Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
304/08.4TBFND-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: VENDA
LIQUIDAÇÃO
MASSA INSOLVENTE
BEM IMÓVEL
DESCONFORMIDADE
REQUISITOS
ERRO
ESSENCIALIDADE
ANULAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 02/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: RT.º 908, NºS 1 E 2 DO CPC, APLICÁVEL EX VI DO ART.º 17 DO CIRE E ART.ºS 473, Nº 2 E 806, NºS 1 E 2, DO C. CIVIL.
Sumário: 1. A desconformidade com a realidade das características de um imóvel anunciado para venda na liquidação da massa insolvente é, por si só, suficiente para que comprador obtenha a anulação e a indemnização das despesas ou prejuízos que tenha sofrido, nos termos do art.º 908, nºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi do art.º 17 do CIRE.

2. Para esse fim não carece o comprador de alegar e provar os requisitos gerais de relevância do erro-vício, nomeadamente a sua essencialidade.

3. Aceitando a massa insolvente por qualquer modo os pressupostos da anulação da venda, fica obrigada a partir desse momento ao reembolso da despesa que o comprador teve com a mesma e à restituição do preço por ele eventualmente já pago.

4. Se desde aí retiver este preço, deve ainda indemnizar o comprador com os juros legais correspondentes ao lapso temporal em que perdure essa retenção, nos termos dos art.ºs 473, nº 2 e 806, nºs 1 e 2, do C. Civil.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... , LDA, propôs no 2º Juízo do Tribunal Judicial do Fundão uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra MASSA INSOLVENTE DE B..., LDA, alegando em síntese:
Na liquidação dos bens que compunham a Massa Insolvente da Ré efectuou-se em 29/06/2009 uma venda mediante leilão, na qual, após licitação, foi adjudicado à A., além do mais, determinado prédio urbano pelo valor de € 599.250,00; por conta deste valor logo a A. pagou a quantia de € 59.250,00, além de € 22.260,00 pelos serviços da leiloeira; embora o aludido prédio tivesse sido previamente anunciado como destinado a comércio automóvel, com a área coberta de 400 m2 em lote de terreno com 1.600 m2, necessitando de preparar a sua comercialização, veio a A. a constatar que o mesmo não dispunha de qualquer licença de utilização, nomeadamente para a actividade publicitada; por isso, em 05/01/2010 recusou-se a outorgar a escritura pública de compra e venda que lhe foi marcada pela Ré; tendo requerido em 29/01/2010 a anulação da venda e o reembolso do montante pago à agência de leilões, veio, no entanto, encetar negociações com a Ré com vista a uma redução do preço que resultou da licitação; no decurso essas negociações verificou que a área do imóvel anunciada era superior à real em 500 m2, o que a levou a formular uma nova proposta de aquisição; não tendo as partes chegado a consenso, as negociações goraram-se e, por carta de 30/12/2011, a Ré devolveu à A. em singelo os € 59.250,00 por ela pagos mas negou-se a embolsá-la das despesas; todavia está a Ré enriquecida à custa da A. pelo tempo em que teve ao seu dispor essa quantia (até à sua restituição), pelo que deve indemnizá-la dos juros que esse capital produziu em tal período, que se computam em € 12.057,98; tal como está a Ré obrigada a ressarci-la das despesas que teve de suportar por virtude da venda (€ 21.600,00).
Rematou pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de € 33.657,00, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.

Contestou a Ré alegando, no essencial, que, sendo certo que a A. requereu no processo por duas vezes a anulação da venda, também o é que as negociações com a mesma se prolongaram até 25 de Setembro de 2011, data em que aquela fez uma proposta de compra do imóvel de € 350.000,00 com o desconto do valor inicialmente entregue; tal proposta não foi acolhida pela Ré e pela Comissão de Credores por existir uma outra mais elevada de um terceiro pela qual se veio a consumar a venda, desistindo a A. da compra; a restituição à A. dos € 59.250,00 por ela adiantados teve como pressuposto o de que seria ela a arcar com as despesas da venda. Terminou com a improcedência da acção.

Replicou a A. refutando a alegação da Ré de que desistira do negócio pelo que a responsabilidade pela despesas que com ele teve lhe caberiam contratualmente. Concluiu como na petição.

A final julgou-se a acção improcedente por não provada, absolvendo-se a Ré do pedido.

Foram dispensados os vistos.

Cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância, sem qualquer impugnação:

1. A Autora, com sede nas (...), Fundão, dedica-se, entre outras, à actividade comercial de compra e venda de imóveis e intervenção no mercado imobiliário.
2. No âmbito dos autos principais da insolvência de “ B..., Ld.ª”, foi posto à venda em leilão o bem imóvel da massa insolvente descrito como: “Um prédio urbano sito em (...), freguesia de (...) e concelho da Covilhã, destinado a comércio automóvel, composto por rés-do-chão com salão amplo, um escritório e uma casa de banho e cave com um salão amplo e uma arrecadação com a área coberta de 400 m2, em lote de terreno com 1.600 m2, inscrito na matriz predial urbana da freguesia da (...) sob o artigo (...).º e não descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã, a confrontar a Norte com via pública, Sul, Nascente e Poente com (...)”.
3. Este imóvel respeita ao prédio arrolado nos autos de apreensão de bens sob a verba n.º 16.
4. Foram também colocados em leilão, para venda, entre outros, dois conjuntos de mobiliário de gabinete (melhor descritos nas verbas 54 e 55); e um conjunto de bens composto por sete expositores, uma secretária, três cadeiras azuis, um móvel de arquivo e dois ar condicionados marca CARRIER (verba 56), um elevador (verba 74), um cadernal (verba 75), um sistema de escoamento de óleos (verba 76), uma bomba de pressão a ar comprimido (verba 77), um macaco de suporte (verba 80), um carrinho de transporte (verba 81), um aspirador de óleos (verba 82) e uma zona de receção de veículos (verba 89).
5. Os bens referidos em 2) e 4) foram postos em venda, por negociação particular, com recurso a leilão, realizada em 23 de Junho de 2009.
6. Nesse leilão esteve presente a Autora, representada pelo, então, seu sócio-gerente C... .
7. Onde licitou o prédio urbano supra descrito pelo valor de € 599.250,00 (quinhentos e noventa e nove mil e duzentos e cinquenta euros), e os demais bens móveis atrás mencionados pela quantia global de € 6.250,00 (seis mil e duzentos e cinquenta euros), tendo tais bens sido adjudicados por esses valores, à Autora.
8. Nessa data, por conta da compra do bem imóvel a Autora entregou de imediato a quantia de € 59.250,00 (cinquenta e nove mil duzentos e cinquenta euros), devendo o restante valor do preço ser pago aquando da outorga da respectiva escritura pública.
9. Também nessa data, a Autora procedeu ao pagamento do preço dos bens móveis, no valor global de € 6.250,00 (seis mil duzentos e cinquenta euros).
10. No início dos procedimentos tendentes à venda foi afixado o edital que consta de fls. 66 e anunciadas verbalmente as condições da venda, nos termos que dele constam.
11. Por via da adjudicação e respetiva venda daqueles bens, teve a Autora que proceder ao pagamento dos serviços prestados pela “Agência de Leilões (...), Ld.ª”, entidade promotora e executora do leilão em causa, no montante de € 22.260,00 (vinte e dois mil duzentos e sessenta euros), sendo € 21.600,00 (vinte e um mil e seiscentos euros) respeitante à promoção e venda do imóvel identificado em 2).
12. Após a arrematação em leilão pela autora do imóvel referido em 2), esta estabeleceu contactos com vista ao seu arrendamento ou mesmo, à sua venda.
13. Mercê dos contactos estabelecidos para exploração do espaço do imóvel, a Autora começou a diligenciar pela obtenção da documentação necessária para a efetivação do seu arrendamento ou venda.
14. Foi intenção da Autora comprar um imóvel que se destinava a comércio e em condições de ser imediatamente utilizado, e nessa convicção o adquiriu.
15. Tencionando utilizá-lo para fins comerciais, direta ou indiretamente, por via de arrendamento, ou aliená-lo.
16. Entretanto, e após a referida adjudicação do bem imóvel, decorreram cerca de seis meses sem que fosse promovida pela Ré, por via do seu Administrador, a realização da escritura de compra e venda do mesmo.
17. A Autora emitiu e remeteu ao Administrador da Insolvência o escrito de fls. 26, com o teor que dele consta.
18. Como resposta, o Administrador da Insolvência remeteu à autora o escrito de fls. 29, com o teor que dele consta.

19. Por documento emitido em 04/01/2010 a Câmara Municipal da Covilhã certificou que “compulsado o processo de obras n.º 334/93, em nome de G..., Lda. referente ao Stand de Automóvel, sito na (...), freguesia de (...), desde concelho, não foi encontrada qualquer autorização de utilização, nem requerida até à presente data”.
20. Em momento algum (anterior ao referido em 19) a Autora foi informada da inexistência da licença de utilização para o edifício em causa, nomeadamente para o fim anunciado de comércio de automóveis.
21. Deslocando-se ao Cartório Notarial designado, no dia e hora marcados, a autora constatou ser intenção do Administrador da Insolvência celebrar a escritura do imóvel no estado em que o mesmo se encontrava, com dispensa da licença de utilização, cuja falta de apresentação seria feita consignar no documento, constituindo ónus da autora proceder à sua legalização.
            22. Na sequência do referido em 20) e 21) Autora desconhecia se aquele imóvel poderia em algum momento ser licenciado como prédio urbano destinado a comércio automóvel ou outro, e, mesmo que isso pudesse vir a acontecer, em que momento é que estaria em condições de ser comercializado ou explorado por aquela
23. Do anúncio do leilão referido em 5) não constava qualquer referência à impossibilidade de o imóvel aludido em 2) ser imediatamente utilizado para o comércio automóvel.
24. Perante tal situação, a Autora recusou-se a celebrar a referida escritura pública, solicitando a passagem da certidão junta a fls. 31-32.
25. Era do conhecimento público que no edifício referido em 2) foi mantida a exploração de um stand de comércio automóvel durante mais de dez anos.
26. Com data de 29 de Janeiro de 2010, veio a autora requerer a anulação da referida venda e adjudicação, requerendo ainda a devolução do preço entretanto pago, bem como das despesas por si suportadas com tal compra, nomeadamente com a “Agência de Leilões (...), Ld.ª”, encarregue da venda daquele imóvel pela Ré.
27. Na sequência de tal requerimento, foram encetadas negociações entre a ré, por intermédio do seu representante, e a autora (extensíveis numa fase posterior à Comissão de Credores), no sentido de acertarem um novo preço para o imóvel, responsabilizando-se esta pelo licenciamento camarário necessário ao exercício de qualquer actividade no mesmo, a sua expensas, mercê das dificuldades invocadas pela ré em licenciar, com a celeridade pretendida, o referido imóvel.
28. Atentas as despesas que haveria de suportar, bem como todo o trabalho administrativo/burocrático e contratação de técnicos para a legalização (licenciamento) do imóvel, foi acordado entre a Autora, o Administrador da Insolvência, e por via deste, com o consentimento e aquiescência da Comissão de Credores, uma redução no valor da aquisição, a fim de compensar as despesas que eventualmente pudessem existir com aquele licenciamento, além do risco de um eventual indeferimento camarário quanto ao mesmo.
29. O imóvel referido em 2) tem, na realidade, menos 500 m2 do que os mencionados no anúncio do leilão e constantes da matriz respetiva.
30. Tal divergência foi constatada mercê do levantamento topográfico do imóvel realizado pelo Administrador da Insolvência, do que deu conta aos autos.
31. Perante tal facto, retomaram-se as negociações com vista a um acerto do valor de compra, agora também em função da redução da área anunciada e da realmente existente.
32. Contudo, tais negociações foram-se prolongando no tempo, levando, inclusive, a uma maior degradação do imóvel, especialmente a nível do telhado, mercê das chuvas que entretanto ocorreram.
33. Não chegando Autora e Ré a um consenso quanto ao preço adequado ao imóvel em causa.
34. Foi já no âmbito das negociações referidas em 27), e quando a autora iniciou as diligências necessárias ao processo camarário de licenciamento, que esta verificou a divergência de menos 500 m2 do que os mencionados no anúncio.
35. A Autora remeteu ao Administrador da Insolvência as missivas juntas a fls. 78-79 e 80-81, datadas de 29 de junho de 2011 e 05 de setembro de 2011, respetivamente, com os teores que delas constam.
36. A Autora manteve interesse na aquisição do imóvel em causa, ainda que sem licença de utilização e com menos 500 m2 de área até, pelo menos 20/09/2011, com esclarecimento de que tal interesse estava sujeito às condições referidas na missiva de fls. 80-81 a que se alude em 35).
37. A Ré, mercê da apresentação de outras propostas para a aquisição do imóvel, deliberou em reunião da comissão de credores de 04/10/2011 “aceitar a proposta mais elevada (…) e aceitar que seja dada sem efeito a proposta de compra apresentada por A..., Lda. com a condição da massa insolvente apenas ter que proceder à devolução do sinal entregue em singelo, sendo que as demais despesas suportadas são encargo da proponente”.
38. Não foi acordado entre Autora e Ré que a devolução do montante entregue pela autora aquando da arrematação do imóvel tinha como pressuposto que as despesas inerentes seriam por conta desta.
39. Gorando-se a almejada venda, veio a Ré, por carta datada de 30/12/2011, a remeter ao mandatário da autora cheque datado de 22/12/2011, no valor de € 59.250,00 (cinquenta e nove mil e duzentos e cinquenta euros), respeitante à devolução do início de pagamento feito por esta.
40. Por escrito datado de 02/01/2012 a Autora declarou “ter recebido o cheque n.º 7321663656 do Sr. Administrador da Massa Insolvente B... SA.”.

*
A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação, levanta a A. as seguintes questões:

Se ao não celebrar a escritura pública de compra e venda do imóvel anunciado a Ré incorreu em incumprimento, sendo responsável pelas despesas ocasionadas à apelante;
Se, sob pena de enriquecimento ilegítimo, a Ré deve também ser condenada a pagar os juros legais pelo período durante o qual teve em seu poder os € 59.250,00;
Se, de todo o modo, o erro da A. deve ser tido por relevante e, com base nele, tem a A. direito à indemnização.


Não houve contra-alegações.

                                                                       *

Quanto ao alegado incumprimento da Ré.

Aduz a recorrente que houve incumprimento por banda da Ré visto esta não ter celebrado a escritura de compra e venda do imóvel do imóvel concretamente anunciado em 5 de Janeiro de 2010.
É verdade que só em sede recursiva A. emprega a qualificação incumprimento apesar de na acção sempre se ter referido a um erro sobre qualidade do imóvel anunciado para venda pelo respectivo administrador – art.ºs 26 e 27 e 52 a 54 da p.i. – sem todavia concluir por um pedido de anulação da venda fundada nesse erro-vício.
Em todo o caso, o que ao longo dos autos avulta como questionado pela A. é a desconformidade real do prédio face às características que foram publicitadas para a sua venda.
É exacto que tendo visto ser-lhe adjudicado o imóvel no leilão a que se procedeu em 23 de Junho de 2009, compareceu no Cartório Notarial da Covilhã em 5/01/2010, por marcação da Ré, e que a escritura “não foi realizada em virtude de o representante da sociedade compradora exigir a correspondente licença de utilização e o prédio em causa ainda não a ter”.
Tratava-se aqui da formalização da transmissão do direito de propriedade do bem que decorria da licitação em que a A. participara.
No entanto, pode extrair-se não só do próprio documento que titula o constante do nº 21 dos factos provados (veja-se a expressão ainda não ter”), como do teor dos nºs 26 e 27 do mesmo acervo, que a A. não considerou logo aí propriamente incumprida a obrigação de formalização da venda do bem anunciado ou proposto. Até porque não só veio a optar por requerer no processo a anulação da venda isto é, do leilão anulação que nenhuma conexão podia ter com aquela intervenção da Ré, como, de seguida, veio inclusivamente a encetar com esta uma fase de negociações tendentes à aquisição do mesmo imóvel por um preço reduzido.
E não terá sido por acaso que então escolheu a via da anulação.
É que quem promoveu e anunciou o bem a vender não foi nem podia ter sido a Massa Insolvente Ré, nem tão pouco o seu administrador, mas antes o estabelecimento de leilão a quem por este foi cometida segundo as regras do art. 906 do CPC, aplicáveis directamente (não apenas subsidiariamente) à liquidação da massa insolvente, por força dos art.ºs 17 e 164, nº 1, do CIRE.
Pelo certificado notarial de que os autos dão notícia não é, assim, configurável o incumprimento de qualquer prévia obrigação da Ré. E não tem qualquer adesão à materialidade provada a referência a uma interpelação admonitória da Ré para a conclusão do negócio do imóvel anunciado através da escritura pública marcada para 5 de Janeiro de 2010.
Com efeito, a Ré limitou-se a comparecer ao acto que ela própria designara, ao qual estava adstrita, oferecendo-se para outorgar a escritura na qualidade de proprietária do imóvel tal como este existia.
Por conseguinte, não se poderá falar de incumprimento da Ré nesse momento.
Não obstante, tergiversou-se na sentença sobre os requisitos do erro da A.
A tal respeito, entrou-se na teoria geral do erro, para se concluir que o erro da A. era enquadrável no erro-vício reportado ao objecto do negócio; mas que não seria fundamento de anulação da venda por in casu a matéria provada demonstrar não ter sido um erro essencial nos termos dos art.ºs 247 e 251 do C. Civil.
Salvo o respeito devido, o erro da A. não pode ser apreciado à luz da teoria geral deste vício da vontade.
O erro que é susceptível de conduzir à anulação da venda em processo de insolvência não segue a disciplina do erro da declaração negocial dos art.ºs 247 a 252 do Código Civil.
Vejamos porquê.

Tendo em atenção o disposto no art.º 164, nº 1, do CIRE, o administrador da insolvência pode optar por qualquer das modalidades de alienação de bens que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
À venda realizada em liquidação dos bens da massa são naturalmente aplicáveis as normas do processo executivo que não contrariem as disposições do CIRE – cfr. o respectivo art.º 17.
Ora uma dessas normas é a do art.º 908 do CPC, em que se preceitua:
“1. Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sendo aplicável o art.º 906 do Código Civil.
2. A questão prevista no número anterior é decidida pelo juiz, depois de ouvidos o exequente, o executado e os credores interessados e de examinadas as provas que se produzirem.
3. (…)”.
Da transposição desta previsão para a venda na liquidação em processo de insolvência decorre que também o comprador de um bem, em alienação que nela tenha lugar por alguma das modalidades que a lei consente, aí pode pedir por via incidental a anulação da venda e a indemnização dos danos que com esta tenha sofrido, danos nos quais se incluem as despesas que por causa da venda tenha suportado.
Basta-lhe alegar e provar a desconformidade do anúncio com a realidade para lhe ser permitido requerer a anulação da venda. Substantivamente, essa desconformidade significa o desrespeito objectivo da proposta contratual materializada num anúncio público, desrespeito que se tem por suficiente para a procedência o pedido de anulação da venda.
Donde que diante desse único pressuposto legal não se coloque qualquer problema de essencialidade do erro.  
Por virtude do erro em que alegou ter incorrido peticionou a A. a condenação da Ré na indemnização da despesa que teve com a venda, mais precisamente com o pagamento dos serviços do estabelecimento que levou a cabo o leilão (e a que contratualmente ficou vinculada).
Mas para isso não podia deixar de pedir anulação da própria venda, pois que a indemnização não é consequencial do erro mas sim da anulação requerida ao abrigo do citado nº 1 do art.º 908 do CPC.
Não tendo pedido a anulação da venda, não será com base nessa invalidade que a A. pode ver-se ressarcida da despesa que esse acto lhe ocasionou e que contratualmente se encontrava obrigada a pagar à agência de leilões (cfr. os factos provados em 10 e 11 e o doc. de fls. 66).
Acresce que, em caso de anulação, a satisfação da indemnização tem lugar pelo produto da venda ou liquidação dos bens, após decisão do juiz do processo e audição dos credores, não se tratando aqui de uma dívida que a massa enquanto tal haja contraído (al.ª c) do nº 1 do art.º 51 do CIRE).
É inegável que nestes autos a A. não pede a anulação da venda; aparentemente não terá prosseguido com o incidente que pertinentemente chegou a deduzir na liquidação da Ré[1] (eventualmente porque alienação dos bens da massa estaria terminada e do seu produto já se não poderia pagar).
Na linearidade desta fundamentação estaria votado ao naufrágio o pedido da A. de, por via da presente acção obter a condenação da Ré a indemnizá-la do dispêndio invocado com a venda do imóvel.
Há todavia uma ocorrência retratada na matéria provada que determina um desfecho diverso.
É que sem que a venda do leilão de Junho de 2009 se achasse efectivamente anulada, revogada, ou extinta por qualquer motivo, e depois de haver acordado com a A. uma redução do preço inicial – redução que após a apresentação de três propostas sucessivamente mais baixas pela A., não viria, no entanto a concretizar-se – em Outubro de 2011, com o apoio da Comissão de Credores, enveredou a Ré Massa Insolvente pela alienação do imóvel em causa a terceiro por um valor superior ao da última proposta da A. (por esta comunicado em 5 de Setembro de 2011), dando sem efeito a transmissão que se operara no sobredito leilão – cfr. os factos provados em 28 a 32 e 35 a 37.
Esta conduta da Ré, agora como parte que estava obrigada a formalizar a venda por um preço inferior ao da licitação, deve ser subsumida a um incumprimento contratual culposo do art.º 801 do CC, na medida em que com a mesma se inviabilizou definitivamente a definição da relação estabelecida com a A. na sequência da adjudicação que lhe foi efectuada no leilão de 23 de Junho de 2009. Porque não só assim quedou impedida a formalização da compra do imóvel pela A. por um preço reduzido, com ela acordado, como ainda foi dado sem efeito o negócio operado no leilão de Junho de 2009, recusando-se a Ré expressamente a indemnizar a A. das despesas que subsidiariamente esta queria receber pela extinção do mesmo.
Tal é o conteúdo do provado em 37 a 39.
Não aceitando ela a última proposta de preço da A. (de 5 de Setembro de 2011), não lhe era lícito pôr termo aos efeitos produzidos pelo leilão de Junho de 2009 nos moldes em que o fez, isto é, sem repor a A. na situação precedente ao aludido acto, reembolsando-a da despesa suportada, como ela admitia em alternativa expressa àquela proposta.
Quis a Ré conceder a “anulação” da venda feita à A. sem contudo a indemnizar de uma despesa para que esta foi conduzida pelo anúncio desconforme do imóvel.
Mas também fechou definitiva e inexoravelmente a porta à alienação do bem por um preço reduzido com a qual concordara.
É aqui que reside o inadimplemento da Ré.  
Ora o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação responde pelo prejuízo causado ao credor – art.º 798 ex vi do art.º 801 do CC. O prejuízo da A. abrange o dano contratual negativo, ou seja, os gastos a que se viu compelida para concluir o contrato. 
Pelo que é a Ré responsável pela quantia paga pela A. com a despesa do leilão que esta teve de satisfazer.
Donde que, no que a esta questão concerne, o recurso tem de proceder.
      

Sobre os juros.

Pugna ainda a apelante pela condenação da Ré no pagamento dos juros que lhe foram proporcionados pela disponibilidade dos € 59.250,00 que pagou entre a data do leilão e a da restituição que lhe foi feita em 30 de Dezembro de 2011.
Para o efeito invoca um enriquecimento ilegítimo da Ré.
É patente que a apelante visa a restituição daqueles juros respaldada no instituto do enriquecimento sem causa do art.º 473 do CC.
Considerou a sentença ora sob censura que até 22 de Dezembro de 2011, data do cheque em que a Ré devolveu aquela importância, houve uma relação jurídica que legitimou a deslocação patrimonial do dinheiro para a Ré (notando-se aqui que a carta em que tal cheque foi remetido à A. é de 30 de Dezembro de 2011, cfr. o provado em 39, pelo que nunca a Ré poderia levantar a quantia nele inscrita antes de 31 de Dezembro). E que essa relação jurídica era o contrato-promessa de compra e venda que fora celebrado entre as partes, sendo aqueles € 59.250,00 um sinal prestado pela A..
Mas também nesta questão não acompanhamos a decisão.

É que, desde logo, entre A. e Ré nunca existiu o dito contrato-promessa de compra e venda, nem aquela verba alguma vez foi entregue à segunda como sinal.
Já é exacto dizer-se que a entrega da quantia pela A. teve uma causa legítima: o pagamento de parte do preço da licitação do imóvel resultante do leilão de Junho de 2009. E que a A. quis renegociar e renegociou esse valor até à carta enviada à Ré em 5 de Setembro de 2011, constante do doc. de fls. 80-81. É igualmente insofismável que tanto na proposta inserida nesta carta, como na de 20 de Junho do mesmo ano – cfr. o doc. de fls. 78-79 – sempre a A. se referiu ao “desconto” no preço dos aludidos € 59.250,00 (também aí impropriamente qualificados de sinal).
Não pode, assim, a A., ora apelante, pretender que desde a entrega desta quantia a Ré dela beneficiou injustificadamente.
Durante o período em que as parte quiseram renegociar o preço a pagar pelo imóvel é perfeitamente adequado falar-se de uma causa legítima ou justificada para a posse do dinheiro pela Ré. Já o não será, porém, a partir do instante em que essa causa cessa e o efeito perspectivado deixa de poder verificar-se. Notoriamente, esse momento ocorreu com a decisão tomada pela Ré em 4 de Outubro de 2011 de aceitar a proposta de compra de um terceiro, preterindo a A., conforme o provado em 37.
Reza o nº 2 do art.º 473 do CC:
“A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que se não verificou”.
É, portanto, óbvio que desde a data em que rejeitou a venda do imóvel à A. a Ré, à luz do conceito do art.º 1260 do CC, passou a possuir de má-fé a quantia que por aquela fora entregue. Não podia então ignorar que a retinha sem título, lesando o direito daquela.
Ficou a Ré de imediato obrigada à restituição, o que, contudo, só veio a fazer em 30/12/2011.
Prescreve-se no art.º 1270, nº 1, do CC que o possuidor de boa-fé faz seus os frutos naturais percebidos até ao dia que souber que está a lesar do direito de outrem e os frutos civis correspondentes ao mesmo período.
A medida do empobrecimento da A. deve ser a dos frutos civis que aquela importância de € 59.250,00 lhe proporcionaria a partir de 4/10/2011 até à data em que se provou o recebimento – que nunca se poderá ter como anterior a 2 de Janeiro de 2012 de harmonia com o provado em 40.
 Frutos civis que se hão de traduzir nos juros legais em que, ex vi do art.º 806, nºs 1 e 2, do CC, se materializa a indemnização nas obrigações pecuniárias.
Donde que, quanto ao tema dos juros que nele foi suscitado, e ainda que parcialmente, o recurso alcance o seu desiderato.

Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, revogam a sentença, julgando a acção parcialmente provada por parcialmente e, em função disso, condenam a Ré a pagar à A. a quantia de € 21.600,00, relativa às despesas por esta suportadas, e, bem assim, o valor correspondente aos juros legais que sobre a quantia de € 59.250,00 se venceram no período compreendido entre 4/10/2011 e 2/01/2012, sendo o somatório de ambas as quantias acrescido de juros à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento. No mais vai a Ré absolvida.
Custas em ambas as instâncias na proporção de 1/9 para a A. e 8/9 para a Ré.

                                    
Sumário:
1. A desconformidade com a realidade das características de um imóvel anunciado para venda na liquidação da massa insolvente é, por si só, suficiente para que comprador obtenha a anulação e a indemnização das despesas ou prejuízos que tenha sofrido, nos termos do art.º 908, nºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi do art.º 17 do CIRE.
2. Para esse fim não carece o comprador de alegar e provar os requisitos gerais de relevância do erro-vício, nomeadamente a sua essencialidade.
3. Aceitando a massa insolvente por qualquer modo os pressupostos da anulação da venda, fica obrigada a partir desse momento ao reembolso da despesa que o comprador teve com a mesma e à restituição do preço por ele eventualmente já pago.
4. Se desde aí retiver este preço, deve ainda indemnizar o comprador com os juros legais correspondentes ao lapso temporal em que perdure essa retenção, nos termos dos art.ºs 473, nº 2 e 806, nºs 1 e 2, do C. Civil.

Coimbra, 11 de Fevereiro de 2014

Freitas Neto (Relator)
Carlos Barreira
Barateiro Martins

[1] Cfr. o facto provado em 26.