Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
454/15.0TXCBR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TEP)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 61.º DO CP
Sumário: Não sendo possível afirmar ser previsível que o arguido, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo responsável, afastado do mundo do crime, não sendo possível afirmar que a capacidade objectiva de readaptação se mostra superior aos riscos da comunidade com a antecipação da restituição à liberdade do condenado, não é possível tomar a decisão de o restituir, de imediato, à liberdade.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

1.

Alcançado que foi, em 16-10-2015, o cumprimento de metade da pena de 5 anos e 2 meses de prisão aplicada ao arguido A... , por decisão de 7-12-2015 foi decidido não lhe conceder a liberdade condicional.

2.

Inconformado o arguido recorreu, concluindo:

«1. A decisão objecto do presente recurso violou o disposto nos art. 42º e 61º, nº 2 do CP e 97º, nº 5 do CPP

2. A pena de prisão é um mal que deve reduzir-se ao mínimo necessário e haverá que harmonizar o mais possível a sua estrutura e regime com a recuperação dos delinquentes a que venha a ser aplicada.

3. A decisão proferida viola o dever de fundamentação legalmente exigido, uma vez que não enuncia as razões pelas quais o tribunal a quo se pronunciou em sentido diverso de alguns dos elementos ouvidos em sede de conselho técnico, favoráveis à concessão da liberdade condicional.

4. A decisão em apreço não valorou devidamente o percurso prisional positivo do recorrente, percurso pautado pelo cumprimento das normas institucionais, o apoio familiar que possui, as perspectivas de trabalho que tem no exterior, ressaltando uma incorrecta ponderação de todos os circunstancialismos.

5. Baseou-se a decisão recorrida exclusivamente, no fraco sentido crítico patenteado pelo arguido relativamente às suas condutas anteriores, o que se encontra em contradição absoluta com as declarações prestadas pelo mesmo em sede de conselho técnico.

6. Ora, não se conforma o recorrente com tal decisão, porquanto o mesmo assume os crimes por si praticados (o que resulta da acta do Conselho Técnico), beneficia de apoio familiar no exterior, tem perspectivas de trabalho, e durante o período de reclusão tem procurado obter mais competências.

7. Assim, pelo exposto entende o recorrente ser possível formular o juízo de prognose favorável, no sentido de que uma vez em liberdade, o mesmo se absterá da prática de crimes, levando uma vida conforme ao direito, pelo que lhe deveria ter sido concedida a liberdade condicional».

3.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Relativamente à invocada falta de fundamentação, alega que a decisão está devidamente fundamentada, mas mesmo que tal não acontecesse, uma vez que o vício da falta de fundamentação do despacho consubstanciaria, nos termos dos art. 97º e 118º a 123º do C.P.P. irregularidade processual, a mesma já estaria convalidada, por falta atempada de invocação.

Sobre a questão de fundo, considerando que neste momento de apreciação estão em causa os princípios da prevenção geral e especial, na apreciação da concessão da liberdade condicional tem que se atender a todas as circunstâncias e particularidades do condenado: gravidade do crime cometido, alarme social gerado pelo seu cometimento, passado do arguido, atitude do condenado durante o cumprimento da pena, relacionamento, apoio familiar no exterior, etc., tudo devendo confluir para a conclusão de que previsivelmente a colocação em liberdade não constituirá um factor de perigo.

Continua dizendo que considerando que considerando o circunstancialismo e o facto de o conselho técnico ter sido maioritariamente desfavorável à libertação entende que o tribunal esteve bem na recusa da libertação, decisão que deverá ser mantida.

O Exmº P.G.A. emitiu parecer no mesmo sentido.

Refere que o arguido cresceu num ambiente familiar em que a censura relativamente a comportamentos ilícitos não era grande e que não há perspectivas de que o arguido consiga ocupação laboral quando em liberdade. Para além disso já sofreu sanções disciplinares durante o cumprimento da pena, o que indicia uma fraca consciencialização da necessidade de cumprimento das regras.

Foi cumprido o nº 2 do art. 417º do C.P.P.

            4.

Proferido despacho preliminar teve lugar a conferência.

Cumpre decidir.

 


*

FACTOS PROVADOS

5.

            Dos autos resultam os seguintes elementos, relevantes à decisão:

- o arguido está a cumprir a pena única de 5 anos e 2 meses de prisão, resultante da condenação nos crimes de associação criminosa, lenocínio, furto simples e abuso de cartão de garantia ou de crédito, tendo o cumprimento de metade da pena ocorrido em 16-10-2015;

- do relatório social elaborado com vista à apreciação da situação prisional do arguido, à data do relatório com 25 anos de idade, consta que:

  • no ano 2000 a sua mãe casou com B... , co-arguido no processo onde o arguido sofreu a condenação na pena que está a cumprir
  • os elementos activos da família, bem como o arguido, mantinham como actividade profissional a exploração de bares nocturnos, à qual se dedicava o padrasto do arguido
  • quando em liberdade o arguido regressará ao seu agregado familiar que, devido ao facto de alguns dos elementos estarem presos, alterou a dinâmica, passando a estar durante uma temporadas em Espanha
  • o arguido não tem assegurado qualquer projecto nem dispõe de perspectivas de emprego
  • os rendimentos da família resultam da reforma da mãe, que se reformou muito nova devido a problemas de saúde, e dos abonos dos irmãos menores, de 14 e 9 anos de idade, e dos rendimentos da cunhada, que faz alguns trabalhos de limpeza
  • o regresso do arguido não é visto como factor de pressão
  • apresenta indiferença ou ausência de consciência crítica perante as vítimas, potenciais vítimas, crimes praticados e respectivas consequências
  • está adaptado às regras institucionais, tem comportamento regular e frequenta o ensino secundário
  • tem uma atitude conformista face à pena que está a cumprir mas não revela interiorização dos seus efeitos, adoptando um discurso dissimulado no que respeita ao seu meio social e perspectivas de futuro
  • sobre as condições a impor caso a liberdade condicional seja concedida, diz o relatório que devem ser as inerentes à necessária reinserção social, nomeadamente integração laboral
  • o relatório entende que é prematura a libertação, face à postura do arguido e perante o facto de o contexto para onde ele regressará não facilitar a reinserção social

- do relatório elaborado pelos serviços prisionais consta:
  • o arguido provem de uma família desestruturada
  • a sua companheira praticava a prostituição no bar de alterne explorado pela família
  • diz cumprir a pena resignadamente, não provoca conflitos no meio prisional
  • sofreu três sanções disciplinares, em 27-10-2014, 23-2-2015 e 30-10-2015
  • nunca desempenhou qualquer actividade laboral no estabelecimento, encontrava-se na situação de preventivo e o EP dá primazia aos condenados nas colocações
  • frequenta o ensino secundário e a avaliação tem sido positiva
  • participa regularmente nas actividades culturais e desportivas do EP
  • tem apoio e visitas regulares da família
  • conclui dizendo que o arguido tem um percurso positivo, investiu no aumento das suas habilitações, as relações interpessoais são boas e participa nas actividades promovidas pelo EP, porém entende-se que ele deverá organizar melhor o seu futuro para que no regresso à vida em liberdade não regresse aos comportamentos ilícitos

- quando ouvido o arguido declarou autorizar a sua libertação condicional, que se envolveu no mundo do crime por influência do tio, desde que está detido cresceu, tem reflectivo muito, tem necessidade de regressar a uma vida normal, quando sair vai procurar trabalho e continuar a estudar;

- o conselho técnico pronunciou-se maioritariamente desfavorável à libertação do arguido;

- o despacho recorrido recusou a concessão da liberdade condicional, pelas seguintes razões:

«… Estão, pois, preenchidos os pressupostos formais da concessão da liberdade condicional.

O mesmo já não acontece quanto aos requisitos substanciais da concessão da liberdade condicional.

É que para ser concedida a liberdade condicional no presente momento, têm de estar salvaguardadas as exigências de prevenção especial (reinserção do condenado e prevenção da reincidência) e as exigências de prevenção geral (com o sentido de que a pena já cumprida é já sentida pela comunidade como já suficiente para a protecção dos bens jurídicos e para a reinserção do condenado, reforçando o sentimento prevalecente de que a norma violada mantém a sua validade e vigência), sendo tais requisitos de natureza cumulativa, demonstrativos do carácter excepcional da concessão da liberdade condicional, nesta fase.

No que tange a prevenção geral, importa referir que a actividade criminosa na qual participou o condenado, os concretos actos praticados e os correspondentes crimes pelos quais foi condenado, aportam exigências de estabilização das expectativas da comunidade. Nesta perspectiva, julgamos que a defesa da ordem e a defesa da paz social não se mostrariam adequadamente satisfeitas com a libertação do condenado nesta fase do cumprimento da pena.

Contudo, e ainda que assim não fosse, existem exigências de prevenção especial, ao nível da prevenção da reincidência e da ressocialização que impedem a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente à liberdade condicional do condenado nesta fase do cumprimento da pena.

Em primeiro lugar, há que notar que o condenado deverá melhor aprofundar a sua postura crítica quanto aos crimes cometidos já que se percepcionam limitações na avaliação da ilicitude dos seus comportamentos e na própria assunção do desvalor das suas condutas (pelo menos relativamente aos crimes de lenocínio e associação criminosa).

Se é certo que o condenado é jovem, e se é certo também que o seu contacto com o tipo de actividade em que se envolveu se iniciou muito precocemente na sua vida, a que se soma o facto de nessa actividade participarem familiares, o que em certa medida pode melhor explicar as suas condutas, ainda assim é expectável que o mesmo desenvolva uma maior interiorização ao nível das acções delituosas que concretamente empreendeu, por forma a que no futuro, não seja de esperar a repetição de idênticos comportamentos, assim enraizados na sua vivência pessoal.

De outro lado, há ainda que atentar que, apesar do comportamento do condenado não ser gerador de conflitos, o mesmo já sofreu 3 sanções disciplinares. Espera-se, por isso, que melhor adira ao cumprimento das regras vigentes no EP.

Acresce que o condenado ainda não foi testado em liberdade, através de medidas de flexibilização da pena, que permitam ensaiar a forma como a sua aproximação à liberdade decorrerá.

No exterior, o condenado não dispõe de um concreto projecto de trabalho, não se revelando o agregado que integrará devidamente estabilizado ao nível das suas necessidades económicas, nem em termos habitacionais.

Assim, e apesar do percurso prisional do recluso comprometido com a aquisição de competências académicas, e apesar do suporte familiar de que dispõe, as exigências de prevenção especial ainda são impeditivas da colocação do condenado em liberdade condicional nesta fase do cumprimento da pena.

Ponderando o acima exposto e tudo o mais que foi carreado para os autos há que concluir que não se mostram ainda preenchidos os requisitos substanciais da concessão da liberdade condicional …».


*

DECISÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P. - cfr. Germano Marques as Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do STJ - cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos/Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas).

Por via dessa delimitação resulta que a questão a decidir por este tribunal respeita à verificação dos pressupostos de concessão da liberdade condicional


*

Diz o art. 61º do Código Penal, que trata dos pressupostos e duração da liberdade condicional:

«1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:

a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e

b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.

3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.

4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena …».

A libertação condicional, diz o Código Penal no seu preâmbulo, visa criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.

            É, portanto, um período de transição entre a prisão e a liberdade, que visa permitir que o arguido se readapte, paulatinamente, à nova vida em liberdade.

Os nº 2 e 3 da norma contemplam os casos de liberdade condicional facultativa e o nº 4 o de liberdade condicional obrigatória.

O legislador optou por uma diferenciação temporal dos pressupostos formais de concessão da liberdade condicional e enquanto no primeiro caso a sua concessão pode ocorrer quando se atinja metade ou os 2/3 do cumprimento da pena, já no segundo caso ela acontece aos 5/6 do cumprimento da pena de prisão, desde que esta seja superior a 6 anos.

Em qualquer destes casos, porém, o pressuposto da al. a) do nº 2 tem que se verificar, ou seja, as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão têm que permitir concluir que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. Do processo tem que resultar, pois, um prognóstico favorável de reinserção social, que é o que se pretende, assente na probabilidade séria de o condenado, uma vez em liberdade, conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sob o ponto de vista criminal.

Do que aqui se trata é, portanto, de indagar da possibilidade de o arguido, uma vez em liberdade, conduzir a sua vida de modo responsável, afastado do mundo do crime, ou seja, de apurar se a medida é suficiente para emprestar fundamento razoável à expectativa de que o risco de libertação já seja comunitariamente suportado [1]. A capacidade objectiva de readaptação tem que se revelar superior aos riscos da comunidade, com a antecipação da restituição à liberdade do condenado.

Lembrando o que disse o legislador do DL nº 400/82, de 23/9, é no quadro da política de combate ao carácter criminógeno das penas detentivas que se deve compreender o regime previsto nos artigos 61º e seguintes para a liberdade condicional: ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a libertação condicional serve, na política do Código, o objectivo de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão. Com tal medida, que pode ser decretada cumprida que esteja metade da pena, espera-se fortalecer as esperanças de uma adequada reintegração social do internado, sobretudo daquele que sofreu um afastamento mais prolongado da coletividade. A realização dos ideais de humanidade e de reinserção social passam pela assunção do recluso como sujeito de direitos, que o princípio do respeito pela sua dignidade humana aponta de forma imediata, mas atribuindo à sua participação na execução um relevantíssimo papel.

Se antes a reinserção social do condenado já era uma preocupação, na fase da execução da pena esta preocupação aumenta.

É, então, a reintegração o foco de preocupação e é a prognose no comportamento futuro que vai ditar o veredicto.

No caso em análise, os indicadores que resultam são negativos.

Não obstante a existência de indicadores positivos, que são de realçar e que há que incentivar o arguido e continuar a prosseguir pela sua obtenção, a verdade é que ponderando todos os elementos que resultam não é possível fazer, neste momento, um prognóstico favorável ao comportamento futuro do arguido.

A atitude que o arguido tem perante os factos é displicente e este é um elemento importante, porque só quando o agente consegue censurar o acto ilícito que cometeu é que estará em condições de fugir da sua repetição.

Para além disso, e sem escamotear as enormes dificuldades que a grande maioria dos cidadãos têm no dia a dia, a verdade é que tem que se perceber que a integração do arguido beneficiará, à partida, de alguns apoios favoráveis, nomeadamente integração laboral, dado que o meio para onde ele regressará será um factor de risco, dados os antecedentes familiares.

O que queremos dizer é que o arguido terá que adquirir força interior e apoio exterior para não aceder às tentações que o meio lhe possa estender.

Não sendo possível afirmar ser previsível que o arguido, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo responsável, afastado do mundo do crime, não sendo possível afirmar que a capacidade objectiva de readaptação se mostra superior aos riscos da comunidade com a antecipação da restituição à liberdade do condenado, não é possível tomar a decisão de o restituir, de imediato, à liberdade.

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, na improcedência do recurso mantém-se a decisão recorrida.

Taxa de justiça mínima, a cargo do arguido.

Elaborado em computador e revisto pelo relator, 1ª signatária – art. 94º do C.P.P.

Coimbra, 7 de Abril de 2016

(Olga Maurício - relatora)

(Luís Teixeira - adjunto)

                                                                                             


[1] Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, II, pág. 528 e segs.