Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1608/08.1TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: CHEQUE
REVOGAÇÃO
RESPONSABILIDADE
BANCO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 05/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 29.º; 32.º DA LUCL; ARTIGO 483.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL; ARTIG14.º DEC. N.º 13004, DE 1927. ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR N.º 4/2008, DE 28/02.
Sumário: 1. O banco que recusa o pagamento de um cheque apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, responde por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque.

2. A ilicitude da conduta do banco reside no facto de este, sem mais, negar o pagamento do cheque, apenas mediante a indicação genérica de falta ou vício da vontade na emissão.

3. Trata-se de uma mera informação genérica, sem qualquer justificação, que não se sobrepõe ao disposto no artigo 32.º da LUCH.

4. A este só se pode sobrepor uma ordem de revogação baseada numa situação de justa causa, v.g. furto, extravio, roubo, coação moral, mas não uma mera informação genérica e infundamentada.

5. Para que se decida em desconformidade com a jurisprudência uniformizada, será necessário que se considere que a jurisprudência fixada se mostre ultrapassada, que se desenvolva um argumento novo e de grande valor, não ponderado no Acórdão uniformizador, quer no seu texto quer em votos de vencido, susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; se torne patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos já utilizados, por forma, a que, posteriormente, se chegaria a um resultado diverso ou desde que uma alteração da composição do STJ faça supor que se proferiria decisão contrária à anteriormente perfilhada, não podendo bastar a ideia ou a convicção de que a decisão tomada não “é a melhor ou a solução legal.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A... LDA, sociedade comercial por quotas, com sede na Rua ...., NIPC ...., interpôs a presente acção declarativa de condenação que correu termos sob a forma sumária contra B...., instituição de crédito, com sede na Rua ......

*

Pede a Autora que a Ré seja condenada no pagamento de €29.705,93, correspondentes ao valor dos cheques que culposa e ilicitamente ordenou a devolução, acrescida de €104,00 correspondentes ao valor das despesas de devolução dos cheques; no montante correspondente à aplicação da taxa legal de juros moratórios, devendo estes ser contabilizados desde a citação até integral pagamento; nas custas e despesas a que a presente lide dê lugar.

*

Para tanto alega a Autora, em síntese, que forneceu a C.... material cosmético, para cujo pagamento aquele entregou uma série de cheques pré-datados no valor de €29.705,93, os quais apresentados a pagamento vieram devolvidos com a aposição da expressão revogação por justa causa, falta ou vício. A Ré aceitou as instruções de pura revogação, tendo causado à Autora um prejuízo idêntico ao valor titulado pelos cheques em causa, acrescido das despesas de devolução por si suportadas.

*

Válida e regularmente citada, veio a Ré, em tempo contestar alegando, em síntese, que o seu cliente lhe deu ordens expressas de não pagamento dos cheques em causa com fundamento de “má formação ou vício de vontade”, não cabendo à Ré sancionar ou sindicar as razões de tal informação. Mais refere que no período em causa nunca aquela conta se encontrou com provisão suficiente para que os cheques fossem pagos pelo banco sacado, e que o facto dos cheques não terem sido pagos não pode significar por si, a existência de prejuízo para a Autora a qual continua a ser titular do direito substantivo da relação jurídica subjacente.

Termina pedindo que a acção seja julgada improcedente, por não provada, dela se absolvendo a Ré.

            Teve lugar infrutífera audiência preliminar, a que se seguiu a elaboração de despacho saneador e fixação dos factos considerados assentes, de que não houve reclamação.

Após o que foi proferida a sentença de fl.s 88 a 102, na qual se decidiu o seguinte:

Pelo exposto, atendendo às considerações expendidas e normas legais citadas, decide-se

“- Julgar totalmente procedente a presente acção e, em consequência, condenar a Ré no pagamento à Autora da quantia de €29.809,93, acrescida de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.

- Condenar a Ré no pagamento das custas processuais, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 446º do Código de Processo Civil.”.

Inconformada com tal decisão, interpôs recurso a ré, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cf. despacho de fl.s 123), concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1. A Recorrida não deixou de manter a titularidade do direito de crédito subjacente à emissão dos cheques objecto da acção, podendo recorrer à sua cobrança judicial;

2. Sempre e em qualquer caso, fosse qual fosse o motivo da devolução dos cheques, a Recorrida suportaria os “prejuízos” resultantes das despesas com a sua devolução, não sendo estes “prejuízos” resultantes de qualquer actuação ilícita da Recorrente, nem esta lhes tendo dado causa;

3. A douta sentença Recorrida não dá por provados, apenas, apenas presumidos, quais os prejuízos resultantes para a Recorrida da devolução dos cheques

4. Não está demonstrado que a atitude da Recorrente de não pagar os referidos cheques à Recorrida lhe provocassem, em termos de causalidade adequada, algum prejuízo.

5. A douta sentença recorrida violou e fez errada interpretação do disposto nos artºs 342º- nº 1, 349º, 351º, 483º- nº 1 e nº 2, 487º- nº 1, 562º e 563º do Código Civil.

Termos em que deve ser revogada douta sentença recorrida, substituindo-se por outra em que, verificando-se a inexistência dos pressupostos da existência de responsabilidade civil extracontratual da Recorrente, seja esta absolvida do pedido

Assim se fazendo,

JUSTIÇA!

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Colhidos os vistos legais, há que decidir.        

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se existiu conduta ilícita por parte da ré ao aceitar a revogação dos cheques com fundamento em “má formação ou vício da vontade” e se, por via disso, está obrigada a pagar à autora a quantia peticionada.

            São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:

2.1. – A autora dedica-se ao comércio de cosméticos e, em geral produtos e mobiliário necessários à actividade de cabeleireiro e esteticista (A) dos factos assentes).

2.2. - Actividade essa, além da de cabeleireiro, que é a mesma de C.... (B) dos factos assentes).

2.3. - A relação estabelecida entre a autora e o referido C..... consistiu no fornecimento pela primeira ao segundo do material de que dispõe seja para uso próprio do mesmo C..... no seu salão, seja para este revender a terceiros (C) dos factos assentes).

2.4. - Tal relacionamento comercial, aliás duradouro, foi reflectido em emissão de vendas a dinheiro e facturas (D) dos factos assentes).

2.5. - O referido C...., com maior ou menor dificuldade sempre foi pagando os débitos e, por vezes, em montantes muito elevados (E) dos factos assentes).

2.6. - Atenta a confiança estabelecida os montantes foram-se acumulando (F) dos factos assentes).

2.7. - Recentemente, porém, o mesmo C.... deixou de cumprir (G) dos factos assentes).

2.8. - Como lhe era usual entregou à autora cheques pré-datados, nos montantes e datas em que afirmava poder cumprir (H) dos factos assentes).

2.9. - C.... comunicou o réu a revogação dos cheques nos termos constantes do documento nº1 junto com a contestação (I) dos factos assentes).

2.10. - O réu não procedeu ao pagamento dos cheques:

N.º 9435208374, com data de 29/02/2008, no valor de € 4620,31, apresentado a pagamento a 29/02/2008;

N.º 8737416846, com data de 03/03/2008, no valor de € 1100,00, apresentado a pagamento a 03/03/2008;

N.º 7837416847, com data de 10/03/2008, no valor de € 2.500,00, apresentado a pagamento a 10/03/2008;

N.º 6937416848, com data de 17/03/2008, no valor de € 1100,00, apresentado a pagamento a 17/03/2008;

N.º 6037416849, com data de 24/03/2008, no valor de € 1100,00, apresentado a pagamento a 24/03/2008;

N.º 6536426888, com data de 31/03/2008, no valor de € 6396,90, apresentado a pagamento a 31/03/2008;

N.º 5137416850, com data de 31/03/2008, no valor de € 1100,00, apresentado a pagamento a 31/03/2008;

N.º 4237416851, com data de 07/04/2008, no valor de € 1100,00, apresentado a pagamento a 07/04/2008;

N.º 3337416852, com data de 14/04/2008, no valor de € 2500,00, apresentado a pagamento a 14/04/2008;

N.º 3237097305, com data de 30/04/2008, no valor de € 8084,72, apresentado a pagamento a 30/04/2008, apresentados pela autora por ter aceite a ordem de revogação nos termos constantes no documento nº1 (J) dos factos assentes).

2.11. - A autora dirigiu ao referido C.... carta com o seguinte teor: «Serve a presente para, em primeiro lugar, lhe solicitar esclarecimentos quanto ao motivo da sucessiva devolução e consequente não pagamento de cheques pré-datados que emitiu à nossa ordem.

Serve ainda a presente para o interpelar para pagamento da quantia total de €65.134,53 que, como sabe, apresentada em dívida.

Aguardaremos uma resposta sua até ao próximo dia 10 de Abril, sem a qual retiraremos do seu comportamento as devidas e legais consequências.» (L) dos factos assentes).

2.12. - O autor não obteve resposta (M) dos factos assentes).

2.13. - Por força da devolução dos cheques identificados em J) a autora suportou despesas bancárias no valor de 104€ (10,40€ por cada um cheques) (N) dos factos assentes).

2.14. - Os cheques aqui em causa serviam para pagar parte da dívida que sempre o referido C...., apresenta para com a autora (O dos factos assentes).

2.15. – Encontram-se por pagar os fornecimentos e respectivas facturas:

560, com vencimento em 23/08/2007 e valor de € 1697,56;

561, com vencimento em 24/08/2007 e valor de € 746,21;

564, com vencimento em 30/08/2007 e valor de € 1934,97;

566, com vencimento em 31/08/2007 e valor de € 646,72;

569, com vencimento em 07/09/2007 e valor de € 1505,02;

571, com vencimento em 13/09/2007 e valor de € 1038,75;

575, com vencimento em 20/09/2007 e valor de € 2389,08;

576, com vencimento em 20/09/2007 e valor de € 2034,89;

577, com vencimento em 21/09/2007 e valor de € 916,48;

578, com vencimento em 24/09/2007 e valor de € 864,97;

579, com vencimento em 24/09/2007 e valor de € 584,79;

582, com vencimento em 26/09/2007 e valor de € 1478,91;

584, com vencimento em 28/09/2007 e valor de € 505,08;

591, com vencimento em 03/10/2007 e valor de € 1547,69;

592, com vencimento em 11/10/2007 e valor de € 1034,15;

593, com vencimento em 12/10/2007 e valor de € 326,69;

594, com vencimento em 12/10/2007 e valor de € 654,09;

597, com vencimento em 19/10/2007 e valor de € 1002,30;

599, com vencimento em 24/10/2007 e valor de € 1613,54;

602, com vencimento em 25/10/2007 e valor de € 310,74;

604, com vencimento em 29/10/2007 e valor de € 831,80;

605, com vencimento em 29/10/2007 e valor de € 130,09;

607, com vencimento em 31/10/2007 e valor de € 1776,59;

610, com vencimento em 05/11/2007 e valor de € 419,47;

611, com vencimento em 05/11/2007 e valor de € 184,84;

612, com vencimento em 08/11/2007 e valor de € 1487,54;

613, com vencimento em 08/11/2007 e valor de € 960,69;

616, com vencimento em 09/11/2007 e valor de € 139,50;

617, com vencimento em 09/11/2007 e valor de € 196,31;

621, com vencimento em 15/11/2007 e valor de € 1608,30;

629, com vencimento em 21/11/2007 e valor de € 1382,03;

631, com vencimento em 22/11/2007 e valor de € 1504,88;

634, com vencimento em 23/11/2007 e valor de € 239,99;

635, com vencimento em 29/11/2007 e valor de € 1295,35;

636, com vencimento em 30/11/2007 e valor de € 1507,48;

640, com vencimento em 03/12/2007 e valor de € 1030,45;

643, com vencimento em 05/12/2007 e valor de € 1343,45;

644, com vencimento em 06/12/2007 e valor de € 373,77;

650, com vencimento em 13/12/2007 e valor de € 1533,49;

651, com vencimento em 14/12/2007 e valor de € 1748,10;

654, com vencimento em 20/12/2007 e valor de € 1736,17;

655, com vencimento em 20/12/2007 e valor de € 868,61;

657, com vencimento em 21/12/2007 e valor de € 631,12;

660, com vencimento em 27/12/2007 e valor de € 1118,40;

661, com vencimento em 27/12/2007 e valor de € 481,77;

666, com vencimento em 04/01/2008 e valor de € 963,21;

669, com vencimento em 10/01/2008 e valor de € 798,73;

670, com vencimento em 10/01/2008 e valor de € 2248,68;

671, com vencimento em 10/01/2008 e valor de € 1716,28;

672, com vencimento em 14/01/2008 e valor de € 1074,52;

673, com vencimento em 14/01/2008 e valor de € 99,14;

674, com vencimento em 17/01/2008 e valor de € 2319,82;

675, com vencimento em 17/01/2008 e valor de € 301,76;

677, com vencimento em 18/01/2008 e valor de € 414,18;

681, com vencimento em 23/01/2008 e valor de € 1032,61;

684, com vencimento em 25/01/2008 e valor de € 828,81;

688, com vencimento em 01/02/2008 e valor de € 856,05;

689, com vencimento em 05/02/2008 e valor de € 399,43;

692, com vencimento em 08/02/2008 e valor de € 1439,32;

699, com vencimento em 14/02/2008 e valor de € 2268,79;

703, com vencimento em 18/02/2008 e valor de € 1185,20;

706, com vencimento em 21/02/2008 e valor de € 563,80;

707, com vencimento em 22/02/2008 e valor de € 106,78 (P) dos factos assentes)

2.16. - Os cheques emitidos pelo C.... e descritos em 2.10. serviam para pagar parte do valor das facturas descritas em 2.15 (Q) dos factos assentes).

2.17. - No período compreendido entre 29/02/2008 e 30/04/2008, data aposta nos cheques revogados, nunca a conta de depósito à ordem sobre a qual foram inicialmente emitidos tais cheques teve provisão suficiente para que fossem pagos pelo banco sacado, o aqui réu (R) dos factos assentes).

2.18. - A autora manteve-se legitima portadora dos cheques (S) dos factos assentes)

2.19. - Caso a ré tivesse devolvido os cheques por falta de provisão as despesas com a sua devolução seriam imputadas à autora (T) dos factos assentes).

Se existiu conduta ilícita por parte da ré ao aceitar a revogação dos cheques com fundamento em “má formação ou vício da vontade” e se, por via disso, está obrigada a pagar à autora a quantia peticionada.

Como resulta dos autos, a autora funda a sua pretensão no facto de a ré ter aceite, sem proceder a qualquer averiguação, a revogação dos cheques por parte do seu cliente, com o fundamento por este invocado de “má formação ou vício da vontade”, na sequência do que, apresentados os mesmos à compensação, não foram pagos, dada a invocação, genérica, de tal vício.

Como tais cheques se destinavam ao pagamento de produtos do seu comércio, que forneceu ao cliente da ré, os quais não foram pagos, dada a invocação de tal fundamento, teve a autora um prejuízo equivalente ao montante de tal dívida (e que corresponde ao somatórios das quantias inscritas nos cheques), acrescida de despesas de devolução dos referidos cheques e respectivos juros de mora, à taxa legal, o que equivale à quantia por si peticionada.

Entre o mais, com o fim de obter a pretendida condenação da ré, funda-se no teor do Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, n.º 4/2008, de 28/02/2008, in DR, I.ª Série, de 4/4/2008.

Por sua vez, a ré defende a improcedência da acção por não lhe caber averiguar da veracidade do fundamento invocado pelo seu cliente e porque inexiste nexo de causalidade entre o não pagamento dos cheques, por tal motivo e os alegados prejuízos da autora, até porque durante todo o período em causa, a conta sacada nunca teve fundos suficientes para que os cheques em causa pudessem ter sido pagos, para além do que a autora continua a deles poder dispor para cobrança do seu crédito, por os mesmos constituírem títulos executivos.

Como resulta da factualidade provada, designadamente respectivos itens 2.9, 2.10, 2.14, 2.15, 2.16 e 2.17, o primeiro por remissão para o doc. junto de fl.s 46 a 49 dos autos, está assente que o C....., subscreveu o documento ora referido, visando revogar os cheques em causa, invocando como fundamento “Revogação por má formação ou vício da vontade”, na sequência do que a ora ré não procedeu ao pagamento de tais cheques por ter aceite tal ordem de revogação (cf. supra referido item 2.10, parte final).

Igualmente está demonstrado que tais cheques se destinavam a obter pagamento da dívida do referido C...para com a autora, por fornecimentos que esta lhe efectuou e que, dada a mencionada ordem de revogação, que a ré aceitou, não foram pagos.

De realçar, ainda, que, como decorre do item 2.17, no período aí referido e que corresponde às datas apostas nos cheques revogados, a respectiva conta de D.O., nunca teve provisão suficiente para que fossem pagos.

Tendo em vista este resumo fáctico e esquisso da lide, importa, pois, averiguar se a ré pode ser responsabilizada pelo facto de os cheques em causa não terem sido pagos, em virtude da ordem de revogação que para tal recebeu do seu cliente, na qualidade de emitente dos mesmos.

A questão da responsabilização dos bancos pelo não pagamento de cheques, apresentados a pagamento dentro do prazo legal, decorrente de ordem de revogação dos mesmos dada pelo seu emitente, vinha sendo objecto de dissídio entre a doutrina e a jurisprudência, tal como referido na sentença recorrida.

E é no seguimento de tal querela que foi proferido pelo STJ o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, n.º 4/2008, de 28 de Fevereiro de 2008, publicado in DR, I.ª Série, de 4/4/2008, de acordo com o qual se uniformizou a jurisprudência, nos seguintes moldes:

“Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artigos 14.º, segunda parte, do Decreto n.º 13 004 e 483.º, n.º 1, do Código Civil.”.

Se é verdade que foi declarada a inconstitucionalidade do art.º 2.º, do Código Civil, através de Acórdão do Tribunal Constitucional de 28/05/96, in DR I-A, de 18/07, o certo é que os Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudência, se destinam a regular o modo como deve passar a ser decidida uma determinada questão que, até aí, vinha sendo objecto de controvérsia jurisprudencial.

Assim, para que se decida em desconformidade com a jurisprudência uniformizada, será necessário que se considere que a jurisprudência fixada se mostre ultrapassada, que se desenvolva um argumento novo e de grande valor, não ponderado no Acórdão uniformizador, quer no seu texto quer em votos de vencido, susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; se torne patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos já utilizados, por forma, a que, posteriormente, se chegaria a um resultado diverso ou desde que uma alteração da composição do STJ faça supor que se proferiria decisão contrária à anteriormente perfilhada, não podendo bastar a ideia ou a convicção de que a decisão tomada não “é a melhor ou a solução legal”.

Ora, aqui chegados e atenta a posição da ora recorrente expressa nas respectivas alegações e conclusões de recurso, tem de concluir-se que a mesma não acrescenta nada de novo, relativamente aos argumentos já expendidos e analisados no referido Acórdão Uniformizador n.º 4/2008, no qual já se aduziram os argumentos pró e contra, limitando-se a aderir a um dos votos de vencido no mesmo expressos.

Consequentemente, face ao ora exposto, não vemos razões para nos afastarmos da jurisprudência fixada no sobredito Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, n.º 4/2008, o qual fixou jurisprudência no sentido já acima transcrito.

E assim sendo, não vemos razões para alterar a decisão recorrida, na qual, igualmente, se seguiu e acatou a orientação seguida no sobredito Acórdão Uniformizador.

Efectivamente, quanto a tal, já na sentença recorrida se expõem as razões conducentes à condenação da ré, em termos para que se remete, em conformidade com o disposto no artigo 713.º, n.º 5 do CPC, apenas havendo que lhe acrescentar o seguinte.

A ilicitude da conduta da ré reside no facto de esta, sem mais, negar o pagamento dos cheques em causa, apenas mediante a indicação genérica de falta ou vício da vontade na emissão dos cheques.

Trata-se de uma mera informação genérica, sem qualquer justificação, que não se sobrepõe ao disposto no artigo 32.º da LUCH, segundo o qual:

“A revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação.

Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo.”.

A este só se pode sobrepor uma ordem de revogação baseada numa situação de justa causa, v.g. furto, extravio, roubo, coação moral, mas não uma mera informação genérica e infundamentada.

Ora, in casu, tal como acima já explicitado, foi o que aconteceu. O banco, ora réu, limitou-se a não os pagar, mediante tal invocação e não por insuficiência de fundos na conta sacada.

Efectivamente, como se refere no supra mencionado AUJ, em caso de insuficiência de fundos na conta sacada, se o banco pretende recusar o pagamento dos cheques sobre a mesma emitidos com base na referida insuficiência, deve mencionar que o não pagamento se deve a isso e não a qualquer outra razão.

Isto porque, assim, impede que o lesado se socorra dos mecanismos de pressão sobre o devedor consagrados no artigo 1.º do DL 316/97, de 19/11 e comunicação ao Banco de Portugal, com vista à inibição do uso de cheques por parte do devedor.

Assim, não colhe a argumentação de que os cheques nunca seriam pagos porque, durante os períodos de apresentação dos cheques a pagamento, a conta não se encontrava provisionada.

Se o banco pretendia recusar o respectivo pagamento, por tal motivo, deveria mencioná-lo e não faze-lo com fundamento na, infundada e genérica, ordem de revogação.

De resto, já posteriormente à prolação do referido AUJ, o STJ aceitou a sua eficácia relativamente a casos de pura e simples revogação não minimamente justificada, em termos de que a ordem de revogação dada pelo sacador tem de especificar os motivos que a determinaram – cf. Acórdãos do STJ, de 29/04/2008, Processo 07A4768 e de 02/02/2010, Processo 1614/05.8TJNF.S2, ambos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj.

No que respeita aos danos e nexo de causalidade entre estes e a conduta do banco, também seguindo o decidido no já referido AUJ, os mesmos se têm de ter por demonstrados, cf. fundamentos no mesmo vertidos (cf. fl.s 2068 do mencionado DR).

Efectivamente, foi pelo facto de o banco não ter pago os referidos cheques, com tal fundamento, que a autora se vê desapossada das quantias neles inscritas, o mesmo valendo para as despesas com a devolução, dado que não se trata de caso de não pagamento por insuficiência de fundos, sendo a esta situação que se refere o item 2.19 da matéria de facto dada por provada na decisão recorrida.

Em casos como o em apreço, o banco socorre-se da solução mais fácil que é a de não pagar os cheques escudando-se numa mera informação genérica e infundada de revogação, só que nem sempre as soluções mais fáceis são as mais seguras e acertadas.

Por outro lado se é certo que para obter ganho de causa a autora tem de alegar e provar os requisitos da responsabilidade extra-contratual, tal como referidos no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, a responsabilidade do banco, em casos como o ora em apreço, não pode ser afastada, mediante a exigência de que o lesado tem de provar que é esta a causa de não pagamento e que o poderia obter na sequência da notificação ao sacador para provisionar a conta ou directamente, ou através da inclusão da listagem no Banco de Portugal, que funciona como meio de pressão ou, ainda, de que os poderia apresentar e ver pagos, em momento oportuno (assim se decidiu no Acórdão do STJ, por último referido).

Tal vai contra o decidido no referido AUJ, como acima já referido.

Por outro lado, o banco ao não recusar o pagamento com base na insuficiência de fundos na conta sacada, inviabilizou que o lesado pudesse lançar mão de tais mecanismos, pelo que não nos parece lícito que, não obstante isso se diga, agora, para obstar à responsabilidade do banco, que o lesado poderia ter recorrido a meios que lhe foram vedados dada a actuação do próprio banco: ao não proceder ao pagamento dos cheques não com fundamento na falta de provisão da conta sacada mas sim na ordem de revogação.

Por último, de que vale à autora ter em sua mão os cheques se está demonstrado que a conta sacada não tinha fundos suficientes para que fossem pagos?

Assim, resulta demonstrado que, também, por este meio, a autora não poderia ver-se ressarcida das quantias nos mesmos inscritas.

Por tudo isto, falecem as razões invocadas pela recorrente, sendo de sufragar a sentença recorrida, pelo que improcede o recurso por si interposto.

Nestes termos se decide:       

            Julgar improcedente a apelação deduzida, em função do que se mantém a decisão recorrida nos precisos termos em que foi proferida.

            Custas pela apelante.