Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1387/04.1TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
TRESPASSE
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
Data do Acordão: 05/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1112º E 1039º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1) O estabelecimento comercial constitui uma organização concreta de bens e meios, factores produtivos com contornos próprios teleologicamente ordenados com vista a exercer no mercado a actividade a que está vocacionada.

2) O estabelecimento comercial é susceptível de transmissão, nomeadamente através de "cessão de exploração" e "trespasse", sendo hoje Doutrina e Jurisprudência pacíficas não ser imperioso que faça parte dessa transmissão todo elenco de bens e valores que compõem o dito estabelecimento, sendo todavia necessário aquele mínimo corporizador de um estabelecimento comercial, o que se afere normalmente de modo casuístico.

3) Permitindo a lei a transmissão do arrendamento em caso de trespasse de estabelecimento comercial, a falta de comunicação da mesma ao locador tem como consequência a ineficácia em relação àquele, situação que passa a integrar a previsão da alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU, conferindo ao senhorio a faculdade de pedir a resolução do arrendamento.

4) O ónus da prova da tempestividade de tal comunicação cabe ao locatário.

5) A referida comunicação tem que ser feita no prazo de 15 dias contados não desde a data em que o locado passou efectivamente a ser ocupado pelo novo inquilino mas antes desde a data da celebração do contrato de trespasse.

Decisão Texto Integral:      Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

     A... veio propor a presente acção sumária contra B... Lda., pedindo que, pela procedência da mesma, seja declarado resolvido o contrato de arrendamento existente entre ambos e condenada a Ré a despejar o locado entregando-o à Autora, livre e desocupado no estado em que se deve legalmente encontrar.

     Para tanto alegou, em síntese, que sendo proprietária do prédio urbano identificado no artº 1º da p.i. e a Ré arrendatária de tal local, esta última procedeu ao trespasse do local arrendado à C... SA em 10-12-2003, tendo comunicado a cedência do local à ré depois de esgotado o prazo de 15 dias previsto no artº 1038º, alínea g) do Código Civil, sendo tal comunicação ineficaz perante a Autora e determinante da resolução do contrato nos termos da al. g) do artº 1038º do CC e 64º, nº 1, alínea f) do RAU.

     Na contestação que apresentou, veio a Ré impugnar, no essencial, os factos que fundam o pedido de resolução do contrato de arrendamento, sustentando que comunicou a cedência do local arrendado antes de decorrido o aludido prazo de 15 dias, existindo um lapso no contrato quanto à data da respectiva celebração, que terá ocorrido no dia 07-01-2004 e não na data que do mesmo consta, sendo que a trespassária apenas entrou no gozo do locado no dia 02-02-2004.

     A autora respondeu à contestação, reiterando a posição sustentada na petição inicial.

     Proferido despacho saneador, com selecção da factualidade assente e controvertida e do qual não foi apresentada reclamação, ficou suspensa a instância por óbito da autora, tendo sido julgados habilitados, como sucessores desta, D... , E... , F... , G..., H... , I... e J... , para com eles, em substituição da falecida, prosseguirem os termos da causa (fls. 523-524).

     Foi interposto pelos AA. recurso de agravo do despacho que não admitiu diligências de prova.

     Procedeu-se a julgamento com inteira observância das respectivas formalidades legais, tendo a base instrutória merecido as respostas constantes de fls. 763 e seg..

     Foi proferida sentença que julgou totalmente procedente a acção e, em consequência,

     - Declarou resolvido o contrato de arrendamento mencionado na factualidade apurada e determino o despejo do local arrendado, condenando, em consequência, a ré B... Lda. a entregá-lo livre e devoluto de pessoas e bens aos sucessores habilitados da primitiva Autora A....

     Daí o presente recurso de apelação interposto pela Ré a qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a sentença substituindo-se a mesma por outra que julgue a presente acção improcedente e a apelante absolvida do pedido formulado.

    

     Foram apresentadas as seguintes,

     Conclusões.

     Recurso de agravo dos AA.

     1) Discute-se na presente acção a comunicação (ou a falta dela) de um trepasse à A. senhoria, no tempo e pela forma prevista na lei, sendo que a cominação para a falta de comunicação do trespasse realizado é o despejo, que foi peticionado.

     2) Do documento junto aos autos como contrato de trespasse (não impugnado pelas partes) consta que tal contrato de trespasse foi celebrado e assinado entre trespassante e trespassária em 10.12.2003, sendo que a sua comunicação só foi feita à A. em 09.01.2004, mais do que 15 dias após a data sua celebração.

     3) A Ré veio alegar que o contrato de trespasse não foi celebrado em 10-12-2003 pois por duas vezes foi deferida a sua assinatura; que o contrato só foi assinado a 2-2-2004; veio dizer que a trespassante só entrou na posse do estabelecimento em 02.02.2004; que até lá a Inquilina continuou a pagar as rendas; que até 2-2-2004 foi a Ré Inquilina que se manteve no locado a exercer a sua actividade e não a trespassária, onde manteve os seus trabalhadores, pagava os consumos de água e energia...

     4) Isto é a Ré trouxe para os autos factos relativos à discussão, celebração e assinatura do contrato de trespasse, maxime as respectivas datas e factos conexos com essa realidade, e que – e bem – o Tribunal recorrido fez verter no Questionário.

     5) Após a fase dos articulados o Tribunal preparou o despacho saneador que prevê na Base Instrutória matéria de facto diversa carreada para o processo pela Ré e que se destina aprovar (tentar provar) que o contrato de trespasse afinal apenas foi celebrado a 7-1-2004 com a consequente comunicação à A. senhoria dentro do prazo legal para o efeito.

     6) A matéria dos quesitos 1, 2, 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16 trata de factos a que a A. é alheia, tratando-se de factos onde alegadamente apenas terão estado presentes representantes da trespassante e trespassária e onde apenas terão estado trabalhadores e colaboradores da Ré.

     7) No seu requerimento de fls. veio a A. requerer produção de prova sobre aqueles quesitos, e para contraprova da matéria neles vertida.

     8) O despacho recorrido indeferiu esta produção de prova, violando diversas disposições constitucionais e legais.

     9) Apesar da matéria sobre que incide a prova requerida ser matéria oferecida pela parte sobre quem recaí o ónus de prova (a Ré, e não a A.), o artº 346º do Código Civil prevê expressamente o direito da contraparte de, sobre essa matéria, “opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir é a questão decidida contra a parte onerada com a prova”.

     10) O despacho recorrido nega à A. o direito que a lei lhe garante de apresentar prova sobre matéria carreada para os autos pela contraparte, violando o disposto no artigo 346º do CC.

     11) A parte é livre de apresentar a prova que entender (neste caso requereu), não estando sujeita ou confinada, nem tendo que estar, aos meios probatórios que a contraparte repute convenientes, cabendo-lhe em regime de igualdade um juízo de mérito, de conveniência e de oportunidade sobre a mesma prova. Tudo, obviamente, de acordo com os direitos de acesso à justiça e aos tribunais, e de igualdade, constitucionalmente consagrados.

     12) Ora, sendo a parte livre de apresentar a prova que entender, e não estando sujeita ou confinada, nem tendo que estar, aos meios probatórios que a contraparte repute convenientes, cabendo-lhe em regime de igualdade um juízo de mérito, de conveniência e de oportunidade sobre a mesma prova, o despacho recorrido violou o princípio da igualdade processual das partes.

     13) Por um lado, admitiu plenamente a prova apresentada pela Ré; por outro não admitiu a prova da A., precisamente sujeitando-a processualmente à prova que a Ré quis ou quiser apresentar e negando à A. o direito de fazer um juízo crítico sobre a prova apresentada pela Ré, sobre o seu mérito e, sobretudo, obrigando a jogar um jogo de acordo com limites que são fixado pela Ré: os meios de prova (sobre aqueles factos) são os que a Ré reputou convenientes e não os que a Ré e a A. reputaram convenientes.... quedando a posição processual da A. agravada e onerada em termos de igualdade processual.

     14) Não só está em causa a igualdade processual como também o acesso à justiça e aos tribunais, direitos constitucionais da A. nos termos do artº 20º da CRP. O direito à justiça determina que sejam garantidas as condições processuais de garantia de instrução, que compreende os direitos de apresentar a sua prova e contraprova.

     15) Deixar a prova sobre estes factos exclusivamente na mão da Ré... é negar a realização da justiça e limitar o direito de acesso à justiça e aos tribunais pela A., que A. não tem meios legais ao seu dispor que não sejam opor contraprova, usando a prova que julga adequada à defesa do seu direito.

     16) Por outro lado, o artº 515º do CPC impõe ao tribunal que deva tomar em consideração “todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las”, o que demonstra claramente que existem provas para além das apresentadas pelam parte que tem o ónus de provar esses factos. E que, portanto, a contraparte pode, se o entender, apresentar essas provas.

     17) O que, aliás, decorre do facto de o escopo principal do processo ser a realização do direito através do atingir da verdade material, objectivo esse que fica precludido se uma parte tem o direito de exclusivo processual de carrear provas para o processo, ainda que sobre os factos constitutivos do seu direito.

     18) Por outro lado, o artº 528º do CPC permite o uso de documentos em poder da parte contrária sem qualquer limitação sobre se os documentos incidem sobre prova de factos cujo ónus de prova compete à parte requisitante...ou à contraparte. De tal sorte que a decisão recorrida consubstancia uma restrição aos temos em que esta norma (letra e espírito) consente o uso e requisição de documentos em poder de terceiros.

     19) Mais ainda; O regime dos artsº 568º do CPC sobre prova pericial está previsto para sujeitar a prova pericial todos os factos, independentemente de serem factos oferecidos pela parte, bem como admite quesitação apresentada por ambas as partes, sem limitação do objecto e extensão determinada pela parte a cujo ónus compete a prova dos factos em apreciação.

     20) Sendo a prova requerida pela A. em abstracto admissível, o despacho recorrido não tinha fundamento para dizer que “não se afiguram nesta fase necessários ao esclarecimento dos factos, nos termos previstos no artº 535º do CPC.”

     21) Face à prova exclusivamente testemunhal oferecida pela Ré sobre os quesitos em causa, e face à abundantemente documentação existente e disponível, quer em poder da Ré, quer em poder de terceiros, é manifestamente necessária à boa instrução do processo a junção dessa prova.

     22) A boa instrução do processo impõe que fosse deferida a mesma, sendo que o Tribunal de recurso pode naturalmente assim julgar e determinar a sua produção.

     23) Na posse dos documentos requeridos naturalmente, o tribunal poderia fazer mais e melhor justiça. Para mais quando a lei prevê no artigo 351º do CC a admissão das presunções judiciais como meio de prova.

     24) Constituindo as presunções judiciais regras práticas de experiência e que permitem que se estabeleçam factos desconhecidos a partir de outros conhecidos que com aqueles estão numa relação lógica necessária, só com violação desta norma se pode não admitir aquela prova. Sendo que a prova por presunção judicial é, obviamente, um direito de qualquer das partes....

     25) E todos os factos que o Tribunal tiver conhecimento por esta via são naturalmente importantes e podem consubstanciar uma presunção judicial. Bem ao contrário do despacho recorrido, vê-se um interesse juridicamente atendível, e tutelado, na requisição das provas e documentos, sendo a sua admissibilidade ex vi artº 535º do CPC manifesta, atento, até, o facto de ter sido sugerida a sua requisição.

     26) Assim, pode naturalmente este Tribunal de recurso ter entendimento diverso, o que a A. agora peticiona.

     27) Quanto à matéria de prova do quesito 6º, sem a informação da Ré. a matéria prevista neste quesito é meramente conclusiva, violando a decisão recorrida e o princípio da igualdade das partes, enquanto onera a posição processual da A., que se vê na contingência de encarar factos não alegados, supostamente alicerçadores da conclusão. E quando as regras processuais – e por alguma razão o fazem – impõem que a instrução incida sobre factos que constam da base instrutória.

     28) É pois suposto a A. saber, e agora, na fase da instrução, que factos são esses que possibilitam as conclusões tiradas, pois só assim se podem defender, apresentar provas, etc., etc.

     29) Não é exigível à A. ter que contraditar conclusões, estando ao mesmo tempo omissos factos e circunstâncias fácticas que possam ser sujeitas a prova (e contraprova) das partes.

     Tudo a revelar uma oneração de uma parte em desfavor da outra.

     30) É certo que o Tribunal recorrido disse que “nesta fase indeferia a prova”. Mas também é certo que a A. pretenda, nesta mesma fase, faça valer os seus direitos processuais, até por razões de cautela de patrocínio.

    

     Recurso de apelação da sentença final por parte dos RR.

     1) A questão discutida nestes autos é apenas uma: a de saber se o trespasse celebrado entre a Apelante e a sociedade comercial C..., S.A. é eficaz perante a senhoria, por se encontrar efectivado o dever de comunicação previsto na alínea g) do artigo 1 038º do Código Civil, ou se, pelo contrário, tal comunicação não foi realizada tendo assim a Apelada o direito à resolução do contrato de arrendamento previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU, à data vigente.

     2) Do somatório da prova documental e testemunhal produzida resultou provada uma realidade factual distinta da que determinou a decisão dos autos, e designadamente que não existe qualquer fundamento para a resolução do contrato de arrendamento vigente entre Apelante e Apelada fundamentada no facto da comunicação do trespasse realizado entre a Apelante e a sociedade C..., SA não haver sido feita no prazo de 15 dias a contar da data da celebração do contrato.

     3) Sucede que dos depoimentos das testemunhas em audiência de julgamento, bem como da prova documental junta aos autos, resultou provado que não obstante a data constante do contrato de trespasse celebrado entre a R. e a sociedade comercial C..., S.A., relativo ao imóvel em causa, ser 10 de Dezembro de 2003, a assinatura do contrato não se deu nessa data, porquanto tal assinatura foi diferida por duas vezes, uma na data prevista no contrato e outra em 26 de Dezembro de 2003 - pelo que o contrato só foi outorgado em 7 de Janeiro de 2004 – e comunicado à Apelada nessa mesma data, com remessa de cópia do mesmo.

     4) Mais se provou que a trespassária apenas entrou na posse do estabelecimento que lhe foi cedido em 2 de Fevereiro de 2004, altura em que houve efectivamente a transferência de facto do local, com o inerente gozo e fruição do mesmo - tendo, nesse mesmo dia, comunicado o negócio de trespasse à Apelada.

     5) Sendo que, até essa data, permaneceu a Apelante na posse, gozo e fruição do mesmo estabelecimento.

     6) Esta factualidade resultou provada dos depoimento da testemunha L... , que foi funcionária da Apelante, exercendo funções de escriturária à data dos factos, e que depôs de forma convincente e demonstrou um conhecimento directo dos factos em causa nestes autos, resultando do seu depoimento a existência de um hiato temporal entre o momento da redacção do contrato e o momento da sua efectiva celebração, bem como o facto da trespassária C..., S.A. apenas ter começado a usufruir dessas instalações em Fevereiro de 2004, sendo que, até essa data, a Apelante manteve-se no estabelecimento, aí realizando a sua actividade comercial, instruindo os seus funcionários e colaboradores, mantendo os seus contactos telefónicos, recebendo e expedindo correspondência, e liquidando todas as contas atinentes ao desenvolvimento da sua actividade comercial, designadamente água, electricidade, telefone, etc.

     7) Do depoimento da testemunha M... , representante legal da trespassária, resultou provado que a data constante do contrato de trespasse junto aos autos se trata meramente de uma data que foi inicialmente aposta e que, posteriormente - na altura em que o contrato foi assinado - não foi alterado pelas partes celebrantes, e que a sociedade comercial "C..., S.A." apenas ocupou o espaço locado em Fevereiro de 2004, factos dos quais a testemunha demonstrou um conhecimento directo.

     8) A factualidade exposta é ainda corroborada pelo teor da documentação junta aos autos, que demonstram claramente que nenhum dos contratos de prestação de serviços foram celebrados pela trespassária antes de Fevereiro de 2004, nem o alvará de licenciamento para a exploração do seu estabelecimento comercial foi emitido antes daquela data.

     9) Assim, uma correcta e cabal análise de tal prova, implicaria que o Tribunal desse como provados os quesitos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14.

     10) Tendo o contrato sido assinado pelas partes em 7 de Janeiro de 2004, como foi alegado e, salvo melhor opinião, provado nestes autos, e tendo a comunicação à senhoria sido realizada em 9 de Janeiro de 2004, não poderá deixar de se considerar que a Apelante efectivamente cumpriu a obrigação que para si decorria do citado preceito legal, pelo que à luz das disposições legais aplicáveis, não tem a Apelada qualquer fundamento para a resolução do contrato de arrendamento.

     11) Ainda que assim não se entenda, e sem prescindir do que vem de se alegar, tendo a trespassária entrado na posse efectiva do estabelecimento em Fevereiro de 2004, como efectivamente sucedeu, jamais poderá deixar de se ter por cumprido o dever de comunicação previsto nessa disposição legal.

     12) Com efeito, da lei não decorre que o locatário se encontra obrigado a comunicar ao locador a cedência do gozo da coisa no prazo de quinze dias contados da celebração do contrato, mas antes contados da cedência do gozo da coisa – devendo sempre entender-se que a expressão “por algum dos referidos títulos” constante do preceito não pode ser interpretada no sentido de se referir à escritura pública ou ao documento particular que titula aquela cedência específica, mas antes à forma que configura a cedência do gozo - seja através de cessão onerosa ou gratuita, sublocação, comodato - o que, de resto, decorre do que é preceituado na alínea f) daquele artigo.

     13) Aliás, não pode ser outra a ratio legis do preceito – o prazo de quinze dias que o locatário está obrigado a observar na comunicação ao senhorio deve ser contado a partir da transmissão efectiva do gozo e não do documento que formaliza aquela transmissão, até porque se o trespassário tiver o gozo do locado antes da celebração da escritura de trespasse ou de documento equivalente e não seja comunicado ao senhorio dentro do prazo de quinze dias contados da cedência do gozo, este terá sempre fundamento para a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na alínea f) do artigo 1 038º do Código Civil – pois que o gozo efectivo da coisa estaria a ser usufruído por um terceiro sem o seu consentimento.

     14) Com efeito, o preceito aqui em análise visa a tutela de dois interesses do locador – por um lado, o interesse em controlar se o cessionário não alterou o âmbito em que o uso e fruição do imóvel foi autorizado, bem como a regularidade daquele gozo; por outro lado, assegurar ao locatário (e não a terceiro) o gozo da coisa para os fins a que se destina, nos termos da alínea b) do artigo 1031º do Código Civil e do artigo 3º do RAU.

     15) Pelo que só fará sentido interpretar a alínea g) do artigo 1038º do Código Civil no sentido de que o momento a que se atende para a contagem do início do prazo de quinze dias para a efectivação da comunicação não pode ser a data da outorga do contrato que formalizou a cedência do gozo, mas outrossim a data em que o gozo da coisa passou a ser exercido pelo trespassário.

     16) Assim e sem prejuízo da falta de coincidência entre a data que consta do contrato e aquela em que o mesmo foi efectivamente outorgado, a Apelante comunicou à sua senhoria, que havia entrado na posse do locado, no prazo de quinze dias contados desde a data da cedência efectiva do estabelecimento, pelo que inexiste qualquer fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, nem nos termos das disposições conjugadas da alínea f) e g) do artigo 1038º do Código Civil, nem nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 64º do RAU.

     17) Por tudo o que se deixou exposto, a sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente, entre outras, as normas constantes da alínea f) e g) do artigo 1038º do Código Civil, nem nos termos da alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU., que assim foram violadas.

     Contra-alegaram os apelados pugnando pela confirmação da sentença.

     Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

                           *

    

     2. FUNDAMENTOS.

     2.1. Reapreciação da matéria de facto.

     Nas suas contra-alegações a apelada refere que os recorrentes não cumpriram os requisitos para que a reapreciação da matéria de facto pudesse ter lugar, que são os referidos no artigo 690º-A do Código de Processo Civil i.e. a indicação dos depoimentos em que se baseia por referência ao assinalado na acta nos termos do disposto no artigo 522º nº 2 do mesmo Diploma Legal.

     Refira-se à partida que os normativos em análise foram redigidos pressupondo o tradicional suporte de cassete áudio; entretanto surgiu a possibilidade de gravar em CD-R (disco compacto) e não tem havido uma metodologia uniforme quanto ao modo de proceder por parte dos funcionários "técnicos de som"; por vezes a gravação efectuada tem assinalado o início e o fim de cada depoimento através da menção do nome dos depoentes; mas noutras ocasiões os depoimentos não são divididos em faixas antes apresentado sob a forma de um conjunto monobloco em que é impossível destrinçar fisicamente no suporte os depoimentos que vão sendo produzidos; a sua própria localização faz-se manualmente por tentativas. É o caso vertente; e quando assim sucede, muito embora a tarefa de quem tem que ouvir o CD esteja mais dificultada, certo é que não é impossível não podendo as partes ser prejudicadas por um insuficiência que nelas não tem origem.

     Pelo exposto iremos reapreciar a prova gravada.

                           +

     Insurgem-se os apelantes contra as respostas aos quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, e 14º.

     Perguntava-se nos quesitos em análise respectivamente o seguinte:

     Quesito 1º: A assinatura do contrato referido em J) foi diferida por duas vezes, uma no dia 10/12/2003 e outra em 26/12/2003?

    

     Quesito 2º: Em virtude do referido em 1º o contrato referido em J) foi outorgado em 7/1/2004?

     Quesito 3º: No dia referido em 2º a Ré enviou a carta referida em I)?

     Quesito 4º: A trespassária entrou na posse do estabelecimento que lhe foi cedido no dia 2/2/2004?

     Quesito 5º: E entrou no gozo do imóvel objecto de arrendamento no dia referido em 4º?

     Quesito 6º: No dia 2/2/2004 a Ré e a trespassária comunicaram à Autora o negócio e que a trespassária tinha entrado nessa data na posse definitiva do estabelecimento?

     Quesito 7º: Na comunicação referida em 6º, a Ré solicitou à Autora que os futuros recibos de renda fossem emitidos em nome da sociedade trespassária?

     Quesito 8º: Entre 10/12/2003 e 2/2/2004 a Ré continuou a pagar renda devida pela ocupação do imóvel?

     Quesito 9º: Entre 10/12/2003 e 2/2/2004 a Ré manteve-se no estabelecimento ali orientando a sua actividade e efectuando vendas em seu nome?

     Quesito 10º: Entre 10/12/2003 e 2/2/2004 a Ré ali instruía como sempre fez os seus funcionários e colaboradores?

     Quesito 11º: Entre 10/12/2003 e 2/2/2004 a Ré ali manteve os contactos telefónicos recebia e expedia correspondência?

     Quesito 12º: Entre 10/12/2003 e 2/2/2004 a Ré liquidava à sua conta todos os fornecimentos específicos à fruição do imóvel como água, electricidade e taxas de saneamento?

     Quesito 13º: A partir do mês de Marços de 2004 com referência à renda do mês seguinte, a trespassária procedeu o pagamento mensal das rendas à Autora?

     Quesito 14º: Os pagamentos referidos em 13) forma efectuados através de depósitos na conta bancária da Autora?

     O Tribunal respondeu aos quesitos em análise pela seguinte forma:

     Quesitos 1º e 2º: Provado apenas o que consta em J) e K).

     Quesito 3º: Provado apenas o que consta em I).

     Quesitos 4º, 5º e 6º: Provado apenas o que consta em J) e K).

     Quesitos 7º e 17º: Não provado.

     Quesito 8º: provado apenas que entre 10/12/2003 e 2/2/2004 foi paga a renda mensal devida pela ocupação do imóvel?

     Quesitos 9º a 12º: Não provado.

     Quesito 13º: Provado apenas que a partir de Março de 2004 continuou a ser paga mensalmente à Autora a renda devida pela ocupação do imóvel.

    

     Quesito 14º: Provado apenas que os pagamentos referidos na resposta ao quesito 13º foram efectuados através do depósito numa conta bancária da Autora.

     Os apelantes entendem que deveria ter sido conferida resposta positiva aos quesitos em análise.

     Vejamos:

     - À matéria dos quesitos 1º, 2º e 3º: a prova produzida nada adianta ao que vem fixado nas alíneas J) e K). Nenhuma das testemunhas inquiridas a esta matéria se reportaram ao alegado diferimento da assinatura do contrato para 10/12/2003 e 26/12/2003. Aliás cumpre realçar que a prova documental aponta até para a celebração do contrato em 10/12/2003- Cfr. fls. 25 a 27, devendo referir que esta última data é a que resulta do prazo para a realização do negócio referido a fls. 22 de onde decorre que o escritura seria outorgada no prazo subsequente, a 13/11/2003. De igual forma no tocante ao quesito 3º fica-nos apenas o facto de a carta ter sido enviada, o que de certa forma também decorre da resposta aos quesitos anteriores.

     - À matéria dos quesitos 4º, 5º e 6º, não temos quaisquer elementos nomeadamente prova testemunhal que aponte para uma resposta que vá além do que consta nas alíneas J), K) e L). É bem certo que houve depoimentos no sentido de que as rendas continuaram a ser pagas após 10/12/2003. Só que não se encontram juntos aos autos quaisquer recibos que o provem de forma consistente, sendo certo que não é de supor que tal se tornasse difícil.

     No que toca aos consumos de água e luz do locado, o facto de continuarem a ser emitidas facturas em nome da Ré a partir de 10/12/2003 não implica que a mesma tenha permanecido no local depois daquela data.

     No que toca ao depoimento da testemunha L..., ligada profissionalmente à Ré, o seu depoimento está recheado de imprecisões, não mantendo uma linha coerente quando submetido às instâncias das partes e esclarecimentos do Tribunal, nomeadamente no que toca à data em que o contrato de trespasse foi assinado.

     Por outro seu turno M..., ligado à Ré, muito embora mencionasse nomeadamente que o contrato de trespasse foi assinado em Dezembro de 2003 e que o comunicou à Autora, certo é que nessa altura a mesma não estava já em condições de entender o seu alcance em virtude da deterioração das suas faculdades mentais, como foi atestado pelas testemunhas N..., O... e P.... 

     Não há elementos que permitam a alteração da restante matéria de facto.

     Improcede pois a pretensão dos recorrentes.

                           +

     Com interesse para a decisão da causa encontram-se pois provados os seguintes,

     2.1. Factos.

    

     2.1.1. A Autora é proprietária do prédio urbano sito no nº 21 da ..., freguesia do ..., em ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o nº ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., estando inscrito a favor da autora o facto relativo à aquisição de tal prédio pela inscrição G1 - A.

     2.1.2. Por escritura pública celebrada no dia 30 de Setembro de 1965, em que intervieram D..., na qualidade de primeiro outorgante, e Q..., na qualidade de segundo outorgante e de gerente delegado da sociedade “R..., Lda.”, o primeiro deu de arrendamento à sociedade, representada pelo segundo outorgante, o rés-do-chão do local referido em A), destinado à exposição e venda de veículos automóveis, peças e acessórios para os mesmos, pneus e câmaras-de-ar, lubrificantes, equipamento industrial e de estação de serviço e todo o comércio inerente aos mesmos ramos - L.

     2.1.3. A 23 de Novembro de 1983, a R..., Lda.” trespassou, por escritura pública, o estabelecimento comercial sito no locado à sociedade B...Limitada, ora Ré – doc. de fls. 222 e segs.

     2.1.4. A R...comunicou o trespasse à Autora por carta de 25-11-1983 - B.

     2.1.5. A Autora aceitou o trespasse referido em 4) - C.

     2.1.6. A partir de Novembro de 1983, a Ré passou a explorar o estabelecimento existente no locado como inquilina - D.

     2.1.7. A Ré pagava, à data de Dezembro de 2003, uma renda actualizada em função dos aumentos anuais de renda no montante de 178,50 € mensais - E.

     2.1.8. Em carta datada de 13 de Novembro de 2003 e recebida pela Autora, a Ré comunicou àquela que iria trespassar o local arrendado nos termos constantes do documento de fls. 22 - F.

     2.1.9. Na carta referida em 8), a Ré informou a Autora do preço do negócio, das condições de pagamento e do prazo para a realização do negócio - G.

     2.1.10. A Autora, por não ter qualquer interesse, não exerceu o direito de preferência - - H.

     2.1.11. Em 09 de Janeiro de 2004, a Autora recebeu da Ré a carta junta a fls. 23, datada de 7 de Janeiro de 2004, e na qual enviava em anexo o contrato de trespasse celebrado entre esta e CC..., SA - - I e resp. ao ques. 3º.

     2.1.12. Através de documento particular intitulado “contrato de trespasse”, em que tiveram intervenção a ora Ré, na qualidade de primeira contratante, e C..., S.A., na qualidade de segunda contratante, a primeira trespassou à segunda o estabelecimento comercial sito no local referido em 1), abrangendo o trespasse, nomeadamente, a cedência dos direitos e obrigações de arrendatário do local – J e resp. aos ques. 1º, 2º, 4º, 5º, 6º.

     2.1.13. Na parte final do documento particular referido em 12), consta, antes das assinaturas das outorgantes, a menção de “ ..., aos 10 de Dezembro de 2003” - K e resp. aos ques. 1º, 2º, 4º, 5º, 6º.

     2.1.14. Entre 10-12-2003 e 02-02-2004 foi paga a renda mensal devida pela ocupação do imóvel – resp. ao ques. 8º.

     2.1.15. A partir de Março de 2004 continuou a ser paga mensalmente a renda devida pela ocupação do imóvel – resp. ao ques. 13º.

     2.1.16. Os pagamentos referidos em 15) foram efectuados através de depósito numa conta bancária da Autora – resp. ao ques. 14º.

    

     2.2. O Direito.

     Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

    

     - O trespasse do estabelecimento comercial o respectivo âmbito.

     - A transmissão do arrendado em caso de trespasse e requisitos para sua efectivação.

                           +

     2.2.1. O trespasse do estabelecimento comercial o respectivo âmbito.

    

     O estabelecimento comercial constitui uma organização concreta de bens e meios, factores produtivos com contornos próprios teleologicamente ordenados com vista a exercer no mercado a actividade a que está vocacionada. Esta organização não é contudo o mero aglomerado atomístico dos elementos que a compõem, já que a respectiva agregação dinâmica gera "uma unidade de fim" onde são patentes elementos de valorização e acreditação no seio de mercado e que é genericamente descrito como sendo o "aviamento" do estabelecimento[1].

     Como é sabido o estabelecimento comercial é susceptível de transmissão, nomeadamente através de "cessão de exploração" e "trespasse", sendo hoje Doutrina e Jurisprudência pacífica – cfr. os AA. citados em nota - não ser imperioso que faça parte dessa transmissão todo elenco de bens e valores que compõem o dito estabelecimento comercial, sendo todavia necessário aquele mínimo corporizador de um estabelecimento comercial, o que se afere normalmente de modo casuístico. Além de requisito conatural à existência de trespasse, a transmissão daqueles elementos torna-se necessária para que o trespassário goze de certas vantagens que a lei concede, tendo em linha de conta a natureza potencialmente geradora de riqueza do trespasse, como seja a transferência da posição de arrendatário independentemente do consentimento do senhorio, que tem sido atribuída por lei em detrimento do direito socialmente estático do locador – cfr. artigo 1112º nº 1 do Código Civil.

     No entanto não esgota o âmbito do trespasse a transmissão dos elementos materiais stricto sensu, normalmente conotados com a caracterização do seu âmbito mínimo, já que é muito mais vasto o conjunto de bens que podem envolver a respectiva transmissão; trata-se de matéria que não se encontra contudo determinada, já que a mesma dependeria de uma tipicização legal do trespasse, espécie contratual que mau grado seja reconhecida pelo ordenamento jurídico, não é contudo definida legalmente, nem tão pouco precisada minimamente nos seus contornos.

     No entanto tendo em linha de conta a controvérsia a dirimir nos presentes autos, delimitada pelas conclusões da alegação de recurso, iremos centrar a nossa análise na problemática da transmissão do local arrendado em caso de trespasse e comunicação daquela ao senhorio.

                           *

     2.2.2. A transmissão do local arrendado em caso de trespasse e requisitos para sua efectivação.

     Constatámos que a lei permite a transferência da posição de arrendatário sem dependência do consentimento do senhorio, nomeadamente no caso de trespasse do estabelecimento comercial e industrial. Todavia se o interesso social faz pender a opção do legislador em benefício do trespassante com prejuízo do locador, nem por isso deixa a lei de rodear aquela transmissão de um conjunto de garantias tendentes a acautelar de algum modo os interesses deste último, nomeadamente evitando tanto quanto possível que a figura do trespasse sirva de mera cobertura a uma transmissão do contrato de arrendamento vedada por lei. Por tal motivo o artigo 1 112º do Código Civil estatui que não há trespasse " a) Quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento; b) Quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou indústria ou, de um modo geral, a sua afectação a outro destino. E o nº 5 do mesmo normativo legal estatui por sua vez que "Quando, após a transmissão, seja dado outro destino ao prédio, ou o transmissário não continue o exercício da mesma profissão liberal, o senhorio pode resolver o contrato".

     Por seu turno também o artigo 1039º do Código Civil estabelece que "é obrigação do locatário comunicar ao locador, dentro de quinze dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada"; A falta de comunicação tem como consequência a ineficácia do trespasse em relação ao senhorio, situação que passa a integrar a previsão da alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU, conferindo ao senhorio a faculdade de pedir a resolução do arrendamento[2]. O ónus da prova da tempestividade de tal comunicação cabe ao locatário. Esta questão é fundamentalmente a que nos ocupa no caso em análise; e o locatário não logrou aqui fazer tal prova. Como referimos esta teria que ser feita no prazo de 15 dias contados não desde a data em que o locado passou efectivamente a ser ocupado pelo novo inquilino mas antes desde a data da celebração do contrato de trespasse. Trata-se de um prazo de direito substantivo como se vem entendendo maioritariamente e tem como finalidade permitir que em curto espaço de tempo o locador possa averiguar da legalidade do acto, sendo indispensável que haja uma certeza quanto ao início da contagem[3].

     O trespasse foi in casu outorgado em 10 de Dezembro de 2003 e só em 09 de Janeiro de 2004, a Autora recebeu da Ré a carta junta a fls. 23, datada de 7 de Janeiro de 2004, e na qual enviava em anexo o aludido contrato celebrado entre esta e C..., SA - - I e resp. ao ques. 3º.

     A falta de comunicação da transferência do local arrendado no prazo legal permite ao locador resolver o contrato à face do estatuído no artigo 64º nº 1 alínea f) do RAU[4].

     O arrendatário não cumpriu tal ónus, como plenamente resulta dos factos provados.

     Nesta conformidade impõe-se a confirmação da sentença.

    

     Poderá então assentar-se no seguinte:

     1) O estabelecimento comercial constitui uma organização concreta de bens e meios, factores produtivos com contornos próprios teleologicamente ordenados com vista a exercer no mercado a actividade a que está vocacionada.

     2) O estabelecimento comercial é susceptível de transmissão, nomeadamente através de "cessão de exploração" e "trespasse", sendo hoje Doutrina e Jurisprudência pacíficas não ser imperioso que faça parte dessa transmissão todo elenco de bens e valores que compõem o dito estabelecimento, sendo todavia necessário aquele mínimo corporizador de um estabelecimento comercial, o que se afere normalmente de modo casuístico.

     3) Permitindo a lei a transmissão do arrendamento em caso de trespasse de estabelecimento comercial, a falta de comunicação da mesma ao locador tem como consequência a ineficácia em relação àquele, situação que passa a integrar a previsão da alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU, conferindo ao senhorio a faculdade de pedir a resolução do arrendamento.

     5) O ónus da prova da tempestividade de tal comunicação cabe ao locatário.

     6) A referida comunicação tem que ser feita no prazo de 15 dias contados não desde a data em que o locado passou efectivamente a ser ocupado pelo novo inquilino mas antes desde a data da celebração do contrato de trespasse.

                           *    

     3. DECISÃO.

     Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando assim a sentença apelada.

     Custas pelo apelante.

      [1] Cfr. Cassiano dos Santos "Direito Comercial Português" I Coimbra Editora, 2007 pags. 287; "Gravato de Morais" "Alienação e Oneração do Estabelecimento Comercial" Almedina 2005, 77 ss. Orlando de Carvalho "Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial" I, Coimbra Atlântida Editora, pags. 687 e Alguns Aspectos da Negociação do Estabelecimento in RLJ Ano 115, pags. 167 ss.

     [2] Constitui orientação largamente maioritária nomeadamente face à lei aqui aplicável – Cfr. Aragão Seia "Arrendamento Urbano Anotado e Comentado" Almedina, Coimbra, 3ª Edição 1997, pags. 337 e Henrique de Mesquita Anotação in RLJ Ano 126, 284 s. Na Jurisprudência cfr. Ac. do Trib. Const. nº 455/2008, de 23-09-2008 (P. 546/08) in Diário da República nº 250, Série II, Págs. 51144 a 51150; Ac. do S.T.J. de 25-11-2008 (P. 3399/2008).

      [3] Cfr. Parecer do Prof. Inocêncio Galvão Telles in CJ 1982, I pags. 18. Acs. Ac. do S.T.J. de 3-11-1994 (P. 86 215) in Col. de Jur., 1994, 3, 117; da Rel Lisb. 26-6-1997 in Col. de Jur., 1997, III, 130; desta Relação de 4-12-1984 (R. 13 850) in BMJ 342, 444; de 5-1-1982 in Col. de Jur., 1982, I, 18.   

      [4] Contra: Orlando de Carvalho v.g. in "Critério e Estrutura do Estabelecimento comercial" pags. 667 ss. ainda no domínio da lei anterior. Contudo esta posição é minoritária e não tem tido acolhimento a nível de parte substancial da Doutrina e Jurisprudência