Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
527/11.9TBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
CONTROLO JUDICIAL
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
AUTOR
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 712º CPC¸1311º DO C.CIVIL.
Sumário: I – De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo os vários enquadramentos jurídicos possíveis do seu objecto.

II - Na acção de reivindicação cabe ao demandante a prova da titularidade pelo autor do direito real de gozo alegado e a detenção ou a posse pelo réu da coisa reivindicada, competindo ao demandado a prova da titularidade de qualquer direito que lhe permita recusar a entrega.

III - A presunção de titularidade do direito real alegado decorrente do registo não compreende, como regra, os elementos da descrição – mas apenas o que resulta do facto inscrito, tal como foi registado; abrange, porém, os elementos acessórios que sejam indispensáveis à identificação ou individualização do prédio, sob pena de não se saber sobre que coisa incide o facto inscrito.

IV - Quando a existência do dano não ofereça dúvida mas se desconhece o respectivo quantum, a única solução admissível é a condenação do responsável na obrigação de o indemnizar – e a remessa da fixação dessa indemnização para momento posterior.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

M… pediu ao Sr. Juiz de Direito do Tribunal Judicial da Comarca do Fundão que condenasse F…: 

a) A reconhecer que é o único e legitimo dono e possuidor do rés-do-chão direito, destinado a habitação, composto por duas salas, cozinha, três quartos, duas casas de banho, despensa e cinco divisões no sótão, destinadas a arrecadações, com os nºs 1 a 5 e logradouro com 44 m2, do prédio, constituído em propriedade horizontal, sito na Rua …, com inscrição a seu favor;

b) A entregar-lhe, livres e desocupados, os sótãos que tem em seu poder, e que são parte integrantes do prédio referido em a);

c) A pagar-lhe a quantia de € 10,00 diários, a partir da citação, até que lhe entregue, livres e inteiramente desocupados, os sótãos.

Fundamentou estas pretensões no facto de ser dono daquele rés-do-chão, de o 2º andar esquerdo do mesmo prédio ter estado arrendado, durante muitos anos, à mãe da ré, que sempre utilizou os sótãos, com consentimento e autorização dos senhorios, de a ré, por morte da mãe, ter sucedido no arrendamento da fracção, até que, em 24 de Novembro de 2006, a adquiriu, por compra, de, imediatamente a seguir à compra, ter instado a ré a desocupar e entregar as chaves dos sótãos, 1 a 5, que tinha em seu poder, entrega que a ré protelou, e de ter pretender arrendar o rés-do-chão e depositar as mobílias que nele se encontram nos sótãos, pelo que, mais uma vez, instou a ré a entregar-lhe as chaves dos sótãos, tendo a ré referido que não lhas entregava por ter adquirido, senão todos, alguns dos sótãos, por usucapião, conduta que lhe está a causar um prejuízo de € 10,00, dado que o impede de transferir o mobiliário que tem no rés-do-chão para os sótãos, para o poder arrendar.

A ré defendeu-se alegando que desde o início do arrendamento, em Outubro de 1976, a mãe, e depois da morte desta, em final de Agosto de 2003, ela mesma, ocupam e utilizam duas arrecadações existentes no sótão do prédio, uma cada extremidade do sótão, no convencimento de que faziam parte do arrendamento, que quando negociou e comprou fracção, fê-lo no convencimento de aquelas duas arrecadações faziam parte dela, sabendo os intervenientes na escritura que estava convencida que as duas arrecadações que já então ocupava fazia parte da fracção adquirida e que tal circunstância era essencial para si, e que, caso venha a demonstrar-se que as duas arrecadações que ocupa pertencem ao autor, a compra e venda que efectuou é susceptível, por erro sobre os motivos determinantes da sua vontade e as circunstâncias que constituem a base do negócio, de modificação.

Seleccionada a matéria de facto, procedeu-se, com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente à audiência de discussão e julgamento, no terminus da qual se decidiu, sem reclamação, a matéria de facto controvertida.

A sentença final julgou a acção procedente e condenou a ré:

a) Reconhecer que o autor é o único e legítimo dono e possuidor do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial;

b) Entregar-lhe, livres e inteiramente desocupados, os sótãos que tem em seu poder (com os n.ºs 1 a 5) e que são partes componentes do prédio do autor referido na alínea a);

c) Pagar ao autor a quantia de 10 € diários a partir da citação e até que lhe entregue, livres e inteiramente desocupados, os referidos sótãos.

É esta sentença que a ré impugna no recurso ordinário de apelação no qual pede a revogação dela.

A ré encerrou a sua alegação com estas conclusões:

Na resposta, o autor – depois de indicar como depoimentos que infirmam as conclusões da recorrente exactamente os mesmos em que a última funda a impugnação da decisão da questão de facto - concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

2.1. Foi seleccionado, logo na fase da condensação, para a factualidade assente, este enunciado de facto:

2.5. O Tribunal de que provém o recurso julgou provados, no seu conjunto, os factos seguintes:

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC de 1961).

A recorrente pede, na última conclusão com que rematou a sua alegação, além da modificação da decisão do ponto de facto inserto na base instrutória sob o nº 5, a modificação da compra e venda celebrada em 24/11/2006, nos termos do preceituado nos artºs 251 e 252 do Código Civil.

Entre nós, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida nas exactas condições em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, pelo que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre pedidos que não foram formulados na instância recorrida: o recurso ordinário é um instrumento de impugnação de decisões judiciais – e não meio de julgamento de questões novas, pelo que o recurso interposto para a Relação visa, normalmente, apreciar o pedido formulado na 1ª instância, com a matéria de facto nela alegada.

A recorrente, logo no articulado em que deduziu a sua defesa, alegou a susceptibilidade da modificação do contrato de compra e venda através do qual adquiriu, ao recorrido e outros, a sua fracção autónoma, nos termos do preceituado nos artºs 252 e 252 do Código Civil, caso se demonstrasse que as duas arrecadações que ocupa pertencem ao apelante – mas não formulou, com base nessa alegação, qualquer pedido.

Ora, não tendo sido formulado pela recorrente, logo na instância recorrida, com fundamento, designadamente em erro sobre a base do negócio, qualquer pedido – reconvencional - de modificação do apontado contrato de troca, o pedido de modificação desse mesmo contrato que deduziu na sua alegação de recurso é um pedido novo, relativamente ao qual esta Relação, pelas razões apontadas, não pode ser chamada a pronunciar-se.

De resto, tendo o contrato de compra e venda sido concluído, pelo lado do vendedor, para além do apelado, por outras pessoas, que não estão em juízo, sempre se imporia a absolvição daquele da respectiva instância, por preterição do litisconsórcio necessário, dado que – ao menos segundo a orientação jurisprudencial – quer por razões de compatibilidade lógico-jurídica, quer por motivos de coerência prática, se impunha a demanda, em litisconsórcio natural, de todos os intervenientes no negócio (artºs 28 nºs 1 e 2 do CPC de 1961 e 33 nºs 1 a 3 do NCPC)[1].

Maneira que, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e da alegação da recorrente e do recorrido, a questão concreta controversa que importa resolver é a de saber se aquela sentença se encontra ferida com o vício da nulidade substancial e, em qualquer caso, se deve ser revogada e substituída por outra que absolva a apelante do pedido.

 Estas questões trazem naturalmente implicadas a causa de nulidade da decisão representada pelo excesso de pronúncia e o error in iudicando da matéria de facto, tanto por erro sobre o objecto da prova, como por equívoco na apreciação ou valoração dessa mesma prova.

3.2. Nulidade substancial da decisão impugnada.

Segundo a apelante, a sentença recorrida padece do vício grave da nulidade. Este valor negativo teria por etiologia uma outra nulidade: a decorrente da resposta excessiva dada pelo decisor de facto da 1ª instância ao ponto de facto incluso na base da prova sob o nº 4.

Ainda que – ad argumentam – se deva entender que as respostas excessivas do tribunal da audiência aos pontos de facto controvertidos se devam ter por nulas por excesso de pronúncia, esse vício não constitui causa de nulidade da sentença.

De harmonia com a lei adjectiva vigente ao tempo do proferimento da decisão da matéria e facto e da sentença final, o quadro dos valores negativos da sentença estava pensado para um sistema de cisão entre a decisão da matéria e aquela sentença (artºs 653 nº 2, 658 e 659 nºs 1 a 3 do CPC de 1961).

Num contexto de um sistema de césure entre o julgamento da matéria de facto e a sentença, há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último acto decisório[2].

Realmente a decisão da matéria de facto está sujeito a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que correspondia um modo diferente de controlo e de impugnação: aquela decisão era impugnável por meio de reclamação, acto contínuo à sua publicação, e não era autonomamente recorrível, i.e., apenas podendo ser impugnada no recurso que for interposto da sentença final, podendo, neste caso o controlo sobre o julgamento da matéria de facto ser feito pela Relação, nos termos gerais (artºs 653 nº 4, 2ª parte, e 712 do CPC de 1961). Os vícios da decisão da matéria de facto não constituem causa de nulidade da sentença, antes dão lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de controlo da decisão dessa mesma matéria (artº 712 nº 4 do CPC de 1961).

Não há, pois, o mínimo motivo para estigmatizar a sentença impugnada com o ferrete da nulidade.

3.3. Impugnação da decisão da matéria de facto.

O objecto fundamental da impugnação é constituído pelo erro de julgamento da decisão da matéria de facto. Erro que, segundo a apelante, radica em duas causas diversas: num erro sobre o objecto da prova; num erro na valoração da prova.

No ver da apelante, o tribunal da 1ª instância errou, desde logo, na selecção da base da instrutória, dado que, na errada consideração de que um facto não estava carecido de prova, não o incluiu no objecto da prova. Estaria nessas condições o facto seleccionado para a factualidade assente sob a alínea D) que, por ter sido objecto de impugnação expressa, não poderia ter sido logo considerado provado. Além disso, aquele mesmo tribunal incorreu, no julgamento de alguns dos pontos de facto controvertidos, num error in iudicando, por erro na valoração das provas.

Importa, portanto, antes de mais, objectivar os parâmetros e o contexto em que esta Relação actua os seus poderes de controlo sobre a decisão da questão de facto do tribunal de que provém o recurso.

3.3.1. Parâmetros de controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1ª instância.

O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1, a) e b), e 2 do CPC de 1961).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando[3]. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Depois, essa reponderação tem por finalidade e é actuada sob o signo dos parâmetros seguintes:

a) Da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, a absoluta ou ontológica, matemática ou científica (artº 341 do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (artº 655 nº 1 do CPC, do CPC aprovado pelo Decreto-Lei nº 44 129, de 28 de Dezembro, vigente ao tempo do proferimento da decisão impugnada e 607 nº 5 do CPC em vigor).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional;

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de argumento capaz de se impor aos outros;

e) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference. Os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[4];
f) O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis tem menor probabilidade de não ser a correcta.

g) O controlo pela Relação da decisão da matéria de facto não é actuado por imediação, i.e., através de numa percepção própria do material que lhe serve de base, mas através da audição de um registo sonoro ou da leitura, fria e inexpressiva, de transcrições, que torna indisponíveis todos os relevantíssimos momentos não verbais da comunicação.

Além disso, o controlo da decisão da matéria de facto da 1ª instância deve conformar-se, de um aspecto, com o princípio da utilidade dos actos processuais, e de, outro, com o princípio da disponibilidade privada do objecto do processo.

De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC)[5].

Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação.

Portanto, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção. E relativamente aos factos que correspondam aos possíveis enquadramentos jurídicos da causa, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos principais ou essenciais e não sobre os instrumentais. È que se o facto principal for julgado provado ou não provado, os respectivos factos instrumentais tornam-se irrelevantes.

3.3.2. Reponderação da decisão da matéria de facto.

Logo no momento da selecção da matéria de facto, o tribunal de que provém o recurso julgou assente este facto, alegado pelo autor: a mãe da recorrente sempre utilizou o sótão referido em A), com autorização e conhecimento dos respectivos senhorios (al. D). A recorrente acha que tal facto, por ter sido impugnado expressamente, é controvertido devendo, consequentemente, constar da base instrutória. Quanto, ao carácter controvertido desse facto, a recorrente tem realmente razão.

A consideração, pelo tribunal, de que um facto deve considerar-se assente, v.g., por ter sido admitido por acordo, não significa, efectivamente, que ele não seja controvertido. Corolário desta asserção é a possibilidade de ampliação da base ordenada pelo tribunal da audiência final, pela Relação ou até pelo Supremo (artºs 650 nº 2 f), 712 nº 4 e 729 nº 3 do CPC de 1961 e 662 nº 2 c) e 3 c) e 682 nº 3 do NCPC).

Na contestação, o réu pode defender-se por impugnação, directa, ou de facto, e indirecta ou de direito, ou ainda qualificada ou per positionem. A impugnação directa ou de facto consiste na contradição pelo réu dos articulados na petição ou no requerimento inicial (artº 487 nº 1 e 2, 1ª parte, do CPC de 1961, e 571 nº 1 e 2, 2ª parte, do NCPC).

                A impugnação directa deve abranger os factos principais articulados pelo autor na petição inicial; se isso não suceder, consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados (artº 490 nºs 1 e 2 do CPC, do CPC de 1961 e 574 nºs 1 e 2, 1ª parte, do NCPC). Essa admissão dispensa a prova do facto, porque ele não se torna controvertido e, por isso, não integra o objecto da prova.

                Um ponto espinhoso respeita ao quantum dessa impugnação, i.e., à suficiência dessa impugnação. De forma deliberadamente simplificadora, pode dizer-se que esse quantum exige a exposição pelo réu dos motivos da sua oposição ao autor e das razões da controvérsia entre as partes, mas não exige a impugnação de cada facto alegado pelo autor: para que o ónus da impugnação se tenha por cumprido, basta que o réu apresente uma versão contraposta à do autor.

                Um outro motivo que determina que a falta de impugnação não implique a admissão por acordo do facto respeita á incompatibilidade dessa admissão com a defesa considerada no seu conjunto (artº 490 nº 2 do CPC de 1961, e 574 nº 2, 1ª parte, do NCPC). Nesta hipótese, o facto não é expressamente impugnado, mas a sua impugnação é desnecessária ou supérflua pela impugnação de outros factos: é o que ocorre sempre que o facto impugnado seja incompatível com qualquer outro que seja impugnado. Se, por exemplo, o réu impugnar o recebimento de determinados fornecimentos de mercadorias, há que considerar impugnadas as verbas respeitantes a cada um deles[6].

                No caso, o autor alegou, no artº 4º da petição inicial, que a mãe da recorrente sempre utilizou os sótãos com autorização e consentimento dos senhorios, mas na contestação a ré contrapôs que a utilização de – apenas - duas arrecadações, foi feita no convencimento de que estavam afectas à fracção de que aquela era arrendatária e que faziam parte do arrendamento.

                O simples confronto destas alegações, mostra que, na verdade, as partes divergem, no plano de facto, quanto ao título à sombra do qual a mãe da recorrente utilizava os espaços: segundo o primeiro, essa utilização decorria de mera tolerância ou de comodato precário do senhorio; de harmonia com a recorrente, esse uso radicava no direito de gozo emergente do contrato de arrendamento – ou, mais exactamente, na convicção da afectação daqueles espaços à fracção arrendada e da sua integração no objecto mediato do contrato de arrendamento.

                Nestas condições, aquela alegação do autor deve ter-se por impugnada e o enunciado correspondente por controvertido. Ergo, deveria ter seleccionado, não para a factualidade assente – mas para a base instrutória (artº 511 nº 1 do CPC de 1961).

                A consequência disposta na lei para este erro sobre o objecto da prova é, em princípio, a ampliação da base instrutória, de modo a que o facto seja sujeito ao exercício dessa prova, com a consequente cassação da decisão da matéria de facto e, correspondentemente, da sentença final (artº 712 nº 4 do CPC de 1961 e 662 nº 2 c) e 3 c) do NCPC). Mas uma tal consequência só deve ser admitida se o facto for relevante, segundo os vários enquadramentos jurídicos possíveis, para a decisão da causa. Não é o caso.

                Como adiante melhor se detalhará, a forma de tutela jurisdicional enunciada pelo autor resolve-se numa acção de revindicação – dado que é pedido o reconhecimento do direito real de propriedade sobre uma – parte – de coisa corpórea e a condenação do réu na sua entrega – competindo, por isso, ao demandado a prova de que é titular de qualquer direito, real ou pessoal, oponível ao autor, que legitime a recusa da restituição da coisa cuja entrega lhe é pedida (artºs 1311 nºs 1 e 2 do Código Civil).

                Portanto, para que a acção improceda – mesmo que o autor prove a titularidade do direito real alegado e a detenção da coisa pelo réu – é necessário que o último prove que, no momento em que lhe é pedida a restituição daquela coisa, tem um qualquer direito que lhe faculte a detenção dela. A esta luz o que releva para a decisão da causa, segundo a única solução plausível da questão de direito, não é saber a que título é que a antecessora da recorrente detinha ou utilizava a coisa – mas se a recorrente, ela mesma, dispõe, na actualidade, de um título que torne lícita a recusa da restituição exigida pelo autor. De resto, deve ter-se presente que o contrato de arrendamento alegado pela recorrente se extinguiu, por confusão, com a concentração, na mesma pessoa, das qualidades de senhorio e de arrendatário, por força da aquisição, pela recorrente, da fracção que constitui o objecto mediato daquele contrato (artº 868 do Código Civil).

                O apontado erro sobre o objecto da prova deve, pois, ter-se por irrelevante.

Perguntava-se no ponto 5 da base instrutória se aquando do referido em B) – aquisição pela recorrente, por compra, em 24 de Novembro de 2006 – da sua fracção - e D) – utilização pela mãe do sótão - a ré e a sua mãe, enquanto foi viva, estavam plenamente convencidas de que o sótão fazia parte integrante daquela fracção. Este enunciado obteve, na fase da audiência, esta resposta: não provado.

                A recorrente é do parecer de que a resposta exacta é a de provado.

                Aquele ponto tem por objecto este facto puramente psicológico: a convicção da recorrente e da mãe de que o sótão constituía parte integrante da fracção originariamente arrendada e posteriormente adquirida pela apelante.

                Todavia, como é bem de ver, o reivindicado não se livra da obrigação de restituição da coisa cuja entrega lhe é pedida pelo demandante, através da prova da simples convicção de que tem o direito de gozar aquela coisa, designadamente por ser titular do direito real de propriedade sobre ela: é necessária a prova de que tem, efectivamente, um qualquer direito que lhe faculte a detenção dessa mesma coisa.

                E a verdade é que, mesmo na contestação, a recorrente nunca alegou, de forma clara e inequívoca, que o sótão constituía parte integrante da fracção e, portanto, objecto mediato do contrato de arrendamento e, posteriormente, do contrato de compra e venda. A única coisa que realmente a recorrente alegou foi o convencimento, seu e da sua mãe, dessa integração. Aliás, a recorrente afirmou, expressamente, na contestação, que nem sequer se preocupou em verificar se as arrecadações faziam ou não parte da fracção.

                Como quer que seja, exacto é, decerto, que para deter a restituição da coisa ou o dever de reparar o dano causado ao demandante com a violação do direito real alegado, não é suficiente que o demandado prove a convicção de que tem o direito de reter aquela coisa: exige-se, como se notou, a prova da titularidade actual desse direito.

                Nestas condições, a reponderação da exactidão do julgamento daquele ponto de facto é, de todo inútil, visto que ainda que se prove o convencimento alegado, o facto correspondente é inidóneo para fundamentar a recusa da restituição da coisa cuja entrega é pedida pelo reivindicante ou a constituição do demandado no dever de reparar o dano causado com a violação do direito real do demandante.

                De resto, ainda que, ex-adverso, o contrário se devesse entender, a resposta de não provado encontrado, pelo decisor da 1ª instância, para o ponto de facto considerado, sempre se deveria ter por exacta. Realmente, as testemunhas … – irmãs do autor – foram acordes na afirmação de que a primitiva proprietária e senhoria – a tia – emprestara à recorrente apenas parte do sótão e que aquela, originariamente, interpelada para proceder à entrega, reconheceu o dever de restituir o sótão – dever que também admitiu na presença da testemunha … - restituição que, porém, foi protelando até acabar por a recusar, dizendo que o sótão era dela, por usucapião, ou qualquer coisa assim – para usar a expressão da segunda das apontadas testemunhas. Do mesmo modo, a testemunha …., interrogada pela Sra. Juíza de Direito, admitiu também, que aquilo devia ser um empréstimo vitalício.

O empréstimo do sótão – e só de parte dele - asseverado pelas apontadas testemunhas – que segundo a testemunha …, ocorreu em momento distinto da ocupação da fracção - e a anuência originária da recorrente na sua devolução são, numa avaliação prudente da prova – de todo incompatíveis com a convicção da apelante de que o sótão fazia parte da sua fracção. Depõe no mesmo sentido, a ausência, na escritura pública de aquisição da fracção, de qualquer menção, ao sótão ou qualquer arrecadação.

                É exacto que no impresso de avaliação bancária da fracção, produzida por …, que se consideraram na avaliação duas arrecadações no sótão, por a propoente ter informado que apenas pertencem à fracção em avaliação, mas que aquelas não se encontram descritas na caderneta predial urbana, devendo ser apresentado comprovativo desta situação.

                E a verdade é que não foi produzido um qualquer documento – maxime o título constitutivo da propriedade horizontal – que inculque que a fracção da recorrente é composta por qualquer espaço no sótão. Inversamente, a prova documental produzida – maxime a certidão da descrição predial da fracção do autor - convence da integração, naquela fracção, dos espaços no sótão cuja restituição reclama na acção.

Nem convence do contrário, o depoimento da testemunha … – que vive no rés-do-chão esquerdo do prédio há mais de vinte anos – que, apesar de ter declarado que ela – a recorrente – teria duas arrecadações, asseverou – como já se fez notar - que aquilo devia ser um empréstimo vitalício.

                Para o ponto de facto inserto na base da prova sob 1º - no qual se quesitava se imediatamente a seguir à data da celebração da escritura pública referida em B), o autor instou a ré no sentido de desocupar e de lhe entregar as chaves do sótão com os n.ºs 1 a 5, que tinha em seu poder – foi encontrada, pelo decisor da 1ª instância, esta resposta: provado que após a celebração da escritura pública referida em B), o autor instou a ré no sentido de desocupar e de lhe entregar as chaves do sótão com os n.ºs 1 a 5, que tinha em seu poder.

O princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo – que é um dos princípios em que se desdobra o princípio do dispositivo – determina que incumbe às partes a definição deste objecto e a realização da prova dos respectivos factos. Ao autor cabe, por isso, definir o pedido e invocar a causa de pedir, não sendo licito ao tribunal, como consequência do funcionamento deste princípio, conhecer de pedido diverso do formulado ou de causa de pedir diferente da invocada (artºs 467 nº 1, als. c) e d), 661 nº 1 e 664, 2ª parte, do CPC do CPC de 1961 e 5 nº 1 e 552 nº 1 d) e e) do NCPC). Como complemento desta delimitação privada do objecto processual, incumbe às partes a realização da prova dos factos incluídos nesse objecto (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Quanto à disponibilidade dos factos necessários para a decisão do tribunal, a regra é esta: o tribunal deve conhecer de todos os factos alegados pelas partes no momento processual adequado, sejam eles factos principais ou acessórios; o tribunal pode ainda conhecer oficiosamente de certos factos acessórios. Portanto, em regra, o tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelas partes – iudex, secundum allehata e probata judicare debet, non secundum conscientiam suam (artº 664, in fine, do CPC de 1961 e 5 nº 1 do NCPC em vigor).

É às partes que cumpre alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir ou que fundamentam a excepção (artº 264 nº 1 do CPC do CPC de 1961, e 5 nº 1 do NCPC). No tocante aos factos essenciais vale, por inteiro, o princípio da disponibilidade objectiva: o tribunal não os pode considerar se não foram alegados pelas partes.

                De outro aspecto, seja qual for, em definitivo, a solução exacta para o problema das respostas restritivas – i.e., que declaram provado menos de que o alegado – e explicativas – i.e., que julgam provada a causa do facto declarado assente – no tocante às respostas excessivas ou exorbitantes, i.e., aquelas que dão como provado mais do que era objecto da prova ou coisa diversa do que se perguntava, a única doutrina admissível é a de as ter por não escritas, e, logo, por inexistentes[7]. O tribunal da audiência só pode conhecer da matéria de facto abrangida pelos pontos insertos na base instrutória e não pode responder ao que lhe não foi perguntado. Em boa lógica, impõe-se que não se tomem em consideração, pelo menos, as respostas exorbitantes, isto é, as respostas que excedam ou ultrapassem os factos compreendidos nos quesitos.

                Assim, perguntando-se, de harmonia com a alegação do autor, se este sofria, com a privação da posse do sótão, um prejuízo diário de € 10,00, é claramente excessiva a resposta que dê como provado um prejuízo mensal de, pelo menos, € 350,00. Assim, de harmonia com a lei adjectiva vigente ao tempo do julgamento da matéria de facto, esta resposta, na parte em que excede a pergunta, deve ter-se por não escrita – sendo indiferente que, na sentença final, se tenha limitado a condenação da recorrente ao pedido do apelado (artº artº 646 nº 4, por interpretação extensiva, do CPC de 1961).

Todavia, para além do carácter excessivo da resposta – que se repara, pela simples redução do que se respondeu aquilo que se perguntava – a questão mais delicada que ela coloca é de saber se pode julgar-se provado, em face das provas disponíveis – constituídas exclusivamente pelos depoimentos das testemunhas – que o autor sofre, por virtude da privação do espaço do sótão, um dano de € 10,00 diários.

Sem violação de qualquer critério prudencial de avaliação da prova, pode dar-se como assente que o autor sofre com aquele facto ilícito um dano – entendido como a supressão de uma situação favorável tutelada pelo direito – dado que a privação daquele espaço excluiu uma das faculdades que integram o conteúdo do direito real alegado: o de fruir a coisa corpórea que constitui o seu objecto mediato. Mas temos por certo, que a prova disponível é insuficiente para julgar provado que esse dano se cifra em € 10,00 diários.

Em primeiro lugar, o facto da recorrente resume-se em tornar indisponível, para o apelado, o uso do espaço do sótão – mas não da fracção de aquele espaço faz parte. E a propósito daquele espaço, a única coisa que apurou – por só isso ter sido alegado – é que se trata de 5 divisões, destinadas a arrecadação, ignorando-se por inteiro, por exemplo, a respectiva área e capacidade e sua aptidão para nelas se guardar o mobiliário existente na fracção – mobiliário cuja natureza e quantidade também não foram sequer alegadas pelo recorrido.

Resta, porém, determinar a relevância desta modificação da decisão de facto, para o enquadramento jurídico do objecto da causa.

3.4. Concretização.

Em face do pedido, i.e., da forma de tutela jurisdicional requerida pelo autor para o direito subjectivo absoluto alegado – o direito real de propriedade – tem-se por certo que estamos face a uma acção de reivindicação. Não de toda a coisa atingida pelo direito real alegado – a fracção autónoma de edifício - mas de parte dela: o sótão.

A acção de reivindicação, de nítida feição condenatória, compreende e exige dois pedidos concomitantes – o pedido de reconhecimento de determinado direito; o pedido de entrega da coisa objecto desse direito – e a sua causa de pedir é o facto de que derive o direito real alegado (artº 1311 nº 1 do Código Civil, 4 nºs 1 e 2 a) e 498 nº 4 do CPC)[8]. Pedidos a que se soma, no caso, em cumulação real, como a lei do processo permite, o pedido de indemnização do dano representado pelo valor de uso o demando dela faz (artº 470 do CPC de 1961)[9].

Reconhecendo-se ao reivindicante o direito real de propriedade alegado, a restituição da coisa corpórea que constitui o seu objecto mediato só pode ser-lhe recusada nos casos expressamente previstos na lei (artº 1311 nº 2 do Código Civil).

Como é intuitivo, a procedência de um pedido de reivindicação pressupõe a prova, pelo reivindicante, do direito real de propriedade sobre a coisa que reivindica (artº 342 nº 1 do Código Civil)[10].

Porém, também é indiscutível que na acção de reivindicação, a causa de pedir não é o direito de propriedade ele mesmo, mas sim, de harmonia com a teoria da substanciação que anima a lei adjectiva portuguesa, o facto jurídico de que tal direito real deriva (artº 498 nº 4 do CPC). O modelo da acção de revindicação é, pois, o seguinte: a invocação pelo autor da titularidade de um direito real de propriedade; a indicação do facto jurídico concreto donde emerge essa aquisição; o pedido de condenação do demandado que tem a coisa, objecto mediato daquele direito, em seu poder, a entregar-lha.

O perfil da acção de reivindicação pode, portanto, recortar-se pelo seu fundamento, pela sua causa de pedir e pelo pedido.

O fundamento da reivindicatio, como decorre da norma que a regula ao referir-se ao reconhecimento do direito de propriedade, é o direito real de gozo violado com a posse ou a detenção do demandado (artº 1311 nº 1 do Código Civil).

A causa petendi que compete à acção de reivindicação é o facto de que deriva o direito real (artº 498 nº 4 do CPC).

Por essa razão, o autor deve apontar o facto jurídico aquisitivo que invoca como fundamento de entrega da coisa – a compra e venda, a doação, a ocupação, a usucapião, etc. – sendo insuficiente a menção genérica ao direito ou a facto aquisitivo não especificado.

É corrente a afirmação de que nesta acção real a causa de pedir é complexa[11]. Uma reflexão breve mostra, porém, de um aspecto, que a causa de pedir da reivindicação consiste apenas no facto aquisitivo do direito real e não na violação desse direito pelo réu, e, de outro, que esse facto não tem de ser um facto aquisitivo originário[12].

Admitindo a lei que o direito real seja adquirido através de factos translativos, quer dizer, de factos que desencadeiam uma aquisição derivada do transmissário, como, por exemplo, o contrato real quoad effectum, seria desrazoável que o adquirente tivesse de invocar um facto distinto daquele pelo qual adquiriu o direito para reivindicar com êxito e mais desrazoável ainda que não pudesse reivindicar de terceiro se não beneficiasse de um facto aquisitivo originário.

Há, efectivamente, que fazer um distinguo entre o facto aquisitivo do direito real – e a prova para demonstrar a titularidade do direito. O que adquiriu o direito real de gozo através de uma aquisição puramente derivada, se não beneficiar de uma presunção legal de titularidade, tem de reconstituir a cadeia de titulares do direito real até ao momento da sua aquisição; mas isso releva apenas da prova do facto aquisitivo do direito, sendo estranho à possibilidade de o reivindicante indicar como causa petendi um facto aquisitivo derivado.

Por último, uma coisa é o facto aquisitivo, outra, bem diversa, a prova dele.

Assim, a existência de uma presunção legal – v.g. a derivada do registo – não equivale à indicação do facto aquisitivo. A presunção apenas opera a inversão do ónus da prova relativamente ao facto: não basta, por isso, como causa de pedir na acção de reivindicação (artº 350 nºs 1 e 2 do Código Civil). È claro, porém, que a simples afirmação da titularidade do direito acompanhada da certidão do registo predial pode satisfazer a exigência legal relativa à causa de pedir, considerando-se nesse caso, que o facto aquisitivo do direito é o que se mostra inscrito no registo.

A procedência da acção está na dependência da verificação cumulativa de três pressupostos: a titularidade pelo autor do direito real de gozo alegado; a detenção ou a posse pelo réu da coisa reivindicada[13]; a falta de demonstração pelo demandado da titularidade de um direito que lhe permita recusar a entrega[14].

O autor tem, pois, que fazer a prova do seu direito, que o adquiriu em consequência de facto válido e eficaz. É, dada a dureza dessa prova, a chamada probatio diabolica.

Esta prova é feita nos termos gerais. Se o autor beneficia de uma presunção legal, o ónus dessa prova inverte-se, ficando o demandado onerado com o encargo da demonstração de que o autor não é titular do direito invocado (artº 350 nºs 1 e 2 do CPC). As presunções mais relevantes neste domínio são duas: a derivada da posse; a assente no registo predial (artºs 1268 nº 1 do Código Civil e 7 do Código de Registo Predial).

Se não beneficiar de uma presunção legal, e caso o demandado tenha contestado a titularidade pelo demandante do direito real invocado, este tem de se libertar do ónus da prova dessa titularidade. Sendo o facto aquisitivo meramente derivado, a prova dessa titularidade faz-se através da reconstituição da cadeia dos adquirentes anteriores até a uma aquisição originária: o autor tem de provar a validade dos factos translativos do direito até ao seu, quer dizer, a titularidade do direito na esfera jurídica dos transmitentes anteriores, até àquele que lhe transmitiu o seu direito.

Como é bem de ver, a actividade probatória que o reivindicante tem de desenvolver é extraordinariamente pesada, mas tem como limite uma aquisição originária. Demonstrando-se um facto aquisitivo originário – v.g., a usucapião – não há que recuar mais atrás, dado que esse é o momento da constituição do direito adquirido pelo autor. Isto só não é assim se o autor puder, ele mesmo, invocar um facto aquisitivo originário: neste caso, tudo se resume à demonstração do facto invocado como aquisitivo do direito alegado real de gozo alegado.

O registo predial tem essencialmente por escopo dar publicidade aos direitos reais inerentes às coisas imóveis: pretende-se patentear a história da situação jurídica da coisa, desde a data da descrição até á actualidade (artº 1 Código de Registo Predial - CRP)[15]. Exige-se, por isso, um nexo ininterrupto entre os vários sujeitos que aparecem investidos de poderes sobre o prédio.

Trata-se do princípio do trato sucessivo que, a par dos princípios da instância, da legalidade e da prioridade, constitui uma dos elementos estruturantes do instituto (artºs 4, 67 nº 1, 34 nº 1 e 6 nº 1 do CRP)[16].

A publicidade dada pelo registo às situações jurídicas dos prédios é feita, em princípio, de um modo indirecto: publicita, através do mecanismo da inscrição, os actos que, tendo eficácia real, ditam a configuração daquelas situações. Não raro os actos visados têm natureza contratual i.e., implicam a manifestação de vontade de dois ou mais intervenientes. A necessidade de confirmação do panorama tabular com as vicissitudes jurídicas dos prédios dita a lógica do trato sucessivo: o registo só é possível quando o disponente surja, á face do registo, como titular da situação jurídica que publicita. Só assim, o registo representará uma sucessão de actos ligados pelos intervenientes.

A publicidade assegurada pelo registo predial não visa escopos de mero conhecimento dentro do espaço jurídico: ela repercute-se no nível substantivo das situações jurídicas em jogo. Os reflexos materiais do registo implicam, pela sua própria existência, a definição prévia de quais as situações dotadas, efectivamente, de publicidade tabular. O problema põe-se quando situações jurídicas incompatíveis apresentem ou pretendam apresentar publicidades incompatíveis. A resposta é dada pelo princípio da prioridade (artº 6 nº 1 do CRP).

As realidades tabulares repercutem-se nas situações jurídicas privadas subjacentes, ou, dito de outro modo, o registo produz efeitos substantivos.

O primeiro desses efeitos é presuntivo: o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos em que o registo o define (artº 7 do CRP).

Quem tem a seu favor um registo determinado escusa de provar: que o direito existe; que é titular dele; que ele tem a configuração dada pelo registo. Quem assim não entenda terá que provar a inexactidão do registo: a presunção é simplesmente iuris tantum (artº 350 nºs 1 e 2 do Código Civil).

O alcance da presunção deve, porém, ser habilmente entendido. A inscrição registal – que visa definir a situação jurídica dos prédios, mediante extracto dos factos a ela referentes - faz-se na dependência de uma descrição, que tem por fim a identificação física e fiscal do prédio (artºs 79 nº 1, 82 nº 1 e 91 nº 1 do CRP).

A descrição predial não tem, porém, repercussão na situação jurídica do prédio. Maneira que, a presunção de titularidade diz apenas respeito à inscrição registal. Por força da impossibilidade de assegurar a fidedignidade da descrição, está não é, em princípio, abrangida pela presunção: a presunção de titularidade não compreende, como regra, os elementos da descrição – mas apenas o que resulta do facto inscrito, tal como foi registado[17].

Todavia, há um núcleo essencial da descrição que não pode deixar de se compreender na presunção, sob pena de não se saber exactamente sobre que coisa incide o facto ou factos inscritos e, em última extremidade, se presumir a titularidade do direito – sobre coisa nenhuma[18]. Assim, embora se deva reconhecer que não se incluem na presunção certos elementos não essenciais – como, por exemplo, confrontações e limites precisos, áreas exactas, identificação fiscal – deve, porém, entender-se que aquela presunção abrange alguns elementos acessórios indispensáveis à identificação ou individualização do prédio, sob pena de não se saber sobre que coisa incide o facto inscrito.

Nestas condições, no caso do recurso, deve entender-se que o recorrido goza da presunção de que é titular do direito real alegado, presunção que abrange a integração, na sua fracção autónoma, das 5 divisões, localizadas no sótão do prédio, destinadas a arrecadação, com os nºs 1 a 5. Como tal presunção não foi objecto de ilisão, há que concluir que o apelado é titular do direito real de propriedade sobre as apontadas divisões.

A recorrente detém as apontadas divisões, mas não demonstrou, como lhe competia, a titularidade de qualquer direito – real ou meramente pessoal – que legitime essa detenção e a corresponde recusa em restituir ao autor aqueles espaços.

Importa, pois, declarar que o apelado é titular direito real alegado e vincular a recorrente à obrigação de lhe restituir, livres e devolutas, as divisões reivindicadas.

A recorrente, com a detenção daquelas divisões, violou, de forma ilícita e culposa, o direito real de propriedade do autor e causou-lhe um dano (artº 483 nº 1 do Código Civil). A recorrente deve, pois, ser vinculada ao dever de reparar um tal dano.

Ignora-se, porém, a exacta medida desse dano, que dará, nos limites definidos pelo pedido do apelado, a medida da indemnização.

Constitui ocorrência ordinária, o juiz chegar à sentença e verificar que, devendo condenar o demandado, o processo não lhe fornece, porém, os elementos necessários para determinar o objecto ou a quantidade da condenação. Em face desses factos, só lhe resta uma solução jurídica: proferir uma condenação genérica, quer dizer, condenar o réu no que se vier a liquidar (artº 661 nº 2 do CPC)[19].

A condenação genérica no cumprimento de uma prestação pode, assim, dar lugar à incerteza ou à iliquidez da obrigação.

A obrigação é incerta quando a respectiva prestação não se encontra determinada ou individualizada; é ilíquida quando a sua quantidade não se encontra determinada. A iliquidez pode referir-se quer a prestações pecuniárias quer a prestações de dare.

É axiomático que as obrigações ilíquidas não podem ser realizadas de forma coactiva, pela razão evidente de que não se pode executar o património do devedor antes de determinar a quantia devida ou pedir a entrega de uma coisa antes de saber a quantidade que deve ser prestada (artº 47 nº 5 do CPC de 1961 e 10 nº 5 do NCPC). Assim, tem de ser liquidada a condenação em quantia ilíquida (artº 661 nº 2 do CPC de 1961 e 609 nº 2 do NCPC).

A regra é esta: a liquidação há-de fazer-se no processo de declaração que tenha por objecto o direito à prestação e, portanto, só pode reservar-se para momento ulterior, em última extremidade, quando não seja possível fazê-lo naquele processo (artº 378 nº 1 do CPC 1961 e 358 nº 1 do NCPC).

Porém, quando a existência do dano não ofereça dúvida mas se desconhece o respectivo quantum, a única solução admissível é, tanto no tocante aos danos futuros como no tocante aos danos presentes ainda não determináveis, a condenação do responsável na obrigação de os indemnizar – e a remessa da fixação dessa indemnização para momento posterior (artº 564 nº 2 do Código Civil)[20].

Portanto, diversamente da solução normal para as situações de non liquet – que é o proferimento de uma decisão onerada com a prova – a incerteza sobre a quantia devida justifica apenas que se relegue para momento ulterior a sua quantificação (artº 516 do CPC de 1961 e 414 do NCPC). Esta solução parece decorrer da circunstância de, na determinação do quantum da obrigação, não se poder ficcionar o facto contrário àquele que devia ser provado como fundamento da decisão do tribunal[21].

Este pensamento transparece nitidamente na solução disposta na lei para o caso de, mesmo no incidente ulterior específico da liquidação, a prova produzida pelas partes se mostrar insuficiente para fixar a quantia devida: quando isso sucede, incumbe-se o juiz de a completar, mediante indagação oficiosa e, nomeadamente, através da produção de prova pericial (artº 380 nº 4 do CPC de 1961 e 360 nº 4 do NCPC). Mesmo aqui, a persistência do non liquet sobre a quantidade da obrigação não dá lugar à intervenção da regra de julgamento representada pelo ónus da prova e ao consequente desfavorecimento da pretensão do lesado, antes se impõe ao tribunal o dever de ultrapassar a deficiência, mediante iniciativa própria.

Importa, pois, quanto ao dano apontado, condenar a demandada no que se vier a liquidar em momento ulterior.

Síntese recapitulativa:

a) De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo os vários enquadramentos jurídicos possíveis do seu objecto;

b) Na acção de reivindicação cabe ao demandante a prova da titularidade pelo autor do direito real de gozo alegado e a detenção ou a posse pelo réu da coisa reivindicada, competindo ao demandado a prova da titularidade de qualquer direito que lhe permita recusar a entrega;

c) A presunção de titularidade do direito real alegado decorrente do registo não compreende, como regra, os elementos da descrição – mas apenas o que resulta do facto inscrito, tal como foi registado; abrange, porém, os elementos acessórios que sejam indispensáveis à identificação ou individualização do prédio, sob pena de não se saber sobre que coisa incide o facto inscrito;

d) Quando a existência do dano não ofereça dúvida mas se desconhece o respectivo quantum, a única solução admissível é a condenação do responsável na obrigação de o indemnizar – e a remessa da fixação dessa indemnização para momento posterior.

O recurso deverá, proceder, mas apenas parcialmente.

Dado que a recorrente e o recorrido sucumbem reciprocamente no recurso deverão suportar, na proporção dessa sucumbência, as custas respectivas, excepto no tocante à condenação genérica, custas cujas deverão ser suportadas, provisoriamente, em partes iguais, por ambas as partes (artº 527 nºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julga-se parcialmente procedente o recurso, revoga-se, em parte, a sentença impugnada, e consequentemente:

a) Condena-se a recorrente, F..., a pagar ao autor, M..., no que se vier a liquidar em momento ulterior, relativamente ao prejuízo suportado pelo último por virtude dos factos referidos nas respostas aos pontos 2º e 3º da base instrutória, contado desde a citação até à entrega das 5 divisões no sótão destinadas a arrecadações, com os nºs 1 a 5, livres e desocupadas;

b) Mantém-se, no mais, a sentença impugnada.

Custas do recurso pela recorrente e pelo recorrido, na proporção de 3/4 para a primeira e de 1/4 para o segundo, devendo as custas, no tocante ao pedido indemnização cuja liquidação é relegada para momento ulterior ser suportadas, provisoriamente, em partes iguais, por ambas as partes.

14.02.18

                                                                                                              Henrique Antunes - Relator

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa


[1] V.g., Acs. do STJ de 18.02.88, BMJ nº 374, pág. 410, e da RC de 17.04.90, BMJ nº 496, pág. 447.
[2] V.g., Ac. do STJ de 31.01.91, BMJ nº 403, pág. 382 e 09.04.92, BMJ nº 416, pág. 558.
[3] Ac. STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130 e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.
[4] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[5] Ac. da RE de 09.06.94., BMJ nº 438, pág. 571.
[6] Ac. da RE de 11.12.84, CJ, 84, V, pág. 268.
[7] Acs. da RC de 03.04.86, BMJ nº 356, pág. 453, do STJ de 27.10.94 e 05.07.94, BMJ nºs 440, pág. 478 e 439, pág. 479, respectivamente, de 11.12.08, 27.03.08 e 19.12.06, da RP de 19.05.05 e 27.11.11, e da RL de 06.07.06, www.dgsi.pt; José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 631 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 2ª edição, 2003, pág. 239. O ponto, porém, não é líquido, podendo discutir-se se não se trata, antes, de uma nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 2ª parte, do CPC de 1961).

[8] António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Reprint, Lex, 1979, págs. 591 e 592 e Manuel J. G. Salvador, Elementos da Reivindicação, Lisboa, 1958, pág. 21. Note-se, porém, que se trata de cumulação meramente aparente de pedidos. A acção de reivindicação é uma acção de condenação. Como, porém, toda a condenação pressupõe uma apreciação prévia de natureza declarativa, quando se pede o reconhecimento do direito de propriedade e a condenação da entrega, não se formulam pedidos distintos: a declaração do direito é um simples meio de atingir a entrega da coisa. Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º, Coimbra Editora, 1946, págs. 147 e 148 e José de Oliveira Ascensão, Acção de Reivindicação, in Estudos em Memória do Prof. Doutor, João de Castro Mendes, Lisboa, Lex, págs. 15 a 42. Nestes termos, é suficiente a formulação do pedido de entrega da coisa: cfr. Ac. do STJ de 05.03.92, www.dgsi.pt.
[9] Antunes Varela, RLJ, Anos 115, pág. 272, e 166, pág. 16, nota 2.
[10] Henrique Mesquita, RLJ, Ano 132, pág. 128.
[11] Ac. do STJ de 24.10.96, www.dgsi.pt. e Oliveira Ascensão, A Acção de Reivindicação, ROA, Abril 1997, pág. 511.
[12] Oliveira Ascensão, Propriedade e Posse – Reivindicação e Reintegração, Revista Luso-Brasileira de Direito, Volume I, pág. 16.
[13] Ac. do STJ de 17.11.94, www.dgsi.pt.
[14] É, na verdade, o réu que está vinculado à prova de que é titular de um direito real que legitima a recusa da restituição: Acs. do STJ de 04.04.06 e 27.09.05, www.dgsi.pt.
[15] Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4º ed. refundida, Coimbra Editora, 1983, pág. 337.
[16] Cfr., sobre os princípios do registo predial e os seus efeitos substantivos, Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 19.05.00, www.dgsi.pt.
[17] Acs. do STJ de 15.12.05, 14.12.03 e 05.07.01, www.dgsi.pt.
[18] Acs. do STJ de 31.03.04, de 12.08.08 e de 19.02.13, www.dgsi.pt.
[19] Apesar da jurisprudência do Supremo – como decorre, v.g. dos Acs. de 17.01.95, BMJ nº 443, pág. 395 e de 26.09.95, BMJ nº 449, pág. 293 - não ser inteiramente acorde, a orientação prevalecente é apontada no texto. Cfr., v.g., o Ac. do STJ de 15.01.02, www.dgsi.pt. É esse também o entendimento dominante na doutrina: José Lebre de Freitas, “ A competência do tribunal de execução para a liquidação da obrigação no caso de sentença genérica arbitral”, Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, Volume II, 2ª edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 636, Vaz Serra, RLJ, Ano 114, pág. 309, Augusto Lopes Cardoso, “O pedido e a sentença”, RT, 93, pág. 57, Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, Lisboa, 2001, III, pág. 184, José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volumes I e V, Coimbra, 1984, págs. 615 e 71, respectivamente, e José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 648.
[20] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, Almedina Coimbra, 1986, págs. 869 e 870 e nota (1) e Vaz Serra, RLJ, Ano 113, pág. 322.
[21] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa 1998, pág. 110.