é saber se o referido H... e a ré viviam ou não numa situação de relacionamento como se de marido e mulher se tratassem quando o primeiro faleceu. É, pois, nesse sentido que tal facto terá que ser interpretado e à luz do qual a resposta terá que ser dada.

Pois bem, à luz dos depoimentos acima referidos duas versões surgiram sobre essa realidade.

...

E sendo assim, e face ao estatuído no artigo 414º do CPC, decide-se resolver essa dúvida sobre a realidade desse facto contra a ré (que o alegou e a quem o mesmo aproveitava), dando-o como não provado.

Sendo dentro do mesmo enquadramento daquele facto que devem ser encarados os restantes três factos impugnados dados como não provado, e por ele com estarem diretamente conectados, decide-se, pelas mesmas razões, dar os mesmos também como não provados.

Termos, pois, que se decide manter intangível a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo acima descrita, improcedendo nessa parte o recurso.

4. Quanto à 2ª. questão.

A questão que nos cumpre apreciar tem a ver como julgamento (em termos de direito) do mérito a ação, que sra. juíza a quo julgou  procedente, ao contrário do que defende a ré que pugna pela sua improcedência.

Dada a forma como o autor configurou/estruturou a presente ação - e ao pedir através dela que o tribunal declare que a ré não vivia em situação de união de facto com H..., no momento da morte deste –, é patente estarmos na presença de uma ação declarativa de simpres apreciação negativa (cfr. artº. 10º, nºs. 2 e 3 al. a), do CPC), como bem se considerou na sentença recorrida.

Sendo o referido H..., à data sua morte, beneficiário da ISS/CNP, e tendo a ré requerido, em consequência do seu falecimento e na qualidade de unida de facto ao mesmo, as prestações por morte, o autor, com base em fundadas dúvidas que invocou sobre a alegada vivência daqueles em situação união facto, visou com a presente ação pôr termo a essas dúvidas e situação de incerteza sobre a referia circunstância de facto, o que se refletirá, conforme a sua resposta positiva ou negativa, no direito ou não da ré a receber as prestações de morte que requereu. (Vide, a propósito, a para maior desenvolvimento, sobre este tipo de ações, os profs. Alberto dos Reis, in “C.P.C. anotado, Vol. I, pág. 22”; Antunes Varela e outros, in “Manual do Processo Civil, 2ª. ed., revista e actualizada, Coimbra Editora, págs. 20/22” e Lebre de Freitas e outra, in “ C.P.C. anotado, Vol. 1º., 3ª. ed., Coimbra Editora, págs. 31/ 32”).

Instauração de ação essa que, em tais situações de dúvida sobre a existência de união de facto, se pode mesmo tornar obrigatória pela entidade responsável pelo pagamento das prestações (cfr. artº. 6º, nºs. 2 e 3, da Lei nº. 7/2001, de 11/05, na redação dada pelo Lei nº. 23/2010, de 30/08).

Ora, estando nós perante uma ação de simples apreciação negativa, nos termos do estatuído no artº. 343º do CC é sobre a ré que impende o ónus da prova dos factos constitutivos direito de que se arroga, o qual passa, pois, pelo ónus de demonstrar/provar que à data da morte (ocorrida em 23/12/2015) do falecido H... vivia com ele em situação de união de facto, isto é, que nessa altura ambos viviam em condições análogas dos cônjuges.

Na verdade, a prova da vivência em situação da união de facto (há mais de dois anos) com o falecido H... constitui o pressuposto legal para que a ré possa ter direito ao recebimento das prestações por morte (também vulgarmente conhecidas por pensões de sobrevivência) que requereu junto do autor (cfr. disposições conjugadas dos artºs. 1º. nºs. 1 e 2, 2-Aº, nº. 4, 3º, nº. 1 al. e), e 6º, nº. 1, da Lei nº. 7/2001, de 11/05, na redação dada pelo Lei nº. 23/2010, de 30/08, e 8º do DL nº. 322/90, de 18/10, na redação dada pela última Lei).

Estabelecendo a lei (4º, nº. 1,do citado DL nº. 322/90) que as prestações por morte têm como objetivo “compensar os familiares de beneficiários da perda de rendimentos de trabalho determinada pela morte deste”, logo no caso das uniões de facto o que se pretende é precisamente compensar o membro sobrevivo da união pela perda de rendimentos sofrida com a morte do seu companheiro beneficiário, o que significa, por outras palavras, que a atribuição das referidas prestações está intimamente relacionada com as implicações económicas resultantes da morte do beneficiário, ou seja, com a diminuição dos meios de subsistência do membro sobrevivo dessa união de facto.

Sendo esse (vivência em união de facto), como vimos, o pressuposto legal para que a ré tenha direito às prestações por morte (do referido H...), a lei define a união de facto como a “situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos” (artº. 1º, nº. 2, da Lei nº. 7/2001, de 11/05, na redação dada pelo Lei nº. 23/2010, de 30/08).

Definindo, como vimos, a lei o conceito jurídico de união de facto, têm, todavia, surgido dificuldades em definir o que se deve entender por “viver em condições análogas às dos cônjuges”, já que a lei não o faz.

Na procura dessa definição escrevem os profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (in “Curso de Direito de Família, 3ª. Ed., Coimbra Editora, pág. 124”) que “os membros da união de facto vivem em comunhão de leito, mesa e habitação, como se fossem casados, o que cria uma aparência de vida matrimonial.”

No mesmo sentido aponta Telma Carvalho (in “A União de Facto e sua Eficácia Jurídica, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, págs. 228/229”) ao afirmar que “podemos, assim, partir de uma noção de união de facto, como a existência e constituição de comunhão plena de vida entre duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em condições análogas às do cônjuges, por mais de dois anos.”

Também a jurisprudência aponta no mesmo sentido. Veja-se, por exemplo, o recente Acordão uniformizador de jurisprudência do STJ nº. 7/2017, de 11/05/2017 (publicado no DR, 1ª. Série, nº. 129º, 06/07/2017) ao afirmar, a dado passo da sua fundamentação, que «no que concerne à união de facto pode dizer-se, reflectindo uma realidade evidente, que ela se constitui quando duas pessoas se "juntam" e passam a viver em comunhão de leito, mesa e habitação.»

Do exposto, pode dizer-se que a doutrina e jurisprudência (sendo esse o entendimento que perfilhámos) apontam como linha comum da união de facto a existência de um projeto de vida em comum, análogo à vivência marital, ou seja, aos cônjuges, sendo que esse projeto de vida em comum deve ser concretizado por uma comunhão plena de vida, nomeadamente por uma comunhão de mesa, leito e habitação, que deve perdurar, em termos de estabilidade, por um período temporal superior a dois anos, tudo se passando, no fundo, como se efetivamente de marido e mulher se tratassem.

Tendo por base o que se acabou de enunciar, e revertendo-nos ao caso apreço, será que que se pode concluir, à luz dos factos apurados, que a ré e o falecido H... viviam, à data da morte deste, numa situação de união de facto?

A resposta é claramente negativa.

Na verdade, calcorreando a matéria de facto apurada, facilmente, a nosso ver, se conclui que entre ambos não existia um projeto de vida em comunhão, uma comunhão plena de vida.

Dessa materialidade ressalta que desde maio de 2017 ambos passaram a relacionar-se afetivamente, partilhando com frequência o mesmo teto, o leito e a mesma mesa, mas isso acontecia somente nos períodos temporais em ré se deslocava em Lisboa para estar com o falecido H..., em cuja casa ficava e permanecia, ou que passavam juntos (vg. férias), pois que cada deles mantinha a sua própria residência, cada um deles assumia, como regra, as suas próprias despesas fixas mais significativas, cada um deles geria o seu próprio património, mantendo, inclusive, os seus próprios círculos de amigos. Não havia, pois, de qualquer modo (independentemente sequer do período tempo que partilhassem, vg. em Lisboa, a mesma habitação, mesa e leito), enfatiza-se, entre eles um projeto de vida em comum, uma comunhão plena de vida, como é próprio dos cônjuges, não obstante o relacionamento afetivo que vinham mantendo de 2007.

Termos, pois, em que que se julga improcedente o recurso, confirmando-se a sentença da 1ª. instância.


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se, em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença da 1ª. instância.

Custas pela R./apelante.

Sumário:

A união de facto – nomeadamente para efeitos de atribuição de prestação de morte ao membro sobrevivo da união – pressupõe (e nisso se traduz) a existência entre os membros da união de um projeto de vida em comum, análogo à vivência marital, que deve ser concretizado por uma comunhão plena de vida, nomeadamente por uma comunhão de mesa, leito e habitação, que deve perdurar, em termos de estabilidade, por um período temporal superior a dois anos, comportando-se os membros dessa união, no fundo, como se efetivamente de marido e mulher se tratassem.

Coimbra, 2017/12/12


Isaías Pádua

Manuel Capelo

Falcão de Magalhães