Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
288554/08.0YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
TELEFONE
COMUNICAÇÃO ELECTRÓNICA
PRESCRIÇÃO
LEI INTERPRETATIVA
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA 2º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 23/96 DE 26/7, DL Nº 381/97 DE 30/12, LEI Nº 5/2004 DE 10/2, LEI Nº 12/2008 DE 26/2, LEI Nº 24/2008 DE 2/6, ART.13 CC
Sumário: 1. Considera-se lei interpretativa, aquela através da qual o legislador intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência pelos seus próprios meios poderia ter chegado.

2. A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, retroagindo os seus efeitos à entrada em vigor da antiga lei, como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada, ressalvando-se os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença transitada, por transacção ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza.

3. A Lei 12/2008, de 26 de Fevereiro tem natureza interpretativa no que respeita ao carácter extintivo da prescrição semestral consagrada na versão originária do artº. 10 da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, que criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, nomeadamente do serviço de telefone.

4. A natureza interpretativa da Lei n.º 12/2008 e as suas consequências (retroacção dos efeitos à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/96), não põem em causa os efeitos produzidos pelo diploma legal que vigorou entre 11.02.2004 e 25.05.2008, durante um período intermédio à entrada em vigor das referidas leis – a Lei n.º 5/2004 de 10 de Fevereiro.

5. Entre 26 de Outubro de 2006 (data de entrada em vigor da Lei n.º 23/96) e 10 de Fevereiro de 2004, o prazo prescricional era de 6 meses; entre 11 de Fevereiro de 2004 (data de entrada em vigor da Lei n.º 5/2004) e 25.05.2008, o prazo prescricional passou a ser o previsto na lei geral – 5 anos; a partir de 26.05.2008 (data de entrada em vigor da Lei n.º 12/2008), o prazo prescricional voltou a ser de seis meses (sempre contado após a prestação do serviço).

6. Na alteração do prazo decorrente da entrada em vigor da Lei n.º 12/2008 (que reduziu o prazo prescricional, de 5 anos para 6 meses), há que aplicar a regra enunciada no n.º 1 do artigo 297.º do Código Civil, pelo que o prazo prescricional de cinco anos passou a ser semestral, contando-se os seis meses a partir da entrada em vigor da Lei n.º 12/2008, de 26 de Fevereiro, ou seja, a partir de 26.05.2008.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
“P.T. (…), S.A.” instaurou o presente procedimento de injunção, a prosseguir como acção declarativa para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de transacção comercial, contra I.P.A.F. (…), Ldª., pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 8.525,98 euros, a título de capital, acrescida dos juros vencidos na ordem dos € 1.420,47 euros e ainda os vincendos até integral cumprimento.
Para o efeito, alegou, em síntese: celebrou com a requerida um contrato de prestação de serviços de telecomunicações; nesse âmbito, a requerente obrigou-se a prestar o serviço contratado e a Requerida obrigou-se a efectuar o pagamento tempestivo das facturas; porém, encontram-se por pagar as facturas discriminadas no requerimento injuntivo, cujas datas limites de pagamento vão desde Janeiro de 2006 até 26 de Novembro de 2011, sendo devidos juros legais desde as datas dos seus vencimentos.
Regularmente citada, a Ré veio deduzir oposição, alegando que desconhece a origem dos montantes e se, de facto, recebeu as facturas, estranhando que face ao alegado incumprimento não tenha sido interrompido o serviço, invocando a prescrição extintiva do direito da A., dado terem decorrido seis meses contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, nomeadamente no que concerne às facturas relativas ao ano de 2007, e pedindo a final a sua absolvição do pedido até ao limite do montante já prescrito.
Procedeu-se à audiência de julgamento, após o que foi proferida decisão sobre a matéria de facto, sem reclamações, seguindo-se a sentença, com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, decido:

- julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, consequentemente,

- depois de conhecida a excepção peremptória de prescrição invocada pela Ré, julgando-a parcialmente procedente,

- condeno a Ré a pagar à A. a quantia global de € 1.489,59 euros (mil, quatrocentos e oitenta e nove euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescida dos juros moratórios vencidos e vincendos a partir das datas de vencimento das aludidas facturas, contados às taxas legais comerciais em vigor, até integral pagamento, no mais se absolvendo a Ré.»
Não se conformando, a autora interpôs o presente recurso de apelação, apresentando alegações, onde formula as seguintes conclusões:

1. A douta sentença recorrida deve ser revogada pois nela se fez, salvo o devido respeito, errada aplicação do direito.

2. No presente processo estamos perante serviços de telefone fixo prestados entre Janeiro de 2006 e Outubro de 2008.

3. O AUJ n.º 1/2010 debruça-se sobre uma situação onde estão em causa serviços telefónicos móveis que foram prestados entre Junho de 2000 e Maio de 2002.

4. Os fundamentos que conduziram ao AUJ n.º 1/2010 não coincidem com os factos da presente acção.

5. A jurisprudência uniformizada pelo AUJ n.º 1/2010 – nos termos do disposto na redacção originária do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, e no n.º 4 do artigo 9.º do Decreto -Lei n.º 381 -A/97, de 30 de Dezembro, o direito ao pagamento do preço de serviços de telefone móvel prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação – em nada interfere com os factos em discussão no presente processo.

6. Em 11 de Fevereiro de 2004 entrou em vigor a Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, revogando o Decreto – Lei n.º 381-A/97, e exclui do âmbito de aplicação da Lei n.º 23/96, o serviço de telefone, nos termos do artigo 127.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2.

7. Na vigência da Lei n.º 5/2004 não existia qualquer querela jurisprudencial ou doutrinal sobre o âmbito de aplicação da Lei n.º 23/96.

8. A Lei n.º 12/2008 veio reintroduzir no âmbito de aplicação da Lei n.º 23/96 o serviço telefónico (fixo ou móvel), assim como introduzir (de forma completamente inovadora) todas as restantes comunicações electrónicas.

9. Mesmo a entender-se que a Lei n.º 12/2008 assume o carácter de lei interpretativa, em alguns dos seus segmentos, nunca a mesma assumirá tal natureza face ao período em que vigorou a Lei n.º 5/2004.

10. Relativamente ao serviço telefónico, a natureza interpretativa da Lei n.º 12/2008 apenas relevará até à data da entrada em vigor da Lei n.º 5/2004, pois que a partir desse momento o legislador é expresso em afirmar, no artigo 127.º da Lei n.º 5/2004, que “o serviço de telefone é excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho”.

11. As alterações produzidas pela Lei n.º 12/2008 apenas entraram em vigor 90 dias após a sua publicação, ou seja, 26 de Maio de 2009.

12. A referida lei não deverá ser tida em conta nos presentes autos pois nos termos do artigo 297.º do Código Civil a «lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar» (sublinhado nosso).

13. O prazo de prescrição de seis meses só se contaria a partir da entrada em vigor da lei nova, completando-se apenas em 26 de Novembro de 2008.

14. É que, o facto de a nova redacção da Lei n.º 23/96 se aplicar aos contratos pendentes, não significa isso que a mesma tenha efeito retroactivo.

15. Pelo que o direito de crédito da Autora não se encontra prescrito.
A ré apresentou contra-alegações onde preconiza a improcedência do recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber quais os prazos prescricionais aplicáveis aos serviços de telefone fixo prestados e se os mesmos decorreram.

2. Fundamentos de facto
Na sentença recorrida consignou-se a seguinte factualidade relevante provada:
1. A. e R. celebraram a 01.08.2005 um contrato de prestação de serviço fixo de telefone (v. doc. de fls. 62).
2. Tendo em conta os serviços prestados pela A. à R., a primeira emitiu as facturas referenciadas no requerimento injuntivo e que se mostram anexas ao presente processo, cujas datas limite de pagamento são, respectivamente, de: 18-01-2006, 18-01-2006, 18-01-2006, 18-01-2006, 18-01-2006, 18-01-2006, 18-01-2006, 18-02-2006, 18-02-2006, 18-02-2006, 18-02-2006, 18-02-2006, 18-02-2006, 22-03-2006, 22-03-2006, 22-03-2006, 22-03-2006, 22-03-2006, 22-03-2006, 20-04-2006, 20-04-2006, 20-04-2006, 20-04-2006, 20-04-2006, 20-04-2006, 20-04-2006, 19-05-2006, 19-05-2006, 19-05-2006, 19-05-2006, 19-05-2006, 19-05-2006, 19-05-2006, 18-06-2006, 18-06-2006, 18-06-2006, 18-06-2006, 18-06-2006, 18-06-2006, 18-06-2006, 20-07-2006, 20-07-2006, 20-07-2006, 20-07-2006, 20-07-2006, 20-07-2006, 20-07-2006, 18-08-2006, 18-08-2006, 18-08-2006, 18-08-2006, 18-08-2006, 18-08-2006, 18-08-2006, 20-09-2006, 20-09-2006, 20-09-2006, 20-09-2006, 20-09-2006, 20-09-2006, 20-09-2006, 20-10-2006, 20-10-2006, 20-10-2006, 20-10-2006, 20-10-2006, 20-10-2006, 20-10-2006, 19-11-2006, 19-11-2006, 19-11-2006, 19-11-2006, 19-11-2006, 19-11-2006, 20-12-2006, 20-12-2006, 20-12-2006, 20-12-2006, 20-12-2006, 20-12-2006, 20-12-2006, 18-01-2007, 18-01-2007, 18-01-2007, 18-01-2007, 18-01-2007, 18-01-2007, 18-01-2007, 21-02-2007, 21-02-2007, 21-02-2007, 21-02-2007, 21-02-2007, 21-02-2007, 21-02-2007, 23-03-2007, 23-03-2007, 23-03-2007, 23-03-2007, 23-03-2007, 23-03-2007, 23-03-2007, 25-04-2007, 25-04-2007, 25-04-2007, 25-04-2007, 25-04-2007, 25-04-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-06-2007, 20-06-2007, 20-06-2007, 20-06-2007, 20-06-2007, 20-06-2007, 20-06-2007, 19-07-2007, 19-07-2007, 19-07-2007, 19-07-2007, 19-07-2007, 19-07-2007, 19-07-2007, 19-08-2007, 19-08-2007, 19-08-2007, 19-08-2007, 19-08-2007, 19-08-2007, 19-08-2007, 19-09-2007, 19-09-2007, 19-09-2007, 19-09-2007, 19-09-2007, 19-09-2007, 19-09-2007, 21-10-2007, 21-10-2007, 21-10-2007, 21-10-2007, 21-10-2007, 18-11-2007, 18-11-2007, 18-11-2007, 18-11-2007, 18-11-2007, 18-11-2007, 18-11-2007, 19-12-2007, 19-12-2007, 19-12-2007, 19-12-2007, 04-12-2007, 04-12-2007, 04-12-2007, 04-01-2008, 19-01-2008, 04-01-2008, 19-01-2008, 19-01-2008, 19-01-2008, 19-01-2008, 20-03-2008, 21-05-2008, 21-05-2008, 21-05-2008, 21-05-2008, 04-05-2008, 21-05-2008, 04-05-2008, 19-06-2008, 19-06-2008, 19-06-2008, 19-06-2008, 19-06-2008, 19-06-2008, 19-06-2008, 24-07-2008, 03-07-2008, 06-08-2008, 26-10-2008, 26-10-2008, 26-10-2008, 26-10-2008, 26-11-2008, 26-11-2008, 26-11-2008, 26-11-2008, 26-11-2008, 26-11-2008.
3. Tais facturas foram pela A. enviadas à Ré, que as recebeu e delas não reclamou.
4. As facturas com data limite de pagamento a 20-05-2008 referem-se a serviços prestados durante o período de 1 de Abril até 1 de Maio de 2008 (cfr., nomeadamente a factura junta a fls. 92-93).
5. O requerimento injuntivo que deu causa à presente acção especial deu entrada no dia 29 de Outubro de 2008.

3. Fundamentos de direito
3.1. Sequência legislativa
As datas limite de pagamento das facturas em causa nestes autos situam-se entre 18-01-2006 e 26-11-2008.
Vejamos a sequência das várias normas que se sucederam no tempo, vocacionadas para dirimir a questão.
A Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, consagrando regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente (art. 1.º, n.º 1), definindo os seguintes os serviços públicos abrangidos (art. 1.º, n.º 2): a) Serviço de fornecimento de água; b) Serviço de fornecimento de energia eléctrica; c) Serviço de fornecimento de gás; d) Serviço de telefone.
Sob a epígrafe “prescrição e caducidade”, dispunha o n.º 1 do artigo 10.º da citada lei: O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
O Decreto-lei n.º 381/97 de 30 de Dezembro, veio regular o regime de acesso à actividade de operador de redes públicas de telecomunicações e de prestador de serviço de telecomunicações de uso público, dispondo o n.º 4 do seu artigo 9.º: O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
A Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (art. 128.º), revogou o Decreto-Lei nº 381-A/97, de 30/12 (art. 127.º, n.º 1, d), dispondo no n.º 2 do artigo 127.º: O serviço de telefone é excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, e do Decreto-Lei n.º 195/99, de 8 de Junho.
Foi entretanto publicada a Lei 12/2008, de 26 de Fevereiro, que introduziu a primeira alteração à Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, reintroduzindo na alínea d) do n.º 2 do artigo 1.º a referência ao serviço de telefone, com outra designação: Serviço de comunicações electrónicas.
No que se reporta à prescrição, esta lei veio alterar o artigo 10.º, passando a ser este o teor do n.º 1 - O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação - e aditando o n.º 4, com a seguinte redacção: O prazo para a propositura da acção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.
O artigo 3.º da Lei n.º 12/2008 prevê expressamente, no que respeita à sua aplicação no tempo: A presente lei aplica-se às relações que subsistam à data da sua entrada em vigor.
O artigo 4.º prevê a entrada em vigor deste diploma no dia 26 de Maio de 2008, nestes termos: A presente lei entra em vigor 90 dias após a sua publicação.
Mais tarde foi publicada a Lei n.º 24/2008, de 2 de Junho, que quanto à produção de efeitos, refere expressamente no artigo 2.º: A presente lei produz efeitos com a entrada em vigor da Lei n.º 12/2008, de 26 de Fevereiro.
Esta lei introduz no n.º 4 do artigo 10.º (na redacção dada pela Lei 12/2008), uma ligeira alteração, que prevê como procedimento alternativo à “acção” intentada pelo prestador de serviços a “injunção”: O prazo para a propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.
Em síntese: entre 26 de Outubro de 2006[1] e 10 de Fevereiro de 2004, vigorou a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, em matéria de “serviço de telefone”, na sua versão originária; entre 11 de Fevereiro de 2004 e 25.05.2008, vigorou a Lei n.º 5/2004 de 10 de Fevereiro, que excluiu o serviço de telefone do âmbito de aplicação da Lei n.º 23/96 (n.º 2 do artigo 127.º); a partir de 26.05.2008, passou a vigorar nesta matéria, novamente, a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, por força da Lei n.º 12/2008, de 26 de Fevereiro, que introduziu a primeira alteração à Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, reintroduzindo na alínea d) do n.º 2 do artigo 1.º a referência ao serviço de telefone, com a designação de Serviço de comunicações electrónicas.

3.2. Os diversos prazos prescricionais
Foi entretanto proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça o Acórdão Uniformizador n.º 1/2010, proferido pelo STJ, no processo n.º 216/09.4YFLSB[2], que fixou a seguinte jurisprudência: Nos termos do disposto na redacção originária do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, e no n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 381-A/97, de 30 de Dezembro, o direito ao pagamento do preço de serviços de telefone móvel prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
Há que ter em conta, como expressamente se refere no Acórdão Uniformizador, “não valer para o presente recurso, nem a revogação do Decreto-Lei n.º 381-A/97, nem a exclusão do serviço de telefone do âmbito de aplicação da Lei n.º 23/96, ambas operadas pela Lei n.º 5/2004, nem as alterações pelas Leis n.ºs 12/2008 e 24/2008 de que a Lei n.º 23/96 foi objecto.”
No aresto em causa apreciava-se um fornecimento de serviços desactivado a 15 de Maio de 2002 por falta de pagamento, sendo aplicável a tal factualidade a “versão originária” da Lei n.º 23/96.
No entanto, a posição assumida pelo legislador na Lei n.º 12/2008 constituiu um argumento interpretativo relevante, como se lê na fundamentação:

«Sempre se observa, a este propósito, que a Lei n.º 12/2008 veio alterar o artigo 10.º da Lei n.º 23/96 esclarecendo (n.º 1) que «o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação» e que (n.º 4) «o prazo para a propositura da acção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço [...]»; a Lei n.º 24/2008 acrescentou a referência à injunção, a par da propositura da acção.

O legislador reiterou pois o entendimento de que não é exíguo o prazo de seis meses para a prescrição do direito ao recebimento do preço, contado desde a prestação dos serviços. Teve assim naturalmente em conta, a par do objectivo de protecção do utente, traduzida num regime que visa evitar a acumulação de dívidas de fácil contracção (cf. Acórdãos deste Supremo Tribunal de 5 de Junho de 2003 e de 13 de Maio de 2004 atrás citados), obrigando os prestadores de serviços a manter uma organização que permita a cobrança em momento próximo do correspondente consumo.»[3]
No que se reporta à natureza extintiva do prazo prescricional previsto no n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, esta matéria revela-se hoje pacífica na jurisprudência[4], não sendo esse entendimento posto em causa pela recorrente.
Regressando à questão a que se reportam os autos, as datas limite de pagamento das facturas em causa situam-se entre 18-01-2006 e 26-11-2008, tendo o requerimento injuntivo que deu causa à presente acção especial dado entrada no dia 29 de Outubro de 2008.
Diz a recorrente, nas conclusões 7.ª, 9.ª e 10.ª: Na vigência da Lei n.º 5/2004 não existia qualquer querela jurisprudencial ou doutrinal sobre o âmbito de aplicação da Lei n.º 23/96 (conc. 7.ª). Mesmo a entender-se que a Lei n.º 12/2008 assume o carácter de lei interpretativa, em alguns dos seus segmentos, nunca a mesma assumirá tal natureza face ao período em que vigorou a Lei n.º 5/2004 (conc. 9.ª). Relativamente ao serviço telefónico, a natureza interpretativa da Lei n.º 12/2008 apenas relevará até à data da entrada em vigor da Lei n.º 5/2004, pois que a partir desse momento o legislador é expresso em afirmar, no artigo 127.º da Lei n.º 5/2004, que “o serviço de telefone é excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho” (conc. 10.ª).
Conclui-se na sentença recorrida, que a Lei 12/2008 tem natureza interpretativa, daí decorrendo que o acórdão uniformizador se aplica às situações anteriores à sua publicação, e conclui-se:
«… todos os serviços alegados pela Autora que dizem respeito à prestação de serviços anterior a Abril de 2008 encontram-se prescritos, já que dúvidas não existem, actualmente, de que o pagamento do preço desses serviços prestados prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
Assim sendo, só as facturas que dizem respeito ao período de prestação de serviços de Abril de 2008 em diante não estão abrangidas pela prescrição, ou seja, devem ser pagas pela R. à A. as facturas com data de limite de pagamento de 20-05-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-05-2007, 20-06-2007 (…)[5]».
Vejamos.
Quanto à natureza interpretativa da Lei n.º 12/2008.
O artigo 3.º da Lei n.º 12/2008 prevê expressamente, no que respeita à sua aplicação no tempo: A presente lei aplica-se às relações que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Desta norma vem retirando a doutrina e a jurisprudência a conclusão de que se a lei em apreço tem natureza interpretativa.
Nesse sentido, veja-se a declaração de voto do Conselheiro Alves Velho, no acórdão do STJ, de 3.12.2009[6]: «… a solução encontrada no acórdão não poderia deixar de ser seguida perante a redacção introduzida no art.10° da Lei n.º 23/96 pela Lei n.º 12/2008, a qual, assumindo natureza claramente interpretativa (art. 3°), impõe a atribuição de um sentido vinculativo e retroactivamente aplicável à norma do actual n.º 1 do art. 10°, como foi entendido e decidido no acórdão de 16/10/2008...»[7].
Como referem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela[8], deve considerar-se lei interpretativa aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência pelos seus próprios meios poderia ter chegado.
De acordo com o n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil, a lei interpretativa considera-se integrada na lei interpretada, referindo os autores citados: «Isto quer dizer que retroage os seus efeitos até à entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada».
De acordo ainda com o disposto no n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil, ressalvam-se apenas “os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza.”
Como refere o Professor Baptista Machado[9]: «a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e a situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da LA [lei antiga] com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas».
O Professor Calvão da Silva[10] considera de certa forma redundante o Acórdão Uniformizador n.º 1/2010, face à natureza interpretativa das Leis 12/2008 e 24/2008, quando afirma: «… não sendo, na melhor técnica jurídica, necessário tirar acórdão uniformizador da jurisprudência, - dada a natureza interpretativa das Leis nºs. 12/2008 e 24/2008 no concernente à natureza extintiva da prescrição semestral consagrada ab origine no artº. 10 da Lei n.º 23/96 -, impõe-se reconhecer que o mesmo não prejudica em nada a solução legal, fixando por unanimidade – sublinhe-se, por unanimidade – uma das interpretações com que os interessados podiam e deviam contar, sem ofender expectativas jurídicas fundadas”.
Na citação que acabamos de transcrever, o Professor citado restringe a natureza interpretativa das Leis nºs. 12/2008 e 24/2008, à natureza extintiva da prescrição semestral consagrada desde a versão originária do artigo 10.º da Lei n.º 23/96.
É este o âmbito e o alcance.
A natureza interpretativa da Lei 12/2008 e as suas consequências (retroacção dos efeitos à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/96), não podem pôr em causa os efeitos produzidos pelo diploma legal que vigorou numa data intermédia à entrada em vigor das referidas leis – a Lei n.º 5/2004 de 10 de Fevereiro, que esteve em vigor entre 11.02.2004 e 25.05.2008.
Este diploma excluiu durante a sua vigência o serviço de telefone do âmbito de aplicação da Lei n.º 23/96 (n.º 2 do artigo 127.º), pelo que nesse segmento temporal vigorou o regime prescricional previsto na lei geral, no artigo 310.º, alínea g), do Código Civil, que fixa tal prescrição em 5 anos.
No entanto, com a entrada em vigor partir de 26.05.2008, da Lei n.º 12/2008, de 26 de Fevereiro, o prazo prescricional passou a ser de 6 meses, contando-se a partir da data da prestação do serviço.
Como se referiu, esta Lei introduziu a primeira alteração à Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, reintroduzindo na alínea d) do n.º 2 do artigo 1.º a referência ao serviço de telefone, com a designação de Serviço de comunicações electrónicas, alterou o artigo 10.º, passando a ser este o teor do n.º 1 - O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação - e aditou ao artigo 10.º o n.º 4, com a seguinte redacção: O prazo para a propositura da acção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.
Em conclusão: entre 26 de Outubro de 2006 (data de entrada em vigor da Lei n.º 23/96) e 10 de Fevereiro de 2004, o prazo prescricional era de 6 meses; entre 11 de Fevereiro de 2004 (data de entrada em vigor da Lei n.º 5/2004) e 25.05.2008, o prazo prescricional passou a ser o previsto na lei geral – 5 anos; a partir de 26.05.2008 (data de entrada em vigor da Lei n.º 12/2008), o prazo prescricional voltou a ser de seis meses (sempre contado após a prestação do serviço).
No entanto, na alteração do prazo decorrente da entrada em vigor da Lei n.º 12/2008 (que reduziu o prazo prescricional, de 5 anos para 6 meses), há que aplicar a regra enunciada no n.º 1 do artigo 297.º do Código Civil: A lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar.
Em comentário à norma transcrita, os Professores Pires de Lima e Antunes Varela enunciam a seguinte hipótese exemplificativa[11]: “O prazo era de cinco anos e passou a ser de dois. Contam-se dois anos a partir da nova lei”.
Na situação sub iudice, o prazo de cinco anos passou a ser semestral, pelo que se contarão os seis meses a partir da entrada em vigor da Lei n.º 12/2008, de 26 de Fevereiro, ou seja, a partir de 26.05.2008.
Foi também este o entendimento expresso no acórdão desta Relação, de 9.11.2010[12], bem como no acórdão da Relação do Porto, de 15.10.2009[13]
Decorre do exposto que as facturas referentes às datas situadas entre 18-01-2006 e Maio de 2008 (serviços prestados na vigência da Lei n.º 5/2004 de 10 de Fevereiro), que prescreviam 5 anos após a prestação dos serviços (respectivamente entre Janeiro de 2011 e Maio de 2013), passaram a prescrever em 26 de Novembro de 2008 (seis meses após a entrada em vigor da Lei n.º 12/2008).
Considerando que o requerimento injuntivo que deu causa à presente acção especial deu entrada no dia 29 de Outubro de 2008, concluímos que relativamente a tais facturas não ocorreu a prescrição.
Quanto às facturas posteriores a Maio de 2008, face à referida data de entrada do requerimento injuntivo, concluímos que, por maioria de razão, também não ocorreu a prescrição (à data de entrada do requerimento não haviam decorrido os seis meses previstos na Lei n.º 23/96, com a redacção dada pela Lei n.º 12/2008).
Os valores dos serviços que se provou terem sido prestados pela autora à ré, constam das facturas juntas aos autos, perfazendo o montante global peticionado a título de capital em dívida: € 8.525,98.
Quanto aos juros, ficou decidido na sentença, não tendo sido objecto de impugnação neste segmento, que seriam os “moratórios vencidos e vincendos a partir das datas de vencimento das aludidas facturas, contados às taxas legais comerciais em vigor”.
Decorre de todo o exposto a procedência do recurso, devendo em consequência ser revogada a decisão recorrida, e condenada a ré a pagar à autora o referido montante acrescido de juros.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente procedente o recurso, ao qual se concede provimento, e, em consequência, em revogar a sentença recorrida, condenando a ré a pagar à autora a título de capital em dívida, a quantia de € 8.525,98, acrescida de juros de mora nos termos definidos na sentença.
Custas do recurso pela Apelada.
                                                       
                                                          *

Carlos Querido ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins

[1] Face ao disposto no artigo 14.º da citada Lei, que dispõe: «O presente diploma entra em vigor 90 dias após a sua publicação, com excepção do disposto nos artigos 5.º, n.º 5, e 13.º, n.º 2.».
[2] Publicado no DR, 1ª. Série, nº. 14, de 21 de Janeiro de 2010, p. 218 e seguintes

[3] Já no acórdão do STJ, de 16.10.2008, proferido no Proc. n.º 08A2610, se aflorava o mesmo entendimento: “No que toca a tais questões, resulta nítida, desde logo, a natureza interpretativa das normas dos nºs 1, 3 e 4 do art. 10º, já que, optando claramente por uma das posições jurisprudenciais e doutrinárias – a da prescrição extintiva do direito de exigir o preço no prazo de seis meses (e não apenas de apresentar a factura) -, acolheu esse entendimento, havendo que entender-se que quis pôr, e pôs, retroactivamente, fim às divergências interpretativas.

É o que se dispõe no art. 13º C. Civil, ao estabelecer que a lei interpretativa se integra na lei interpretada, com ressalva dos efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação ou por sentença transitada em julgado.
Estamos, pois, perante uma interpretação autêntica, vinculativa e retroactivamente aplicável do n.º 1 do preceito com o conteúdo e alcance agora fixados nos nºs 3 e 4. (…)

Conclui-se, pois, que à natureza interpretativa dada pela Lei n.º 12/2008 (ao que interessa mantida pela redacção dada pela Lei n.º 24/2008, de 02/6) ao art. 10º da Lei n.º 23/96, não escapa a norma do seu n.º 3 (cfr., neste sentido, CALVÃO DA SILVA, “Serviços Públicos Essenciais (…)”, RLJ, A 137º, n.º 3948-179).”
[4] Vide acórdão proferido no Processo n.º 216/09.4YFLSB, que uniformizou jurisprudência nos termos já referidos, acessível em http://www.dgsi.pt, e publicado no DR, 1ª. Série, nº. 14, de 21 de Janeiro de 2010, p. 218 e seguintes. No mesmo sentido, vejam-se: acórdão da RP, de 7.10.2008, Proc. nº 3758/08; acórdão da RP, de 18.05.2004, Proc. 0422182; e acórdão RP, de 15.10.2009, Proc. 3883/07.0TJVNF.P1, todos acessíveis em http://www.dgsi.pt.
[5] Segue-se a especificação completa das facturas constantes do elenco dos factos provados, até às facturas referentes a 26-11-2008. É manifesta a contradição, na medida em que a M.ª Juíza começa por afirmar que se encontram prescritas as facturas referentes a todos os serviços anteriores a Abril de 2008, e acaba por condenar a ré no pagamento de todas as facturas posteriores a 20-05-2007.
[6] Proferido no Processo n.º 216/09.4YFLSB, que uniformizou jurisprudência nos termos já referidos, acessível em http://www.dgsi.pt, e publicado no DR, 1ª. Série, nº. 14, de 21 de Janeiro de 2010, p. 218 e seguintes.
[7] No mesmo sentido, vide o Professor Calvão da Silva, RLJ, 139, Março-Abril de 2010, Coimbra Editora, pág. 251.
[8] Citando o Professor Baptista Machado, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, pág. 62.
[9] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 18.ª Reimpressão, Almedina, pág. 246.
[10] RLJ, 139, Março-Abril de 2010, Coimbra Editora, pág. 251.
[11] Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, pág. 271.
[12] Proferido no Processo n.º 439405/08.6YIPRT.C1, acessível em http://www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê: “O direito ao recebimento do preço do serviço de telefone móvel prestado prescrevia no prazo de 6 meses, face à Lei nº 23/96, passando depois a prescrever em 5 anos, face à Lei nº5/2004, de 10.2, e de novo no prazo de 6 meses, face à Lei nº12/2008, de 26.2 (que alterou aquela Lei 23/96). Na contagem deste último prazo de prescrição deve levar-se em conta o disposto no art. 297º, nº 1, do CC, que estabelece que o prazo mais curto fixado na lei nova é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que segundo a lei antiga falte menos tempo para o prazo se completar”

[13] Proferido no Processo n.º 3883/07.0TJVNF.P1, acessível em http://www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê: “III - Quanto aos serviços prestados entre 11.02.04 e 26.05.08, por força do art. 127º da Lei nº 5/04, de 10.02, o prazo prescricional relativo ao serviço de telefone fixo ou móvel é de 5 anos, nos termos do art. 310º, al. g), do CC. IV - Porém, ao abrigo do disposto no art. 3º da Lei nº 12/08, de 26.02, e do art. 12º, nº2, última parte, do CC, aquele prazo de prescrição poderá ser o de 6 meses previsto na lei nova, nas relações que subsistam à data da sua entrada em vigor (26.05.08), nos termos que decorrem da aplicação do art. 297º, nº1, do CC.”