Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
76/17.1GDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NE BIS IN IDEM
Data do Acordão: 05/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J LOCAL CRIMINAL – J 3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 152.º DO CP; ART. 29.º DA CRP
Sumário: I – No processo n.º 60/17.5GDCBR foram julgados os factos referentes ao dia 28 de março de 2017. Enquanto nos presentes autos foram julgados os factos ocorridos no dia 11.04.2017 e em maio/junho de 2017 (estes, quanto a alguns telefonemas).

II – A expressão “mesmo crime” traduz-se no designado “pedaço de vida” apreciado e julgado e que constitui ou integra um determinado crime e importa agora analisar todo o factualismo fornecido pelos autos com vista à verificação ou não de caso julgado relativamente ao “pedaço de vida” que no caso releva.

III – O crime de violência doméstica pode ser praticado de modo reiterado ou não. O que significa que um único facto pode ser qualificado como integrando este tipo de crime, do mesmo modo que o crime pode ser integrado por vários ou diversos factos.

IV – Uma análise pormenorizada da conduta do arguido, globalmente considerada, permite-nos com a segurança jurídica necessária, concluir por uma estreita conexão entre todos os factos que integram ambos os processos. Que existiu uma única resolução criminosa do arguido. Que o seu desígnio criminoso não se interrompeu com os factos do dia 28.3.2017.

V – O tempo decorrido entre todos os factos é bastante curto, como os factos destes autos estão numa relação ou sequência lógica dos factos iniciais, o arguido manteve o mesmo desígnio da sua conduta para com a vítima, proferindo o arguido expressões e ameaças para com a ofendida, da mesma natureza, em ambas as situações e visando o mesmo objetivo – v. se não fosse dele não era de mais ninguém; que a matava. Assim sendo, impunha-se que todo este pedaço de vida do arguido tivesse sido valorado globalmente, num único processo, pois integra apenas um crime de violência doméstica.

VI - Não tendo os factos destes autos sido apreciados no julgamento do dia 21.9.2017, no processo nº 60/17.5GDCBR, já não o podiam ser autonomamente nestes autos, sob pena de violação da exceção de caso julgado, expresso no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa sob a designação do princípio de ne bis in idem.

VII – A procedência desta exceção de caso julgado, tem como consequência a absolvição do arguido pelo crime por que foi condenado nestes autos e torna inútil a apreciação das demais questões suscitadas pelo recorrente.

Decisão Texto Integral:




            1. Nos autos de processo comum supra identificados, em que é arguido , filho de … e de …, natural da freguesia de (...) , nascido em …, casado, pintor da construção civil, residente na Rua do …, n.º 5…, (...) .
           
             Foi o mesmo julgado e condenado:
            - Como autor material, de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), n.ºs 2, 4 e 5, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão efetiva.
- A pagar à ofendida a quantia de € 1.200,00 (mil e duzentos euros) acrescida de juros de mora civis à taxa de 4 % (Portaria 291/03), desde o transito em julgado até integral pagamento.

            2. Desta decisão recorre o arguido, que formula as seguintes conclusões:
1º. O Arguido e ora Recorrente discorda da douta decisão proferida quanto à matéria de Direito por entender existir violação do princípio constitucional ne bis in idem (art.º 32.°, n.º 2), bem como por considerar que a pena de prisão efetiva aplicada, viola os princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação.
2º. No que concerne com os pontos 8.º, 9.º e 13.º dos factos provados, o Recorrente entende que o Julgador incorreu em erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.° 410.°, n.° 2, al. c), do Código de Processo, bem assim como violação do princípio
constitucional in dubio pro reo.
3º. Correu termos no Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 1, sob o nº 60/17.5GDCBR, um processo crime de violência doméstica, no qual eram os mesmos o agressor e a vítima, tendo aquele sido sentenciado na pena de na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, com regime de prova, em consequência das agressões físicas e verbais infligidas.
4º. De igual modo, com particular e fulcral interesse para o presente recurso, importa referir que no dia 05/06/2017, no âmbito do mesmo processo n.º 60/17.5GDCBR, por via de incumprimento das medidas de coação, concretamente pelos acontecimentos ocorridos no dia 11.04.2017, cerca das 19h00, bem como em consequência de alegados telefonemas realizados pelo Arguido para o telefone de casa da Ofendida, registados em Maio de 2017, onde terão sido proferidas ameaças de morte (elementos/factos constantes neste processo n.º 76/17.1GDCBR), foi realizado interrogatório de Arguido, tendo o Meritíssimo Juiz informado e confrontado o Arguido dos novos elementos fácticos trazidos aos autos (processo n.º 60/17.5GDCBR), que lhe acarretaram o agravamento das ditas medidas de coação e, a final, a aplicação da pena acima descrita.
5º. É manifesto que os presentes autos nº 76/17.1GDCBR tiveram início na pendência do processo n.º 60/17.5GDCBR, na altura a correr termos no DIAP de Coimbra, e no qual se investigava a prática de um crime de violência doméstica praticado pelo Arguido contra a Ofendida.
6º. In casu, conforme a decisão colocada em crise tem a virtuosidade de demonstrar, é relevante assinalar que todos os factos investigados e constantes na acusação pública do processo n.º 76/17.1GDCBR, isto é, todos os factos relativos aos presentes autos, ocorreram espácio-temporalmente na pendência do processo n.º 60/17.5GDCBR, originando que o Arguido ali tivesse sido inquirido sobre os mesmos, inclusive, em agravamento do estatuto coativo, como é notório da matéria factual dada como provada na sentença em recurso, concretamente pontos 2) a 11), para se perceber o encadeamento e estreita conexão entre ambos os casos.
7º. Conforme prova documental junta aos autos, o processo de inquérito n.º 76/17.1GDCBR foi instaurado contra o Arguido na sequência do auto de notícia lavrado, em 11/04/2017, e conforme consignado neste mesmo auto (constante a fls. 14 a 17 dos presentes autos), ali foi indicado que a vítima, no dia 28/03/2017, - 14 dias antes - apresentou denúncia de violência doméstica contra o seu marido, aqui Arguido, tendo o cuidado de ser realçado por este OPC, e muitíssimo bem, que se encontrava a correr termos o processo de inquérito no DIAP - Coimbra, sob o NUIPC 60/17.5GDCBR.
8º. Isto é, sublinhe-se, e para que dúvidas não restem, à data de todos os factos pelos quais o Arguido foi acusado no atual processo n.º 76/17.1GDCBR, encontrava-se a correr termos, em plena fase de inquérito, o processo n.º 60/17.5GDCBR, motivo pelo qual o Senhor Procurador-Adjunto determinou que “Aguarde por 30 dias a conclusão do inquérito pelo OPC. Se nada entretanto for junto, solicite a informação sobre o estado das diligências de inquérito”.
9º. Inclusive, no âmbito do processo n.º 60/17.5GDCBR, neste mesmo interrogatório realizado ao Arguido, a Digníssima Procuradora - Adjunta do Ministério Público, na sua douta promoção, teve o cuidado de particularizar e detalhar quais os novos factos que fundamentavam a revisão do estatuto coativo do Arguido, conforme, desde logo, se afere na ata do interrogatório judicial constante de fls. 57 a 61 dos presentes autos.
10º. Ainda neste segmento, percorrendo-se o consignado na aludida ata de interrogatório judicial do Arguido, no âmbito do processo n.º 60/17.5GDCBR, realizada em 05/06/2018 e constante de fls. 57 a 61 dos presentes autos, é inclusive exarado no douto despacho do Meritíssimo Juiz, que é precisamente com base neste “novo circunstancialismo trazido aos autos”, que é aplicada ao Arguido a aplicação de uma medida de coação privativa da liberdade consubstanciada na obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica e ainda obrigação de não contactar por qualquer meio com a vítima.
11º. Do exposto, não existe a mínima dúvida que todos os factos pelos quais o Arguido vem condenado foram julgados no processo n.º 60/17.5GDCBR, por decisão datada de 21/09/2017, transitada em julgado em 23/10/2017, praticados entre Abril e Junho de 2017 e que sustentam a acusação pública neste processo n.º 76/17.1GDCBR. Estes, sublinhe-se, e não outros!
12º. Igualmente deverá ser realçado que o tipo de ilícito de violência doméstica, é consubstanciado como um crime habitual ou de reiteração, onde as várias condutas isoladas são unificadas pela violação do mesmo bem jurídico (a saúde, física, psíquica e mental), nele se exaurindo ou esgotando, como vem sendo entendimento unânime da doutrina (vide Dr. Taipa de Carvalho e Germano Marques da Silva supra citados) e da Jurisprudência (vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8/11/2011, Coletânea Jurisprudência, 2011, Tomo V, p. 31, também disponível in www.dgsi.pt, Acórdão do Tribunal da Relação Évora de 19/12/2013, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 31/05/2016, disponíveis in www.dgsi.pt, e igualmente supra citados).
13º. Doutro modo, atendendo ao reduzidíssimo espaço temporal que mediou entre o dia 27/03/2017 (data da denúncia que deu origem ao processo crime 60/17.5GDCBR) e o dia 11/04/2018 (data que deu origem ao processo n.º 76/17.1GDCBR), forçoso é concluir que o crime, sendo de prática reiterada entre os sujeitos processuais, é formal e materialmente o mesmo, o bem jurídico tutelado é o mesmo, os seus elementos constitutivos essenciais não
divergem, o contexto espacial e histórico é o mesmo, bem como as mesmas são as circunstâncias e o elemento subjetivo subjacentes ao crime.
14º. Para mais que o próprio Tribunal a quo enquadrou/avaliou os acontecimentos no quadro de uma única unidade criminosa atendendo que, conforme resultou das circunstâncias do caso concreto, a reiteração de comportamentos ilícitos por parte do Arguido era evidente, tendo-se o crime consumado com a prática do último ato que, neste conspecto, ainda integrava a atividade criminosa em causa.
15º. Justificava-se, assim, o tratamento dos factos como de uma única unidade criminosa por parte do Arguido se tratasse, subsumível ao crime de violência doméstica, pelo que mal esteve a Senhora Juiz da primeira instância ao submeter o Arguido a julgamento por factos documentalmente demonstrados que foram apreciados no primeiro processo, condenando-o segunda vez pela prática do mesmo crime de violência doméstica numa clara violação de direitos fundamentais.
16º. A Ofendida, no pedido de indemnização civil que formulou no processo n.º 60/17.5GDCBR (fls. 211 a 215 destes autos), englobou nesse seu pedido os factos praticados pelo Arguido no dia 11 de Abril de 2017 (cfr. fls. 213 do processo n.º 60/17.5GDCBR), representando que o Arguido estava a ser julgado no processo n.º 60/17.5GDCBR pelos factos ocorridos posteriores à sua denúncia em 28/03/2017.
17º. Certo é que, com a submissão do Arguido a julgamento pela segunda vez, abriu o Tribunal a quo a porta para que, nestes autos, a Ofendida pudesse deduzir, pedido de indemnização civil, que lhe foi arbitrado, pelos mesmos factos, o que é uma gritante injustiça e violação dos mais elementares direitos do cidadão e manifesta violação às regras processuais civis e penais.
18º. O instituto jurídico do caso julgado, embora não regulado expressamente na lei processual penal, decorre do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, onde se prescreve que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, o que bem se entende e aceita por razões de segurança jurídica, impedindo que o que nela se decidiu seja atacado quer dentro do mesmo processo (caso julgado formal), quer noutro processo (caso julgado material).
19º. A proibição do ne bis in idem mais não é do que a manifestação substantiva daquele princípio do caso julgado, enquanto garantia básica de que ninguém pode ser submetido a um processo duas vezes pelo mesmo facto, seja de forma simultânea ou sucessiva, englobando tal garantia uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, que tem ainda como efeito garantístico que se proíba a investigação e o posterior julgamento não apenas do que foi conhecido no primeiro processo, mas também tudo o que aí poderia ter sido conhecido – vide Henrique Salinas[1], o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de Outubro de 2015, proferido sob o processo n.º 950/11.9PIVNG.P2[2], e Acórdão da Relação de Lisboa, de 17/04/2013, no processo n.º 790/09.5GDALM.L1-3 acima parcialmente transcritos.
20º. Por tal motivo, sem mais, sob pena de violação de preceitos constitucionais que afetam aqueles que são os direitos, liberdades e garantias do cidadão, do ora Recorrente, que se encontrava precludido, por força do julgamento do processo n.º 60/17.5GDCBR, o apuramento judicial dos factos pelos quais foi acusado e agora condenado, pelo que restará julgar verificada a exceção do caso julgado por violação do princípio ne bis in idem e, em consequência, revogar a sentença recorrida, absolvendo o Arguido pelo crime da qual vem condenado.
Doutro passo:
21º. O Recorrente não aceita a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo no que tange à matéria de facto nela vertida, especificamente os pontos 8.º, 9.º e 13.º, dos factos provados, bem como os fundamentos que a motivam, por entender existir erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.° 410.°, n.° 2, al. c), do CPP, bem assim como violação do princípio constitucional in dubio pro reo, pontificado no art.° 32.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa.
22º. Salvo douta e melhor opinião, da análise da prova produzida em sede de audiência de julgamento, resulta que não ficou demonstrado que o Recorrente tivesse, desde logo, ofendido a integridade psíquica da sua companheira, sequer a ameaçado de morte, ou tão pouco resultado, em momento algum, que o Arguido, no período que mediou entre Maio e Junho de 2017 (ou qualquer outro, assinalamos em abono da verdade), tivesse ameaçado o seu filho Rodrigo, menor, com 16 anos de idade.
23º. Andou mal o Tribunal a quo ao ancorar-se exclusivamente no depoimento da Ofendida, não se desacorrentando da sua falta de objetividade, misturando, a Ofendida, os factos sobre que depunha com a sua própria idiossincrasia e visão particular dos assuntos com eles acabando por atribuir credibilidade a um depoimento que, para além de não se corroborar com o conjunto da demais prova junta aos autos, entra em contradição com o relatado pelo seu próprio filho e demais testemunhos, acabando por interpretar incorretamente a prova produzida, e desvalorizando prova nuclear.

24º. Como decorre direta e objetivamente das respostas dadas quer pela Ofendida quer pelo filho, devia o Tribunal a quo ter considerado, sem mais, que somente até ao dia 25/05/2017 (data em que alterou o número de telemóvel) terão existido apenas e só dois telefonemas do Arguido para a Ofendida, aliás, conforme consignado na douta acusação pública.
25º. Igualmente, não se vislumbra quais os depoimentos nos quais se alicerçou o Tribunal a quo para concluir, em ponto 9 (factos provados) da douta decisão, que “em determinada ocasião, também por essa altura, o arguido numa das ocasiões ameaçou o filho de 16 anos, quando o próprio inquirido nada afirmou neste sentido.
26º. É convicção do Recorrente que os factos 8 e 9 não podem ser dados como provados pelo Tribunal ad quem, tanto mais que, no limite, a prova produzida permitiu criar uma forte dúvida sobre se o Arguido os praticou, pelo que, salvo douto e melhor entendimento, devia o Tribunal a quo, em observância ao princípio in dubio pro reo dá-los por não provados e absolver o Arguido do crime em que foi condenado.
27º. No modesto entender do Recorrente, toda a fundamentação da sentença em recurso, na realidade e rigor acaba por ser uma consequência de uma construção, aparentemente, lógico-dedutiva, desfasada e, inclusive, contrária à factualidade apurada, tendo por base factos que não foram provados ou sequer foram referidos testemunhalmente, prejudicando o silogismo judiciário.
28º. Dada a insuficiência da prova produzida para fundamentar aquela que foi a decisão da matéria provada, estamos, sem dúvida, perante a violação do princípio do in dubio pro reo, disposição consagrada no n.º 2, do art.º 32.º da CRP, pelo que não se poderá aceitar tal condenação assente apenas em presunções e em juízos de probabilidade.
29º. Assim, estamos em crer que, mais uma vez, andou mal o Tribunal a quo na leitura da prova, pois desconsiderou depoimentos, fez do uso da presunção judicial e dos juízos probabilísticos a trave mestra da decisão e desconsiderou prova que pedia um juízo de prognose.
30º. O Tribunal a quo desvalorizou que as alegadas ameaças proferidas pelo Arguido à Ofendida eram retorquidas, de igual forma e pela mesma via, por idênticas ameaças proferidas pela Ofendida ao Arguido no sentido de, invariavelmente, esta lhe referir que o matava colocando-lhe veneno na comida, conforme consigna o relatório social junto aos autos, parte I, relativa aos “dados relevantes do processo de socialização”: a relação matrimonial entre Arguido e Ofendida é caracterizada “com violência cruzada a nível físico, verbal e psicológico”.
31º. O Tribunal a quo sustenta a condenação do Arguido na pena de prisão efetiva com base, nuclearmente, no relatório social realizado ao Recorrente, que sobrevalorizado, concedendo-lhe excessiva notoriedade em alguns aspetos em detrimento de outros, não o cotejando com os vários testemunhos produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento e que acima se transcreveram.
32º. Facto é que, conforme nos dá conta o sobredito relatório, na parte II relativa às “Condições sociais e pessoais” ali é referido que “não obstante reactividade e inconformismo relativamente a esta pena, tem vindo a cumprir minimamente os pressupostos desta”, mais sendo reforçado que “Não foram sinalizados contactos com a ofendida”, sendo que, de acordo como se acha exarado no último paragrafo do relatório, relativo à “conclusão”, “a trajectória
de vida globalmente positiva em termos de orientação prosocial e o actual suporte familiar são factores de resiliência e protecção criminal.”
33º. Doutra forma, conforme consignado em relatório de execução da pena lavrado, em 17/05/2018, pela equipa da vigilância eletrónico da DGRSP [fls. 359 e 360 do processo 60/17.5GDCBR do Juízo Criminal de Coimbra (J1)], ali é feita referência que: ”Neste primeiro período em avaliação … cumpriu com a adequação as obrigações inerentes
à suspensão da pena e do regime de prova.”
34º. Nesta esteira, para se perceber o contexto e, sobretudo, a evolução do estado psíquico do Arguido, impunha-se que o Tribunal a quo tivesse ponderado o depoimento de várias testemunhas, que se revelam de vital importância, precisamente, devido ao facto de terem recebido o Arguido em sua casa aquando da aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com o que se pretende sublinhar que se desassocia completamente da restante prova que lhe permitia aferir, afinal, a atual situação social e psíquica da vida do Arguido (vide depoimento das testemunhas … e … supra transcritas).
35º. De se assinalar o facto da invocada violência verbal vir desacompanhada de qualquer consequência, pois foi a própria Ofendida que declarou não ter receado pela vida, sequer alterou a sua rotina diária e lides do quotidiano, ou seja, não deixou de frequentar os locais que já vinha frequentando, não alterou comportamentos no seio do seu círculo laboral e/ou social, não evitou deslocar-se sozinha, nem tão pouco deixou de falar com o próprio Arguido, concretamente, mantendo permanente diálogo em relação aos filhos comuns do casal, que desvalorizou as expressões verbais proferidas pelo Arguido.
36º. Ou melhor, o único comportamento materializado pelo Recorrente consubstanciou-se, precisamente, no facto de ter consentido e acordado o divórcio com a Ofendida.
37º. Neste sentido, cremos mesmo que é um contrassenso não ter o Tribunal a quo valorizado a circunstância do Arguido e Ofendida se encontrarem divorciados por mútuo consentimento, para concluir, conforme deveria, que presentemente e já há largos meses a esta parte se encontram pacificadas as suas relações.
38º. Entende ainda o Recorrente que o critério da escolha da pena foi excessivo por violação dos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação, pois que foi condenado numa pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão efetiva, porque terá arrombado uma porta e realizado dois telefonemas à ex-mulher, referindo em tais ocasiões que, esta, caso não fosse dele não seria de mais ninguém. Tão só apenas e sem mais.
39º. Sem prejuízo dos factos que o Recorrente entende que deviam ter sido dados como não provados, como decorre das próprias declarações prestadas espontaneamente pela Ofendida e acima transcritas, ela desvalorizou completamente tais ameaças, não temendo, de resto, uma materialização de comportamento desviantes por parte do Arguido que pudesse atentar contra a sua vida ou saúde, física e psicológica.
40º. Não se almeja o motivo, concretamente para efeitos de doseamento da pena, o Tribunal a quo não ter valorizado a circunstância do Arguido e Ofendida se encontrarem divorciados por recíproco acordo, para concluir, conforme a vasta prova testemunhal produzida, permitiria extrair que ele se mostrou profundamente arrependido quanto aos acontecimentos em julgamento, impondo-se que o Tribunal a quo tivesse atribuído valor ao facto dele, no imediato e perante a própria, em ato voluntário, lhe tivesse pedido desculpa.
41º. De facto, é convicção do Recorrente que a pena de 2 (anos) e 2 (meses) de prisão efetiva que lhe foi aplicada pela prática de um crime de violência doméstica, mostra-se desajustada, desproporcional e desadequada, tendo em conta, pelos motivos expostos no presente recurso, o diminuto grau de ilicitude do facto praticado pelo Arguido, o modo de execução, a diminuta gravidade das suas consequências, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, o erro na apreciação da prova pelo Tribunal, a não ponderação da conduta do Arguido anterior e posterior aos factos ocorridos, circunstâncias atenuantes desconsideradas pela Meritíssima Juiz.
42º. Estando verificado o requisito formal da suspensão da execução da pena (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos), há que indagar se ocorre o respetivo pressuposto material, isto é, se se pode concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, designadamente se bastarão para afastar a arguida da criminalidade, pois é esta a finalidade precípua do instituto da suspensão.
43º. Perante a situação concreta do Arguido, conforme supra melhor exposto e melhor fundamentado, julgamos militar a favor do Arguido, contrariamente ao considerado pelo Tribunal a quo, um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento e apostar na sua capacidade de recuperação dos valores socialmente relevantes acreditando na sua reinserção plena e responsável que não através de uma pena de prisão efetiva.
44º. Assim sendo, e ao abrigo do disposto no artigo 50º, nºs 1 e 5 do Código Penal, é entendimento do Arguido, atendendo às circunstâncias concretas, condições sociais e, inclusive, à luz do cumprimento da execução da pena em regime de prova no processo n.º 60/17.5GDCBR [tem o Arguido cumprido com a proibição de contactos com a ofendida, tem frequentado as consultas na Unidade de Violência Familiar-UVF do Hospital de Sobral Cid, em Coimbra (que inclui valência de despiste de alcoolismo e supervisão a nível da saúde mental), tem comparecido a entrevistas na DGRSP e a diligências de manutenção ou procura de emprego.], o Tribunal a quo tinha o poder/dever na determinação concreta da medida da pena de lançar mão do instituto da suspensão da pena previsto no Código Penal e assim ter aplicado ao Arguido, em substituição da pena principal de prisão efetiva de 2 anos de prisão 2 meses, por uma pena suspensa na sua execução, assente e acompanhada num regime de prova.
Pelo que,
45º. Por tudo, não sendo o Arguido absolvido do crime pelo qual vem condenado por violação do princípio ne bis in idem, roga o Recorrente ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, a apreciação e conhecimento, em sede de recurso, da excessiva medida da pena de prisão aplicada ao Arguido por parte do Tribunal a quo, requerendo, em substituição da pena pelo qual foi condenado, a aplicação de uma pena suspensa na sua execução, por igual período de tempo, assente e acompanhada num regime de prova, Com o que se fará a costumada JUSTIÇA.

            3. Respondeu o Ministério Público, dizendo em síntese:
            1. Da análise do processo decisório, explanado na motivação da decisão do Tribunal a quo, não resulta que este tenha ficado num estado de dúvida insanável e que, ainda assim, tenha decidido contra o arguido.
2. A conclusão retirada pelo Tribunal, em matéria de prova, tem suficiente e adequado suporte, sem qualquer dúvida quanto ao seu sentido.
3. Assim, não tem lugar a aplicação do princípio in dubio pro reo.
4. Acresce que, da análise do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não resulta que enferme de qualquer dos vícios a que alude o artº 412º, nº 2, do CPP, maxime de erro notório na apreciação da prova;
5. Atenta a natureza do crime que vinha imputado ao arguido e as circunstâncias da sua comissão são, in casu, de primordial relevo as declarações da ofendida (as quais mereceram credibilidade ao Tribunal), pois resulta das regras da experiência comum que, grande parte das condutas integradoras dos crimes de violência doméstica, ocorrem em privado, não sendo por isso testemunhadas por terceiros.
6. Acresce que tais declarações foram corroboradas pela demais prova produzida e examinada em audiência (depoimentos e prova documental e pericial), como resulta da fundamentação da convicção do Tribunal.
7. Afigura-se-nos, pelo exposto, que a matéria de facto se encontra corretamente fixada, pois a prova produzida e examinada em audiência - apreciada no seu conjunto e à luz das regras da experiência comum - conduz à decisão que veio a ser tomada.
8. Na verdade, da matéria de facto provada resulta que a conduta do arguido integra os elementos típicos, objectivo e subjectivo, do crime de violência doméstica, p.p. pelo artº 152º, nºs 1, al. b) e 2, do CP.
9. Ora, afigura-se-nos que, in casu, o Tribunal a quo graduou de forma justa e adequada a pena aplicada ao arguido - atendendo aos critérios ínsitos nos artigos 40º, 70º, 71º, do Código Penal e à moldura penal prevista no artº 152º, nº 2, do CP (pena de prisão de dois a cinco anos).
10. Com efeito, o Tribunal recorrido não podia deixar de atender à frequência com que são praticados crimes de violência doméstica, bem como às suas consequências devastadoras nas vítimas atingidas;
11. Acresce que como salienta, o Tribunal recorrido, o arguido – que já tinha antecedentes criminais pela prática de um crime da mesma natureza, contra a mesma vítima - não mostrou qualquer
arrependimento, nem auto-crítica, nem vontade de mudança do seu comportamento para com a ofendida (o que traduz falta de interiorização do desvalor da ação e da culpa).
12. São, por isso, concretamente elevadas as exigências de prevenção geral e especial.
13. Assim, não podia o Tribunal a quo fazer um juízo de prognose favorável ao arguido, não se mostrando, por isso, preenchido o pressuposto material para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada: o da adequação da mera censura do facto e da ameaça da prisão às necessidades preventivas do caso.
14. Acresce ainda que os factos pelos quais o arguido foi julgado e condenado no âmbito do PCS nº 60/17.5GDCBR, são distintos daqueles pelos quais foi julgado e condenado no âmbito dos presentes autos, tendo estes ocorrido em momento posterior àqueles, pelo que não está em causa qualquer violação do princípio ne bis in idem, plasmado no artº 29º, nº 5, da CRP.
15. Assim, concluímos que a sentença recorrida é justa e adequada, que não violou quaisquer preceitos legais e que deve ser mantida.
Termos em que, deverão Vªs Exas. negar provimento ao recurso, mantendo a douta sentença recorrida, assim fazendo, JUSTIÇA.     

            4. Nesta instância foi emitido parecer pela Ex.mª PGA no sentido da improcedência do recurso, podendo no entanto o arguido beneficiar da suspensão da execução da pena uma vez que, se tivesse havido conexão de processos, o recorrente beneficiaria de uma pena única.
5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II
            Questões suscitadas para apreciação:
            1. A violação do princípio constitucional do ne bis in idem.
            2. Erro na apreciação da prova e violação do princípio do in dubio pro reo.
            3. A escolha e medida da pena.
            4. A eventual suspensão da execução da pena.
           
III
1. São os seguintes os factos dados como provados e não provados na sentença recorrida:
Matéria de Facto Provada:
Da audiência de julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. A … e o arguido estiveram casados desde 27.07.1994 a meados de 2017, encontrando-se separados desde finais de Março de 2017.
2. Em 30.03.2017, no processo n.º 60/17.5GDCBR, na altura a correr termos neste DIAP de Coimbra, e no qual se investigava a prática de um crime de violência doméstica praticado pelo arguido contra a ofendida, em sede de interrogatório judicial de arguido, foi ao mesmo aplicado as seguintes medidas de coacção: - não permanecer na residência da ofendida e na residência onde foi cometido o ilícito; - proibição de contactar com a ofendida, sujeita a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância; e - obrigação de frequentar tratamento à sua dependência alcoólica.
3. Contudo, no dia 11.04.2017, cerca das 19h00, contrariamente às medidas de coação aplicadas, quando ainda não tinha sido instalado o dispositivo de controlo à distância, o arguido dirigiu-se à casa da ofendida, sita na Rua …, n.º 1, …, (...) , desferiu um pontapé na porta de entrada da residência, arrombando-a, acedeu ao seu interior e disse à ofendida que não queria o divórcio, que se separasse dele a matava e que se matava a ele, que se não fosse dele não era de mais ninguém.
4. A ofendida, com medo do que o arguido fosse capaz de fazer, começou a fugir do arguido que a seguiu, dizendo-lhe sempre que se pedisse o divórcio a matava a si e a ele.
5. A ofendida pegou no telemóvel e ligou para a GNR para pedir ajuda ao que o arguido se ausentou do local.
6. Posteriormente por contacto telefónico o arguido quis reatar a relação, dizendo que ia mudar, pedindo desculpa.
7. Descontente com a recusa da ofendida em reatar a relação, o arguido voltou a dizer que se não fosse dele não era de mais ninguém; que a matava.
8. Entretanto, antes e depois da ofendida mudar de residência (em Maio/ Junho de 2017) o arguido continuou a ligar-lhe insistentemente, também para o telefone de casa, dizendo sempre que iria à sua procura, que não a deixava em paz, que a matava, que se não fosse dele não era de mais ninguém.
9. Em determinada ocasião, também por essa altura, o arguido numa das ocasiões ameaçou o filho de 16 anos.
10. Por incumprimento compulso das medidas aplicadas, em 05.06.2017, o arguido ficou sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.
11. No âmbito do processo n.º 60/17.5GDCBR, por decisão datada de 21.09.2017, transitada em julgado em 23.10.2017, o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, com regime de prova, assente em plano de reinserção social vocacionado para interiorização dos valores jurídicos postos em causa e prevenção de comportamentos violentos, a elaborar e a executar pela DGRSP.
12. Mais foi a suspensão da execução da pena de prisão subordinada à regra de conduta de proibição de contactar, por qualquer meio, com …, com fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância.
13. Quis o arguido, com a sua conduta reiterada supra descrita, infligir sofrimento psíquico na ofendida, ameaçando-a, amedrontando-a, perseguindo-a, pese embora não ignorasse que devia à visada, na qualidade de sua mulher, especial respeito e consideração.
14. Agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.

Mais se provou que:
15.No seu processo de desenvolvimento, o arguido … foi exposto a um ambiente familiar disfuncional, de conflito e violência parental.
16.Teve um trajecto escolar marcado pelo desinteresse, absentismo, baixo desempenho e abandono precoce, aos 11 anos, apenas concluindo o 3º ano do ensino básico.
17.Com essa idade começou a trabalhar na área da pintura da construção civil, acompanhando o pai até ao cerca dos 22 anos (altura em que aquele faleceu) e estabelecendo-se por conta própria desde então.
18.Numa conjuntura de crise económica do país, trabalhou cerca de 1 ano em França por conta de empresa do ramo da construção civil, regressando a Portugal num contexto de ciúme e rumores (que admite terem sido infundados) de infidelidade do cônjuge.
19.Retomou a sua actividade por conta própria na área de pintura e construção-civil.
20.O arguido consome regularmente bebidas alcoólicas desde a adolescência com episódios de excesso em contexto de convivência e com agravamento no último ano de conjugalidade.
21.O arguido e ofendida conhecem-se desde a infância. Iniciaram relação de namoro, ele com 28 anos ela com 18 anos.
22.Casaram um ano depois, em 27.07.1994.
23.Da relação têm uma filha com 22 anos e um filho de 17 anos ao cuidado da ofendida.
24.A separação ocorreu em 30-03-2017 e o divórcio em 23-11-2017.
25. A sua conjugalidade foi descrita no relatório social como tendo sido marcada por sentimentos de insegurança e ciúme mútuo, com conflitos e episódios de violência cruzada, com agravamento no último ano.
26. Segundo o relatório “ é atribuído ao arguido uma postura conjugal androcêntrica, possessiva e ciumenta, com baixo controlo das emoções e da agressividade em circunstâncias de tensão e contrariedade, por vezes potenciado por consumo imoderado de álcool”.
27. Uma conjuntura de desemprego e instabilidade laboral, aumentou o clima de tensão conjugal, o desgaste da relação e as situações de violência cruzada (ofensas verbais e físicas mútuas).
28.Neste contexto, a perda de intimidade do casal e decisão unilateral da ofendida em se separar do arguido ampliaram no arguido sentimentos de ciúme, maior descontrolo emocional e abuso do consumo de álcool.
29.No âmbito do processo 60/17.5GDCBR do Juízo Criminal de Coimbra – Juiz 1, pela prática do crime de violência doméstica, (verbal e física, ameaças de morte e manipulação de arma de lâmina) o arguido foi arguido a uma pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova e regra de conduta de proibição de contactos com a ofendida, fiscalizada por vigilância electrónica.
30.Por violação da medida de coacção de proibição de contactos com a ofendida (telefonema com ameaças) aplicada ao arguido naqueles autos com fiscalização electrónica desde 20-04-2017, o arguido esteve sujeito à obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica entre 05-06-2017 e 21-09-2017.
31.Até ao divórcio o arguido alimentou sempre expectativas de reconciliação, assegurando sempre que possível alguma apoio económico ao filho e ofendida, situação que depois suspendeu num contexto de ressentimento, retaliação e dificuldade de aceitação da ruptura conjugal.
32.Verbalizou situações de uso da violência física em situações de frequência de festas na adolescência confronto em festas e uma agressão a um superior hierárquico durante o cumprimento do serviço militar obrigatório.
33.O arguido integra o agregado familiar de uma das irmãs, em (...) , numa moradia tipologia 3”dotada de boas condições de habitabilidade.
35.Possui uma situação económica estável que permite assegurar um consistente apoio de retaguarda, sendo que, podemos ler no relatório social “este refere trabalhar em pequenos trabalhos de pintura e construção-civil, sem rendimentos regulares, parecendo preocupado em ocultar a existência de rendimentos que, em circunstâncias normais como o próprio já admitiu anteriormente, são de cerca 70 euros/dia”.
39. Podemos ler ainda no relatório social que o arguido “sublinha que pretende manter esta situação de pouca definição laboral e económica e adia projecto de emigração até cumprir a pena no processo 60/17.5GDCBR”.
40. Não está a pagar a pensão de alimentos de 140 euros devida ao filho menor estipulada na regulação do exercício das responsabilidades parentais.
41.Ocupa os tempos livres na pesca desportiva de mar e no convívio com amigos.
42. Admite consumo de álcool em contexto social e deixa a entender a possibilidade de pontuais situações de excesso que desvaloriza, negando problemática alcoólica e necessidade de apoio médico.
43.No âmbito de medida de coacção no processo 60/17.5GDCBR, não cumpriu na sua totalidade a obrigação de comparência a consultas de alcoologia.
44. Conforme podemos ler no relatório social “…não obstante reactividade e inconformismo relativamente à pena aplicada no PCS 60/17.5GDCBR o arguido tem vindo a cumprir minimamente os pressupostos desta”.
45. (…) apresenta um discurso que evidencia pouca flexibilidade, intransigência e lacunas a nível da assertividade, nomeadamente um funcionamento que tende a exprimir emoções e opiniões de forma exigente e hostil.
47. Apresenta ressentimentos e hostilidade relativamente à ofendida, dificuldades na superação da ruptura conjugal e na gestão pessoal da situação de abandono afectivo.
48…. exibe uma posição de inconformismo e de vitimização em relação à sua situação judicial nos presentes autos e situação penal nos autos do procº 60/17.5GDCBR; desvaloriza ou tende a negar os factos e revela reduzida capacidade de autocrítica.
49.Enquadrado por uma socialização com exposição a modelos relacionais violentos o arguido exibe indicadores de lacunas a nível da assertividade, baixo controlo das emoções e da agressividade em contexto de tensão e confronto.
50. No âmbito da relação de conjugalidade são de relevar conflitos extremados no último ano de vivência em comum, com violência cruzada a nível físico, verbal e psicológico, incluindo ameaças de retaliação e morte, num contexto de ciúme e de dificuldades pessoais em gerir a situação de abandono afectivo.
51. Evidencia ressentimento e hostilidade relativamente à ofendida e uma revolta generalizada contra o sistema judicial, vitimizando-se e desresponsabilizando-se parcialmente dos factos.
52.O historial de violação de anteriores medidas de coacção, a reactividade generalizada, o consumo pontualmente excessivo de bebidas alcoólicas e alguma instabilidade laboral são também elementos subsidiários de risco.
Matéria de Facto Não Provada
Não resultaram provados quaisquer outros factos que estejam em contradição com a factualidade (provada) supra elencada, sendo que se provaram, no essencial, os factos constantes da acusação.

2. Apreciou o tribunal a quo a questão do princípio constitucional do ne bis in idem, nos seguintes termos:
Atenta a matéria de facto apurada, importa proceder ao seu enquadramento jurídico -penal.
Desde logo alega a defesa que no caso concreto se verifica a excepção de caso julgado, pois o arguido já foi julgado e condenado no processo n.º 60/17.5GDCBR, sendo que os factos ali julgados se reportam directa ou indirectamente a estes factos e o quadro motivacional é o mesmo, constituem uma continuidade daquele processo crime e com ele formam uma unidade de sentido.
Decidindo.
A excepção de caso julgado materializa o disposto no art. 29.º, n.º 5 da CRP quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material).
Transcendendo a sua dimensão processual, a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva. Esta garantia visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural.
Caso julgado em substância significa decisão imutável e irrevogável; significa imutabilidade do mandado que nasce da sentença. Aproximamo-nos assim à lapidar definição romana da jurisdição: quae finem controversiarum pronuntiatione iudicis accipit (que impõe o fim das controvérsias com o pronunciamento do juiz).
Para que a excepção funcione e produza o seu efeito impeditivo característico, a imputação tem que ser idêntica, e a imputação é idêntica quando tem por objecto o mesmo comportamento atribuído à mesma pessoa (identidade de objecto - eadem res). Trata-se da identidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída. As duas identidades que refere a doutrina unidade de acusado e unidade de facto punível têm sido assim consideradas: a. Para que proceda a excepção de caso julgado requer-se que o crime e a pessoa do acusado sejam idênticos aos que foram matéria da instrução anterior à que se pôs termo no mérito de uma resolução executória. b. A identidade da pessoa refere-se só à do processado e não à parte acusadora para que proceda a excepção de caso julgado. c. Se os factos são os mesmos e culminaram com uma sentença executória, ainda que o nomen juris seja distinto, é procedente a excepção de caso julgado. do ne bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.
Para a identificação de facto tem que tomar-se em linha de conta v.g. os critérios jurídicos de "objecto normativo" e "identidade ou diversidade do bem jurídico lesionado".
A identidade do facto mantém-se ainda quando seja pelos mesmos elementos valorados no primeiro julgamento ou pela superveniência de novos elementos ou de novas provas deva considerar-se em forma diferente em razão do título, do grau ou das circunstâncias. O título refere-se à definição jurídica do facto, ao momen iuris do crime. A mutação do título sem uma correspondente mutação de facto não vale para consentir uma nova acção penal. Em conclusão, para estabelecer a identidade fáctica para efeito de aplicar a excepção de caso julgado, não interessa que os mesmos factos tenham sido qualificados ou subsumidos a distintos tipos penais, nem importa tão pouco o grau de participação imputado ao sujeito.
Um terceiro requisito de procedibilidade, que tem relação estreita com a natureza do caso julgado, respeita a que o primeiro processo tenha sido findo totalmente e que não seja susceptível de meio impugnatório algum, para que justamente se possa reclamar os efeitos de inalterabilidade que acompanha as decisões jurisdicionais que passam à autoridade de caso julgado.
Para a determinação de identidade de facto é essencial considerar o seu significado jurídico. Os processos de subsunção são um caminho de ida e volta, em que se transita da informação fáctica à norma jurídica e desta aos factos outra vez.
Sempre que, segundo a ordem jurídica, se trate de uma mesma entidade fáctica, com similar significado jurídico em temos gerais – e aqui "similar" deve ser entendido de modo mais amplo possível –, então deve operar o princípio ne bis in idem".
Pelo que, só quando claramente se trata de factos diferentes será admissível um novo processo penal. cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 13-04-2011, acessível in www.dgsi.pt
Com relevância em sede de crime de violência doméstica, concorda-se com o douto Acórdão da Relação do Porto de 28-10-2015 acessível in www,dgsi.pt, segundo o qual o principio ne bis in idem engloba uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo MºPº, da decisão de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência de queixa.
Ademais, sendo certo que o crime de violência doméstica é um crime habitual ou de reiteração, onde as várias condutas isoladas são unificadas pela violação do mesmo bem jurídico (a saúde, física, psíquica e mental), se um dado facto, embora novo, se integra no mesmo pedaço de vida do arguido e da vitima subsumível ao crime de violência doméstica, já definitivamente julgado, é abrangido pelo caso julgado e a sua consideração autónoma viola o principio ne bis in idem.
Com efeito, neste acórdão considerou-se que um crime de ameaça praticado no período de factos em que decorreram os factos integradores do crime de violência doméstica estavam englobados os factos relativos a crime de ameaça praticado neste período temporal.
Contudo, no caso concreto dos autos, a situação dos autos é diversa, ou seja no âmbito do processo supra identificado e já julgado os factos subsumíveis ao crime de violência doméstica reportam-se ao início da vivência em comum com a ofendida e vão até ao dia 28 de Março de 2017.
Ora os factos juridicamente relevantes neste processo reportam a actos de violência psíquica praticados depois daquela data, isto é depois de 28.03.207.
Cremos pois que é o suficiente para que não se encontre verificada a aludida excepção.

IV
Cumpre decidir:
1ª Questão: a violação do princípio constitucional do ne bis in idem.
1. O princípio do ne bis in idem encontra-se consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da CRP, ao estipular que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
O conceito ou natureza deste princípio mostra-se analisado por Gomes Canotilho e Vital Moreira In Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 2007, pp. 497 e 498, do seguinte modo:
 “… comporta duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
(…)
A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime».”
Nesta linha de entendimento se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça, o que fez nomeadamente no acórdão de 14/10/2015, proferido no processo n.º 2/15.2 YFLSB da Secção do Contencioso, ao considerar que:
«I - O art.º 29.º, n.º 5, da CRP prevê a inadmissibilidade, em sentido amplo, de um segundo procedimento que vise o mesmo sujeito e que incida sobre factos que já constituíram objecto de um outro processo, apresentando-se como um princípio que comporta uma dimensão subjectiva - um direito do cidadão perante o Estado que tem na base a necessidade de assegurar a sua paz jurídica – e uma dimensão objectiva – impõe ao legislador a definição do direito processual e do caso julgado material para evitar a existência de um duplo julgamento sobre os mesmos factos.
E no acórdão da Secção do Contencioso do STJ de 23/06/ 2016, proferido no processo n.º 16/14.0YFLSB, foi considerado que:
«O princípio non bis in idem, proíbe assim que, na actividade sancionatória, se proceda a uma dupla valoração do mesmo substrato material. As fundamentais razões dessa proibição residem, por um lado, na paz jurídica que ao arguido se deve garantir finda a perseguição de que foi alvo e, por outro lado, no interesse em evitar pronúncias díspares sobre factos unitários. E, para que a referida proibição assuma o devido alcance, a doutrina fá-la acompanhar do que designa por um mandado de esgotante apreciação de toda a matéria cognoscível.»  
       
A lei constitucional é clara ao pretender impedir nova apreciação dos mesmos factos, seja qual for a qualificação jurídica que lhes é atribuída.
Como afirma Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 226, “… o caso julgado tem uma função de garantia do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto”.

Importa, assim, definir e delimitar o que se deve entender ou considerar por “o mesmo substrato material”, “o mesmo facto” ou, segundo o n.º 5 do artigo 29.º da CRP, “mesmo crime”, para, por esta via, evitar o designado duplo julgamento e consequente violação do caso julgado material.
Ora, a jurisprudência tem vindo a entender que a expressão “mesmo crime”, a consagrada pelo legislador “não deve ser interpretada, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime.” - Ac Rel Coimbra de 28-05-2008, Rel. Alberto Mira[3].
Ou, segundo Frederico Isasca, ob, cit., pág. 242 e 229 «… o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados».
Por sua vez, decide-se no Ac. do STJ, de 15-03-2006, relator Cons. Oliveira Mendes:
“O termo “crime” não deve pois ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar.
O que o artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.

Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.”

2. Traduzindo-se, pois, a expressão “mesmo crime”, no designado “pedaço de vida” apreciado e julgado e que constitui ou integra um determinado crime, importa agora analisar todo o factualismo fornecido pelos autos com vista à verificação ou não de caso julgado relativamente ao “pedaço de vida” que no caso releva.

Os factos a considerar estão enumerados na sentença recorrida bem como nas alegações do recorrente que, retirando algumas considerações de direito, relatam efetivamente a situação com bastante fidedignidade. Pelo que apenas quando necessário, se repetirão aqui os mesmos, para melhor compreensão e enquadramento da situação em análise.

No processo n.º 60/17.5GDCBR  foram julgados os factos referentes ao dia 28 de março de 2017. Enquanto que nos presentes autos foram julgados os factos ocorridos no dia 11.04.2017 e em maio/junho de 2017 (estes, quanto a alguns telefonemas).
A questão fulcral a apurar é, pois, considerar se todos estes factos, quer os apreciados no processo n.º 60/17.5GDCBR, quer os apreciados neste processo n.º 76/17.1GDCBR, integram o mesmo “pedaço de vida” ou dois pedaços de vida diferentes, o mesmo é dizer, se estamos perante um único e mesmo crime de violência doméstica que engloba todos estes factos, ou se estamos perante dois crimes de violência doméstica, conforme decidido pelo tribunal recorrido.

A natureza jurídica do crime de violência doméstica ajuda-nos a melhor compreender e integrar a concreta situação.
Segundo o definido pelo atual artigo 152º, do Código Penal, este crime pode ser praticado de modo reiterado ou não. O que significa que um único facto pode ser qualificado como integrando este tipo de crime, do mesmo modo que o crime pode ser integrado por vários ou diversos factos. Trata-se, neste caso, de um crime único ainda que de execução reiterada.
Diz-se que a  execução é reiterada quando cada ato de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. E todos os eventos parcelares devem ser considerados como evento final unitário. Ou seja, é a soma dos eventos parcelares que constitui o evento do crime único de violência doméstica. E tratando-se de um crime único, a consumação ocorre com a prática do último ato de execução.
Neste sentido se pronuncia o Ac. TRE de 19-12-2013:
I. No crime de violência doméstica, a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, que se consuma com a prática do último acto de execução.
II. Em face disso, quer para efeitos de escolha e decisão da lei aplicável (como seja da natureza pública do crime e consequente legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal), quer para efeitos de contagem do prazo de prescrição, o determinante é a data da execução do último facto praticado, isto é, o dia em que cessou a sua consumação[4].
E, nesta medida, corrobora-se o decidido pelo julgador a quo quando afirma:
Ademais, sendo certo que o crime de violência doméstica é um crime habitual ou de reiteração, onde as várias condutas isoladas são unificadas pela violação do mesmo bem jurídico (a saúde, física, psíquica e mental), se um dado facto, embora novo, se integra no mesmo pedaço de vida do arguido e da vitima subsumível ao crime de violência doméstica, já definitivamente julgado, é abrangido pelo caso julgado e a sua consideração autónoma viola o principio ne bis in idem”.

Considerações que, em nosso entender, não têm tradução prática na subsunção jurídica que o tribunal recorrido acabou por fazer que, além de “parca”, entendeu não se mostrar violado o princípio do ne bis in idem:
“Contudo, no caso concreto dos autos, a situação dos autos é diversa, ou seja no âmbito do processo supra identificado e já julgado os factos subsumíveis ao crime de violência doméstica reportam-se ao início da vivência em comum com a ofendida e vão até ao dia 28 de Março de 2017.
Ora os factos juridicamente relevantes neste processo reportam a actos de violência psíquica praticados depois daquela data, isto é depois de 28.03.207.
Cremos pois que é o suficiente para que não se encontre verificada a aludida excepção”.

3. Essencial para averiguar se os factos julgados neste processo n.º 76/17.1GDCBR integram o crime de violência doméstica já julgado no processo n.º 60/17.5GDCBR, ou seja, se se trata de mais um facto da designada reiteração, se corresponde a mais uma parcela do pedaço de vida a apreciar no seu todo ou se está em causa um diferente crime de violência doméstica, é apurar se a estes “novos” factos corresponde uma nova resolução criminosa ou se a resolução criminosa inicial é a mesma. Ou, dito de outro modo, importa averiguar se com a consumação do facto do dia 28 de março de 2017 se interrompeu o desígnio criminoso do arguido e este formulou novo desígnio ao praticar os factos do dia 11 de abril de 2017.

Uma análise pormenorizada da conduta do arguido, globalmente considerada, permite-nos com a segurança jurídica necessária, concluir por uma estreita conexão entre todos os factos que integram ambos os processos. Que existiu uma única resolução criminosa do arguido. Que o seu desígnio criminoso não se interrompeu com os factos do dia 28.3.2017. Que a resolução criminosa do arguido apenas terminou com o último ato deste processo n.º 76/17.1GDCBR .
Vejamos:
3.1. No processo n.º 60/17.5GDCBR foi dado como provado que:
12. No dia 28.03.2017, pelas 20h30m, no interior da residência do casal, o arguido, aparentava encontrar-se embriagado.
13. E iniciou uma discussão com … sobre a utilização, pela mesma, do veículo automóvel da família, dizendo-lhe que apenas o poderia utilizar caso o arguido lhe desse autorização.
            14. Nessa ocasião, o arguido dirigiu-se a …, dizendo-lhe : “és uma puta…, uma vaca”.
15. E: “ se não és minha não vais ser de mais ninguém”.
16. De seguida, o arguido agarrou numa faca de cozinha.
17. E empunhou-a na direcção de …, apontando-a aos seus olhos.
18. … disse ao arguido que “não tinha medo”.
19. O arguido largou a faca.
20. O arguido avançou na direcção de ….
21. Agarrou-a pelo pescoço.
22. E apertou-o.
23. E arrastou … presa pelo pescoço, pelo chão da habitação até chegar ao sofá da sala.
            24. … conseguiu libertar-se do arguido, rasgando-lhe a t’shirt que o mesmo vestia.
25. Nessa ocasião chegou a casa o filho do casal, ….
26. Tendo-lhe … pedido para que fosse chamar a GNR.
27. O arguido escondeu a carteira de ….
28. E avançou na sua direcção.
29. E empurrou-a para o chão.
30.Estando … prostrada no chão, o arguido desferiu-lhe murros em número de vezes não concretamente apurado, pelo corpo.
31. Agarrou-lhe na cabeça com as duas mãos.
32. E fê-la embater, três vezes, contra o chão.
33. Nesse momento, o arguido disse a … que a mesma “era a culpada por aquilo estar a acontecer”.
 34. O arguido acabou por se afastar .. .


3. no dia 11.04.2017, cerca das 19h00, contrariamente às medidas de coação aplicadas, quando ainda não tinha sido instalado o dispositivo de controlo à distância, o arguido dirigiu-se à casa da ofendida, sita na Rua …, n.º ..., …, (...) , desferiu um pontapé na porta de entrada da residência, arrombando-a, acedeu ao seu interior e disse à ofendida que não queria o divórcio, que se separasse dele a matava e que se matava a ele, que se não fosse dele não era de mais ninguém.

6. Posteriormente, por contacto telefónico o arguido quis reatar a relação, dizendo que ia mudar, pedindo desculpa.
7. Descontente com a recusa da ofendida em reatar a relação, o arguido voltou a dizer que se não fosse dele não era de mais ninguém; que a matava.

            3.3. Segundo Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 334. “o tipo de crime em análise[5] pressupõe, segundo a ratio da autonomização deste crime, uma reiteração das respetivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará o elemento de reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime”.
  Ora, não só, no caso concreto, o tempo decorrido entre todos os factos é bastante curto, como os factos destes autos estão numa relação ou sequência lógica dos factos iniciais, o arguido manteve o mesmo desígnio da sua conduta para com a vítima, proferindo o arguido expressões e ameaças para com a ofendida, da mesma natureza, em ambas as situações e visando o mesmo objetivo – v. se não fosse dele não era de mais ninguém; que a matava.
Assim sendo, impunha-se que todo este pedaço de vida do arguido tivesse sido valorado globalmente, num único processo, pois integra apenas um crime de violência doméstica.
É neste sentido que se tem pronunciado a jurisprudência dos Tribunais superiores, nomeadamente:
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8/11/2011, Coletânea Jurisprudência, 2011, Tomo V, p.31, também disponível in www.dgsi.pt:
 “I. O crime de violência doméstica previsto no artº152º do CP é muito mais que a soma dos diversos ilícitos que o podem preencher, não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente, mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime.
III. O crime de violência doméstica é um crime único, ainda que de execução
reiterada, ocorrendo a sua consumação com a prática do último ato de execução.”
- Acórdão do Tribunal da Relação Évora de 19/12/2013, disponível in www.dgsi.pt.
I. No crime de violência doméstica, a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, que se consuma com a prática do último acto de execução.
II. Em face disso, quer para efeitos de escolha e decisão da lei aplicável (como seja da natureza pública do crime e consequente legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal), quer para efeitos de contagem do prazo de prescrição, o determinante é a data da execução do último facto praticado, isto é, o dia em que cessou a sua consumação.

4. Integrando o conjunto dos factos referentes a ambos os processos (60/17.5GDCBR e 76/17.1GDCBR) o mesmo e um único crime de violência doméstica, pois de uma única unidade criminosa se trata, cumpre averiguar agora o que poderia/deveria ter sido feito (mas que não foi), em ambos os processos.
4.1. É por demais evidente que os factos destes autos eram conhecidos no processo 60/17.5GDCBR, desde o primeiro momento, tendo os mesmos sido ponderados e determinantes para a alteração da medida de coação do arguido em 5.6.2017[6].
É certo que, existindo conexão entre todos os factos (embora objeto de duas participações autónomas), é todavia processualmente discutível se a mesma podia operar legalmente nos termos das regras dos artigos 24º a 29º, do Código de Processo Penal.
Com efeito, surpreendentemente, no processo nº 60/17.5GDCBR, cujos factos ocorreram em 28.3.2017, foi deduzida acusação em 06-04-2017, conforme informação da certidão mandada juntar aos autos (ou seja, nove dias depois).
E compulsados os presentes autos 76/17.1GDCBR, também surpreendentemente, a acusação apenas foi deduzida em 2.2.2018 – v. fls 116 a 119 ( ou seja, quase dez meses depois).
E exige o artigo 24º, nº 2, do Código de Processo Penal que, para a conexão operar, devem os processos encontrar-se simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento.
Todavia, independentemente de não ter existido apensação legal de processos, quando foi realizado o julgamento nos autos 60/17.5GDCBR, existia neles conhecimento dos factos do presente processo. Pelo que, nomeadamente pela via do artigo 358º, do Código de Processo Penal – alteração não substancial dos factos descritos na acusação -, poderia/deveria o tribunal de julgamento deles ter logo conhecido, pois os fundamentos que neste momento existem para os considerar como integrantes do mesmo tipo de crime já se verificavam nessa altura. Para tanto, bastava apreciá-los.
4.2. Perante as vicissitudes já conhecidas, com a omissão de conhecimento dos factos destes autos no julgamento do processo nº 60/17.5GDCBR e com a dedução da acusação apenas em 2.2.2018, teve lugar neste processo o respetivo julgamento que ditou a condenação do arguido pela prática de um novo crime de violência doméstica pois foi então considerado a não verificação e consequente violação do princípio do ne bis in idem.

Tendo-se concluindo, conforme fundamentação supra, que afinal todos os factos integram um único crime, quid juris quanto aos factos deste processo pelos quais o arguido não pode ser condenado autonomamente por outro crime de violência doméstica mas que também não foram apreciados no julgamento do processo nº 60/17.5GDCBR?

Segundo Henrique Salinas in Os Limites Objetivos do ne bis in idem, Dissertação de Doutoramento - fevereiro de 2012, página 694 “a preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir-se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual[7]. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto.”

Também segundo o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de Outubro de 2015, proferido sob o processo n.º 950/11.9PIVNG.P25,
“I – O princípio ne bis in idem engloba uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo MºPº, da decisão de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência de queixa.
II – E engloba não só o que foi conhecido no 1º processo mas também o que aí poderia ter
sido conhecido[8].
III – O crime de violência doméstica é um crime habitual ou de reiteração, onde as várias condutas isoladas são unificadas pela violação do mesmo bem jurídico (a saúde, física, psíquica e mental), nele se exaurindo ou esgotando.
IV- Se um dado facto, embora novo, se integra no mesmo pedaço de vida do arguido e da vítima subsumível ao crime de violência doméstica, já definitivamente julgado, é abrangido pelo caso julgado e a sua consideração autónoma viola o princípio ne bis in idem.” [9]

No mesmo sentido, v. ac. da Relação de Lisboa, de 17/04/2013, no processo n.º 790/09.5GDALM.L1-3, publicado em www.dgsi.pt:
“a apreciação de uma nova conduta, temporalmente inserida no âmbito do período de tempo considerado para uma anterior condenação pelo mesmo crime, desde que individualmente suscetível de integrar o referido crime, por ser relativa a toda uma prática de humilhação, degradação e aviltamento da dignidade do cônjuge, está coberta pela proibição do ne bis in idem, que constitui a manifestação substantiva do princípio do caso julgado”.

E renova-se aqui e agora o que já supra se reproduziu quanto ao decidido no Ac do STJ, de 15-03-2006, relator Cons. Oliveira Mendes:
“O que o artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, proíbe, é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.

Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente.”
4.3. Significa tudo isto que, não tendo os factos destes autos sido apreciados no julgamento do dia 21.9.2017, no processo nº 60/17.5GDCBR, já não o podiam ser autonomamente nestes autos, sob pena de violação da exceção de caso julgado, expresso no artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa sob a designação do princípio de ne bis in idem.
4.4. A procedência desta exceção de caso julgado, com a consequente absolvição do arguido pelo crime por que foi condenado nestes autos, torna inútil a apreciação das demais questões suscitadas pelo recorrente.                                 

IV
Decisão
Por todo o exposto, decide-se:
1. Julgar procedente o recurso do recorrente … e, consequentemente, julgando-se verificada a exceção de caso julgado, consubstanciada na violação do princípio de ne bis in idem, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se a absolvição do arguido.
2. Não apreciar as demais questões suscitadas pelo recorrente por se mostrar inútil a sua apreciação.
Sem custas.
 
Coimbra, 15 de Maio de 2019
Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários
           
Luís Teixeira (relator)

            Vasques Osório (adjunto)














                                                                                                                                         

[1] SALINAS, Henrique, Os Limites Objetivos do ne bis in idem, Dissertação de Doutoramento - fevereiro de 2012, página 694.

[2] Acessível online no endereço:

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/055cc788d1ed076c80257f0200519c39?OpenDocument [acedido em 03 de Maio de 2018].

[3] No mesmo sentido, Ac. deste TRC de 09-03-2016, proc. nº 48/15.0GBLSA.C1, relatora Isabel Valongo.
[4] V. também Ac. RP de 10.7.2013.
[5] O crime de violência doméstica.
[6] Nas conclusões de recurso do arguido dá-se nota do conhecimento efetivo quer do Ministério Público quer do tribunal, destes factos.
[7] Sublinhado nosso,
[8] Negrito nosso.
[9] Desta mesma Relação v. Ac. 10.7.2013, onde se decide:
“O crime de Violência doméstica [art. 152.º do CP] consuma-se com a prática do último ato de execução e assim, qualquer facto que integrasse o pedaço de vida do agente e da vítima e que não fora conhecido no processo já definitivamente julgado não pode mais ser conhecido em novo processo, pois que Isso comportaria a violação do caso julgado e da garantia constitucional do ne bis in Idem”.


3.2. Ora, tendo estes factos ocorridos em 28.03.2017, deu-se como provado nos presentes autos que: