Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
104/15.5GBSCD.C3
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CONTRAFACÇÃO DE MARCA
VENDA
CIRCULAÇÃO OU OCULTAÇÃO DE PRODUTOS OU ARTIGOS
COLOCAÇÃO NO MERCADO
LEI NOVA
LEI ANTIGA
Data do Acordão: 11/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SANTA COMBA DÃO – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, COM DIVERSOS FUNDAMENTOS
Legislação Nacional: ARTS. 323.º E 324.º DO CÓDIGO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL (DL 36/2003, DE 05-03); ARTS. 320.º, AL. D), E 321.º DO CPI (DL N.º 110/2018, DE 10-12)
Sumário: I – Diversamente do entendimento contido na decisão recorrida – no sentido de a exposição, para venda ao público, de produtos de marca contrafeita integrar o segmento normativo, previsto na al. d) do art. 320.º do novo Código da Propriedade Industrial (DL n.º 110/2018, de 10-12), “colocar no mercado” –, a dita previsão legal, quando encarada no contexto das demais acções elencadas no tipo do referido artigo, tais como “importar”, “exportar” ou “distribuir”, mais não traduz do que a “expressão final” destas, cuja ordem de grandeza ultrapassa inequivocamente a conduta em causa.

II – Tal posição, a da decisão sob recurso, tornaria de difícil compreensão que, na situação concreta, fazendo também apelo ao regime punitivo fixado no artigo 321.º do mesmo diploma, a “exposição para venda ao público” fosse mais severamente sancionada do que a conduta de quem “vender”.

III – Quando o legislador se refere, quer na redacção do art. 324.º do Código da Propriedade Industrial antigo (DL n.º 36/2003, de 05-03, com as sucessivas alterações depois registadas), quer na previsão do art. 321.º do actual Código, a “quem vender”, está a reportar-se a uma “actividade” que vai para além do “acto de venda”, integrando-se, naturalmente, este naquela. Em causa não está a criminalização do “acto (contrato) de compra e venda”, mas antes a “actividade de venda”.

IV – Terá sido o reconhecimento por parte do legislador da desnecessidade de conservar, a par da “actividade de venda”, a acção de “pôr em circulação”, que conduziu à não inscrição desta última no art. 321.º do CPI actualmente em vigor.

V – Assim como não deixará de ter sido a contestação do pouco sentido da exigência do elemento subjectivo adicional a determinante da não descrição, na mesma norma, do inciso, antes previsto no art. 324.º do antigo CPI, “com conhecimento dessa situação”.

Decisão Texto Integral:






Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

1. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 105/15.5GBSCD do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, S. C. Dão – Juízo de C. Genérica – Juiz 1, foi o arguido J. condenado por sentença transitada em julgado pela prática do crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324.º do Código de Propriedade Industrial, por referência ao artigo 323.º, alínea a) do mesmo diploma, na pena de 4 (quatro) meses de prisão.

2. A fls. 529/530, invocando a descriminalização dos factos pelos quais sofrera condenação, requereu o arguido, ao abrigo do disposto no artigo 371.º - A do Código de Processo Penal, a reabertura da audiência para o efeito da aplicação da lei penal mais favorável, o que foi deferido.

3. Realizada a audiência (artigo 371.º - A, do CPP), por sentença, proferida em 12.12.2019, o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]:

“Face ao exposto, decide-se não aplicar a lei nova por a mesma não ser mais favorável ao arguido e, em consequência, mantém-se a condenação do arguido nos seus precisos termos.»

4. Inconformado recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

i. O arguido, aqui recorrente suscitou a abertura da audiência, nos termos e para os efeitos do disposto do art. 371.º-A do Cod. Proc. Penal.

ii. Após a entrada em vigor do Decreto-Lei 110/2018, de 10 de Dezembro, o Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de março, alterado pelos Decretos-Leis nº 318/2007, de 26 de setembro, e 360/2007, de 2 de novembro, pela Lei n.º 16/2008, de 1 de abril, pelo Decreto-Lei n.º 143/2008, de 25 de julho, e pelas Leis nº 52/2008, de 28 de agosto, 46/2011, de 24 de junho, e 83/2017, de 18 de agosto, que aprova o novo Código da Propriedade Industrial, foi totalmente revogado.

iii. Tendo, da alteração legislativa indicada resultado a descriminalização da conduta pelo qual o mesmo havia sido condenado.

iv. A decisão da qual se recorre, para além de infundada, porquanto não alega qualquer fundamento de facto ou de Direito do qual resulte a decisão ora proferida, padecendo ainda de incorreta aplicação e interpretação da lei vigente, da qual resulta nulidade, a qual desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos. Senão vejamos:

v. O sistema penal português prevê que se, após o trânsito em julgado de decisão condenatório, mas antes da cessão da respetiva execução, entrar em vigor lei penal mais favorável, o arguido pode requerer a abertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.

vi. O recorrente foi condenado á pena de 4 meses de prisão pela prática de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos p. e p. pelo art. 324º do Decreto-Lei 36/2003, por ora revogado.

vii. Consultado o Decreto-Lei 110/2018, ora em vigor, resulta do mesmo que a pena aplicada á venda ou ocultação de produtos é a pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias quem vender ou ocultar para esse fim produtos que estejam nas condições referidas nos artigos 318.º a 320.º

viii. Sucede que, o arguido não procedeu á venda de qualquer produto ou mercadoria.

ix. Efetivamente conta dos autos, nos factos dados por provados, que o arguido detinha, no dia 01-07-2015, cerca das 10h10, no recinto da feira semanal de (…), expostos para venda ao público diversos produtos com os dizeres da marca Lacoste e Adidas, bem como sabia que tais produtos eram reproduções de originais.

x. O arguido, aqui recorrente, não foi condenado pela ocultação ou venda dos mesmos, como se de originais se tratassem.

xi. Não se podendo assim concluir, dos factos dados como provados que o arguido pretendia, ou conseguiu, vender qualquer produto como se de produto original se tratasse;

xii. Preenchendo-se assim o elemento objetivo do crime da venda de bem contrafeito, isto é, a violação do direito económico dos respetivos titulares das marcas, bem como a segurança e garantia dos consumidores.

xiii. Pretende o Tribunal a quo, erradamente, e á revelia do espírito do legislador, fazer valer a conceção de que o normativo legal constante do anterior art. 324.º, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 110/2018, passa a ter a redação prevista no art. 321.º.

xiv. Contudo, facilmente se conclui que, o ato de circulação com produto contrafeito deixou de ser considerado, para efeitos de ilicitude, como ato significativo;

xv. Tanto mais que o ato de colocar em circulação foi excluído da nova redação, considerando-se assim, para efeitos de ilicitude criminal a respetiva despenalização.

xvi. Assim, mal andou o Tribunal a quo ao considerar no seu despacho que antecede que: “Por em circulação ou colocar no mercado não são mais do que expressões sinonimas entre si, dado que, uma e outra, querem dizer exatamente a mesma coisa, que é a disseminação do produto no mercado ou introduzir o produto no circuito económico.”

xvii. Não se bastando com a incorreta interpretação do Direito aplicável, ainda tenta o Tribunal a quo corroborar a sua teoria invocando o teor do disposto na al. D) do art. 320.º, ao referir que a conduta eliminada puser em circulação no atual CPI, o ilícito se mantem previsto na referencia ao ato de colocar no mercado.

xviii. Ora, se fosse o espírito do legislador manter a criminalização do ato de “colocar em circulação” produtos alegadamente contrafeitos, tal expressão não teria sido abolida da nova relação legal…

xix. Por outro lado, e tentando não nos alongarmos muito na interpretação semântica das expressões utilizadas pelo Tribunal a quo, como sinónimos, cumpre-nos esclarecer que “por em circulação” e “colocar no mercado” são situações bastantes diferentes, tanto do ponto de vista linguístico e/ou gramatical, como acima de tudo, e do ponto de vista jurídico, bastante diferentes. Senão vejamos:

xx. Por em circulação implica a atuação de produzir, entregar para venda, fornecer; implica a atividade do vulgarmente chamado grossista.

xxi. Por outro lado, e situações bem diferente é o ato de “colocar no mercado”. O arguido não comercializou qualquer produto. O arguido, aqui recorrente, apenas e só divulgou os produtos que apresentada. Nunca se referiu aos mesmos como produtos verdadeiros, nunca vendeu qualquer produto como se de produtos originais se tratasse. Nunca lucrou com qualquer montante em prejuízo, quer do detentor dos respetivos direitos de marca, quer dos clientes, ao serem enganados.

xxii. Não se pode assim, nunca, considerar a aplicabilidade da al. d) do art. 320.º in casu.

xxiii. Tendo legislador, com a reforma legislativa efetuada, retirado ilicitude criminal ao ato de colocar em circulação, ato pelo qual o arguido foi condenado.

xxiv. Não encontrando assim qualquer enquadramento e/ou fundamento legal á condenação decidida manter, porquanto a atuação do recorrente não esta prevista na Legislação aplicável como punível.

xxv. Deverá ao recorrente ser aplicado o Decreto-Lei 110/2018, que revogou o Decreto-Lei 36/2003, e no qual não está prevista a punição dos factos pelos quais o recorrente foi condenado em sede de 1º Instância;

xxvi. Devendo, sob pena de inconstitucionalidade, ser o mesmo absolvido dos factos pelos quais foi condenado.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência, deve a douta decisão ora posta em crise revogada e substituída por outra que determine a absolvição do arguido.

Assim se fazendo justiça!!!

5. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

6. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu:

I – O arguido, ora recorrente, foi condenado nos presentes autos, por decisão já transitada e julgado, pelo crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, previsto e punido pelos artigos 323.º, alínea a) e 324.º do Código da Propriedade Industrial, em vigor ao tempo da prolação da sentença, na pena de 4 (quatro) meses de prisão efetiva.

II - Com base nas alterações introduzidas pela entrada em vigor do DL 110/18 de 10 de Dezembro, requereu a reabertura da audiência para aplicação da lei nova, na sua perspetiva, mais favorável, nos termos do artigo 371.º - A do Código de Processo Penal, por considerar que aquela alteração legislativa havia operado a descriminalização da conduta pela qual o arguido foi condenado: colocação em circulação de produtos contrafeitos, em virtude de ter desaparecido do artigo do artigo 321.º (que substituiu o artigo 324.º) o segmento “puser em circulação”.

III – Em 12/12/2019 o Tribunal a quo, decidiu contra a pretensão do recorrente e considerou que o atual diploma manteve a criminalização da conduta do recorrente, embora noutra previsão normativa, mais concretamente no artigo 320.º, alínea d) do atual CPI e, por isso, manteve a condenação.

IV – Acompanhamos o Tribunal a quo que considerou que a alteração legislativa ocorrida não produz os efeitos pretendidos pelo recorrente.

V – Dispunha o artigo 324.º do Código da Propriedade Industrial, na versão em vigor à data da prolação da sentença, sob a epígrafe venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, que: É punido com pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos, por qualquer dos modos e nas condições referidas nos artigos 321.º a 323.º, com conhecimento dessa situação.”

VI – Por sua vez, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 110/2018, de 10 de Dezembro, que revogou aquele diploma legal, e aprovou o novo Código da Propriedade Industrial, aquele artigo 324.º foi substituído pelo artigo 321.º, sob a epígrafe venda ou ocultação de produtos ou artigos, segundo o qual “É punido com pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias quem vender ou ocultar para esse fim produtos que estejam nas condições referidas nos artigos 318.º a 320.º.”

VII – Desta alteração resulta que o legislador suprimiu desta nova previsão normativa o segmento “puser em circulação”.

VIII – No entanto, uma leitura atenta do novo diploma, permite facilmente concluir que o legislador não descriminalizou a conduta em causa, antes optou por prever a sua criminalização na alínea d) do artigo 320.º do novo CPI.

IX – Com efeito, o artigo 320.º do CPI sob a epígrafe Contrafação, imitação e uso ilegal de marca, prevê que “É punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias quem, sem consentimento do titular do direito: (…) Importar, exportar, distribuir, colocar no mercado ou armazenar com essas finalidades, produtos com marcas contrafeitas ou imitadas.” - alínea d) - (sublinhado nosso).

X – Assim, impõe-se concluir não só que o legislador manteve a criminalização da conduta do arguido, ora recorrente, como ainda agravou a sua punição.

XI – Na verdade, quando o Tribunal a quo, deu como provado que “No dia 01.07.2015, cerca das 10h10, no recinto da feira semanal de (…), o arguido detinha, expostos para venda ao público, ostentando nos lugares próprios e usuais, os símbolos, etiquetas e dizeres com inscrições de modelos e marcas, os seguintes produtos (…)” não se vislumbra que outra interpretação há a retirar que não seja a de subsumir a conduta do recorrente à previsão do artigo 320.º alínea d) citado, não podendo colher, salvo melhor opinião, a leitura espartilhada do diploma que o recorrente pretendeu e pretende fazer valer.

XII – Bem andou o Tribunal a quo ao considerar que “(…) pôr em circulação ou colocar no mercado não são mais do que expressões sinónimas entre si, dado que, uma e outra, querem dizer exatamente a mesma coisa, que é a disseminação do produto no mercado ou introduzir o produto no circuito económico” e, nessa medida, manteve a condenação nos seus precisos e exatos termos.

XIII – A decisão recorrida não padece de qualquer nulidade, porquanto não viola qualquer preceito legal.

XIV - Por assim se entender deve ser negado provimento à pretensão do recorrente.

Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, ser mantida a decisão recorrida.

No entanto, V. Exas, decidindo, farão, como sempre, JUSTIÇA!

7. O Exmo. Procurador da República emitiu parecer pronunciando-se no sentido de o recurso não merecer provimento.

8. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP o recorrente não reagiu.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso em apreço importa decidir se (i) a decisão enferma de nulidade; (ii) com a entrada em vigor do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo D.L. n.º 110/2018, de 10.12, os factos pelos quais o arguido/recorrente sofreu condenação se encontram descriminalizados.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da decisão em crise:

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

A. Com relevo para a decisão a proferir, consideram-se provados os seguintes factos:

1. Por sentença proferida nestes autos e transitada em julgado em 02.11.2018, o arguido foi condenado pela prática, em 01.07.2015, de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, do artigo 324.º, do Código da Propriedade Industrial, na pena de 4 meses de prisão.

2. De tal sentença consta a seguinte factualidade provada:

a. No dia 01.07.2015, cerca das 10h10, no recinto da feira semanal de (…), o arguido detinha, expostos para venda ao público, ostentando nos lugares próprios e usuais, os símbolos, etiquetas e dizeres com inscrições de modelos e marcas, os seguintes produtos:

i. 30 polos com os dizeres Lacoste;

ii. 33 calções com os dizeres Adidas;

iii. 18 fatos de treino (calção, tipo leggings, e camisola de manga curta com os dizeres Adidas);

iv. 6 fatos de desporto (calção e camisola de manga cavada), com os dizeres Adidas.

b. Os produtos descritos com os dizeres Adidas:

i. Não fazem parte de nenhuma coleção Adidas;

ii. Não são modelos originais Adidas;

iii. As peças não respeitam as normas de etiquetagem dos produtos Adidas;

iv. Não apresentam as etiquetas estampadas com as instruções de lavagem e origem de fabrico, originais da Adidas;

v. As etiquetas de tamanho não são originais;

vi. As etiquetas de cartão não são originais da Adidas, não tendo as informações obrigatórias nessas etiquetas (referência do artigo, código do artigo, tamanhos, etc.);

vii. O material com que foram fabricados e os acabamentos finais e bordados não respeitam os padrões de qualidade exigidos pela Adidas;

viii. Os sacos de plástico onde as peças estavam embaladas não são originais da Adidas;

c. Os produtos descritos com os dizeres Lacoste:

i. Não apresentam etiqueta de código de barras com referência, cor, tamanho, país de origem e composição do artigo;

ii. A qualidade do produto é inferior à do utilizado pela Lacoste;

iii. Os logotipos apresentam imperfeições;

iv. As embalagens não apresentam as características da Lacoste.

d. As expressões impressas nas etiquetas e os logotipos apresentados nos produtos são suscetíveis de sugestionar o público consumidor que, ao adquiri-los, estaria convencido que se tratariam de produtos das verdadeiras marcas registadas Adidas e Lacoste, os quais pretendem reproduzir.

e. O arguido tinha pleno conhecimento que, aquando da produção dos produtos, lhe haviam sido apostos todos os símbolos e referências das marcas atrás mencionadas, símbolos esses desenhados e apostos de tal forma que se tornaram semelhantes aos das verdadeiras marcas, que o arguido sabia não estar autorizado a usar.

f. O arguido transportou esses produtos de lugar não apurado até ao recinto da feira semanal de (…).

g. O arguido sabia que aqueles artigos, que destinavam à venda junto do público, não podiam ser comercializados por se tratarem de reproduções ilícitas de artigos de marcas registadas, atuando com o propósito de obter para si uma vantagem patrimonial que não tinha direito, lesando os respetivos titulares.

h. Agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou:

i. O arguido é vendedor, vendendo produtos em feiras.

j. É oriundo de uma numerosa família de etnia cigana, radicada, há vários anos, na vila de (...).

k. O arguido abandonou o sistema de ensino antes de concluir a escolaridade obrigatória.

l. Tem uma companheira e dois filhos.

m. O agregado familiar aufere rendimento social de inserção, no valor de 264€, a que acrescem os abonos dos menores, recebendo quantia não apurada pela venda ambulante de produtos em feiras.

n. Junto da comunidade, o arguido tem uma imagem bastante negativa, evidenciando grande insensibilidade e falta de crítica às anteriores condenações de que foi alvo, furtando-se, sempre que possível, ao controlo dos serviços.

o. O arguido desvaloriza a ilicitude dos atos cometidos, assumindo com desvalor as obrigações decorrentes das penas, criando dificuldades no cumprimento das mesmas, designadamente quanto ao trabalho comunitário.

p. Os contactos que o arguido vai mantendo com as instâncias judiciais não têm efeito dissuasor consistente, tendo permitido a consolidação de um sentimento de impunidade por parte do arguido.

Dos antecedentes criminais:

q. O arguido tem averbado no seu registo criminal as seguintes condenações:

(…).


*

B. Factos não provados:

Inexistem.

C. Motivação:

Para dar os factos como provados, o Tribunal considerou a sentença proferida nestes autos e a factualidade nela constante.


*

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

1. Da aplicação do regime mais favorável:

O artigo 371.º-A, do Código de Processo Penal dispõe que se, após o trânsito em julgado da condenação, mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.

A reabertura da audiência prevista no artigo acima citado não faculta o regresso à fase da questão da culpabilidade, nem implica – e nem poderia implicar - um segundo julgamento pela prática dos mesmos factos, uma vez que a condenação já transitou em julgado.

Isto significa que os factos anteriormente dados como provados e a questão da culpabilidade se encontram definidos, sendo imutáveis.

Assim, a reabertura da audiência destina-se, exclusiva e cirurgicamente, a apurar a eventual punibilidade menos severa ou não punibilidade de tal conduta, em virtude da entrada em vigor de lei nova alegadamente mais favorável.

Assim, o juízo de culpa e o juízo de censura, traduzidos na condenação do arguido e na operação de determinação da medida da pena, por força do caso julgado material que se formou, são imutáveis, pelo que terão de ser rigorosa e escrupulosamente respeitados, a significar que o juízo a efetuar se terá de restringir à aplicação ou não da lei posterior por ser ou não mais favorável1 ou por a lei nova ter descriminalizado a conduta pela qual o arguido foi já condenado.

Neste sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 08.10.2008, no processo n.º 23/04.OTAVNO.C1, do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 13.11.2013, no processo n.º 395/01.9TBVNF-A.P1.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 06.02.2008, no processo n.º 799/2008-3, do Tribunal da Relação do Porto, datado de 16.01.2012, no processo n.º 1552/04.1PBMTS-A.P1, do Tribunal da Relação de Évora, datado de 11.10.2016, no processo n.º 125/12.0JELSB.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

É relevante ainda para o caso em apreço chamar o disposto no artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, que prescreve que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infrações; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.

No caso em apreço, o arguido foi condenado pela prática de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos previsto e punido pelo artigo 324.º, do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei 36/2003, em vigor à data dos factos.

Na factualidade provada consta, além do mais, que o arguido:

- No dia 01.07.2015, cerca das 10h10, no recinto da feira semanal de (…), o arguido detinha, expostos para venda ao público, ostentando nos lugares próprios e usuais, os símbolos, etiquetas e dizeres com inscrições de modelos e marcas, os seguintes produtos (…);

- O arguido transportou esses produtos de lugar não apurado até ao recinto da feira semanal de (…);

- O arguido sabia que aqueles artigos, que destinava à venda junto do público, não podiam ser comercializados por se tratarem de reproduções ilícitas de artigos de marcas registadas, atuando com o propósito de obter para si uma vantagem patrimonial que não tinha direito, lesando os respetivos titulares.

O artigo 324.º, do Código da Propriedade Industrial, na versão em vigor à data da prolação da sentença, sob a epígrafe venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, dispõe que:

É punido com pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos, por qualquer dos modos e nas condições referidas nos artigos 321.º a 323.º, com conhecimento dessa situação.

O Decreto-Lei 110/2018, de 10 de Dezembro, revogou aquele diploma legal, e aprovou o Código da Propriedade Industrial, passando o artigo 321.º a ser o artigo correspondente àquele artigo 324.º.

Esse artigo 321.º, sob a epígrafe venda ou ocultação de produtos ou artigos, dispõe que:

É punido com pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias quem vender ou ocultar para esse fim produtos que estejam nas condições referidas nos artigos 318.º a 320.º.

Da simples análise dos dois preceitos legais – artigo 324.º, do antigo Código da Propriedade Industrial e artigo 321.º, do novo Código da Propriedade Industrial -, constata-se que foi eliminada a conduta puser em circulação, baseando-se o arguido nessa alteração para fundamentar a descriminalização de tal conduta.

Contudo, salvo o devido respeito por opinião diversa, a eliminação da menção de tal conduta no atual artigo 321.º não veio operar a descriminalização da conduta pela qual o arguido veio a ser condenado.

Tal conduta passou a ser incluída nas ações típicas previstas no artigo 320.º, do atual Código da Propriedade Industrial, mais propriamente na sua alínea d), quando refere colocar no mercado, tendo sido, até, agravada a respetiva moldura penal.

O arguido foi condenado pela sua conduta de deter aqueles produtos expostos para venda, que transportou para aquele local, ou seja, por os ter posto em circulação ou, na expressão da lei nova, por os ter colocado no mercado.

Ora, pôr em circulação ou colocar no mercado não são mais do que expressões sinónimas entre si, dado que, uma e outra, querem dizer exatamente a mesma coisa, que é a disseminação do produto no mercado ou introduzir o produto no circuito económico.

Assim, podendo ter ocorrido a eliminação da conduta puser em circulação do atual artigo 321.º, tal conduta continua a ser punida, mas agora no âmbito do artigo 320.º, alínea d), quando se refere colocar no mercado.

Desta feita, inexiste descriminalização da conduta pela qual o arguido veio a ser condenado, mantendo-se a criminalização de tal conduta, que até agravou a moldura penal, motivo pelo qual não se poderá aplicar a lei nova por a mesma não ser mais favorável ao arguido, nem ter operado a descriminalização da conduta em causa, mantendo-se a condenação nos seus precisos termos.

3. Apreciação.

§1. Da nulidade da decisão recorrida

Diz o recorrente enfermar a decisão proferida pelo tribunal a quo de nulidade porquanto não se mostraria fundamentada de facto ou de direito, para além de padecer de “de incorreta aplicação e interpretação da lei vigente” – [cf. ponto iv das conclusões].

Se uma incorreta aplicação e/ou interpretação da lei não configura, como o recorrente saberá, nulidade de qualquer espécie, dando, antes, origem a “erro de direito”, no caso em apreço, ao contrário do que refere, a decisão surge de facto e de direito fundamentada.

Com efeito, trata-se de sentença proferida na sequência da Abertura da audiência para aplicação retroativa de lei penal mais favorável - artigo 371.º - A do CPP, figura que se mostra em consonância – constitui decorrência lógica – com a atual redação do artigo 2.º do Código Penal, na parte em que, eliminando o obstáculo do “caso julgado”, veio permitir a aplicação do regime (penal) que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, independentemente do trânsito em julgado, já verificado, da sentença. Donde, posto que não se está perante um segundo julgamento destinado a colmatar eventuais deficiências do primeiro ou que vise a consideração de novos factos, a fundamentação da decisão de facto terá de ser transportada da preexistente sentença condenatória, como foi o caso.

Também ao nível do direito a decisão se encontra fundamentada, pese embora não no sentido que o recorrente pretendia ver acolhido. Na verdade, procedendo à análise comparativa entre as normas em vigor à data da prática dos factos e aqueloutras com assento no atual Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo D.L. n.º 110/2018, de 10.12, entendeu o tribunal a quo não encerrarem estas, à luz da matéria de facto há muito fixada, um regime mais favorável, no caso, como entendia (e continua a defender) o recorrente, conducente à consideração da descriminalização da conduta pela qual sofreu condenação.

Improcede nesta parte o recurso.

§2. Da descriminalização dos factos que justificaram a condenação.

Defende o recorrente que com a entrada em vigor do D.L n.º 110/2018, de 10.12, diploma que aprovou o novo Código da Propriedade Industrial, revogando, neste domínio, os diplomas que o precederam, os factos pelos quais foi condenado deixaram de ser punidos [cf. ponto xxv das conclusões], entendimento não acolhido na decisão proferida em primeira instância.

Vejamos.

O ora recorrente foi condenado pela prática de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324.º, com referência ao artigo 323.º, alínea a), ambos do Código da Propriedade Industrial vigente à data da prática dos factos, na pena de 4 (quatro) meses de prisão.

Dispunha então o primeiro dos citados preceitos: “É punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos, por qualquer dos modos e nas condições referidas nos artigos 321.º a 323.º, com conhecimento dessa situação”; prevendo, por seu turno, o segundo a punição de quem, sem o consentimento do titular do direito: “a) Contrafizer, total ou parcialmente, ou, por qualquer meio, reproduzir uma marca registada”.

Ao dito artigo 324.º, corresponde no atual Código da Propriedade Industrial o artigo 321.º, o qual, sob a epígrafe “Venda ou ocultação de produtos” prescreve: “É punido com pena de prisão até 18 meses ou com pena de multa até 120 dias quem vender ou ocultar para esse fim produtos que estejam nas condições referidas nos artigos 318.º a 320.º”, onde se incluem os produtos com marcas contrafeitas ou imitadas – [cf. alínea d), do artigo 320.º].

Ao nível da materialidade objetiva decorre em síntese da sentença condenatória – factos que vieram a ser reproduzidos na decisão recorrida – que no dia 01.07.2015, cerca das 10h10, no recinto da feira semanal de (…), o arguido detinha, expostos para venda ao público, ostentando nos lugares próprios e usuais, os símbolos, etiquetas e dizeres com inscrições de modelos e marcas registadas, os produtos descritos nos vários pontos do item 2, os quais sabia “contrafeitos” – reproduções ilícitas dos correspondentes às verdadeiras marcas -, ciente de que não podia destiná-los à venda ao público.

Considerou o tribunal a quo integrarem agora os factos que suportaram a condenação do arguido a alínea d) do artigo 320.º do Código da Propriedade Industrial (com a epígrafe “Contrafação, imitação e uso ilegal de marca”), nos termos do qual “É punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa até 360 dias quem, sem consentimento do titular do direito: d) Importar, exportar, distribuir, colocar no mercado ou armazenar com essas finalidades, produtos com marcas contrafeitas ou imitadas”, o que sucederia com referência à ação “colocar no mercado”, feita equivaler àqueloutra de “pôr em circulação” – [cf. a anterior redação do artigo 324.º do CPI]

Com o devido respeito, não comungamos de semelhante interpretação desde logo porque o “colocar no mercado” encarado no contexto das demais ações prevenidas no tipo, tais como “importar”, “exportar” ou “distribuir”, mais não traduzirá do que a “expressão final” destas, cuja ordem de grandeza ultrapassa inequivocamente a conduta imputada nos autos, consistente na exposição, no recinto da feira semanal de (…), para venda ao público dos produtos contrafeitos identificados na matéria de facto. Por outro lado, tal visão das coisas tornaria dificilmente compreensível, retomando a concreta situação, que a “exposição para venda ao público” fosse mais severamente sancionada do que a conduta de quem “vender”.

Isto não significa, no entanto, que tenhamos a conduta por descriminalizada.

Com efeito, quando o legislador se refere, quer na redação do artigo 324.º do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo D.L. n.º 36/2003, de 05.03, quer no artigo 321.º do atual a “quem vender” está a reportar-se a uma “atividade” que vai para além do “ato de venda”, integrando-se, naturalmente, este na dita “atividade”. Na perspetiva que temos por correta não está em causa tão só a criminalização do “ato (contrato) de compra e venda”, mas antes da “atividade de venda”, cuja prática pelo arguido os factos não desmentem; pelo contrário, revelam-se inequívocos.

De resto, debruçando-nos sobre os factos, já à luz da lei em vigor à data da sua prática, na ótica deste tribunal, a respetiva subsunção à norma incriminadora colhe maior adequação com referência à “atividade de venda” do que à ação de “pôr em circulação”. E terá, eventualmente, sido o reconhecimento por parte do legislador da desnecessidade de conservar a par da “atividade de venda” a ação de “pôr em circulação” que conduziu à supressão desta última do atual artigo 321.º do CPI. Assim, como, não deixará de ter sido a constatação do pouco sentido da “exigência de elemento subjetivo adicional” para que se verificasse o crime em questão que conduziu à supressão do inciso “com conhecimento dessa situação”.      

Por fim, recorde-se que a incriminação da conduta traduzida em “colocar no mercado” produtos com marcas contrafeitas ou imitadas, com o sentido atrás assinalado, - não equivalente a “pôr em circulação” – se mostra assegurada na alínea d), do artigo 320.º do novo Código de Propriedade Industrial.

Concluindo, por razões não exatamente coincidentes com a decisão recorrida, não se vislumbrando na interpretação ora levada a efeito violação de qualquer das normas convocadas no recurso é de manter a sentença enquanto considerou não ser de aplicar a lei nova por não se revelar mais favorável ao arguido/recorrente.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Custas, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UCs, a cargo do recorrente – [cf. artigos 513., 514.º do CPP; artigo 8.º do RCP].

Coimbra, 11 de novembro de 2020.

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira – relatora

Alcina da Costa Ribeiro - adjunta