Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
113799/12.6YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: EMPREITADA
RETRIBUIÇÃO
Data do Acordão: 11/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1207º C. CIVIL.
Sumário: a) A falta de impugnação não implica a admissão por acordo do facto no caso de incompatibilidade dessa admissão com a defesa considerada no seu conjunto.

b) O controlo da decisão da matéria de facto da 1ª instância deve conformar-se, de um aspecto, com o princípio da utilidade dos actos processuais, e, de outro, com o princípio da disponibilidade privada do objecto do processo.

c) É às partes que cumpre alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir ou que fundamentam a excepção, valendo, por inteiro, no tocante a esses factos, o princípio da disponibilidade objectiva: o tribunal não os pode considerar se não foram alegados pelas partes.

d) O contrato pelo qual uma das partes se obriga, para com outra, a realização de projectos, designadamente de arquitectura ou de engenharia, é um contrato de empreitada ou a que devem aplicar-se, na medida possível, as regras da empreitada.

e) Estando assente o direito de uma das partes à percepção de uma remuneração, mas ignorando-se o quantum exacto dessa retribuição, deve condenar-se o devedor no valor do preço que se vier a liquidar.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

M… apresentou contra N… requerimento de injunção, pedindo a notificação deste para lhe pagar a quantias de € 7.260,00, acrescida de juros de mora no valor de € 2 535,43, e de € 102,00, relativa à taxa de justiça paga.

Fundamentou o requerimento no facto de, no exercício da sua actividade de realização de projectos de arquitectura, ter realizado, a solicitação do requerido, projectos de arquitectura para alteração de edifício e adaptação para espaço rural, e de o requerido lhe não ter liquidado o preço de € 7.260,00 acordado.

O requerido defendeu-se, na oposição, por excepção peremptória, alegando a prescrição presuntiva, e, por impugnação, afirmando que não solicitou, nem encomendou qualquer projecto de arquitectura ao requerente e que nunca existiu um contrato de prestação de serviços entre ambos.

Oferecido o articulado de resposta, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, no qual foram ouvidas duas testemunhas – J…, pai do requerente, e P…, unida de facto com o requerido – cujos depoimentos foram objecto de registo sonoro.

A sentença final, julgou a acção parcialmente procedente e condenou o Réu a pagar ao A., até ao limite máximo de 7.620 euros (IVA já incluído), o montante devido pela retribuição da execução do acordo apontado em 2 da factualidade apurada, de acordo com os critérios supletivamente prevenidos na lei (artº 1158º, nº 2 do CC) em caso, como o presente, de falta ou não apuramento de ajuste das partes.

É esta sentença que ambas as partes impugnam por recurso ordinário independente de apelação.

O requerente – que pede, no seu recurso, a revogação daquela sentença na parte em que conclui pela condenação ilíquida, sendo a acção julgada procedente e o Réu condenado no pedido – condensou a sua alegação nestas conclusões:

Por sua vez, o requerido – que pede, no seu recurso, a revogação da decisão recorrida - rematou a sua alegação com estas pródigas conclusões:

Nenhuma das partes respondeu ao recurso da outra.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto dos recursos.

2.1. O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nestes exactos termos:

...

2.1.2. Factos não provados.

 Não se provaram outros factos, designadamente, que no âmbito do acordo referido em 2 da factualidade apurada tenha sido acordado ou estabelecido qualquer concreto preço, designadamente aquele de 7.620 euros.

2.2. O Sr. Juiz de Direito adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.1.1. e 2.1.2., esta motivação.

Fundou o tribunal a sua convicção, desde logo, no documento nº 2 junto pelo A. no início da audiência de julgamento (fls. 30 a 91), sendo a subscrição do requerimento de fl. 30, com o qual foi proposto a licenciamento o projecto retratado ao longo daquele demais documento, confirmado pela testemunha P…, companheira do Réu há já cerca de 15 anos, como esclareceu.

No depoimento desta testemunha e de J…, pai do A., que confirmaram que o A. foi contactado pelo Réu no âmbito da pretensão deste último (e da sua companheira, a referida P…) de proceder a obras numa sua casa sita em Alcobaça, ‘transformando-a’ num espaço para turismo rural. E que nesse âmbito ou para esse efeito o A. elaborou um projecto, que o Réu entregou na Câmara de Alcobaça.

Divergiram as testemunhas, essencialmente, quanto ao modo de retribuição (lato sensu) do A., sendo que a testemunha J… referiu ter sido acordado um específico preço (“seis mil e tal euros mais IVA”), ao passo que a testemunha P…, não tendo referenciado que a elaboração daquele projecto tivesse sido gratuita, apontou que a ‘retribuição’ do trabalho executado pelo A. sobreviria com a entrega, a si (A.), da empreitada ou execução das obras de adaptação do edifício, como que se ‘diluindo’ o valor do projecto no montante global da empreitada que seria levada a cabo depois do licenciamento.

Ora, a dinâmica contratual, tal como descrita pela testemunha P…, não nos mereceu menor crédito (pelo contrário e pelas razões que se exporão) que aquela sustentada pela testemunha J... De facto, embora decorra da normalidade das situações (como se alcança das regras da experiência) que a contratação de alguém para elaborar um determinado projecto de arquitectura ou engenharia civil, pressupõe um prévio consenso acerca do preço a pagar, não há que olvidar, no caso concreto, as especificidades do relacionamento que à data intercedia entre o A., o Réu e o pai do primeiro. Assim, este último, a testemunha J… referiu que acabara de efectuar alguns trabalhos de construção civil para o Réu, e na mesma casa que foi objecto do projecto em apreço, como confirmaram ambas as testemunhas, as quais mais apontaram a existência, à data, de uma grande proximidade entre as partes. De resto, confirmaram ainda as testemunhas que o A., por intermédio de uma sociedade de sua ‘pertença’, efectuou parte das obras de construção civil de uma outra empreitada sita neste concelho de S. Pedro do Sul, promovida pelo Réu e companheira. Ou seja, em suma, e conforme se alcança dos depoimentos das testemunhas, a relação que intercedia entre A. e Réu não era meramente profissional, nem foi ocasional. O que reforça a verosimilhança da dinâmica descrita pela testemunha P…, ou seja, e segundo esta, a ‘vantagem’ que o A. retiraria com a elaboração do projecto não seria o seu ‘directo’ pagamento pelo Réu, mas antes a ‘vantagem’ proveniente do lucro que auferiria com a execução das obras de adaptação cujo licenciamento a elaboração daquele projecto precisamente visava permitir.

De resto, e para além do que assim se justifica quanto à não menor consideração do depoimento da testemunha P…, da análise do documento nº 3 junto pelo A. (fls. 93 a 96), consistente na sentença proferida no âmbito do processo aludido no requerimento de injunção, emerge um dado que em nada abona o crédito da testemunha J... De facto, ao passo que nestes autos de S. Pedro do Sul, sendo demandante o seu filho, aquele J… não teve dúvidas em apontar que o pedido de elaboração do projecto foi efectuado pelo Réu ao A. pessoalmente, já naqueles, em que era demandante a sociedade ‘pertença’ do seu filho, aqui A., apontava que a elaboração do projecto em causa tinha sido feita pelo seu dito filho, mas que este actuara em nome daquela sociedade. Ou seja, e salvo o devido respeito, não pode este exercício testemunhal à la carte deixar de ocasionar algumas dúvidas quanto à bondade do afirmado pela testemunha cujo depoimento agora se analisa.

Dai, perante o exposto, e em face das dúvidas, não nos tenha convencido o estabelecimento de qualquer acordo quanto a um específico preço como remuneração do projecto elaborado pelo A.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo dos recursos.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e da alegação de ambas as partes, a questão concreta controversa consiste em saber se o réu deve ser condenado no pedido líquido formulado pelo autor ou, inversamente, se o demandado deve ser absolvido, in totum, desse mesmo pedido.

Como de decorre das conclusões com os recorrentes remataram a respectiva alegação, o primeiro motivo de descontentamento, tanto de um como de outro, relativamente à decisão impugnada radica no julgamento da matéria de facto que nela se contém.

Ambos os recorrentes assacam à decisão da questão de facto um error in iudicando. Mas é diversa, num e noutro caso, a natureza desse erro. Segundo o réu, esse erro de julgamento radica num erro na apreciação da prova, por equívoco na valoração aferição da prova – pessoal – produzida; de harmonia com a alegação do autor, aquele erro assenta, antes, num erro sobre o objecto da prova, traduzido na errónea inclusão do facto na prova, i.e., na errada consideração de que esse facto se mostrava controvertido, e, portanto, carecido de prova.

Como importa, antes de mais, fixar os factos materiais relevantes para o julgamento da causa – aos quais será ulteriormente aplicado o direito – está indicado que conhecimento do objecto de ambos os recursos se abra com a apreciação da impugnação dirigida contra a decisão da questão de facto.

3.2. Impugnação da decisão da matéria de facto.

3.2.1. Recurso do autor.

                Um primeiro caso em que a Relação pode ser chamada a actuar os seus poderes de controlo relativamente à decisão da matéria de facto, respeita, não ao erro na apreciação da prova – mas ao erro sobre objecto dessa prova.

                A inclusão de um facto no objecto da prova e, portanto, a consideração de que esse facto necessita de prova, pode estar viciada por erro respeitante, designadamente à admissão por acordo. O vício decorre, nesta hipótese, de se exigir a prova de um facto que dela está dispensado.

                Segundo o autor seria esse justamente o caso no tocante ao facto relativo ao valor da remuneração que julga ser-lhe devida: no seu ver, dado que o réu, em momento algum, impugnou o valor peticionado, terá de considerar-se como provado, por admissão por acordo, aquele valor.

                Mas é patente que o autor não tem razão.

                Na contestação, o réu pode defender-se por impugnação, directa, ou de facto, e indirecta ou de direito, ou ainda qualificada ou per positionem. A impugnação directa ou de facto consiste na contradição pelo réu dos articulados na petição ou no requerimento inicial (artº 487 nº 1 e 2, 1ª parte, do CPC de 1961 e 571 nº 1 e 2, 2ª parte, do NCPC).

                A impugnação directa deve abranger os factos principais articulados pelo autor na petição inicial; se isso não suceder, consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados (artº 490 nºs 1 e 2 do CPC, do CPC de 1961 e 574 nºs 1 e 2, 1ª parte, do NCPC). Essa admissão dispensa a prova do facto, porque ele não se torna controvertido e, por isso, não integra o objecto da prova. Se, porém, integrar esse objecto, é irrelevante o eventual julgamento do tribunal sobre esse facto, dado que a contradição entre um facto assente e a resposta do tribunal é sempre resolvida, como se compreende, a favor daquele. De resto – de harmonia com o CPC de 1961, vigente ao tempo do proferimento da decisão impugnada, se o facto estivesse provado por admissão por acordo, a resposta do tribunal da audiência considerava-se não escrita, i.e., inexistente (artº 646 nº 4).

                Um ponto espinhoso respeita ao quantum dessa impugnação, i.e., à suficiência dessa impugnação. De forma deliberadamente simplificadora, pode dizer-se que esse quantum exige a exposição pelo réu dos motivos da sua oposição ao autor e das razões da controvérsia entre as partes, mas não exige a impugnação de cada facto alegado pelo autor: para que o ónus da impugnação se tenha por cumprido, basta que o réu apresente uma versão contraposta à do autor.

                Um outro motivo que determina que a falta de impugnação não implique a admissão por acordo do facto respeita á incompatibilidade dessa admissão com a defesa considerada no seu conjunto (artº 490 nº 2 do CPC de 1961, e 574 nº 2, 1ª parte, do NCPC). Nesta hipótese, o facto não é expressamente impugnado, mas a sua impugnação é desnecessária ou supérflua pela impugnação de outros factos: é o que ocorre sempre que o facto impugnado seja incompatível com qualquer outro que seja impugnado. Se, por exemplo, o réu impugnar o recebimento de determinados fornecimentos de mercadorias, há que considerar impugnadas as verbas respeitantes a cada um deles[1].

                Nem é outro o caso do recurso.

                O autor alegou como causa petendi ter contratualizado com o réu a prestação de serviços – ou a realização de uma obra – representada pela elaboração de um projecto de arquitectura, pelo preço de € 7 620,00. O réu, porém, foi categórico na negação da conclusão de um tal contrato. Ergo, desde que o réu impugnou a celebração do contrato alegado pelo autor como causa de pedir, há que considerar impugnado – por força da sua manifesta incompatibilidade com a defesa conjuntamente considerada – o facto relativo ao valor do preço ou da remuneração que, segundo o autor, se convencionou nesse mesmo contrato.

                Portanto, o facto relativo ao valor do preço ou da remuneração convencionada como contrapartida da prestação do serviço – ou da realização da obra – deve ter-se por controvertido e, como tal, carecido de prova, devendo, por isso, integrar o objecto dessa prova.

                Quanto a este ponto, a impugnação do autor é, de todo, improcedente.

                3.2.2. Recurso do réu.

O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1, a) e b), e 2 do CPC de 1961).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando[2]. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Depois, essa reponderação tem por finalidade e é actuada sob o signo dos parâmetros seguintes:

a) Da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, a absoluta ou ontológica, matemática ou científica (artº 341 do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (artº 655 nº 1 do CPC, do CPC aprovado pelo Decreto-Lei nº 44 129, de 28 de Dezembro, vigente ao tempo do proferimento da decisão impugnada e 607 nº 5 do CPC em vigor).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional;

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de argumento capaz de se impor aos outros;

e) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference. Os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[3];
f) O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis tem menor probabilidade de não ser a correcta.

g) O controlo pela Relação da decisão da matéria de facto não é actuado por imediação, i.e., através de numa percepção própria do material que lhe serve de base, mas através da audição de um registo sonoro ou da leitura, fria e inexpressiva, de transcrições, que torna indisponíveis todos os relevantíssimos momentos não verbais da comunicação.

Além disso, o controlo da decisão da matéria de facto da 1ª instância deve conformar-se, de um aspecto, com o princípio da utilidade dos actos processuais, e de, outro, com o princípio da disponibilidade privada do objecto do processo.

De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC)[4].

Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação.

Portanto, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção. E relativamente aos factos que correspondam aos possíveis enquadramentos jurídicos da causa, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos principais ou essenciais e não sobre os instrumentais. È que se o facto principal for julgado provado ou não provado, os respectivos factos instrumentais tornam-se irrelevantes.

O princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo – que é um dos princípios em que se desdobra o princípio do dispositivo – determina que incumbe às partes a definição deste objecto e a realização da prova dos respectivos factos. Ao autor cabe, por isso, definir o pedido e invocar a causa de pedir, não sendo licito ao tribunal, como consequência do funcionamento deste princípio, conhecer de pedido diverso do formulado ou de causa de pedir diferente da invocada (artºs 467 nº 1, als. c) e d), 661 nº 1 e 664, 2ª parte, do CPC do CPC de 1961 e 5 nº 1 e 552 nº 1 d) e e) do NCPC). Como complemento desta delimitação privada do objecto processual, incumbe às partes a realização da prova dos factos incluídos nesse objecto (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Quanto à disponibilidade dos factos necessários para a decisão do tribunal, a regra é esta: o tribunal deve conhecer de todos os factos alegados pelas partes no momento processual adequado, sejam eles factos principais ou acessórios; o tribunal pode ainda conhecer oficiosamente de certos factos acessórios. Portanto, em regra, o tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelas partes – iudex, secundum allehata e probata judicare debet, non secundum conscientiam suam (artº 664, in fine, do CPC de 1961 e 5 nº 1 do NCPC em vigor).

É às partes que cumpre alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir ou que fundamentam a excepção (artº 264 nº 1 do CPC do CPC de 1961, e 5 nº 1 do NCPC). No tocante aos factos essenciais vale, por inteiro, o princípio da disponibilidade objectiva: o tribunal não os pode considerar se não foram alegados pelas partes. Assim, dado que a contestação, em sentido material, está submetida a uma regra de concentração ou preclusão – de harmonia com a qual toda a defesa deve ser deduzida na contestação, ou mais exactamente, no prazo da sua apresentação – fica precludida quer a invocação de factos que, devendo ter sido alegados nesse momento, o não o foram, quer a impugnação, num momento posterior, dos factos invocados pelo autor (artº 489 nº 1 do CPC de 1961 e 573 do NCPC). Se tais factos forem alegados fora do prazo determinado para a contestação, o tribunal não pode considera-los na decisão da causa. E muito menos poderão tais factos ser alegados na instância de recurso dado que, no nosso direito, o recurso ordinário visa a reapreciação da decisão proferida nos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, pelo que está inteiramente excluída a possibilidade de alegação de factos novos – ius nova – naquela instância.

A esse poder de disposição quanto aos factos da causa, corresponde um limite do julgamento: o juiz não pode utilizar factos que as partes não tragam ao processo (artº 664 do CPC de 1961 e 5 nº 1 do CPC em vigor). Correspondentemente, o decisor da matéria de facto não pode pronunciar-se sobre facto que as partes não tenham alegado. Caso o faça, essa resposta - de harmonia com o CPC de 1961, vigente ao tempo do proferimento da decisão impugnada – deveria mesmo considerar-se não escrita, portanto, inexistente (artº 646 nº 4, por interpretação extensiva)[5].

Seja qual for, em definitivo, a solução exacta para o problema das respostas restritivas – i.e., que declaram provado menos de que o alegado – e explicativas – i.e., que julgam provada a causa do facto declarado assente – no tocante às respostas excessivas ou exorbitantes, a única doutrina admissível – à luz do CPC vigente ao tempo do proferimento da decisão impugnada - é a de as ter por não escritas, e, logo, por inexistentes[6]. O tribunal da audiência só pode conhecer da matéria de facto abrangida pelos pontos insertos na base instrutória, ou na sua falta, alegados nos articulados, e não pode responder ao que lhe não foi perguntado. Em boa lógica, impõe-se que não se tomem em consideração, pelo menos, as respostas exorbitantes, isto é, as respostas que excedam ou ultrapassem os factos compreendidos nos quesitos ou na alegação.

No caso, segundo o réu, o decisor de facto deveria ter julgado provado – prova que se fez com base no depoimento das testemunhas J… e P… - estes outros factos:

6. O A. efectuou parte das obras de construção civil de uma outra empreitada sita no concelho de S. Pedro do Sul, promovida pelo Réu e companheira. Deste modo, a relação que intercedia entre A. e Réu não era meramente profissional nem foi ocasional;

7 – Esta empreitada em São Pedro do Sul ascendia a centenas de milhares de euros.

8 – A “vantagem” que o A. retiraria com a elaboração do projecto não seria o seu “directo” pagamento pelo Réu, mas antes a “vantagem” proveniente do lucro que auferiria com a execução das obras de adaptação cujo licenciamento a elaboração daquele projecto precisamente visava permitir.

Decididamente, porém, não há que reponderar, quanto a tais factos, a decisão da matéria de facto da 1ª instância.

Desde logo, por esta razão bem simples mas bem sólida: é que tais factos não foram alegados por nenhuma das partes. O réu recordar-se-á, decerto, que se limitou a impugnar, por negação, os factos articulados pelo autor como causa petendi não tendo alegado quaisquer outros. Trata-se, portanto, de factos novos que, bem podendo ter sido alegados na instância recorrida, o não foram.

Depois, tais factos são puramente instrumentais relativamente aos factos essenciais alegados pelo autor como causa petendi, relevando quando muito a nível da contraprova destes últimos factos.

O decisor da 1ª instância julgou provado, com o algarismo, 1 que O A. dedica-se, além do mais, à realização de projectos no âmbito da engenharia civil. O réu acha que, com base nos depoimentos gravados, este facto deveria ter a seguinte redacção: O A. dedicava-se, à data, ou seja em 2008 à prestação de trabalhos de construção civil, tendo, em data posterior ao projecto em causa, adquirido um gabinete de projectos de engenharia civil designado por E...

Simplesmente, de um aspecto, nenhum destes factos foi objecto de oportuna alegação e, de outro, discutindo-se – como alegava o autor – se este se dedica à realização de projectos de arquitectura, não é lícito decidir que aquele prestava trabalhos da construção civil e que, em momento posterior à da elaboração do projecto, adquiriu um gabinete de projectos.

Julgou-se provado, na instância recorrida, que no âmbito daquela sua actividade, e por acordo com o Réu, o A. elaborou um projecto de alteração à arquitectura de um edifício, e de adaptação do mesmo a um espaço rural de turismo de habitação, sito em Melgaço, Valbom, no concelho de Alcobaça. Segundo o réu, a resposta exacta deve contextualizar com precisão o modo como surgiu esse projecto, e, portanto, deveria ter sido esta: no âmbito daquela sua actividade tinha já, à data, um relacionamento profissional e pessoal com o Réu, no âmbito do qual, por acordo com o Réu, elaborou um projecto de alteração à arquitectura de um edifício, e de adaptação do mesmo a um espaço rural de turismo de habitação, sito em Melgaço, Valbom, no concelho de Alcobaça.

O facto relevante, segundo o único enquadramento jurídico do objecto da causa, é o de saber se o autor, por acordo com o réu, elaborou o projecto de alteração da arquitectura de um edifício – e um tal facto – como linearmente decorre da alegação do réu e da redacção que sugere para o ponto de facto correspondente – deve ter-se por inteiramente exacto. Portanto, a correcção do julgamento deste facto não deve ter-se por impugnada e, consequentemente, não há que proceder, quanto ele, à reponderação desse mesmo julgamento.

Por último, a sentença impugnada declarou provado que a elaboração daquele projecto pressuporia, para o A., uma contrapartida económica, resposta que, no ver do réu, em face da prova testemunhal produzida, deveria ter esta redacção: a elaboração daquele projecto pressuporia para o A. uma contrapartida económica proveniente do lucro que auferiria com a execução das obras de adaptação cujo licenciamento a elaboração daquele projecto precisamente visava permitir caso fosse obtido financiamento comunitário.

Quer dizer: o réu não impugna a exactidão do julgamento deste ponto de facto, no segmento relativo a pressuposição, para o autor de uma contrapartida económica pela elaboração do projecto – facto que, portanto, se deve ter por correctamente julgado. O réu sustenta, porém, que essa contrapartida consistia no lucro que o autor auferiria na execução das obras correspondentes a esse projecto. Simplesmente, um tal facto é também novo dado que também ele não foi oportunamente alegado logo na instância recorrida - e na contestação - e, portanto, está inteiramente excluída, pelas razões apontadas, qualquer possibilidade da sua apreciação ainda que, por via da reponderação do julgamento de facto.

Estas considerações são suficientes para mostrar duas coisas:

a) Que de harmonia com a impugnação mesma do réu, os factos capitais relativos à elaboração pelo autor, por acordo com o réu, da elaboração um projecto de alteração à arquitectura de um edifício, e da adaptação a espaço rural de turismo de habitação, e à pressuposição de que a elaboração daquele projecto pressuporia, para o autor uma contrapartida económica, se mostram correctamente julgados – o que aliás, mostra uma modificação notável da estratégia processual do réu, que, como vimos, na contestação, foi terminante em negar a sua veracidade;

b) Que os demais factos que, segundo o réu, deveriam também julgar-se provados, não constituem objecto admissível do recurso por não terem sido objecto de alegação na instância recorrida e logo no articulado em que deduziu a defesa - mas apenas na instância de recurso.

 E estando definitivamente adquirida para o processo a correcção do julgamento daqueles dois factos essenciais e não sendo admissível ou útil a reponderação dos demais que constituem objecto da impugnação, a conclusão de que não há fundamento para proceder à reapreciação das provas em que o réu funda a sua impugnação é coisa que se explica por si.

Resta, por isso, proceder ao controlo da matéria de direito, i.e., verificar se a sentença impugnada violou a lei substantiva ou a lei de processo, o mesmo é dizer, se incorreu em qualquer erro na qualificação, na subsunção ou na estatuição, i.e., na escolha da norma adequada para enquadrar o caso concreto, no juízo de integração dos factos apurados na previsão da norma aplicável a esse caso ou na aplicação a este da consequência jurídica definida nessa norma.

3.3. Impugnação da decisão de direito.

De harmonia com os factos que – pelas razões já expostas - se devem ter por – correctamente - apurados na instância recorrida, o autor, por acordo com o réu, elaborou um projecto de alteração à arquitectura de um edifício, e de adaptação do mesmo a um espaço rural de turismo de habitação, sito em Melgaço, Valbom, no concelho de Alcobaça, elaboração que pressuporia, para o autor, uma contrapartida económica.

A sentença impugnada viu nestes factos a conclusão de um contrato de prestação de serviço atípico ou inominado a que, por força daquela atipicidade e desta inominação, seriam aplicáveis, por extensão de regime, as regras, devidamente reconformadas, do contrato de mandato (artº 1156 do Código Civil).

A construção ou a remodelação de edifícios ou de outras construções dá frequentemente lugar a vários contratos muitas vezes celebrados com pessoas diferentes: um contrato de elaboração de projectos concluído, por exemplo, com um engenheiro ou um arquitecto; um contrato de direcção de obra – também designado por contrato de assistência técnica – celebrado, por exemplo, com um engenheiro, um contrato de empreitada, concluído com um empreiteiro; um contrato de fiscalização da obra, através do qual dono desta comete a faculdade que a lei lhe reconhece de a fiscalizar, que tem, naturalmente, por fim evitar que a obra seja executada com vícios ou defeitos (artºs 1207 e 1209 nºs 1 e 2 do Código Civil)[7].

Na espécie do recurso, o autor, por acordo com o réu, vinculou-se para com este, a elaborar, mediante uma contrapartida económica, um projecto de alteração à arquitectura de um edifício, e de adaptação do mesmo a um espaço rural de turismo de habitação.

Desde que o autor se obrigou, em relação ao réu, a elaborar, mediante uma contrapartida económica, um projecto de arquitectura, estamos decerto face a um contrato de prestação de serviço – mas a um contrato típico e nominado de empreitada (artº 1207 do Código Civil).

Sem prejuízo da possibilidade da variação da modalidade de cálculo do preço – global ou à forfait, por medida, por artigo ou mesmo por tempo – o contrato de empreitada distingue-se de outros contratos de troca pela natureza da prestação não monetária a que uma das partes - o empreiteiro - está adstrita: a realização de uma obra.

O conceito de obra é, assim, essencial para se qualificar um contrato com empreitada e determinar, consequentemente, se lhe é aplicável o respectivo regime jurídico ou o regime de outros contratos de troca com que aquele tem afinidade: o contrato de compra e venda, em particular, de coisa futura ou o contrato de prestação remunerada, mas independente de serviço indiferenciado. Ao último é aplicável supletivamente um regime bem diferente do contrato de empreitada, embora pertencente categoria genérica dos contratos de prestação de serviço – o regime do contrato de mandato (artº 1156 do Código Civil).

O resultado de uma actividade exercida no interesse de outrem tem a natureza de obra quando: o resultado se materializar numa coisa concreta, susceptível de entrega e de aceitação; se o resultado for específico e discreto; se o resultado for concebido em conformidade com projecto, encomenda, plano, entregue ou aprovado pelo beneficiário (artºs 1208, 1214 e 1218 do Código Civil)[8].

Discute-se se as obras incorpóreas podem constituir objecto do contrato de empreitada[9]. Não parece, porém, que uma obra de arte ciência ou técnica não possa ser considerada obra para o efeito da qualificação do objecto como contrato de empreitada, desde que o resultado criativo seja encomendado e se corporize num qualquer suporte susceptível de entrega – corpus mechanicus.

Nestas condições, é de empreitada o contrato, por exemplo, para a realização de projectos, designadamente de arquitectura ou de engenharia[10].

É claro que se a obrigação a que se vincula o empreiteiro exceder a prestação de uma obra, o contrato pode, naturalmente, ser misto de empreitada e, por exemplo, de outra prestação de serviço.

Note-se que mesmo quem sustenta que um projecto de engenharia ou de arquitectura não constitui, por não se tratar de uma coisa corpórea, objecto admissível do contrato de empreitada, conclui que se justifica que ao contrato correspondente devam ser aplicadas, na medida possível, as regras da empreitada[11].

Trata-se, caracteristicamente, de um contrato bivinculante e sinalagmático, visto que dá lugar a obrigações recíprocas, ficando as partes, simultaneamente, na situação de devedores e de credores e coexistindo prestações e contraprestações[12].

Deste contrato emerge para o dono da obra esta obrigação simples – mas principal: a de pagar o preço convencionado (artº 1207 do Código Civil).

O preço representa a retribuição devida ao empreiteiro pela realização da obra e tem de ser fixado em dinheiro (artº 883, ex-vi artº 1211 do Código Civil). Trata-se, naturalmente, de um elemento essencial do contrato de empreitada, mas não se exige qualquer relação de proporcionalidade entre e remuneração do empreiteiro e a qualidade ou quantidade da sua prestação. Trata-se de um aspecto que o Direito abandona, por inteiro, à lógica do comércio privado.

Como é comum, o preço é fixado até ou no momento da celebração do contrato e a sua determinação pode obedecer a uma multiplicidade de critérios: pode ser determinado, por exemplo, à forfait, a corpo ou per aversionem, por unidade, por medida, por tempo, por percentagem, etc., nada impedindo mesmo a combinação duas ou mais formas de determinação do preço. Como nada impede também que, tendo sido originariamente convencionado um preço à forfait, as partes acordem, posteriormente, num preço ad mensuram, ou vice-versa (artº 406 nº 1 do Código Civil)

Na empreitada por preço global – ou à forfait, ou a corpo, ou per aversionem – o preço é fixado globalmente para toda a obra, independentemente da quantidade de trabalho ou materiais a realizar efectivamente. Nesta modalidade de fixação do preço, há uma clara assunção de risco para o empreiteiro, dado que se a obra lhe sair mais cara do que o planeado, recebe apenas a quantia acordada, não lhe sendo lícito exigir um aumento do preço, excepto, evidentemente, se tiver ocorrido uma alteração ao plano convencionado (artºs 406 nº 1 e 1216 nºs 1 e 2 do Código Civil). No entanto, a contrapartida desse maior risco que o empreiteiro assume na empreitada por preço global é a maior possibilidade de ganho, dado que o dono da obra não pode pedir uma redução desse preço, com a alegação de que os custos tomados como referência pelo empreiteiro foram, afinal, mais baixos, tornando a obra menos onerosa – com o consequente aumento da margem de lucro do primeiro.

Pode, porém, suceder que, no momento da conclusão do contrato, a obrigação de pagamento do preço não esteja determinada nem exista qualquer convenção das partes relativa à forma dessa determinação.

Esta indeterminação da prestação principal do dono da obra não prejudica em nada a validade do contrato de empreitada, dado que, nos termos gerais, se exige apenas que seja determinável (artº 400 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Nesta conjuntura, a lei disponibiliza um conjunto supletivo de critérios para a determinação do preço. Se este não se mostrar fixado por autoridade pública, valerá como preço o que o empreiteiro normalmente praticar à data da conclusão do contrato, na falta deste valerá o preço comummente praticado para a realização de obras daquele tipo, no momento e no lugar do cumprimento da prestação do dono da obra; não se mostrando o preço determinado por qualquer destes critérios, a obrigação correspondente é fixada pelo tribunal segundo juízos de equidade[13] (artº 400 nº 2 e 883 nº 1, ex-vi artº 1211 nº 1 do Código Civil). A lei de processo disponibiliza mesmo, para a fixação judicial do preço, um processo especial de jurisdição voluntária (artº 1429 do CPC e 1004 do NCPC).

O autor alegou que se convencionou, como contrapartida da sua prestação de obra, como preço, a quantia de € 7.620,00. Mas um tal facto – cuja prova competia lhe competia – não se demonstrou, tendo-se provado apenas que se convencionou uma contrapartida económica.

O autor sustenta, porém, que deve ser fixado um tal valor, por ser harmónico com as tarifas profissionais e os usos, e ser manifestamente justo, por aplicação supletiva das normas reguladoras relativas ao cálculo dos honorários a cobrar pelos autores de projectos de obras públicas: a Portaria de 7 de Fevereiro de 1972 – DG nº 35 (suplemento) de 11 de Fevereiro de 1972, alterada pela Portaria de 22 de Novembro de 1974 – DG nº 2, 2ª série, de 13 de Março de 1975 e pela Portaria nº 53, de 5 de Março de 1986, todas revogadas pela Portaria nº 701-H/2008, de 29 de Julho.

Mas há boas razões para ter esta alegação por improcedente.

Em primeiro lugar, tendo-se por certo que, no caso, não existem tarifas profissionais, o autor nem sequer alegou a existência de quaisquer usos – nem, de resto, qualquer facto relativo à complexidade, técnica ou outra, do projecto, ao tempo gasto no seu estudo e execução, etc.

Nos termos gerais, os usos exercem a função de interpretar e de completar os actos jurídicos, considerando-se as cláusulas de uso incluídas no negócio, excepto se forem deliberadamente excluídas pelas partes. Assim, por exemplo, a celebração de um contrato determinado envolve os usos que lhe estão ligados, desde que as partes sejam aptos a conhecê-los e, caso se refiram às relações do profissional com os clientes, se demonstre o seu conhecimento pelos últimos[14].

Em qualquer caso, sendo a existência e o uso – qualquer uso - matéria de facto, a sua alegação e prova deve ser feita por aquele que desse uso se quer prevalecer (artº 342 nº 1 do Código Civil)[15]. Manifestamente o autor não cumpriu como devia – e logo na instância recorrida – um tal ónus de alegação e de prova.

Depois, a empreitada objecto da causa e do recurso, é uma pura empreitada de direito privado e não uma empreitada de direito público. Dado que aquilo que decide sobre a qualificação da empreitada como de obra pública é a qualificação de uma das partes como contraente público[16], tem-se por certo que, no caso do recurso, dado que nenhuma das partes tem uma tal qualidade, a empreitada é, reconhecidamente, de obra privada, sujeita por inteiro ao direito privado (artº 343 do Código dos Contratos Públicos). Não se lhe são, por isso, aplicáveis, directamente, ou sequer por via subsidiária, as normas que regulam o cálculo de honorários devidos pela execução de projectos de obras públicas: os parâmetros relevantes para a determinação desse preço são, portanto, os dispostos na lei civil (artº 883 nº 1, ex-vi artº 1211 nº 1 do Código Civil).

No caso, a remuneração devida ao recorrente pela prestação da obra não se mostra fixada administrativamente e ignora-se – por nem ter sido objecto de alegação – a remuneração normalmente praticada pelo autor à data da conclusão do contrato, ou o preço comummente praticado para a realização de obras daquele tipo, no momento e no lugar do cumprimento da prestação do dono da obra: resta, como ultima ratio, a fixação daquela remuneração deve operar segundo um critério não normativo - o da equidade.

Mas a ausência da prova dos factos relativos aos parâmetros de determinação da remuneração devida ao requerente, não autorizavam que a sua fixação fosse logo feita, por recurso a juízos de equidade, na sentença final da causa. Dito doutro modo: o non liquet quanto ao valor da remuneração indubitavelmente devido ao autor não justifica, desde já, o recurso, para a sua fixação, a um juízo equitativo. Na verdade, há que relacionar as regras substantivas de determinação da prestação em geral, e da obrigação de pagamento do preço, em particular, com as regras adjectivas relativas à condenação genérica.

Constitui ocorrência ordinária, o juiz chegar à sentença e verificar que, devendo condenar o demandado, o processo não lhe fornece, porém, os elementos necessários para determinar o objecto ou a quantidade da condenação. Em face desses factos, só lhe resta uma solução jurídica: proferir uma condenação genérica, quer dizer, condenar o réu no que se vier a liquidar (artº 661 nº 2 do CPC de 1961 e 609 nº 2 do NCPC).

A condenação genérica no cumprimento de uma prestação pode, assim, dar lugar à incerteza ou à iliquidez da obrigação.

A obrigação é incerta quando a respectiva prestação não se encontra determinada ou individualizada; é ilíquida quando a sua quantidade não se encontra determinada. A iliquidez pode referir-se quer a prestações pecuniárias quer a prestações de dare.

É axiomático que as obrigações ilíquidas não podem ser realizadas de forma coactiva, pela razão evidente de que não se pode executar o património do devedor antes de determinar a quantia devida ou pedir a entrega de uma coisa antes de saber a quantidade que deve ser prestada (artº 47 nº 5 do CPC de 1961 e 704 nº 6 do NCPC). Assim, tem de ser liquidada a condenação em quantia ilíquida (artº 661 nº 2 do CPC de 1961 e 609 nº 2 do NCPC em vigor).

A regra é esta: a liquidação há-de fazer-se no processo de declaração que tenha por objecto o direito à prestação e, portanto, só pode reservar-se para momento ulterior, em última extremidade, quando não seja possível fazê-lo naquele processo (artº 378 nº 1 do CPC de 1961 e 358 do NCPC).

No caso, não oferece dúvida a existência da obrigação de pagamento de uma remuneração ou de um preço; desconhece-se, porém, o respectivo quantum. A única solução admissível é a condenação do responsável na obrigação de pagar esse preço – e a remessa da fixação do respectivo valor para momento posterior.

Portanto, diversamente da solução normal para as situações de non liquet – que é o proferimento de uma decisão onerada com a prova – a incerteza sobre a quantia devida justifica apenas que se relegue para momento ulterior a sua quantificação (artºs 516 do CPC de 1961, e 414 do NCPC, e 346, 2ª parte, do Código Civil). Esta solução parece decorrer da circunstância de, na determinação do quantum da obrigação, não se poder ficcionar o facto contrário àquele que devia ser provado como fundamento da decisão do tribunal[17].

Este pensamento transparece nitidamente na solução disposta na lei para o caso de, mesmo no incidente ulterior específico da liquidação, a prova produzida pelas partes se mostrar insuficiente para fixar a quantia devida: quando isso sucede, incumbe-se o juiz de a completar, mediante indagação oficiosa e, nomeadamente, através da produção de prova pericial (artº 380 nº 4 do CPC de 1961 e 360 do NCPC). Mesmo aqui, a persistência do non liquet sobre a quantidade da obrigação não dá lugar à intervenção da regra de julgamento representada pelo ónus da prova e ao consequente desfavorecimento da pretensão do credor, antes se impõe ao tribunal o dever de ultrapassar a deficiência, mediante iniciativa própria. Caso os diversos critérios supletivamente dispostos na lei não se mostrem suficientes para determinar o valor daquele preço, recorrer-se-á então à ultima ratio de julgamento indicada na lei: a equidade.

No caso sabe-se que a recorrente tem direito a ser remunerado mas ignora-se o quantum exacto dessa remuneração; deve condenar-se o devedor no valor do preço que se vier a liquidar.

Mas foi justamente essa a atitude da decisão impugnada que, por isso, se deve ter por juridicamente exacta.

O carácter ilíquido dessa obrigação e a natureza contratual da responsabilidade, impede a constituição em mora do réu enquanto o crédito se não tornar líquido e, consequentemente, a sua vinculação ao dever de indemnização secundário, correspondente aos juros legais (artºs 804 nºs 1 e 2, 805 nº 3, 1ª parte, e 806 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Note-se, por último, que esta solução permanece exacta ainda que, como sustenta a decisão impugnada, o contrato concluído entre o autor e o réu deva qualificar-se como contrato de prestação de serviço atípico a que não se devesse, ainda assim, aplicar as regras da empreitada – mas as do mandato.

Nesta conjuntura, os parâmetros atendíveis de fixação da remuneração, na falta de ajuste entre as partes, seriam os representados pelas tarifas profissionais, na sua falta, pelos usos, e, em última extremidade, na falta de umas e outros, por juízos de equidade (artº 1158 nº 2, ex-vi artº 1156 do Código Civil).

Mas, mesmo neste caso, faltaria também – desde logo por falta de alegação – a prova dos factos susceptíveis de integrar os critérios dispostos na lei para a fixação da remuneração devida ao autor.

Os recursos devem, pois, improceder.

Síntese recapitulativa:

a) A falta de impugnação não implica a admissão por acordo do facto no caso de incompatibilidade dessa admissão com a defesa considerada no seu conjunto;

b) O controlo da decisão da matéria de facto da 1ª instância deve conformar-se, de um aspecto, com o princípio da utilidade dos actos processuais, e de, outro, com o princípio da disponibilidade privada do objecto do processo.

c) É às partes que cumpre alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir ou que fundamentam a excepção, valendo, por inteiro, no tocante a esses factos, o princípio da disponibilidade objectiva: o tribunal não os pode considerar se não foram alegados pelas partes.

d) O contrato pelo qual uma das partes se obriga, para com outra, a realização de projectos, designadamente de arquitectura ou de engenharia, é um contrato de empreitada ou a que devem aplicar-se, na medida possível, as regras da empreitada;

e) Estando assente o direito de uma das partes à percepção de uma remuneração, mas ignorando-se o quantum exacto dessa retribuição, deve condenar-se o devedor no valor do preço que se vier a liquidar.

Cada um dos recorrentes sucumbe no seu recurso. Deverão, por isso, cada um deles, suportar as custas do respectivo recurso (artº 527 nºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento aos recursos.

Cada um dos recorrentes suportará as custas do seu recurso. 

                                                                                                              13.11.05

                                                                                                              Henrique Antunes - Relator

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                                             Regina Rosa                        


[1] Ac. da RE de 11.12.84, CJ, 84, V, pág. 268.
[2] Ac. STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130 e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.
[3] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[4] Ac. da RE de 09.06.94., BMJ nº 438, pág. 571.
[5] Ac. da RC de 11.10.94, BMJ nº 440, pág. 560. O ponto, porém, não é líquido, podendo discutir-se se não se trata, antes, de uma nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 2ª parte, do CPC de 1961).
[6] Acs. da RC de 03.04.86, BMJ nº 356, pág. 453, e do STJ de 27.10.94 e 05.07.94, BMJ nºs 440, pág. 478, e 439, pág. 479, respectivamente; José de Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 631.
[7] Baptista Machado, RLJ Ano 118º, págs. 277 e 278.
[8] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Conteúdo, Contratos de Troca, Coimbra, 2007, pág. 170.
[9] Em sentido afirmativo, Ferrer Correia e Henrique Mesquita, A obra intelectual como objecto do contrato da empreitada. Direito do dono da obra desistir do contrato e efeitos da desistência, ROA, 45, 1985, I, pág. 129, J. Brito Pereira, Do conceito de obra no contrato de Empreitada, ROA, 54, 1994, pág. 569, Oliveira Ascensão, Direito Civil, Direito de Autor e Direitos Conexos, Coimbra, 1992, pág. 421, A. Macedo Vitorino, A Eficácia dos Contratos de Direito de Autor, Coimbra, 1995, pág. 92, e por último - e por todos – Pedro de Albuquerque/Miguel Assis Raimundo, Direito das Obrigações Contratos em Especial, Volume II, Contrato de Empreitada, 2012, Almedina, Coimbra, págs. 165 e 166, e o Ac. do STJ de 03.11.83., ROA, 45, 1985, I, pág. 113; sem sentido negativo, Ac. do STJ de 02.02.88, BMJ nº 374, pág. 449, Antunes Varela, ROA, 45, 1985, I, pág. 159, Calvão da Silva, Direitos de autor, cláusula penal e sanção pecuniária compulsória, ROA, 47, 1987, pág. 129 Pedro Romano Martinez, O Contrato de Empreitada, Direito das Obrigações III, sob a Coordenação de António Menezes Cordeiro, Lisboa, 1991, pág. 465.
[10] Carlos Ferreira de Almeida, cit., pág. 171, e Pedro de Albuquerque/Miguel Assis Raimundo, Direito das Obrigações Contratos em Especial, Volume II, Contrato de Empreitada, cit. pág. 168.
[11] Assim, v.g., Pedro Romano Martinez, Contrato de Empreitada, cit., pág. 467, Baptista Machado, RLJ, Ano 118, pág. 277, e, não excluindo essa possibilidade, Pedro de Albuquerque/Miguel Assis Raimundo, Direito das Obrigações Contratos em Especial, Volume II, Contrato de Empreitada, cit. págs. 165 a 17º.
[12] Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 2ª edição, págs. 402 e 403.
[13] Ac. da RG de 19.06.08, www.dgsi.pt.
[14] Diogo Leite de Campos, Anatocismo e Usos Particulares do Comércio, ROA, 1988, 37-62.
[15] António Menezes Cordeiro, Tratado, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo I, 2009, Almedina, Coimbra, pág. 694, e Manual de Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 535, e Ac. da RP de 16.03.98, CJ, XXIII, II, pág. 206 e da RL de 17.06.10, www.dgsi.pt.
[16] Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (parte especial), contratos, compra e venda, locação, empreitada, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 321 e Pedro de Albuquerque/Miguel Assis Raimundo, Direito das Obrigações, cit., pág. 217.
[17] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, pág. 110.