Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
314/14.2T8CTB-J.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PRESTAÇÃO
PRESCRIÇÃO
PRESTAÇÕES VENCIDAS
APLICAÇÃO DA LEI
LEIS SUCESSIVAS
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – INST. CENTRAL – 1ª SEC. DE TRABALHO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 151º CPT; LEIS 100/97 E 98/2009.
Sumário: I – Ás prestações atribuídas ao abrigo do regime jurídico especial dos acidentes de trabalho aplica-se o prazo de prescrição previsto neste regime.

II – Mesmo que o direito à reparação se tenha constituído de acordo com o direito vigente à data em que ocorreu o acidente de trabalho – Lei nº 2127 de 2/08/1965 – as alterações do prazo prescricional consagradas na Lei nº 100/97, de 13/09, e na Lei nº 98/2009, de 4/09, aplicam-se às prestações periódicas do direito à pensão que se vão sucessivamente vencendo na vigência destas leis.

III – Na ação para declaração da prescrição do direito a pensão resultante de acidente de trabalho recai sobre o autor o ónus de alegar e provar a verificação da invocada prescrição.

IV – Se entre a data do vencimento da prestação resultante da remição obrigatória da pensão e a data de propositura da ação prevista no artº 151º do CPT decorrerem mais de 12 anos, é irrelevante a defesa apresentada pela ré, no sentido de que teria ocorrido a interrupção do prazo prescricional de cinco anos, pois tal interrupção apenas poderia ter-se verificado uma única vez, pelo que a relevância da questão apenas se colocaria se não tivessem decorrido mais de dez anos sobre a data de vencimento da aludida prestação.

Decisão Texto Integral:



Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

A... e B... , vieram intentar ação declarativa de prescrição de direito a pensões, ao abrigo do artigo 151.º do Código de Processo do Trabalho, contra C... , todos com os demais sinais de identificação nos autos, pedindo que:

a) Sejam julgadas procedentes as exceções perentórias invocadas, absolvendo-se os autores do pagamento da prestação infortunística dos presentes Autos, nos termos do n.º 3 da Base XXXVIII, da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965;

b) Caso seja outro o entendimento do tribunal, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e por conseguinte ser julgada extinta a obrigação de pagamento da prestação infortunística, nos termos do n.º 2, do artigo 32.º, da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, normativo esse que atualmente se mantém no n.º 2, do artigo 179.º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, absolvendo-se os autores do pagamento daquela obrigação.

c) Se nenhum dos fundamentos anteriores colher decisão favorável, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e por conseguinte ser julgada extinta a obrigação que impende sobre os autores, nos termos do artigo 309.º do Código Civil, por terem decorrido mais de vinte anos sobre o início dos presentes Autos, absolvendo-se os autores da instância e de todos os pedidos;

d) Por último, se for entendimento do tribunal que a pensão ainda assim é devida, deverão ser declarados prescritos os juros peticionados no requerimento executivo.

Alegaram, em síntese, que os autos de acidente de trabalho (autos principais) tiveram início em agosto de 1994, tendo sido proferida sentença em 22/01/1997, que fixou valores a título de pensão, condenando o responsável à entrega de uma pensão anual, à esposa e filha do sinistrado, bem como ao pagamento das despesas de funeral. Tal pensão, por vicissitudes processuais, começou a ser paga vários anos após a data do vencimento e mais de um ano após o conhecimento dos beneficiários, do direito que lhes assistia, sem que tenha ocorrido qualquer causa de suspensão ou interrupção, pelo que a pensão, já se encontrava prescrita. Logo, entendem, os valores pagos deverão ser restituídos.

Acrescentam que o capital de remição foi determinado, pelo menos, em 25/03/2003, encontrando-se o mesmo ainda por pagar. Considerando que decorreram já mais de 5 anos, afirmam que “deverá ser declarada pelo tribunal a prescrição daquele valor estabelecido pela douta sentença”.

Igualmente alegam que o prazo ordinário de prescrição (plasmado no artigo 309.º do CC), é de 20 anos e os presentes autos remontam a 06/08/1994, sustentando que o tribunal “deverá o tribunal declarar prescritos os presentes autos”

Afirmam que os juros que integram a quantia exequenda que têm mais de 5 anos, devem ser considerados prescritos.

Finalmente alegam que sendo a caducidade um instituto de conhecimento oficioso, deveria “ter sido declarada a caducidade do direito de ação respeitante à exigência da prestação fixada nos presentes autos, pois a exequente apenas em 2010, intentou ação executiva para o recebimento da prestação de carácter infortunistico, nunca antes tendo exercitado qualquer direito de ação”.

Realizada a audiência de partes, na mesma não foi possível obter acordo que colocasse um termo ao litígio.

A ré contestou, pugnando pela improcedência da ação, apresentando pedido de condenação dos autores em multa e indemnização por terem litigado de má-fé.

Os autores responderam, impugnando a alegada litigância de má-fé.

Foi proferido saneador-sentença, com a seguinte decisão:

«Pelos fundamentos expostos,

a) absolvo a ré da instância quanto ao pedido formulado quanto à prescrição do direito aos juros;

b) julgo totalmente improcedente a presente ação;

c) Condeno os autores como litigantes de má-fé na multa de 10 (dez) Uc e em indemnização a favor da Ré, cuja liquidação se relega para momento posterior, nos termos acima expostos, devendo proceder-se à notificação determinada.»

Vieram os autores interpor recurso da decisão que os condenou no pagamento da multa no valor de 10 UC, por litigância de má-fé.

Não se conformando, também, com a decisão que julgou improcedente a ação, interpuseram recurso, rematando as suas alegações, com as seguintes conclusões:

[…]

O tribunal de 1. ª Instância não admitiu o recurso interposto da decisão de aplicação da multa por litigância de má-fé, com fundamento na sua extemporaneidade, por ainda não ter sido proferida a decisão de liquidação da indemnização.

A recorrida apresentou as suas contra-alegações, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

Foi admitido o recurso da decisão que julgou a ação improcedente, tendo os autos subido à Relação.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, propugnado pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


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II. Objeto do Recurso

É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).

Em função destas premissas, a questão suscitada no recurso consiste em saber se ocorreu ou não a prescrição do direito ao capital de remição da pensão atribuída a C... .


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            III. Matéria de Facto

O tribunal de 1ªInstância deu como provados, os seguintes factos:

1. Em 05/08/1994 ocorreu um acidente de trabalho que vitimou mortalmente F... ;

2. Sucederam-lhe C... e D... , viúva e filha, respetivamente;

3. Em 23/02/1995, a viúva e a filha do sinistrado propuseram ação contra G... , S.A. e E... , na qualidade de empregador do sinistrado, peticionando a condenação deste nos termos consignados a fls. 83 e 83 v.º dos autos principais;

4. Em 22/01/1997 foi proferida sentença por via da qual E... foi condenado a pagar à Autora C... a pensão anual e vitalícia de 256 221$73, em duodécimos, com inicio em 06/08/1994 e até perfazer a idade de reforma por velhice, a partir da qual passará a 341628$98, acrescendo ao duodécimo devido nos meses de Dezembro de cada ano uma prestação suplementar a ele equivalente; à Autora D... a pensão anual e temporária de 170814$49, em duodécimos, com inicio em 06/08/1994 e até aos 18 ou 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, acrescendo ao duodécimo devido nos meses de Dezembro de cada ano uma prestação suplementar a ele equivalente; a quantia de 90000$00 por despesas de funeral; a quantia de 3000$00 a título de despesas de transporte e alimentação com a vinda a juízo, juros de mora à taxa anual de 15% até 30/09/1995 e de 10% a partir dessa data; mais foi absolvida a ré seguradora;

5. Tal decisão veio a ser confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 03/03/1998;

6. Por requerimento de 27/01/2000, que faz fls. 271 e ss. dos autos principais, as autoras prestaram informação no sentido de não requererem o registo de penhora sobre bens do réu, por se tratarem de bens comuns do casal e o registo assumir natureza provisória e que os créditos devidos até àquela data se encontravam pagos, sendo que, quanto às prestações futuras, encontravam-se em negociações com o réu no sentido deste constituir hipoteca voluntária, prestação de caução/seguro ou garantia bancária, o que veio a ser corroborado pelo Réu;

7. Por decisão de fls. 297, datada de 17/10/2002, a pensão devida a C... foi objeto de atualização;

8. Por decisão de fls. 319 e ss. datada de 25/03/2003, a pensão foi novamente atualizada, bem como considerada obrigatoriamente remível;

9. Em 22/05/2003, procedeu-se ao cálculo do capital de remição, no valor de € 22853,70;

10. Foi designado para a entrega do capital de remição o dia 07/11/2003;

11. O responsável faleceu em 01/11/2002;

12. Em 07/11/2003 foi proferido despacho a declarar a suspensão da instância;

13. Em 21/04/2005 foi proferido despacho a determinar o prosseguimento dos autos;

14. O responsável não prestou caução nos autos principais;

15. Em 13/05/1998, C... e D... requereram execução de sentença contra E... , tendo a instancia sido julgada deserta;

16. Em 24/05/2010, C... propôs ação executiva contra os sucessores habilitados do responsável, por via da qual peticionaram o pagamento da quantia de € 29252,73, sendo € 22853,70, a título de capital e € 6399,03, a título de juros.


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IV. Enquadramento jurídico

Insurgem-se os apelantes contra a decisão que não reconheceu a alegada prescrição do direito à prestação infortunistica atribuída a C... , ora recorrida.

Analisemos a questão suscitada.

Do acervo factual assente resulta, com interesse, que em 05/08/1994, F... , foi vítima de um acidente de trabalho mortal, tendo o mesmo deixado como suas sucessoras a viúva, ora recorrida, e a filha.

No âmbito da ação especial emergente de acidente de trabalho proposta pelas sucessoras foi-lhes reconhecido: o direito à pensão anual e vitalícia no valor de 256 221$73, em duodécimos, para a viúva, com inicio em 06/08/1994 e até perfazer a idade de reforma por velhice, a partir da qual passaria para o valor de 341628$98, acrescendo ao duodécimo devido nos meses de Dezembro de cada ano uma prestação suplementar a ele equivalente; à Autora D... a pensão anual e temporária de 170814$49, com inicio em 06/08/1994 e até aos 18 ou 22 ou 25 anos, enquanto frequentasse, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, acrescendo ao duodécimo devido nos meses de Dezembro de cada ano uma prestação suplementar a ele equivalente.

A decisão que reconheceu tais direitos data de 22/01/1997 e foi confirmada por acórdão da Relação proferido em 03/03/1998.

Em 13/05/1998, foi requerida a execução da sentença, tendo a instância sido julgada deserta.

Até 27/01/2000, foram pagos todos os créditos relativos à reparação do acidente de trabalho.

Em 25/03/2003, considerou-se a pensão atribuída à ora recorrida, obrigatoriamente remível e, após ter sido calculado o capital de remição, designou-se a data de 07/11/2003 para a sua entrega. Nessa data, porém, foi proferido despacho a declarar a suspensão da instância (o responsável havia falecido). Só em 21/04/2005, é determinado o prosseguimento dos autos.

Em 24/05/2010, a ora recorrida propôs ação executiva contra os sucessores habilitados do responsável, os ora recorrentes.

Exposto o quadro cronológico que importa considerar para o conhecimento da questão suscitada no recurso, passemos à específica análise da mesma.

Em virtude da ocorrência de um acidente de trabalho mortal, foi reconhecido à ora demandada o direito a uma pensão anual e vitalícia, ao abrigo do regime legal em vigor à data em que sucedeu o evento infortunistico – 05/08/1994.

E o regime legal aplicável data encontrava-se consagrado na Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965 [cf. Base LI, n.º 1, alínea a) deste diploma legal].

De acordo com a Base XXXVIII, n.º 3, as prestações estabelecidas por decisão judicial, instituição de previdência ou acordo das partes prescrevem no prazo de um ano, a partir da data do seu vencimento, acrescentando o n.º 4 que o prazo de prescrição não começa a correr enquanto os beneficiários não tiverem conhecimento pessoal da fixação das prestações.

Deste modo, o legislador laboral optou por afastar o regime legal da prescrição previsto no Código Civil, em relação às prestações atribuídas ao abrigo do regime jurídico dos acidentes de trabalho.

Esta opção manteve-se ao longo do tempo, como se pode verificar pela simples leitura dos artigos 32.º, n.º 2, da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro e 179.º, n.º 2 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, que vieram posteriormente consagrar o especial regime de reparação que o nosso ordenamento jurídico continua a considerar que deve existir em relação aos acidentes de trabalho. A única alteração introduzida por estes dois diplomas refere-se à duração do prazo prescricional que deixou de ser de um ano passando para cinco anos.

Ora, existindo no ordenamento jurídico uma norma especial relativa à prescrição das prestações infortunísticas, apenas é possível recorrer às normas gerais sobre a prescrição consagradas no Código Civil, naquilo que não tenha sido expressamente previsto. Neste sentido, v.g. acórdão da Relação de Coimbra de 04/06/2009, P. 33-B/1950.C2 [Serra Leitão], onde se pode ler:

«Existindo todavia quer então, quer na L, 2127, quer na LAT hoje em vigor normas próprias sobre a prescrição das pensões e prestações infortunísticas (cfr. Base XXXVIII nº 3 e artº 32 nº 2 respetivamente), logicamente apenas se poderá lançar mão das normas relativas á prescrição previstas no CCv, naquilo que na lei infortunística não esteja expressamente previsto.

E como vimos relativamente ao prazo de prescrição das pensões, existe previsão.»

Posto isto, importa igualmente salientar que não obstante o direito à reparação da beneficiária viúva tenha sido constituído de acordo com o direito vigente à data em que ocorreu o acidente de trabalho, entende-se que as alterações do prazo prescricional consagradas nas leis n.º 100/97 e n.º 98/2009, são aplicáveis à situação jurídica em apreço nos autos.

Sobre esta questão pronunciou-se, aliás, o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão proferido em 03/07/2014, P. 378/1993.P1.S1 [António Leonel Dantas], onde se pode ler:

«O acidente dos autos ocorreu na vigência da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, pelo que a valoração jurídica do acidente e a definição das responsabilidades do mesmo derivadas não pode deixar de ser regulada por aquela Lei e pelo diploma que a regulamentou, o Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, devendo atender-se ainda à respetiva legislação complementar, em obediência ao disposto no artigo 12.º, n.º 2 do Código Civil.

Na verdade, está em causa a definição das «condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos», no fundo a valoração jurídica do facto legalmente considerado como acidente de trabalho e a definição dos efeitos dessa valoração jurídica, ou seja, a consideração do mesmo como acidente de trabalho bem como a definição dos responsáveis pela reparação do mesmo e do conteúdo das respetivas responsabilidades.

Constituída a situação jurídica de acordo com o direito em vigor no momento em que ocorreu o facto, concretamente o acidente que a origina, ela fica sujeita às alterações supervenientes do sistema jurídico que tenham incidência sobre o conteúdo dessa situação jurídica, abstraindo do facto que lhe deu origem, por força do disposto na segunda parte do n.º 2 do mesmo artigo do Código Civil.

Entre essas alterações da situação jurídica derivada do acidente está a concretização do período de tempo concedido ao trabalhador para reclamar os seus direitos derivados de um acidente de trabalho, que é o fundamento do prazo de prescrição de direitos, prazo este que materializa um equilíbrio não constante na relação entre responsáveis e sinistrados.

Por outro lado, a reparação do acidente materializa-se, para além do mais, no direito a uma pensão anual e vitalícia, pelo que a obrigação dos responsáveis se renova todos os anos, enquanto se mantiver a obrigação de reparar o acidente.

Esta renovação anual do direito às prestações por parte do sinistrado vai implicar que o direito às prestações constituído no domínio da lei em vigor no momento em que ocorreu o acidente vai estar sujeito às alterações do sistema jurídico que o enquadrem supervenientemente.

Daqui que se possa concluir que as prestações nascidas na vigência da nova lei, no caso a partir da entrada em vigor da Lei n.º 100/97, já não estejam sujeitas ao prazo de prescrição de um ano, mas sim ao prazo de prescrição de cinco anos que é o previsto naquela lei.

Na verdade, não há nenhuma razão válida para que se não apliquem às situações antigas as razões que estão subjacentes ao alargamento do prazo de prescrição da nova lei, revelador de novos equilíbrios, alargamento que visa claramente beneficiar os trabalhadores menos diligentes na reclamação dos seus direitos e que, em rigor, acaba por ser afloramento do princípio da indisponibilidade dos direitos emergentes de acidentes de trabalho.

Refletindo sobre os fundamentos da aplicação da lei nova às situações jurídicas previamente constituídas, refere BAPTISTA MACHADO que «é fácil descortinar a ratio legis que está na base desta regra de aplicação imediata: por um lado, o interesse na adaptação à alteração das condições sociais, tomadas normalmente em conta pela LN, o interesse no ajustamento às novas conceções e valoração da comunidade e do legislador, bem como a exigências de unidade do ordenamento jurídico, a qual seria posta em causa, e com ela a segurança comércio jurídico, pela subsistência de um grande número de SsJs duradoiras, ou até de carácter perpétuo, regidas por uma lei há muito ab-rogada»[1].

Estamos pois perante uma situação de mera alteração de uma situação jurídica em que se abstrai do facto que lhe deu origem, o que conduz à aplicação imediata da nova Lei, nos termos da 2.ª parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil.

Segundo MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, um caso de aplicação imediata da «LN que incide sobre o conteúdo de situações jurídicas, independentemente do título que lhes esteja subjacente» é «o direito dos familiares da vítima a uma pensão vitalícia, como reparação do acidente de trabalho» que «surge com a morte do sinistrado, momento no qual se criou, ex lege, uma situação jurídica, de natureza duradoura, sem qualquer conexão direta com o facto com o facto que lhe deu origem; assim é imediatamente aplicável a LN»[2].

Deste modo, as alterações de prazos de prescrição legalmente definidos aplicam-se às situações jurídicas constituídas antes da entrada em vigor dos novos prazos, resolvendo-se os conflitos em termos de direito transitório, de acordo com os critérios decorrentes do artigo 297.º do Código Civil.

À luz deste princípio, às prestações anuais vencidas já na vigência da lei nova aplicam-se os prazos de prescrição decorrentes da Lei nova, enquanto que relativamente às prestações vencidas antes da entrada em vigor da nova lei e relativamente às quais se encontrem em curso os prazos de prescrição no momento em que entrou em vigor a nova lei, haverá que resolver o conflito de leis nos termos do n.º 2 do artigo 297.º do Código Civil.

Estabelecendo este um prazo de cinco anos para a prescrição ao contrário da lei anterior que previa um prazo de um ano, a essas prestações é aplicável desde logo o novo prazo, computando-se nele o tempo já decorrido desde o momento inicial.»

Exposto o enquadramento legal a atender, importa ainda referir que, no nosso entender, por não podemos olvidar que a concreta obrigação de reparação reconhecida à beneficiária viúva consistiu no pagamento de uma pensão anual (paga em duodécimos) até ao fim da vida da beneficiária viúva, pelo que estamos perante uma obrigação de prestação periódica ou reiterada na terminologia utilizada por Almeida Costa[1] ou uma prestação permanente sucessiva, na terminologia utilizada por Menezes Cordeiro[2], pelo que a expressão “ prestações” referida no n.º 2 do artigo 32º da Lei n.º 100/97 e no n.º 2 do artigo 179.º da Lei n.º 98/2009, só pode ser entendida como reportando-se a cada um das prestações periódicas que se vão sucessivamente vencendo. Neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no P. 33-B/1950.C2, anteriomente identificado.

Afigura-se-nos ser esta a interpretação mais correcta, entrando em linha de conta com o preceituado no artigo 307.º do Código Civil que determina que a prescrição do direito unitário do credor corre desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga[3].

Na decisão posta em crise, no Ponto III, apreciou-se a invocada prescrição do direito ao capital de remição, nos seguintes termos:

«Alegam os autores que, tendo sido o capital de remição fixado em 25/03/2003, o direito respetivo encontra-se prescrito, em face do decurso do prazo de 5 anos previsto no art. 32º, n.º 2 da Lei 100/97.

Vejamos.

Por decisão de 23/03/1995, confirmada pela Relação em 03/03/1998, “ E... foi condenado a pagar à Autora C... a pensão anual e vitalícia de 256 221$73, em duodécimos, com inicio em 06/08/1994 e até perfazer a idade de reforma por velhice, a partir da qual passará a 341628$98, acrescendo ao duodécimo devido nos meses de Dezembro de cada ano uma prestação suplementar a ele equivalente; à Autora D... a pensão anual e temporária de 170814$49, em duodécimos, com inicio em 06/08/1994 e até aos 18 ou 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, acrescendo ao duodécimo devido nos meses de Dezembro de cada ano uma prestação suplementar a ele equivalente”.

A prestação foi logo ali fixada.

 “A pensão (vitalícia), como a indemnização em capital, como, temporariamente, a indemnização por incapacidade temporária, são, apenas diferentes formas de pagar (= diferentes prestações) o mesmo direito a reparação (artigo 10 .° da Lei). Isto e, uma incapacidade permanente da direito a reparação em dinheiro (eventualmente, também em espécie), que pode ser cumprida de forma parcelar (mensalmente), no que a lei chama de pensão vitalícia, ou de uma só vez, com o pagamento de uma única prestação, chamada indemnização em capital. Quer a pensão vitalícia, quer a indemnização em capital, não constituem direitos autónomos em relação ao direito a reparação, antes são duas formas de cumprir este mesmo direito.

Nuns casos - os previstos no n .° 1 do artigo 56.° do diploma regulamentar - a reparação é feita, imediatamente a seguir ao reconhecimento judicial do direito a reparação, com a prestação - indemnização em capital (impropriamente chamada de remição obrigatória ); noutros casos - os que exorbitam as condições previstas no n.° 2 do referido artigo 56.° a única forma legalmente prevista de satisfazer o direito a reparação e a prestação de uma pensão vitalícia; noutras situações, ainda - as previstas no n .° 2 do artigo 64.° do Decreto n.° 360/71 - a prestação pode ser feita através de pensão vitalícia ou de indemnização em capital (remindo a pensão) ou de pensão vitalícia + indemnização em capital (nos casos previstos no n .° 2 do artigo 56.° referido).

Em qualquer dos casos, porém, está-se, sempre, na fase do cumprimento de uma obrigação e não no momento da sua constituição” – Carlos Alegre ob. citada, p. 156 e 157.

Com isto pretende-se esclarecer que, não obstante ter sido fixado um capital de remição, tal apenas ocorreu devido a alterações legislativas que instituíram que, verificadas determinadas circunstâncias, o direito à reparação seria satisfeito, não através de uma pensão vitalícia, mas através da entrega de um capital de remição.

Como se referiu supra, as beneficiárias propuseram ação executiva em 13/05/1998, que teve como efeito interromper o prazo prescricional em curso. A alteração da forma de pagamento – pensão vitalícia para entrega única de um capital de remição, superveniente, não é suscetível de desencadear a contagem de qualquer prazo prescricional para além do associado à prestação originária.

Por conseguinte, improcede esta exceção.»

No ponto II da sentença, havia-se referido:

«II. Da prescrição das prestações pagas (designada pelos Autores como “1ª prescrição”) Alegam os autores que, estabelecendo o nº 3 da Base XXXVIII que “As prestações estabelecidas por decisão judicial, (...) prescrevem no prazo de um ano, a partir da data do seu vencimento.“ e que as mesmas foram pagas (as vencidas) após tal prazo, encontram-se prescritas, devendo ser determinada a devolução de tais quantias aos autores.

Dir-se-á, desde já, não assistir qualquer razão aos autores quanto a este fundamento.

Vejamos.

Considerando o prazo de 1 ano de prescrição, temos que a sentença foi proferida em 22/01/1997 e confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 03/03/1998, tendo sido proposta execução de sentença em 13/05/1998.

Por conseguinte, considerando o regime do art. 323º do CC, ocorreu um facto suscetível de interromper a prescrição do direito às prestações, qual seja, a instauração da execução, que se insere na previsão do n.º 1 da norma enunciada.

Assim, não se verifica a prescrição.»

Resulta da sentença recorrida, se bem compreendemos, que o tribunal a quo considerou ser aplicável o prazo prescricional de um ano previsto no n.º 3 da Base XXXVIII, que considerou ter sido interrompido com a instauração da ação executiva em 13/05/1998, entendendo que a alteração da forma de pagamento da pensão para entrega única de capital de remição, não é suscetível de desencadear qualquer prazo prescricional para além do associado à prestação originária.

Não sufragamos este entendimento, face ao enquadramento jurídico que deverá ser considerado, apresentado supra.

A prescrição, a nível processual, constitui um facto extintivo de um direito, pelo que a invocação da mesma está associada a uma inércia do exercício do direito por um dado lapso de tempo fixado na lei, pelo seu titular.

Estamos perante uma ação para declaração de extinção de direitos resultantes de acidente de trabalho, em que os autores pretendem ver declarada a prescrição do direito à pensão atribuída a viúva do sinistrado, impendendo sobre os mesmos o ónus de provar a alegada prescrição.

E o que resulta do acervo factual assente é que até janeiro de 2000, as prestações da pensão anual e vitalícia atribuídas à beneficiária foram liquidadas, sabendo-se que em relação às prestações futuras, a beneficiária e o responsável pelo seu pagamento encontravam-se em negociações para prestação de uma caução/seguro de garantia bancária (facto n.º 6). Sabemos também que foi intentada uma ação executiva em 13/05/1998, que foi julgada deserta. Desconhecemos a composição da quantia exequenda então apresentada, pelo que os elementos factuais relativos ao período temporal mencionado não são suficientes para afirmar com a segurança necessária que não foi paga uma ou mais prestações mensais, tendo decorrido o prazo prescricional aplicável sobre o vencimento das mesmas.

Em relação ao período compreendido entre janeiro de 2000 e a data designada para a entrega do capital de remição (07/11/2003), os autores não lograram demonstrar factos que nos permitam concluir ter decorrido o prazo prescricional sobre pensões vencidas e não pagas.

Em 25/03/2003, a pensão foi declarada obrigatoriamente remível e, após o cálculo do capital de remição, a sua entrega foi agendada para 07/11/2003. Sucede que nesta data a instância foi declarada suspensa, só tendo sido proferido despacho a ordenar o prosseguimento dos autos em 21/04/2005. Em 24/05/2010, a beneficiária viúva propôs ação executiva contra os sucessores habilitados do responsável, autores na presente ação, tendo sido peticionado o pagamento do capital de remição, acrescido de juros moratórios.

Importa referir que a prestação respeitante ao pagamento do capital de remição insere-se, no nosso entender, na previsão contida no n.º 2 do artigo 32.º da L.100/97 (em vigor data em que foi determinado que era devido o capital de remição). Conforme se pode ler na obra “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, de Carlos Alegre, 2.ª edição, pág.240: «a remição dita obrigatória não constitui, como alguns pretendem, um fenómeno jurídico complexo, mas tão somente, uma das formas de efetuar as prestações (em dinheiro) do direito à reparação».

Deste modo, o prazo prescricional da mesma é de cinco anos, contado nos termos previstos pelo normativo.

Na concreta situação dos autos, o vencimento da prestação resultante da remição obrigatória da pensão, terá ocorrido, pelo menos, em 25/03/2003 (data em que a pensão foi considerada obrigatoriamente remível). Desde então decorreram efetivamente mais de cinco anos.

            Na sua contestação, a ré alegou que ocorreram diversos atos processuais, entre eles, a citação dos autores para a habilitação de herdeiros e a notificação dos autores para comparecerem em tribunal para entrega do capital de remição, através dos quais deu a conhecer a sua intenção de cobrar os créditos que lhe são devidos.

É sabido que o prazo prescricional pode ser interrompido pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertença e ainda que o Tribunal seja incompetente, sendo certo que a lei equipara à citação ou notificação, para efeitos de interrupção da prescrição, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do ato, àquele contra quem o direito pode ser exercido (artigo 323.º n.º 1 e 4 do Código Civil).

Contudo, tendo em consideração que a figura jurídica da prescrição se baseia na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo determinado por lei, entendemos que a possibilidade de interrupção da prescrição só pode verificar-se uma única vez, sob pena de se criar uma situação de insegurança jurídica prorrogável no tempo que é precisamente o que se pretende evitar com a figura da prescrição.

Neste sentido, pode ler-se no Acórdão da Relação do Porto de 14/7/2003, P. 0313320, disponível em www.dgsi.pt:

«Como é sabido, o fundamento específico da prescrição reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo que o legislador considerou razoável para tal. O não exercício do direito dentro do prazo legal faz presumir que o titular do direito quis renunciar ao mesmo, ou pelo menos, como diz Manuel de Andrade (Teoria Geral, I, Almedina, 2.ª reimpressão, pag. 446), a negligência torna-o indigno de proteção jurídica (dormientibus non succurrit ius). Todavia, outras razões se costuma invocar para justificar o instituto da prescrição. A certeza ou segurança jurídica é uma delas, “a qual exige que as situações de facto que se constituíram e prolongaram por muito tempo, sobre a base delas se criando expectativas e se organizando planos de vida, se mantenham, não podendo ser atacadas por antijurídicas” (autor, obra e local citado). Outras razões são a necessidade de proteger os devedores contra as dificuldades de prova e exercer uma pressão educativa sobre o titular do direito para que não descure o seu exercício.

Ora, permitir sucessivas interrupções da prescrição seria atentar contra todas aquelas as razões que constituem o fundamento daquele instituto jurídico. Como bem observou o Ex.mo Conselheiro Martins da Costa no seu voto de vencido, lavrado no citado acórdão de uniformização de jurisprudência, “em face dos interesses visados pelo instituto da prescrição: a regra geral é a prescrição dos direitos, destinada a evitar o seu exercício depois de decorrido certo período de tempo; a sua interrupção da prescrição reveste carácter excecional e só é, por isso, admitida em circunstâncias especiais.”».

No mesmo sentido, v.g. Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 05/11/2013, P. 7624/12.1TBMAI.S1, Acórdão da Relação de Lisboa, de 26/02/2014, P. 76/04.1TTVFX-B.L1-4, disponíveis na base de dados da dgsi e Acórdão da Relação do Porto, de 07/11/2002, CJ, t. V, pág. 167.

Assim, a alegação da ré apenas teria relevância se não tivessem decorrido mais de dez anos sobre o início da contagem da prescrição, admitindo a hipótese da mesma ter sido interrompida quase no final da 1.ª contagem do prazo prescricional.

A presente ação, porém, foi interposta em 30 de setembro de 2015, pelo que, à data, já havia decorrido o prazo prescricional de cinco anos, mesmo que tivesse sido interrompido.

Não foram invocadas causas de suspensão da prescrição.

Concluindo, entendemos que assiste razão aos recorrentes, pois os mesmos lograram demonstrar, através do acervo factual apurado, que ocorreu a prescrição da prestação do capital de remição.

Concluindo, há que revogar a sentença recorrida e julgar procedente a ação.


*

V. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida, julgando-se a ação procedente e declarando-se prescrita a obrigação de pagamento do capital de remição.

Custas pela recorrida.

Notifique.

Coimbra, 10 de novembro de 2016




 (Paula do Paço)

 (Ramalho Pinto)

 (Azevedo Mendes) 



[1] “Direito das Obrigações”, 4.ª edição, págs. 468/469
[2] “Direito das Obrigações”, 1980, edição AAFDL, 1.º vol, pág, 357
[3] Em comentário a este artigo, escreveu-se no “Código Civil anotado”, por Pires de Lima e A. Varela, Vol. I, 4.ª edição, pág.278: «Cada obrigação – a correspondente ao direito unitário e a relativa a cada uma das prestações – tem um regime especial de prescrição. Pode prescrever uma das prestações, pelo decurso dos cinco anos referidos no artigo 310.º e manter-se a obrigação geral, a qual só prescreve se decorrerem, desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga, os prazos normais da prescrição.»