Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4291/19.5T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO MOREIRA DO CARMO
Descritores: PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DAS PARTES
TESTAMENTO
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 4.º E 411.º, AMBOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E ARTIGO 2199.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - O princípio do inquisitório, implicando para o juiz o dever de realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, tem necessariamente de ser conjugado com outros princípios nomeadamente o da autorresponsabilidade das partes.

II – Não cabe ao juiz substituir-se à parte no pedido de realização de diligências probatórias, sob pena de se violar o princípio da igualdade das partes no processo.

III - O vício contemplado no artigo 2199º do CC é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. AA, residente em ..., intentou acção declarativa contra BB e cônjuge, CC, residentes em ..., e DD, residente em ..., impetrando que devem anular-se os 2 testamentos outorgados por EE.

Alegou, muito resumidamente, que o falecido EE, de quem era sobrinho, lavrou dois testamentos, a favor dos aqui réus, como seus universais herdeiros, sendo que, no entanto, desde alguns anos antes se encontrava já afectado nas suas faculdades mentais de modo a não ter a capacidade de avaliar os seus atos e determinar a sua livre vontade, pelo que, quando testou, já com 81 e 82 anos, já se encontrava totalmente incapacitado de entender o sentido das declarações que proferiu.

Contestaram os réus, avançando, em breve síntese, que o falecido testou no pleno exercício da sua vontade, sendo então capaz, o que foi confirmado pela Notária e pelas testemunhas dos actos, e que o mesmo não se encontrava incapaz nem sequer quando a sentença do processo que o interditou assim o determinou, e que o que acontece é que o autor não se conforma por o seu falecido tio ter decidido não lhe deixar qualquer bem. Concluem, assim, pedindo a sua absolvição.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção não provada e absolveu os réus do pedido.

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2. O A. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – O ora Recorrente AA instaurou a presente acção declarativa constitutiva (processo comum) contra BB e cônjuge, CC e DD, beneficiários dos testamentos celebrados em 29/01/2010 e 23/02/2011 no Cartório notarial ... pelo falecido EE, tio do autor, que deixou em favor daqueles (Réus) vários legados e instituindo-os seus únicos universais herdeiros.

2 - Na respetiva acção deduziu o seguinte pedido: “Deve a presente acção ser julgada provada e procedente e em consequência deve anular-se ou declarar-se anulados os testamentos outorgados por EE no Cartório notarial ... em 29/01/2010 e 23/02/2011”

3 - Por sentença proferida em 16/12/2021, pelo Juízo Central Cível de Viseu – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, foi a ação intentada pelo Autor/Recorrente, julgada improcedente, absolvendo-se os réus do pedido contra eles formulado.

4 - O Meritíssimo Juiz ao decidir da forma como o fez não atendeu a factos que deveriam ter sido devidamente avaliados e apreciados, por se afigurarem como fundamentais para uma decisão diversa daquela que o tribunal ad quo formulou (nomeadamente os factos aludidos em aa) e ab), supra melhor descritos neste recurso.

5 - Em nosso entendimento, não foram valoradas provas testemunhais que contextualizadas com algumas provas documentais justificariam uma outra apreciação sobretudo quando sujeitas à livre apreciação do tribunal e baseadas numa prudente convicção e dentro das regras da ciência, do raciocínio lógico e em máximas da experiência.

6 - O tribunal poderia e deveria apreciar livremente as provas, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (nº 5 do artº 607º do CPC) e sem limitação – à excepção da prova vinculada - valorando-as, ponderando-as recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre e própria convicção acerca de cada facto controvertido.

7 - É nosso entendimento ter existido violação das regras da ciência, da lógica e da experiência. Ou seja, a convicção do tribunal “a quo” sobre a realidade - ou falta dela – dos factos não foi alcançada com o uso da prudência e perturbou a faculdade de decidir da forma mais correcta (art.º 607º nº 5 do NCPC), violando o princípio da livre apreciação da prova.

8 - Nada obsta que na investigação sobre a nulidade do ato da ultima vontade, por ausência ou redução do discernimento do testador, deva o juiz fazer uso da prova indirecta concretizada por presunções, ou por indícios, ou por sinais, ou por suspeitas, ou por adminículos. Somente esses elementos poderão comprovar a falta de discernimento de quem já não existe mais, fisicamente, no plano dos factos.

9 - No fundo, o que se pretende é a prevalência da verdade material sobre a forma pois cabe ao processo civil procurar a verdade material em vez de se privilegiarem aspectos formais, que não assumem verdadeira importância perante o objectivo de boa aplicação do direito substantivo ao caso concreto, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo e a realização da justiça.

10 - Com efeito, a descoberta da verdade material envolve um alto interesse do estado e assim se promove a confiança na justiça dos tribunais, que só pode ser adquirido através da eliminação de restrições que se refere à limitação do uso dos meios probatórios ou de todas as diligências necessárias ao apuramento da respetiva verdade e da justa composição de litígio.

11 - É nosso parecer (salvo melhor opinião) que os factos enunciados nos pontos 13 (treze) e 24 (vinte e quatro) e 25 (vinte cinco), constantes nos factos provados na sentença, não foram adequada e convenientemente sustentados através dos meios de prova apresentados em discussão de julgamento.

12 - Dos factos integrados na matéria não provada e que deveria ser considerada provada, evidenciamos os pontos 10 (dez), 11 (onze), 12 (doze), 13 (treze), 16 (dezasseis), 19 (dezanove), 23 (vinte e três), 27 (vinte e sete), 34 (trinta e quatro), 40 (quarenta), 41 (quarenta e um), 43 (quarenta e três) da P.I. e os factos 19 (dezanove), 20 (vinte), 21 (vinte e um), 23 (vinte e três) e 27 (vinte e sete) da Contestação.

13 - Efectivamente, o Meritíssimo Juiz para alcançar aquela conclusão apenas valorou as declarações da Notária, Dra. FF, quanto ao ponto 13 (treze) e dos réus, quanto aos pontos 24 (vinte e quatro) e 25 (vinte e cinco), depreciando completamente as declarações de parte do Autor e os depoimentos das testemunhas por si arroladas, nomeadamente, familiares e vizinhos do de cujus.

14 - Em síntese da prova produzida e examinada em audiência, observamos que para o meritíssimo juiz apenas teve preponderância o depoimento da notária que considerou “de relevante” e por considerar a Notária uma “profissional qualificada para o efeito, experiente e imparcial”.

15 - O Meritíssimo Juiz não deu qualquer crédito às declarações do Autor/Apelante nem às testemunhas por si arroladas, o que nos leva a crer existir erro ou desacerto na valoração das provas porque, apesar da livre apreciação da prova posta ao dispor do Julgador.

16 - O Recorrente considera ter sido incorrectamente julgado o facto provado em 13 (contestação): “ À data da outorga dos testamentos em causa o referido EE tinha noção do que estava a fazer e fê-lo porque quis.”

17 - A decisão não se reporta a qualquer fundamentação deste ponto concreto da matéria de facto dada como provada, nem de qual elemento probatório foi retirada esta conclusão. De toda a prova testemunhal e documental produzida na audiência de julgamento, não resulta provado qualquer facto que pudesse ser valorado neste sentido, nem sequer da senhora Notária, nem dos testamentos elaborados, nem das declarações dos Réus.

18 - Deste modo, o juiz ad quo não justificou nem fundamentou o resultado desta ilação ou conclusão bem como a sua sustentação fáctica porquanto nenhumas testemunhas houve que concretizassem ou contextualizassem ou justificassem tal afirmação.

19 - No que tange a este facto concreto dado como provado, “À data da outorga dos testamentos em causa o referido EE tinha noção do que estava a fazer e fê-lo porque quis.”, não merece provimento, desde logo, por duas ordens de razão: A primeira, porque é manifesto que não se trata de qualquer facto mas, antes, de uma asserção de cariz jurídico-conclusivo. Saber se o testador se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou de formar livremente a sua vontade, é uma conclusão jurídica a extrair dos factos apurados. A segunda porque, ainda que se entendesse tratar-se de “facto”, o que não se concebe, o recorrente não localizou em qual testemunha ou documento foi concretizada esta prova o que, obviamente sempre deveria ser inviabilizada e, consequentemente deve proceder-se à sua reapreciação no âmbito da matéria de facto.

20 – Do depoimento da Sra. Notária extraiu-se o seguinte: - “Normal, normal. O procedimento dos testamentos é sempre igual para com todos. É perguntar o nome, perguntar os dados de identificação, a data de nascimento, a idade, o nome dos pais, para ver se eles estão psicologicamente bem ou mentalmente bem, se me souberem responder, depois dizem-me a vontade deles e é lavrado o testamento”.

21 - Deste depoimento denota-se, com evidência, quais as perguntas que a Sra Notária fez ao testador: “O procedimento dos testamentos é sempre igual para com todos. É perguntar o nome, perguntar os dados de identificação, a data de nascimento, a idade, o nome dos pais, para ver se eles estão psicologicamente bem ou mentalmente bem, se me souberem responder, depois dizem-me a vontade deles e é lavrado o testamento.”

22 - Perguntas essas que declarou serem iguais para todos os testadores e que apenas se tangem à questão sobre o nome, data de nascimento, idade e nome dos pais. Acrescentando, a Sra. Notária, serem estas as questões que coloca para ver se as pessoas estão psicologicamente bem ou mentalmente bem.

23 - Com o devido respeito pela Sra. Notária, mas é indubitável, mesmo à luz da experiência de um cidadão comum, que a realização de tais perguntas e a resposta às mesmas é um meio claramente insuficiente para atestar as faculdades mentais de uma pessoa, bem como a sua capacidade de discernimento quanto ao ato que está a praticar e ao alcance do mesmo.

24 - Mais se acrescenta que a Sra. Notária, não possui (e não tem obrigação de possuir) conhecimentos clínicos que lhe permitam aferir, com total grau de certeza, da existência de capacidades mentais por parte de um testador.

25 - Tal falta de conhecimento, aliada ao facto de nunca e em momento algum, (anterior ao momento da realização do ato), ter estado ou convivido com o testador, a realização apenas das questões que foram colocadas pela Dra. FF ao falecido testador, por si só não permitem aferir ou sequer suspeitar das condições mentais do mesmo.

26 - Não se compreende, e por isso não se aceita, que o Tribunal tenha dado total relevância à Sra. Notária que apenas contactou pessoalmente com o testador num só ato, em detrimento das outras testemunhas arroladas pelo depoente que eram familiares, amigos, vizinhos e outras que com ele lidaram diariamente no âmbito da sua actividade profissional.

27 - Cite-se, por exemplo a testemunha GG, a qual por ser auxiliar num Lar e por isso com larga experiência no tratamento e convívio com idosos e pessoas com deficiências físicas e mentais (por força do exercício da sua profissão), se apercebeu e não hesitou em afirmar que o Sr. EE não se encontrava bem psicologicamente no período de 2008 a 2013, data em que ela prestou apoio domiciliário.

28 - Todas as testemunhas supra mencionadas foram unânimes em afirmar que o “Sr. EE já não estava bem da cabeça.”

29 - Esta observação empírica das testemunhas, adquirida através do convívio frequente com o testador e por meio da observação direta e pessoal aos seus comportamentos, notoriamente indiciários de um estado de demência, merece toda a pertinência e relevância.

30 – A falta de discernimento do testador não poderia ser considerada por afastada através do depoimento da Sra. Notária, através do qual se comprovou que no momento da prática dos atos a mesma, com as questões colocadas, não tinha como aferir o discernimento do testador e muito menos a sua convicção e percepção quanto ao conteúdo, alcance e consequências do ato de disposição que estava a levar a cabo.

31 - Atenta a prova da matéria de facto constata-se numerosa prova directa (relatório médico e relatório da psicóloga) e indirecta (presunções, indícios, sinais, suspeitas e até adminículos) cujos elementos poderiam, objectiva e eficazmente, comprovar a falta de discernimento de quem já não existe mais, fisicamente, no plano dos factos na pretendida investigação sobre a nulidade/anulidade do acto de última vontade.

32 - Dúvidas não se suscitam que existia uma alegada falta, e comprovada, de capacidade (estava privado ou perturbado das suas faculdades psíquicas) do testador no momento em que lavrou os testamentos pelo que existe um vício que levaria à nulidade dos testamentos invocados na petição, ao abrigo do disposto no artº 2199º do CC..

33 - Diga-se que o julgador, dentro do princípio da livre apreciação da prova (previsto no artigo 607º, nº 5 do CPC), deve valorar e ponderar, sem limitação, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, a tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre e própria convicção acerca de cada facto controvertido.

34 - Neste percurso lógico a apreciação daquelas provas testemunhais, devidamente conjugadas e contextualizadas, permitiu perceber que no plano clinico e científico ficou comprovada a doença de degenerescência evolutiva das condições de percepção, compreensão, raciocínio, gestão de pensamento abstracto e concreto e discernimento das opções comportamentais básicas e factores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, que mais tarde se vieram a comprovar com base no relatório médico que legitimou a procedência da ação de interdição.

35 - O Meritíssimo Juiz deveria, sem limitação, valorar e ponderar todos os elementos probatórios, recorrendo às regras daa experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, para obter uma conclusão diferente daquele que retirou dos presentes autos.

36 - Dúvidas não restam ao apelante, que por meio dos depoimentos das supra citadas testemunhas, deveria ter ficado comprovado que em data anterior ao da realização dos testamentos colocados em crise na presente ação, o testador já se encontrava demente e totalmente incapaz de se reger e de reger os seus bens.

37 - O Tribunal não estava privado de solicitar outros meios de prova, não ficando obrigado a cingir-se, apenas à apreciação dos meios probatórios e provas levadas pelas partes ao processo para prova dos factos por si alegados.

38 - Em nome do princípio da descoberta da verdade material e de forma a alcançar uma decisão justa e equilibrada do litígio, deve o Tribunal para formação da sua convicção usar de todos os meios ao seu alcance, mesmo que obtidos oficiosamente, de forma a sopletar quaisquer dúvidas ou incertezas.

39 - No que ao caso em concreto diz respeito, forçoso é considerar que o Tribunal tinha ao seu alcance outros meios complementares de prova, nomeadamente o histórico clínico do falecido testador, que oficiosamente poderia requerer e que lhe permitia aferir, sem margem para dúvidas, desde que data é que o testador apresentou a suscitada demência.

40 - Diga-se que a referida prova documental – histórico clínico – revestia natureza essencial para a decisão da causa, e mesmo que não apresentada pelas partes, dada a sua essencialidade, poderia e deveria ter sido suscitada pelo Tribunal para formação da sua decisão.

41 - Na verdade, ainda que nenhuma das partes tenha indicado aquele meio probatório, podia e devia o Tribunal, por sua exclusiva iniciativa e face ao narrado pelas testemunhas supra citadas, determinar a junção aos autos de todo o histórico clínico do testador.

42 - Determina, com efeito, o artigo 411º do CPC, que consagra o princípio do inquisitório, que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, toas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.

43 - Ao abrigo e em nome do apuramento da verdade e à justa composição do litígio, o Tribunal tem o poder/dever de oficiosamente promover as diligências que, pese embora não requeridas, se revelem necessárias ao prosseguimento daquele fim.

44 - Na verdade, não é só um poder, mas sim também um dever do julgador procurar a verdade material, em vez de privilegiar os aspectos formais, que não assumem verdadeira importância perante o objectivo de boa aplicação do direito substantivo ao caso concreto.

45 - Note-se que quer a doutrina, quer a jurisprudência mais recente vão no sentido de ser privilegiado o princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo, ao encontro do que se tem denotado ao longo das reformas operadas ao processo civil, onde cada vez mais se têm vindo a reforçar os poderes de direcção do processo pelo juiz, conferindo-se-lhe o poder-dever de adotar uma posição mais interventora no processo e funcionalmente dirigida à plena realização do fim deste.

46 - E diga-se que através do depoimento da testemunha HH é claro que desde há doze anos atrás o falecido já apresentava comportamentos reveladores de demência.

47 - Ora estes depoimentos, só por si e ainda mais corroborados com os restantes depoimentos já aqui citados, eram suficientes para suscitar no julgador a convicção de que o testador apresentava comportamentos indicativos de uma alteração do seu estado de saúde psíquica/sanidade mental.

48 - E se dúvidas restassem ao Tribunal quanto à data em que tais comportamentos surgiram (o que refutamos com base na localização temporal das testemunhas que, pelos menos remonta aos anos de 2008/2009), podia e devia o Juiz, ao abrigo do princípio do inquisitório, requerer o já aqui mencionado histórico clínico.

49 - Por conseguinte, não podendo proceder o argumento de que seria ao autor que incumbia fazer prova da data do início da demência/insanidade mental do testador falecido, uma vez que na falta de tal prova, poderia o julgador lançar mão, por força do princípio do inquisitório, de outros meios probatórios, nomeadamente, e como atrás já se referiu, através do historial clínico do falecido.

50 - E embora se respeite e aceite o princípio do dispositivo quanto à matéria da alegação dos factos, é aceite uma linha de orientação diferente quanto à prova desses mesmos factos, quando se atribui ao juiz a possibilidade de ordenar todas as diligências que considere necessárias para a descoberta da verdade.

51 - Pondere-se que a lei atribui importantes poderes instrutórios ao Tribunal – que podem recair sobre os factos essenciais, complementares e instrumentais – justificados pela “necessidade de evitar que, pela falta de prova, a decisão da causa seja imposta pelo non liquet e não pela realidade das coisas averiguada em juízo, Nenhum facto relevante para a decisão da causa deve ficar por esclarecer.

52 - Não se compreendendo, nem podendo aceitar as conclusões do tribunal “ad quo” plasmadas na Douta Sentença, cuja decisão apenas e praticamente assentou nos documentos (testamentos) e no depoimento da Notária em detrimento de toda a restante prova que deveria ser conjugada e contextualizada bem como ordenar outras diligências, oficiosamente, que se considerassem pertinentes, essências para descoberta da verdade cujas exigências dependeriam da incumbência do juiz.

53 - O Meritíssimo Juiz, em nome da livre apreciação da prova, não valorizou os concretos meios probatórios (testemunhas) constantes do processo, nem chamou à demanda, em nome do princípio do inquisitório, outros elementos probatórios (mais concretamente documentos – histórico clínico do testador) que nos parecem essenciais e determinantes que permitiam auxiliar a descoberta da verdade material e, desse modo, impedir uma tomada de decisão absolutamente infundada.

54 - A fundamentação da douta sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal de 1ª Instância, não teve, assim, em consideração o previsto nos artigos 411º, 413º e 607, nº 5 do CPC.

55 - Tendo em consideração que não foi produzida prova essencial para a descoberta da verdade material, no caso em concreto não foi analisado, nem valorado o histórico clínico do testador, impõe-se que seja ordenada a produção de tal meio de prova (por documentos – relatório do histórico clinico), nos termos do previsto no artigo 662º, nº 2, alínea b) do CPC.

56 - Desta forma, violou-se a letra e o espírito dos artigos 5º, nº 2 al. a), b) e c), 411º, 413º, 436º e 607, nº 5 do CPC; bem como ass normas previstas nos artigos 257º, 342º, 396º e 2199º do CC.

57 - E, por isso a sentença recorrida deve ser revogada e a acção ser julgada procedente por provada. Nestes termos, e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, consequentemente, devendo prolatar-se Acórdão que revogue a decisão proferida no despacho final, julgando a acção procedente nos termos peticionados pelo autor. E, ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA

3. Os RR contra-alegaram, concluindo que:

1 - O presente recurso tem um propósito meramente dilatório, atendendo à evidente falta de fundamentos das alegações apresentadas face à sentença proferida e prova constante dos autos.

2 - O que ressalta à vista é que o autor recorre, não por não entender ou discordar do julgador (porque na realidade não existe de facto atendendo à prova, outra decisão que fosse de esperar) mas sim porque se recusa a aceitar a vontade que o seu falecido irmão deixou plasmada nos testamentos em causa nos autos e que, por ser legítima e válida essa vontade, levou a que o autor nada herdasse do seu falecido irmão.

3 - O autor entende a douta decisão e as razões de facto e de direito que suportam essa mesma decisão; por certo que, depois dos autos, outra não esperaria, atendendo a toda a prova que dos autos consta; no entanto só recorrendo da douta sentença poderia o autor continuar a alimentar o seu inconformismo pelas decisões do seu irmão, que livremente e de forma consciente, decidiu deixar expressas nos testamentos que outorgou.

4 - A sentença recorrida aplica devidamente o direito aos factos e faz uma apreciação correta da prova produzida nos autos e em julgamento, tendo por isso concluído, como não poderia deixar de fazer, pela total improcedência do pedido.

5 - É clara e inequívoca quanto à identificação da prova que valorou e que não merece qualquer reparo, para decidir pela improcedência do pedido.

6 - O fundamento do autor para a anulabilidade que pretendia fosse declarada era a da incapacidade do testador de entender a sua declaração ou que não tivesse este o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, nos termos do disposto no artigo 2199.º do CC.

7 - O ónus da prova dos fundamentos que permitissem a declaração de anulabilidade dos testamentos recaia na totalidade sobre o autor.

8 - Durante os autos o MM Juiz proporcionou ao autor toda a produção de prova que por este foi sendo requerida ao longo dos autos, deferindo todos os pedidos por este solicitados no que à produção de prova diz respeito.

9 - Essa produção de prova, a que foi sendo requerida pelo próprio autor, não só não provou a verificação dos fundamentos necessários para a anulabilidade impostos pelo normativo 2199.º do CC, como veio deixar evidente o contrário: de facto à data dos testamentos em causa o testador estava de facto capaz e livre no exercício da sua vontade para cristalizar em testamento a sua decisão sobre quem deveria receber e o quê dos seus bens, após a sua morte.

10- Nesse sentido e sem qualquer possibilidade de equívocos valem, entre outros meios de prova:

1 - Os próprios testamentos (documentos com força probatória plena);

2 – O depoimento da Sra. Notária que redigiu os testamentos, confirmando na integra o que neles consta e deixando bem claro que, como em todos os testamentos que faz, também nos que estão em causa nos autos se assegura se o testador está capacitado (tendo nomeadamente referido várias perguntas que costuma fazer para disso ficar certa) e livre no exercício da sua vontade, tendo também dito que se alguma dúvida tivesse sobre o não preenchimento desses requisitos, nunca os testamentos teriam sido celebrados.

3 – A prova pericial realizada nos autos, a pedido do autor, pelo IML, com base em todos os relatórios clínicos e episódios de doença ou consultas existentes nos registos do serviço nacional de saúde, tendo ainda em consideração a toma de medicação.

11 – As respostas dadas aos quesitos pelo Sr. Perito são inequívocas:

Quesito 1: O Processo que levou à verificação da anomalia psíquica na data constante da sentença de interdição de EE (20/03/2012) é do ponto de vista médico um longo processo que se vai arrastando e agravando ao longo dos anos anteriores podendo fixar-se pelo menos que durou desde o início de 2010?

Resposta: Não.

Quesito 2 Os factos alegados na petição inicial a provarem-se, são idóneos a estabelecer a incapacidade de EE para entender o sentido da declaração constante dos testamentos de 29/01/2010 e 23/02/2011 afetando o libre exercício da sua vontade? Resposta: Não.

Quesito 3: O facto de, em breves anos, EE, ter outorgado 10 testamentos, é revelador de insegurança e incapacidade de entendimento e determinação da vontade, refletindo-se quando outorgou os 2 últimos testamentos referidos? Resposta: Não.

12 - Cada uma das respostas dadas a esses quesitos foi devidamente fundamentada pelo senhor perito Prof. Doutor II, perito do Instituto Nacional de Medicina Legal e destacamos parte da fundamentação do Sr. Perito dada ao quesito 2: “Por essa razão, os factos alegados na P.I., a provarem-se, não são suficientes nem são idóneos para estabelecer a incapacidade de EE no que respeita ao seu entendimento sobre o sentido das declarações constantes dos testamentos de 29/01/2010 e 23/02/2011 e ao livre exercício da sua vontade”.

13 - O que o Sr. Perito diz de forma inequívoca é que, ainda que o autor tivesse feito prova da factualidade que alegou na PI (que não fez) com vista a obter a anulação dos testamentos, mesmo provados esses factos, tal não permitiria concluir pela incapacidade do EE, uma vez que essa factualidade não é sequer idónea para estabelecer a sua incapacidade no que respeita ao seu entendimento sobre o sentido das declarações constantes nos testamentos.

14 - O autor despoletou também, em vida do seu falecido irmão, processo de interdição do (no qual os réus nem sequer foram partes ou intervieram fosse de que forma fosse, pelo que não puderam contribuir nesses autos para a prolação de qualquer decisão que lhes pudesse ser mais favorável), que correu termos com o n.º 361/15...., cuja sentença se encontra nos autos. O autor aí requerente promoveu o processo nos termos que quis, certamente já com o intuito de procurar fixar a incapacidade do seu irmão o mais cedo possível, por forma a poder depois vir a conseguir a eventual anulabilidade de alguma disposição testamentária realizada por este.

15 - Essa ação foi intentada pelo autor em 19/01/2015, conheceu sentença em 6/06/2016.

16 - Mesmo tendo intentado a ação apenas em janeiro de 2015, o autor conseguiu que nessa ação, com base nos elementos que o próprio promoveu naqueles autos, fosse fixada a incapacidade do seu irmão em 20/03/2012. De que forma conseguiu tal feito, visto que só em 2015 é que interpôs o processo de interdição, os réus desconhecem, mas também para o que aqui importa nestes autos, nenhuma diferença faz, visto que os testamentos em causa nos autos foram outorgados 9/01/2010 e 23/02/2012.

17 - Se nem no processo de interdição a que se fez referência o autor conseguiu fixar a incapacidade sequer próxima da data em que foram celebrados os testamentos, sem qualquer interferência ou contradição de terceiros sobre tudo aquilo que entendeu fazer ou sobre a prova que entendeu produzir e levar à queles autos para o efeito, como poderia esperar que nestes autos isso viesse a acontecer?!

18 - Nenhuma prova existe nos autos que pudesse permitir ao MM Juiz julgar procedente o pedido, como de resto está bem evidente não obstante o esforço do Ilustre mandatário do autor em tentar encontrar algo a que se pudesse “agarrar” para que, pelo menos, lhe permitisse alegar, pelo que não espanta a evidente falta de fundamento das alegações apresentadas nos autos pelo autor.

19 - Alegações que mais não são do que o retrato do desespero inconformado do autor em relação às disposições testamentárias que o seu irmão, de forma consciente e livre, decidiu fazer em vida, não lhe tendo calhado nada em sorte!

20 - Por conseguinte, e sem necessidade de mais delongas ou outras considerações - pois melhor do que o que aqui se deixa em defesa da douta decisão recorrida, falam os próprios autos e todos os elementos probatórios que neles constam e bem assim a brilhante e imaculada fundamentação da douta decisão proferida – deverá o presente recurso ser julgado improcedente por provado, devendo ainda o autor ser exemplarmente condenado em custas processuais pela evidente falta de fundamento das alegações apresentadas perante o que é a prova dos autos.

21 - Consubstanciando o presente recurso um expediente meramente dilatório, devendo o autor ser sancionado por tal procedimento.

TERMOS EM QUE, julgando totalmente improcedente o recurso interposto pelo recorrente e confirmando a sentença recorrida, V/Exas. Farão V.Exas. justiça.

II - Factos Provados

 

petição

1 O autor, nascido em .../.../1966, é filho de JJ e de KK, sendo seus avós paternos AA e LL e avós maternos MM e NN.

2 É sobrinho de EE, falecido em .../.../2017.

3 O qual era filho de AA e LL, sendo assim irmão do pai do autor.

4 O pai do referido EE e o pai do autor, eram ambos filhos de AA e de LL.

5 O falecido EE, faleceu no estado de solteiro, sem ascendentes nem descendentes.

6 Tinha 5 irmãos: - OO; PP; QQ; JJ e RR.

7 O autor é filho de JJ e KK, já falecidos respetivamente em .../.../1998 e .../.../2004 e que deixaram a representá-los 5 filhos, um dos quais é o autor.

8 Em 29/01/2010, EE, outorgou no Cartório notarial ..., um testamento em que instituiu legatários de vários prédios os aqui réus.

9 Em 23/02/2011, no Cartório notarial ..., outorgou noutro testamento deixando vários legados em favor dos réus, instituindo-os seus únicos e universais herdeiros e revogando testamentos anteriores, nomeadamente o celebrado em 29/01/2010.

13 Em momento que não foi possível fixar com rigor, nem com referência a ambos os testamentos, o tio do autor viveu sozinho.

17 O autor era sobrinho do falecido e, entre ambos, havia relacionamento cordial. 22 Foi internado na Unidade de Cuidados Continuados ..., onde entrou em .../.../2014.

24 Aquando do internamento, desconhecia inteiramente as suas obrigações fiscais.

25 Aquando do internamento, era incapaz de tomar decisões sobre a administração dos seus bens, nomeadamente para atos de conservação.

26 Aquando do internamento, mantinha uma alteração da compreensão oral e escrita.

27 Aquando do internamento, por vezes apresentava ideias delirantes.

28 Aquando do internamento, por vezes oferecia riscos de agressões a terceiros. 29 Aquando do internamento, necessitava de medicação sedativa e supervisão do pessoal auxiliar de enfermagem e de cuidados médicos.

30 Quando já se encontrava na Unidade de Cuidados Continuados ..., foi prestada a informação médica de que se junta cópia e aqui se dá por reproduzida.

32 O autor sempre prestou ao seu tio EE, todos os cuidados e amparo que o mesmo necessitava.

33 O autor promoveu o internamento do mesmo na Unidade de Cuidados Continuados na Santa Casa da Misericórdia ....

34 Para acautelar o seu património, o autor interpôs no Tribunal Judicial ... em 19/01/2015, uma ação de interdição

35 Ação essa a que coube o nº 361/15.... e que foi julgada procedente, por sentença transitada de 6/06/2016.

36 Sendo na mesma nomeado tutor do interdito o autor, seu sobrinho AA.

37 Nessa sentença a Srª Juíza deu como provado que o EE sofria de demência vascular não especificada.

38 Nessa sentença foi fixada a data da incapacidade em 20/03/2012.

40 O autor dos testamentos, à data em que os Outorgou, tinha 81 e 82 anos.

46 O falecido não tinha qualquer parentesco com os réus.

contestação

5 O médico que escreve a “informação médica” que consta do documento n.º 5, redigiu essa informação em 10/12/2014.

6 A data da observação médica é posterior ao internamento do agora falecido EE na Unidade de Cuidados Continuados ....

9 Os réus não foram partes ou sequer intervenientes na acção de interdição.

13 À data da outorga dos testamentos em causa o referido EE tinha noção do que estava a fazer e fê-lo porque quis.

24 O falecido EE foi responsável por cuidar da sua irmã RR, sua vizinha, após a mesma ter sido submetida a uma cirurgia em ....

25 Desde então esta ficou dependente de terceiros e coube ao falecido EE cuidar da mesma, era este quem geria a sua reforma, tratava das compras e era o responsável e representava-a no serviço de apoio domiciliário da Associação ..., sendo este quem pagava à referida instituição os custos desses serviços.

*

Factos não provados:

 

petição

10 Quando outorgou ambos os testamentos, o referido EE, padecia de anomalia psíquica que, o impedia de ter consciência e determinação sobre os seus atos e sobre o conteúdo do referido testamento.

11 Estava afetado nas suas faculdades mentais de modo a não ter a capacidade de avaliar os seus atos e determinar a sua livre vontade.

12 Isso acontecia desde alguns anos antes da celebração dos referidos testamentos.

13 Desde há vários anos antes da outorga dos testamentos que o tio do autor, vivia sozinho, sendo uma irmã que tratava dele, que o lavava, que lhe tratava da roupa e que lhe fazia a comida, já que o mesmo se encontrava incapaz de o fazer.

(…)

16 Desde há anos antes do penúltimo testamento, já distribuía dinheiro a qualquer pessoa.

(…)

19 Desde há vários anos antes da outorga dos testamentos, despia-se à vista das pessoas, chegando a andar na rua nu da cintura para baixo.

(…)

23 Desde há 5 ou 6 anos antes, vinha tendo alterações do seu estado mental e incapacidade de qualquer juízo critico.

(…)

27 Há 5 ou 6 anos antes, por vezes apresentava ideias delirantes.

(…)

34 A acção de interdição foi instaurada dada a total incapacidade de seu tio EE, em reger a sua pessoa e bens, e para acautelar a subsistência do mesmo.

(…)

40 O autor dos testamentos, à data em que os outorgou, encontrava-se totalmente incapacitado de entender o sentido das declarações constantes do testamento que outorgava e já não tendo o livre exercício da sua vontade.

41 Nos 10 anos anteriores, o falecido EE já havia outorgado em 9 ou 10 testamentos, alterando constantemente as suas disposições testamentárias.

(…)

43 Revelando não ter já a capacidade para determinar a sua verdadeira vontade. (…)

contestação

(…)

19 O autor nunca teve uma relação de proximidade com o falecido EE.

20 Até este ser internado na Unidade de Cuidados Continuados ... nunca procurou saber do seu tio.

21 Raramente o visitava, ou com ele partilhava refeições, nunca o acompanhou a consultas médicas, não existindo sequer qualquer relação de afeto ou carinho entre ambos.

(…)

23 Nem com RR, também tia do autor, este mantinha uma relação de afeto.

27 Não era nem nunca foi o autor uma visita assídua dos seus agora falecidos tios, nem nunca com estes demonstrou grandes preocupações em prestar cuidados ou sequer querer saber se os mesmos viviam condignamente (uma vez que não tiveram filhos e viviam sozinhos).

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Anulação dos testamentos.

2. O A. impugna a decisão da matéria de facto, relativamente aos factos provados 13, 24 e 25, da contestação, e factos não provados 10 a 13, 16, 19, 23, 27, 34, 40, 41, 43 da P.I. e 19 a 21, 23 e 27 da contestação, pelas razões e meios probatórios que indica (cfr. conclusões de recurso 4 – a 55 -).

Na aludida decisão foi exarada a seguinte motivação:

“São especificamente os seguintes os motivos que levaram à prova dos factos aqui descritos.

Primeiramente, os relacionamentos familiares entre o autor e o falecido, o teor dos testamentos, os termos e actos do processo de interdição, todos foram factos que se dão como provados por virtude do teor dos documentos autênticos a esse mister juntos, e que, aliás, constituem matéria que de os sujeitos processuais não discordam.

De seguida, a doença, a circunstância de o estado de saúde do falecido estar, pelo menos desde o momento da sua institucionalização, fortemente deteriorado, são factos que relevam de todos quantos os presenciaram – com especial destaque para os profissionais qualificados, que observaram o testador com a qualificação de que dispõem para o efeito – e que atestaram por escrito o seu estado de saúde e ou prestaram depoimentos inatacáveis. Médico, e com a experiência nestas questões que lhe advém de ser clínico da Unidade de Saúde ... – instituição onde estes casos não são, infelizmente, raros – o Dr. SS atesta que o falecido apresentava, em .../.../2014, “alteração do seu estado mental, sendo incapaz de juízo crítico, incapaz de autocuidados e incapaz de gestão de quaisquer bens”; que o mesmo “possui alteração da compreensão oral e escrita, não se encontrando capaz de tomar decisões de forma ponderada e senso crítico”; e ainda que “apresenta ideias delirantes, com risco de auto-agressões e agressões a terceiros, necessitando de medicação sedativa e supervisão”. Psicóloga da Unidade de Cuidados Continuados ..., a Dra. TT observou-o à chegada à Unidade, vindo de outra instituição, em ..., e logo atestou que se encontrava, nas quatro vertentes – espaço, tempo, auto e alopsiquicamente – “desorientado”, que não sabe o dia, o ano, onde estava, apenas que não estava na casa dele. A “memória de curto prazo também estava afectada”. Havia três pessoas, o Sr. AA, a UU e o VV, sim, ele conhecia, e a depoente recorda que era “afectuosa” a relação do paciente com o autor. Era o AA quem tratava de tudo e pagava à instituição, era com ele que contactavam sempre que precisavam, “era a nossa figura de referência”. A dada altura, o falecido “começou a mostrar agitação psico-motora”, provavelmente por estar permanentemente com pessoas e num espaço que não conhecia, e foi necessário um “ajuste da medicação, mas não foi sedado”. A incapacidade foi fixada em Março de 2012 e a técnica, com referência a antes dessa data, “não consigo, com base naquilo que privei com o Sr. EE, não posso garantir”. Por seu turno, WW, assistente social da mesma instituição, sabe que o tio do autor ali deu entrada por “deterioração cognitiva e perturbações de memória”, e que o autor, pessoa “bastante preocupada com a situação” do falecido, o visitava frequentemente, havendo entre ambos boa relação. Ele não poderia ter alta para o domicílio, por falta de condições pessoais para cuidar de si mesmo. Estas as pessoas com grau de saber apto para que o autor pudesse apresentar no sentido de lhe ser reconhecida razão ao pretender fixar a incapacidade do paciente aquando dos testamentos; e que, claramente, não o puderam fazer. De seguida, as opiniões de quem pode, eventualmente, conhecer, mas que não tem mais do que percepções empíricas, dificilmente podendo ser suficientes para alterar um diagnóstico médico especializado e uma sentença que, nele apoiada, se estabilizou na ordem jurídica. Têm razão os réus ao referirem que não foram parte no processo de interdição. Mesmo assim – matéria que aqui apenas menciono perfunctoriamente – é indiscutível que, por sentença transitada, foi fixada uma data para a incapacidade, para mais, uma data diferente da do exame médico, cerca de três anos anterior, pelo que, necessariamente, a questão foi ponderada. Logo, podem os réus, aqui, tentar discuti-la, argumentando, desde logo, com questões formais e processuais, mormente, que não foram parte no processo, mas a mesma sentença – que, ademais, prescindiu destes réus mas, repito, se apoiou em referências especializadas – sempre exercerá, mesmo para terceiros, a “autoridade de caso julgado” que dela emana.

Mas falemos dos testamentos, admitindo que se queira e possa pugnar por uma diferente data de incapacidade, no mínimo, contemporânea dos referidos actos dispositivos. Num primeiro momento, ambos os actos estão documentados, e não por um documento qualquer; trata-se, nos termos do disposto no art.º 363º do código civil. E, por força do disposto no art.º 371º nº 1 do mesmo código, “os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora“. Por este diapasão, aliás, tem afinado a jurisprudência, pois que, e por exemplo, já entendeu a Relação de Lisboa – e em situação, de facto, bem mais premente do que a presente – que “a fé pública de que goza um notário e o testamento público por este lavrado não é afastada apenas porque duas testemunhas dizem o contrário do que lá consta” (1Acórdão de 28 de Junho de 2018, …, no processo 733/13.1TbCsc). E não se trata de caso único, ou de decisão com contornos ou características peculiares: “O documento autêntico que incorpora o testamento dos autos, ao qual não foi oposta (muito menos, provada) falsidade, faz prova plena dos factos que refere como praticados pela notária, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções desta; o simples facto de a notária, tendo ouvido as declarações da testadora e com ela conversado, não se ter apercebido de qualquer incapacidade da mesma é primeira e qualificada garantia de que a testadora gozava, quando testou, de capacidade de entender, de querer e de adequadamente manifestar a sua vontade” (2 Acórdão de 22 de Maio de 2018, …, no processo 2414/15.2T8Csc). Assim, dois tipos de realidades se deverão dar, à partida, como provadas, por força dos documentos em apreço: primeira, que o falecido tio do autor compareceu perante a Notária, e que então proferiu as declarações documentadas; segunda, que o mesmo, aquando da realização desses actos, estava psiquicamente capaz. Isto pelas razões que passo a avançar. De harmonia com o disposto na alínea c) do nº 1 do art.º 173º do código do notariado, “o notário deve recusar a prática do acto que lhe seja requisitado (…) se tiver dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos intervenientes”; ou, no mínimo, se a incapacidade do declarante não for ostensiva, sempre o notário poderá avançar, agora por via do nº 2 do referido art.º 173º, “se no acto intervierem dois peritos médicos que garantam a sanidade mental” do interveniente. Quer isto dizer que a aferição da capacidade do declarante, em testamento, é sempre alvo da percepção do notário; e, se ela avançou para a consumação do acto, mesmo sem necessidade de intervenção de especialistas, foi porque, por duas vezes, se assegurou da sanidade mental do testador – facto este que, assim, cabe entro da força probatória dos documentos em apreço. Num segundo momento, relevante se tornou analisar os elementos de prova fornecidos pelo autor para abalar – no caso de se entender possível – esta percepção do notário.

Oficial de justiça e, também ela, sobrinha do falecido, XX afirma que “nos últimos anos de vida dele, já não tinha o discurso muito coerente”. Internado na ..., não reconheceu a depoente quando esta, por uma vez, o visitou. Mais referiu que “enquanto esteve na casa dele, era ele que tratava das coisas”, antes era uma irmã que faleceu antes dele. Questionada sobre o que, manifestamente, não pode saber – desde quando está incapacitado, se foi um processo evolutivo ou se ocorreu subitamente, vai respondendo em função das perguntas, denotando que não tem quaisquer certezas: “sei lá, talvez, isso foi-se arrastando”, ou “sei lá, um ano, talvez”, e outra vez “talvez”. HH trabalha no supermercado do grupo ... em ... e opina sobre o que lhe perguntam, mesmo depois de ter dito que as suas relações com o falecido, que era vizinho do avô da testemunha, “era bom dia boa tarde, a gente falava do tempo, dos animais e nada mais do que isso”. Mesmo assim, avançou que “havia algumas situações que eu notava que ele já não estava bom”, porque dizia que “precisava de falar com pessoas que já tinham morrido”, e dizia que “se deitava da janela abaixo”. Andava na rua “com pouca roupa e a chover”. O depoente está nesta região há uma dúzia de anos, e não sabe quanto anos depois de cá estar se passaram as cenas que narra. Assistente operacional no Agrupamento de Escolas local, YY, esposa do anterior depoente, e também ela diz que “aquilo era um contacto de bom dia, boa tarde, boa noite”. Que “sim, uma por outra vez” ouviu que ele se queria deitar da janela. Esta testemunha reafirma que vivia pouco na zona, era “se me cruzava com ele e quando me cruzava”. A melhor capacidade de compreensão das coisas parece ser a apresentada pela testemunha ZZ, que “fez domicílios” para a ... de 2008 a 2013 e, nessa tarefa, conheceu o falecido, porque dava apoio à irmã. Refere que “via-se que o sr. não andava bem”, e que “ele dava dinheiro assim à toa”. Ajudada pelas perguntas, acha que ele “usava” a comida dela. Esclareceu que uma ocasião, o falecido deu 40 euros à depoente, que os não aceitou, porque diz que não lhe eram devidos, mas que entendeu que o tio do autor o fez “por agradecimento para cuidar dela”, da sua irmã, o que a não impede de concluir que “da cabeça dele eu acho que ele não andava bem”.

Na última sessão de audiência, e ainda em prol da pretensão do autor, foi inquirida UU, prima do autor, e que, objectivamente – e pese embora o valor monetário aqui em disputa não ser absolutamente relevante – sempre seria herdeira do falecido, no caso de este se ter finado intestado. Todo o seu depoimento foi visivelmente orientado por ter opinião no sentido de que o seu primo deveria ter sido o beneficiado, desde as opiniões que manifestou ao tom perfeitamente distinto com que respondeu a cada um dos mandatários, pese embora o respeito que, por igual, ambos lhe tributaram. De concreto, apenas as considerações vagas – e pouco fundamentadas – que foram transmitidas pelos anteriores depoentes. Referiu que “ele sempre teve alguns problemitas”, que não foi capaz de concretizar, unicamente que “tipo, não era bem igual aos outros”. E “sim, tinha alturas que sim”, quando questionada sobre se confundia as pessoas. Em seu entender, os “problemitas” do falecido aumentaram aquando do decesso da irmã com quem convivia: “ela teve um neurisma em 2009, e ele ficou assim mais perturbado”. Concretizando, às vezes ele “não queria abrir a porta, não queria que ninguém visse a irmã”. Um senhor, que identificou, disse à depoente que ele “algumas vezes apareceu nu na rua”. Testamentos? Opina que “era conforme o vento”. Referindo-se aos aqui réus, acha que eles “sentiram alguma coisita e actuaram”, esclarecendo que se aperceberam da fragilidade do falecido e o industriaram, pois que “já no tempo dos meus avós as duas famílias não sedavam bem”. No mais, “sim, já antes”, e ”não, não”, respondendo a perguntas que contêm em si mesmas a resposta. “ele conhecer o dinheiro, conhecia, mas começou a esbanjar”. Uma vez chamaram-na porque o tio estava a sangrar da cabeça, e aponta para o nariz, o que “devia já ser do problema que ele tinha”. E finaliza a sua prestação com o comentário elucidativo da sua opinião: “não é assim que se faz, acho eu”.

Ou seja, e recapitulando, penso que está já claro os motivos pelos quais nada de relevante foi dado como provado quanto ao estado de saúde psíquica do testador aquando dos referidos actos aqui em apreço.

Pese embora se me afigurasse desnecessário, foi produzida prova, por iniciativa dos réus, quanto à sanidade mental do testador; que, ao que alegam – e alegar, no processo civil português, é prerrogativa que raramente acarreta responsabilidade para quem o faz – se manteve em perfeitas condições, mesmo depois da data que, com apoio em peritos e com a força de sentença transitada, foi fixada no processo especial de interdição. E que prova? Fundamentalmente, nenhuma, pois que, prudentemente, foi a mesma quase integralmente prescindida.

De relevante – admitindo essa relevância – foi inquirida a Notária. A Dra. FF, que exerce em ... há 15 anos, e que só por motivos profissionais contactou com o falecido, recorda – e disse-o por três vezes, tantas quantas as que foi questionada – que o testador efectuou, no seu Cartório, mais do que um acto dispositivo, mas não recorda quantos. Esclareceu que se recorda, “lembro-me da figura dele, digamos assim”. Bem como que efectuou o procedimento normal de todos os testamentos, “para ver se estão psicologicamente bem, mentalmente bem”, esclarecendo que “isso eu faço em todos os actos”. Depoimento que – obviamente – não deu a mínima indicação de que pudessem, facilmente, ter sido ludibriada pela prestação de uma pessoa mentalmente incapaz.

Assim, o que importa considerar é exactamente o contrário: conforme atestou a Notária – profissional qualificada para o efeito, experiente e imparcial – o falecido, de ambas as vezes em que se apresentou a testar, estava mentalmente são.”.

2.1. Recorde-se que a norma que regula a impugnação da decisão da matéria de facto (art. 640º do NCPC) estatui que tem de observar-se os ditames fixados no seu nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, sob pena de rejeição.

Ou seja, de tal dispositivo verifica-se que a lei exige 5 requisitos:

i) Que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

ii) Que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa;

iii) Que o recorrente obrigatoriamente especifique o sentido concreto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado a tais pontos;

iv) E por que razão assim seria, com análise crítica criteriosa;

v) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes.  

Ora, a aludida impugnação, relativamente aos apontados factos provados não pode proceder, por desrespeito do terceiro requisito processual atrás apontado.

Na verdade, impunha-se que o recorrente tomasse posição concreta sobre qual a decisão de facto a proferir em relação a cada facto, como resulta do acima mencionado art. 640º, nº 1, c). Portanto, o apelante teria que manifestar qual a resposta concreta a dar a tais factos, designadamente se os factos deviam ser dados por não provados por inteiro, ou se apenas provados parcialmente ou limitadamente, o que não fez em lado algum (nem no corpo das alegações, nem nas conclusões de recurso). Ou seja, não especificou quais as respostas que no seu entender se impunha fossem dadas aos indicados factos.

Nem se cogitando como possível ou admissível que seja o tribunal ad quem a fazê-lo, porque se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, compreende-se que a parte, além de indicar os concretos pontos de facto sobre que recaiu o alegado erro de julgamento, tenha de indicar qual o sentido correcto da resposta, que na óptica do apelante, se impõe seja dada a tais pontos de facto.

No caso, vê-se que o recorrente não refere qual o sentido da decisão a proferir relativamente a cada um desses pontos de facto, isto é, se deviam ser considerados totalmente não provados, ou provados parcialmente ou com limitações (restritivas ou explicativas), e neste caso quais. Em suma, devia ter especificado ou indicado dos referidos factos, quais em concreto considerava não provados na totalidade ou se provados parcialmente, restritiva ou explicativamente, explicitando-o claramente.

Na realidade, o ónus imposto a qualquer recorrente na aludida c) do nº 1 do art. 640º do NCPC não se satisfaz, por exemplo, com a simples afirmação de que: a decisão devia ser diversa; ou que houve uma errada valoração da matéria de facto; ou que esta está incorrectamente julgada (por ex., por estar em contradição ou divergência com os elementos probatórios produzidos); ou que não se vislumbra em que provas produzidas se baseou o tribunal a quo para dar como provados tais factos; ou que eles não decorrem da motivação apresentada. Que foi a postura adoptada pelo recorrente, por exemplo nas conclusões de recurso 11 -, 15-, 16 -, e 53 - (e semelhantemente no corpo das alegações).  Antes se exigindo ao apelante que afirme e especifique qual a resposta que havia de ser dada em concreto a cada um dos diversos pontos da matéria de facto controvertida, pois só desta forma se coloca ao tribunal de recurso uma concreta e objectiva questão para apreciar, sendo que só sobre estas (a não se lhe impor qualquer situação excepcional de conhecimento oficioso, que não é o caso), se poderá pronunciar.

Aliás, a não se entender assim, haver-se-ia de concluir, por absurdo, que estava cometido ao tribunal de recurso averiguar as diversas soluções possíveis (ao nível da decisão da matéria de facto), e depois responder, fosse tal resposta favorável, menos favorável, ou prejudicial ao recorrente, impedindo-se, desta forma, que o mesmo pudesse concluir pela existência de uma das situações possíveis (vide Ac. da Rel. Porto, de 16.5.2005, Proc.0550879, em www.dgsi.pt). Inclusive esta interpretação que já decorria pacificamente da interpretação do art. 685º-B, nº 1, b), do CPC, é hoje ponto assente, por expressamente ter sido previsto no mencionado art. 640º, nº 1, c).

Em resumo e conclusão, pelas apontadas e explicitadas razões é de rejeitar, a impugnação da matéria de facto apresentada pela recorrente, relativamente aos apontados factos provados 13, 24 e 25 (vide, também, o Ac. do STJ de 3.11.2020, Proc.294/08.3TBTND, em www.dgsi.pt). 

2.2. Relativamente aos factos não provados 19 a 21, 23 e 27 da contestação, o recorrente indicou que devem considerar-se como provados. Nesta parte deparamo-nos com a curiosa situação dessa factualidade ter sido alegada pelos RR e de serem os AA a pugnar pela sua comprovação !?

Essa factualidade visava demonstrar que não havia relação de proximidade ou afecto entre o A./recorrente e o seu tio/testador ao contrário do que o A. dizia na p.i. Mas, a provarem-se tais factos, simplesmente instrumentais, eles, em concreto, não são suficientes, por si, para influírem na solução de direito do pleito e na decisão final do recurso e do mérito da causa. Ademais porque a factualidade essencial, alegada pelo mesmo e que resultou não provada, já se mostra por ele impugnada.

Ora, é apodíctico que a impugnação da matéria de facto consagrada no art. 640º do NCPC não é uma pura actividade gratuita ou diletante.

Se ela visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados, ela tem, em última instância, um objectivo bem marcado. Possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada ou não provada, para que, face à eventual nova realidade a que se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. Isto é, que o enquadramento jurídico dos factos tidos por provados ou não provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada.  

Assim, se por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante ou insuficiente para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois nesse caso mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo factual anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada.

Por isso, nestes casos de irrelevância ou insuficiência jurídica, a impugnação da matéria de facto não deve ser conhecida sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (vide Ac. desta Relação de 12.6.2012, Proc.4541/08.3TBLRA, em www.dgsi.pt).

Isto porque, a alteração da matéria de facto, nos pontos precisos que forem impugnados será irrelevante ou insuficiente se nenhuma interferência tiver na dita solução de direito.

No nosso caso verifica-se que os mencionados factos não têm importância para o recurso do A.  e para a solução jurídica da causa, como atrás dissemos.  

Considerando o explicitado, e tendo em conta que a impugnação de facto deduzida pelo A. visa factualidade meramente instrumental que acaba por se tornar insuficiente para a sorte do seu recurso, ademais porque a factualidade essencial, alegada pelo mesmo e que resultou não provada, já se mostra por ele impugnada, então a referida impugnação, relativamente à apontada factualidade não tem de ser conhecida.

2.3.1. Há que conhecer, então, da remanescente factualidade impugnada, os factos não provados 10 a 13, 16, 19, 23, 27, 34, 40, 41, 43 da P.I., com base na prova indicada pelo apelante.

O mesmo invoca as suas declarações de parte. Mas o A. não prestou quaisquer declarações de parte. Apenas depoimento de parte, e neste âmbito nada confessou. Pelo que o seu depoimento de parte não pode ser invocado a seu favor. 

Invocou o depoimento da Dra. AAA, psicóloga da Unidade de Cuidados Continuados ..., depoimento gravado, mas nem sequer indica quaisquer passagens da gravação em que a mesma terá dito o que alega. O que viola o disposto no art. 640º, nº 2, a), do NCPC, o que implica rejeição do seu depoimento.

Mutatis mutandis, o mesmo ocorre com o depoimento de WW, assistente social da mesma instituição.

Ouvimos os restantes depoimentos das testemunhas pelo recorrente arroladas, gravadas em CD, reportados à matéria agora em apreço.

XX, sobrinha do falecido testador e prima do A., disse que[A1] o tio nestes últimos anos de vida dele era uma pessoa que já não tinha um discurso muito coerente, era histórias muito antigas o que levava a pensar que ele não estaria muito bem nesse sentido. Entretanto, ele foi para um lar e para cuidados continuados. E houve uma altura em que eu fui vê-lo já em ..., estava nos serviços continuados. Ele não me conheceu, não sabia quem era, não sabia onde estava. Nessa altura já não era capaz de se governar sozinho. Ele enquanto esteve na casa dele, era ele que tratava das coisas. Até um determinado momento, não sei qual é esse momento. Havia uma irmã dele, RR, que cuidou sempre dele. Entretanto, essa irmã adoeceu e faleceu antes dele. Ela limpava-lhe a casa, fazia-lhe a comida e ia-lhe levar à casa dele. Isso foi há 10/15 anos. Depois a irmã dele, para aí em 2010/ 2011 teve um AVC e deixou de cuidar dele. Nunca viu o tio a despir-se à vista das pessoas e andar na rua nu da cinta para baixo. Apenas ouviu dizer, a uma irmã dela e ela ouviu dizer a uma pessoa lá da aldeia que se chama BBB. Pouco tempo antes de ser internado, de ir para os cuidados continuados, talvez 1/2 anos, já notava aí uma certa demência. 

HH, que conheceu o falecido testador por ser vizinho do seu avô, referiu (depoimento prestado em 3.12.2021) que está na zona há 12 anos. Houve algumas situações que notava que ele já não estava bom. Era uma pessoa que frequentemente me pedia para chamar pessoas que já tinham morrido. Situar isso no tempo não consegue. Ás vezes passava lá à porta dele com os animais e ele dizia que se botava da janela abaixo. Sem dizer porquê. Assistiu a ele andar na rua com pouca roupa e a chover. Nu nunca viu. Sabe que ele era apoiado por uma irmã. Eles viviam os dois, mas essa senhora faleceu antes dele. Depois teve conhecimento quer o falecido foi para os cuidados continuados de ... e nessa altura ele já estava mais degradado da cabeça. Quem tratava de quem lá dentro de casa se ele ou a irmã não sabe.

YY, marido da anterior testemunha, declarou (depoimento prestado em 3.12.2021) que está na zona há 11 anos. Conheceu o falecido testador. O contacto com ele era de bom dia, boa tarde, boa noite. Por uma ou outra vez, junta com o marido, pensou que ele não andava bem da cabeça, porque ele dizia que se queria deitar abaixo da janela. A justificação foi que estava fechado em casa e não conseguia sair. Não sabe em concreto se ele tinha a chave na porta. Nunca o viu nu. 

GG, mencionou o que consta da motivação supra exarada pelo julgador de facto. Mencionou que trabalhava como ajudante familiar num Lar, e fazia domicílios, o que ocorreu de 2008 a 2013. Conheceu o falecido porque dava apoio à sua irmã. Ele muitas vezes fechava a irmã dentro de casa, mas não sabe porquê. Mas achava estranho ele fechar a porta à chave. Ela ia lá levar as refeições à irmã e fazer a higiene pessoal dela. Muitas vezes faltava-lhe a comida e a gente achava muito estranho e perguntava onde é que estava e ele dizia que ia buscar lá a casa dele a marmita, mas não sabe se ele comia a comida. Mas ela via que a irmã não comia a comida. Via-se que o senhor não andava bem, psicologicamente não andava bem. Cada vez foi ficando pior. Ele dava dinheiro às empregadas muitas vezes, 10/20 euros, assim do nada. Muitas vezes ele estava ausente, mas não sabe onde é que se encontrava. Não sabe se ele sabia para onde ia e para onde não ia. Depois com a irmã a gente ficava à hora de almoço até ela acabar de almoçar, para ter a certeza que a senhora almoçava. Nunca o viu na rua despido, mas mal vestido, mal arranjado, sim. E também o viu na rua à chuva sem nada. Depois a irmã foi para casa do A. e o falecido deve ter ficado sozinho na casa dele.   

UU, sobrinha do falecido testador e prima do A., disse que o falecido e uma irmã, ambos solteiros, viveram juntos. Quando ele esteve internado em ... ainda foi lá algumas vezes visitá-lo. Nos últimos anos de vida, nos últimos 2, 3, 4, 5 anos, já padecia um bocadinho da cabeça. Aliás, ele sempre teve assim alguns problemitas. Quando a irmã teve um aneurisma em 2009 e ficou mais doente ele ficou assim mais perturbado, em 2009/2010. Não é nenhuma mentira, porque foi verdade. Às vezes ela chegava lá a casa e ele não queria abrir a porta, não queria que ninguém visse a irmã. Havia um problema de que as senhoras queriam lavá-la lá dentro e ele não queria sair para fora. Isso já não é uma pessoa que está muito bem. Ele aparecer na rua despido nunca viu, mas disse-lhe um senhor que também vive lá na rua chamado BBB, o que acha que não é normal. Os dois testamentos que estão em causa foram feitos aos vizinhos, que até dantes nem nunca se davam. Em 2010/2011, até já antes, não era o tipo de pessoa que tinha lucidez. Apercebi-me muitas vezes que a minha tia também sofria, às vezes, um bocadinho com ele, porque é estranho. Ouviu falar que ele distribuía dinheiro. Uma vez viu o tio a sangrar da cabeça, pelo nariz. Devia ser algum derramezito já ali. Devia ter tudo a ver com o problema que ele, sei lá. Ele foi internado na CCC Dair porque ele já não tinha condições nenhumas de estar sozinho, ele já não fazia nada, ele ficava de noite sozinho, não é. A irmã orientava-o, mas depois que a irmã teve o problema de saúde a coisa agravou-se. A relação entre os referidos vizinhos e a sua família alargada, já dos tempos dos meus avós, nunca foi boa. Não sabe muito bem como é que o falecido foi parar a ..., mas sabe que ele já não estava em condições de estar em casa e foi para lá. Mais referiu os acrescentos exarados pelo julgador na sua motivação de facto.

A Sra. Notária declarou o que consta da motivação de facto exarada pelo julgador. Mais especificou que em relação ao procedimento que levou à redação destes testamentos, foi o procedimento normal. O procedimento dos testamentos é sempre igual para com todos. É perguntar o nome, perguntar os dados de identificação, a data de nascimento, a idade, o nome dos pais, para ver se eles estão psicologicamente bem ou mentalmente bem, se me souberem responder, depois dizem-me a vontade deles e é lavrado o testamento. Normalmente nem é no mesmo dia, primeiro é feita a reunião com o testador e depois é que é lavrado o testamento. Se a pessoa responder direito não desconfia. Se tivesse desconfiado de algo nos aludidos testamentos não teria feito o testamento.

Analisando.

Do depoimento da testemunha XX, considerado pelo julgador na sua motivação supra transcrita, não decorre que o falecido testador estivesse incapacitado à data dos dois testamentos, 1/2010 e 2/2011. A testemunha diz que[A2] o tio nestes últimos anos de vida dele era uma pessoa que já não tinha um discurso muito coerente, mas pergunta-se quais esses últimos anos se o mesmo faleceu em 10/2017. Há mais de 6 anos atento a data do último testamento ? Não se sabe. Apenas se sabe, da acção de interdição que a sua incapacidade se iniciou em 3/2012, igualmente em data posterior (cerca de 1 ano) ao do último testamento. A testemunha diz que quando foi ver o tio aos cuidados continuados em ... ele não a conheceu, nem sabia onde estava e nessa altura já não era capaz de se governar sozinho. Como sabemos que ele entrou nessa ... em 9/2014 então também não se pode afirmar que à data dos testamentos estava incapaz. O que sabemos é que só após o internamento o Dr. SS atestou que o falecido apresentava em 12/2014 essa incapacidade, como se refere na motivação de facto. O que é confirmado pelo relatório da psicóloga AAA, também referido e mencionada na dita motivação. Ademais a testemunha indica que o falecido enquanto esteve na casa dele, era ele que tratava das coisas até um determinado momento, que não sabe qual é esse momento, embora em momento anterior, uma irmã dele, RR, que teve depois um AVC e faleceu antes do referido testador, lhe limpasse a casa e lhe fosse levar comida à casa dele, o que nada tem de anormal. Também nunca viu o tio a despir-se à vista das pessoas e andar na rua nu da cinta para baixo, apenas ouvindo dizer de modo muito indirecto. Mesmo quando afirma que pouco tempo antes de ser internado, de ir para os cuidados continuados, talvez 1/2 anos, já notava aí uma certa demência, não se consegue concluir em sentido diferente, pois 1/2 anos antes do internamento, em 9/2014, apenas alcança no seu limite máximo 9/2012, bastante posterior à data dos apontados testamentos. 

Também do depoimento da testemunha HH, considerado pelo julgador na sua motivação supra transcrita, e que vive na zona desde há 12 anos, ou seja desde mais ou menos 12/2009 (atento a data do depoimento), nada se consegue concluir sobre a demência ou incapacidade do falecido testador à data dos testamentos, pois a testemunha não conseguiu situar no tempo as 3 situações que relatou, pedir para chamar pessoas mortas, andar com pouca roupa e a chover, nu nunca vi, e mandar-se da janela para baixo. Nem sabendo também se era a irmã que cuidava dele ou ao contrário. Afirmou que o falecido foi para os cuidados continuados de ... e nessa altura ele já estava mais degradado da cabeça, mas isso é em 9/2014, muito depois da data dos aludidos testamentos.  

Igualmente do depoimento da testemunha YY, considerado pelo julgador na sua motivação supra transcrita, e que vive na zona desde há 11 anos, ou seja desde mais ou menos 12/2010 (atento a data do depoimento), ainda menos se retira sobre a demência ou incapacidade do falecido testador à data dos testamentos, pois a testemunha além de não situar no tempo a situação que relatou, mandar-se o mesmo da janela para baixo, só começou a viver na zona já depois de feito o 1º testamento e nas vésperas do 2º.  Nu nunca vi o falecido.

O depoimento da testemunha GG, considerado pelo julgador na sua motivação supra transcrita, deixa alguma estranheza de comportamento do falecido, devido às situações relacionadas com o mesmo fechar a irmã dentro de casa e fechar a porta à chave e ficar eventualmente com a comida que era destinada a esta, achando a testemunha que o falecido não andava psicologicamente bem. Também referiu que o mesmo dava dinheiro à toa, o que não é normal, mas num episódio que lhe disse directamente respeito não foi à toa, pois embora não tivesse aceite entendeu que o falecido lhe quis dar 40 euros por agradecimento para cuidar da sua irmã.

É o único depoimento situado temporalmente no período dos 2 testamentos em apreço nos autos que suscita dúvidas, embora não muito significativas sobre o bem-estar psicológico, consciência ou desequilíbrio do falecido. A nós parece-nos mais revestir uma conduta estranha do falecido que uma atitude nitidamente indicadora de demência ou incapacidade do mesmo.

Este depoimento não abala, porém, o que resulta da observação da Sr. Notária, designadamente que o falecido testador estava incapacitado para compreender o que estava a testar ou não tinha livre exercício para expressar a sua vontade.    

Quanto ao depoimento da testemunha UU, prima do A., pouca credibilidade lhe damos. Na verdade, subscrevemos a apreciação feita pelo julgador de facto, acima mencionada, porque “sentimos” exactamente o mesmo do que o julgador descreve. O seu depoimento foi visivelmente orientado por ter opinião no sentido de que o seu primo deveria ter sido o beneficiado, desde as opiniões que manifestou ao tom perfeitamente distinto com que respondeu a cada um dos mandatários, pese embora o respeito que, por igual, ambos lhe tributaram. De concreto, deparamo-nos com respostas vagas e pouco fundamentadas, num tom ora impertinente ora de simples afirmações pré-estabelecidas, com um toque final na frase dita e algumas exclamações nitidamente a pender para a defesa dos interesses do A., seu primo. Referiu que “ele sempre teve alguns problemitas”, que nunca concretizou com clareza. Em seu entender, os “problemitas” do falecido aumentaram aquando do decesso da irmã com quem convivia, pois teria ficado “mais perturbado”. O que concretizou foi que às vezes ele “não queria abrir a porta, não queria que ninguém visse a irmã”. Por conhecimento indirecto, ouviu falar a um conhecido que o tio teria aparecido nu na rua. Referindo-se aos réus, acha que eles “sentiram alguma coisita e actuaram”, esclarecendo que se aperceberam da fragilidade do falecido e o industriaram, pois que “já no tempo dos meus avós as duas famílias não se davam bem”. “Pelos vistos” (?) também esbanjava dinheiro. Uma vez viu o tio a sangrar da cabeça, sangue que saía pelo nariz (!?), o que “devia já ser do problema que ele tinha”. E finaliza a sua prestação com o comentário elucidativo da sua opinião quanto à postura dos RR “não é assim que se faz, acho eu”.

Portanto, o depoimento desta testemunha não merece qualquer valorização de relevo.

Por fim, como os recorridos invocam, temos o parecer científico junto aos autos, do INML (elaborado por Professor Doutor Catedrático de Psiquiatria) no qual se deixa uma resposta clara e inequívoca e fundamentada aos quesitos formulados pelo A.:

Quesito 1: O Processo que levou à verificação da anomalia psíquica na data constante da sentença de interdição de EE (20/03/2012) é do ponto de vista médico um longo processo que se vai arrastando e agravando ao longo dos anos anteriores podendo fixar-se pelo menos que durou desde o início de 2010?

Resposta:

Não. (… fundamentação).

Quesito 2:  Os factos alegados na petição inicial a provarem-se, são idóneos a estabelecer a incapacidade de EE para entender o sentido da declaração constante dos testamentos de 29/01/2010 e 23/02/2011 afetando o livre exercício da sua vontade? Resposta:

Não. (…fundamentação) - Na parte final desta fundamentação diz-se mesmo que “Por essa razão, os factos alegados na Petição Inicial, a provarem-se, não são suficientes nem são idóneos para estabelecer a incapacidade de EE no que respeita ao seu entendimento sobre o sentido das declarações constantes dos testamentos de 29/01/2010 e 23/02/2011 e ao livre exercício da sua vontade”.

Quesito 3: O facto de, em breves anos, EE, ter outorgado 10 testamentos, é revelador de insegurança e incapacidade de entendimento e determinação da vontade, refletindo-se quando outorgou os 2 últimos testamentos referidos?

Resposta: Não. (… fundamentação).

De sorte que, perante o explicitado, aderimos à convicção do julgador a quo, porque formamos idêntica convicção.      

Sendo, agora, o momento de lembrar que estamos, no domínio do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art. 607º, nº 5, 1ª parte, do NCPC, segundo o qual o juiz aprecia as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

Sendo certo que, como em qualquer actividade humana, existirá sempre na actuação jurisdicional uma margem de incerteza e aleatoriedade, no que concerne à decisão sobre a matéria de facto, o que importa, pois, é que se minimize o mais possível tal margem de erro, tendo, porém, o sistema válvulas de segurança. Efectivamente, nesta apreciação livre há que ressalvar que o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, dos princípios da lógica, ou das regras científicas (vide Anselmo de Castro, D. P. Civil, Vol. 3º, pág. 173, e L. Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1ª Ed., pág. 157).

Ou dito de outro modo, “I - A criação da convicção do julgador que leva à decisão da matéria de facto tem de assentar em dados concretos, alguns dos quais elementos não repetíveis ou tão fiáveis na 2.ª instância como na 1.ª, em situação de reapreciação da prova. Na verdade, escapam à 2.ª instância, por princípio, a imediação e a oralidade que o juiz da 1.ª instância possui.

II - Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela” vide Ac. do STJ de 20.5.2010 (relator Mário Cruz), Proc.73/2002.S1, em www.dgsi.pt.

Da prova produzida, antes apontada, decorre, apesar de não termos toda a riqueza de ajuizamento resultante da imediação, apenas dispondo da oralidade constante da gravação, que a versão trazida a recurso pelo ora apelante, em sentido contrário ao decidido, não é sólida nem sustentada probatoriamente.  

Assim, resulta que a convicção do julgador, expressa na decisão da matéria de facto, tem sustentabilidade, sendo razoável, aceitável, sendo por isso compreensível o modo como fixou tal matéria de facto, não se mostrando, por outro lado, infirmada por outra prova de apreciação livre suficientemente convincente. Desta maneira, considerando que o direito não é uma ciência exacta, nem se pode aspirar humanamente a que do depoimento testemunhal possam resultar certezas absolutas, no caso dos autos podemos extrair duas conclusões.

Uma, é que compulsando o que resulta do teor da actividade probatória, resulta para nós que nenhuma máxima da experiência, advinda da observação das coisas da vida, princípios da lógica, ou regra científica, foi violada. Outra, é que, tendo sustentabilidade e sendo compreensível a convicção do julgador de facto, é razoável, é de aceitar a decisão da matéria de facto que o mesmo expressou, pois também não mostra desconformidade à luz dos meios de prova indicados e produzidos nos autos – depoimentos testemunhais e prova documental.    

Decisão da matéria de facto que nós aceitamos, repetimo-lo, por, igualmente, podermos formular semelhante convicção. Desta sorte, ponderando todos os elementos probatórios indicados e analisados criticamente não se descortina motivo para alterar a decisão da matéria de facto proferida pelo julgador a quo, já que agindo ele e agindo nós sob o princípio da livre apreciação da prova (art. 663º, nº 2, do NCPC) é esse o melhor resultado decisório de facto a que se chegou, sem violação das regras da lógica e da experiência.

Por conseguinte, face ao explanado, a impugnação da matéria de facto tem de ser rejeitada relativamente aos apontados factos não provados 10 a 13, 16, 19, 23, 27, 34, 40, 41, 43 da P.I., que formam um bloco (salvo o 41, que não integra este bloco mas do qual nenhuma prova foi feita). 

2.3.2. Defende, também, o recorrente que o tribunal a quo devia ter lançado mão do princípio do inquisitório, previsto no art. 411º do NCPC, em nome do princípio da descoberta da verdade material, nomeadamente o histórico clínico do falecido testador, que oficiosamente poderia requerer e que lhe permitia aferir, sem margem para dúvidas, desde que data é que o testador apresentou a suscitada demência, prova documental essa que revestia natureza essencial para a decisão da causa, atento até os diversos depoimentos probatórios produzidos (especificamente conclusões de recurso 37 – a 54 -).

Não há dúvida que cabia ao autor o ónus de prova dos factos que integram a causa de pedir que alegou, como se sublinhou na sentença recorrida. Cabia-lhe provar, por isso, a data do início da alegada demência/insanidade mental do testador falecido, para se poder concluir que na altura em que testou já se encontrava nesse estado. O A. apresentou vários meios probatórios, incluindo prova documental. Aos autos foram juntos relatórios médicos, parecer científico do INML e diversos documentos clínico-médicos, solicitados por tal Instituto, que o próprio A. indicou onde podiam ser obtidos. Todos esses meios probatórios foram apreciados pelo julgador a quo. Mais se constata que a audiência de julgamento se desenrolou por várias sessões espaçadas no tempo (3 sessões entre Setembro de 2021 e Dezembro de 2021), tendo sido ouvidas 7 testemunhas do A. e uma dos RR.

Mas só agora o A. “descobriu” que o juiz a quo devia ter solicitado o que denomina de histórico-clínico do falecido. O que não merece acolhimento.

Nos termos do indicado artigo, que se refere ao princípio do inquisitório, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.

Ora, o recorrente poderia perfeitamente, decorridos 4 meses de produção de prova em várias sessões, a primeira dedicada à audição das partes, a segunda ocupada apenas com a audição de 6 das suas 7 testemunhas, e a terceira e última com uma sua testemunha e uma outra, e única, dos RR, ter-se lembrado, antes das alegações que era essencial o tal histórico-clínico do falecido, e requerer apresentação por si próprio ou requerer ao tribunal a respectiva solicitação. O que não fez, apesar de a produção de prova estar terminada e de o mesmo dever saber, para defesa dos seus interesses, se nesse momento era essencial ou não a junção de tal histórico-clínico, bem conhecendo, igualmente, que lhe cabia o ónus de provar o alegado, como acima referimos.

É que o princípio do inquisitório tem necessariamente de ser conjugado com outros ditames, designadamente com o da autorresponsabilidade das partes. Se a parte podia ter requerido, com toda a largueza e possibilidade, certa diligência probatória e não o fez, sibi imputet.

A intervenção do juiz, em última instância, substituindo-se a ela, vai, em tese geral, acabar por violar o princípio da igualdade das partes no processo, pois estaria a permitir a prática de um acto já precludido e a esvaziar a aludida autorresponsabilidade de uma das partes, eventualmente favorecendo-a.

Mais até. Em concreto, nem se vislumbra essa necessidade ou pertinência. Na realidade, como se disse atrás, foram juntos aos autos, relatórios médicos e inúmeros documentos clínico-médicos, solicitados pelo INML para elaborar o seu parecer científico, tendo sido o próprio A. que indicou onde todos eles podiam ser obtidos. Pergunta-se, pois, que mais documentos clínico-médicos podiam ser obtidos que não estejam já juntos aos autos ? Não se vislumbram, nem o recorrente os especifica, limitando-se a uma referência vaga e genérica de “histórico-clínico”.  Portanto, prefigura-se tal diligência como inócua, não pertinente, e consequentemente dispensável. 

2.3.3. Defende, igualmente, o recorrente que no caso em concreto não foi analisado, nem valorado o histórico clínico do testador, impõe-se que seja ordenada a produção de tal meio de prova (por documentos – relatório do histórico clinico), nos termos do previsto no art. 662º, nº 2, b), do NCPC (especificamente conclusão de recurso 55 -). Não é assim, sem mais.

O funcionamento desse preceito só pode ser desencadeado se a Relação, mesmo oficiosamente, ficar em estado de dúvida fundada sobre a prova realizada, o que no caso não acontece. Como acima analisámos, (em ponto 2.3.1. chegou-se à conclusão que a impugnação da matéria de facto não merecia provimento).  

Por conseguinte não há que acionar tal mecanismo processual.

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Primeiro que tudo, é pretensão do autor “anular-se (ou declarar-se anulados) os testamentos”; funda o pedido no disposto no art.º 2199º do código civil. … Estatui o preceito invocado – e, efectivamente, outro não visiono que possa sustentar a pretensão do autor – que “é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória“. A esta sanção se deverá, portanto, reconduzir o pedido – aparentemente alternativo – formulado. Para o efeito, ademais, importa considerar que, no caso dos testamentos, o regime da sua anulação por incapacidade não é exactamente o mesmo que o regime geral deste vício na formação da vontade. Por exemplo, analisando, comparativamente, ambos os normativos, a Relação de Lisboa decidiu já que “as incapacidades de testar são menos rigorosas, mais restritas, que as incapacidades gerais” (3Acórdão de 20 de Dezembro de 2018, …, no processo 4331/16.0T8Lsb). Importa analisar se os dados de facto integram a previsão em apreço.

Relativamente ao estado de saúde do falecido tio do autor aquando da outorga de ambos os testamentos, e no sentido de que o mesmo o incapacitaria de entender o que disse, não foi possível recolher, no processo, mais do que meras suposições, apoiadas na locução “talvez” e, mesmo assim, não temporalmente circunstanciadas com rigor. Não é, portanto, possível, falar na prova da incapacidade do referido testador. Como não poderia deixar de ser, o nosso mais alto tribunal não costuma vacilar nestas situações: “o art. 2199.º do CC exige que a testadora não entenda o sentido das declarações no momento em que faz o testamento; na falta dessa prova, a acção fundada naquele normativo deve ser julgada improcedente” (4Acórdão de 19 de Junho de 2019, relatado pela Conselheira Fátima Gomes, no processo 3375/13.8TbVCt.). Não seria necessário, mas chamo, inclusivamente, a atenção para a circunstância de, nestes casos, se poder mesmo falar num acréscimo de exigência. Como foi já decidido pela Relação de Évora, “sendo o testamento uma das manifestações mais expressivas da autonomia da vontade do de cujus, que livremente escolhe quem há-de suceder-lhe, (…) a sua anulação só será possível quando se provem rigorosamente factos subsumíveis a quaisquer das referidas normas que a prevêem” (5Acórdão de 19-11-2020, …, no processo 214/18.7T8RMz.). O que, manifestamente, não foi o caso. (…)

A sucessão testamentária é o instituto em que o legislador se sobrepôs à autonomia individual, limitando a decisão do próprio – contrariamente a algumas legislações, ainda hoje, noutras latitudes e longitudes, em que é possível privar os filhos da herança, em favor de animais domésticos – e reservando uma quota dos bens a transmitir. Todavia, e para além desta reserva, a vontade do testador é o critério máximo a seguir. Como dizem os especialistas, a lei “desinteressa-se de saber quem serão os sucessores, quando indicados pelo de cuiús (ou seja) reconhece, assim, a designação dos sucessíveis feita pelo auctor successionis ao abrigo da sua autonomia” (6João Menezes Leitão, “A Interpretação do Testamento”, Associação Académica, Faculdade de Direito, Lisboa, pág. 58.). O que perfeitamente se compreende, uma vez que, por tradição multimilenar, estamos a regular uma das actividades psicologicamente mais densas de que há memória. Trata-se, este, de um assunto que, porventura mais do que qualquer outro, nos faz permeáveis aos receios e sentimentos associados à morte, sobretudo quando – como é o caso – um conjunto de familiares sente que, de alguma maneira, se debate algo que tem que ver com a morte de um dos seus próximos. Porque “a dor provocada por uma morte só existe se a individualidade do morto tiver sido presente e reconhecida: quanto mais o morto for chegado, íntimo, familiar, amado ou respeitado, isto é ‘único’, mais a dor é violenta; não há nenhumas ou há poucas perturbações por ocasião da morte do ser anónimo, que não era ‘insubstituível’ (7Edgar Morin, “O Homem e a Morte”, Publicações Europa-América, pág. 31.). Daí que, mais do que tudo, a vontade do testador deva ser respeitada.

Tudo recapitulando, dispõe o art.º 342º do código civil, nos seus nºs 1 e 3, que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, sendo que “em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”. Assim, invocando que o seu falecido tio praticou actos jurídicos de disposição, mormente, dois testamentos, quando não se encontrava consciente para o fazer, competia ao aqui autor a prova de que, efectivamente, tais factos ocorreram e estiveram subjacentes aos negócios que se pretende sejam invalidados. Não o tendo logrado, mais não resta do que proferir decisão em desconformidade com ambas estas pretensões do autor, por falta de provas.”.

Na verdade, assim é, inexistindo censura a fazer a este discurso jurídico, apenas havendo que o chancelar.

Efectivamente, o referido art. 2199º do CC abrange duas situações distintas de incapacidade acidental do testador, geradoras da anulação do testamento, transitórias ou não: a) a incapacidade de compreensão do significado do acto e das disposições testamentárias; b) a ausência da liberdade de exprimir a sua vontade. O vício contemplado no referido artigo é, como acentua A. Varela, em CC Anotado (Vol. VI, nota 3. ao indicado artigo, pág. 323) a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada. A anulação do acto assenta na falta alegada e comprovada de capacidade do testador – por perda momentânea de faculdades, devido a morte iminente, idade muita avançada, doença prolongada, memória mitigada, etc, por embriaguez ou estupefacientes, por hipnose, etc, -, no preciso momento em que lavrou o testamento, ou capacidade de entendimento para entender o sentido e alcance da sua declaração, ou capacidade volitiva para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.

Ora, no nosso caso nada provou o A. nesse sentido, pelo que necessariamente a acção tinha de improceder.

(…)

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

*

Custas pelo A./recorrente.

*

                                                                        Coimbra, 24.5.2022

                                                                        Moreira do Carmo

                                                                        Fonte Ramos

                                                                        Alberto Ruço

27


I – Relatório


1. AA, residente em ..., intentou acção declarativa contra BB e cônjuge, CC, residentes em ..., e DD, residente em ..., impetrando que devem anular-se os 2 testamentos outorgados por EE.
Alegou, muito resumidamente, que o falecido EE, de quem era sobrinho, lavrou dois testamentos, a favor dos aqui réus, como seus universais herdeiros, sendo que, no entanto, desde alguns anos antes se encontrava já afectado nas suas faculdades mentais de modo a não ter a capacidade de avaliar os seus atos e determinar a sua livre vontade, pelo que, quando testou, já com 81 e 82 anos, já se encontrava totalmente incapacitado de entender o sentido das declarações que proferiu.
Contestaram os réus, avançando, em breve síntese, que o falecido testou no pleno exercício da sua vontade, sendo então capaz, o que foi confirmado pela Notária e pelas testemunhas dos actos, e que o mesmo não se encontrava incapaz nem sequer quando a sentença do processo que o interditou assim o determinou, e que o que acontece é que o autor não se conforma por o seu falecido tio ter decidido não lhe deixar qualquer bem. Concluem, assim, pedindo a sua absolvição.
*
A final foi proferida sentença que julgou a acção não provada e absolveu os réus do pedido.
*
2. O A. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 – O ora Recorrente AA instaurou a presente acção declarativa constitutiva (processo comum) contra BB e cônjuge, CC e DD, beneficiários dos testamentos celebrados em 29/01/2010 e 23/02/2011 no Cartório notarial ... pelo falecido EE, tio do autor, que deixou em favor daqueles (Réus) vários legados e instituindo-os seus únicos universais herdeiros.
2 - Na respetiva acção deduziu o seguinte pedido: “Deve a presente acção ser julgada provada e procedente e em consequência deve anular-se ou declarar-se anulados os testamentos outorgados por EE no Cartório notarial ... em 29/01/2010 e 23/02/2011”
3 - Por sentença proferida em 16/12/2021, pelo Juízo Central Cível de Viseu – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, foi a ação intentada pelo Autor/Recorrente, julgada improcedente, absolvendo-se os réus do pedido contra eles formulado.
4 - O Meritíssimo Juiz ao decidir da forma como o fez não atendeu a factos que deveriam ter sido devidamente avaliados e apreciados, por se afigurarem como fundamentais para uma decisão diversa daquela que o tribunal ad quo formulou (nomeadamente os factos aludidos em aa) e ab), supra melhor descritos neste recurso.
5 - Em nosso entendimento, não foram valoradas provas testemunhais que contextualizadas com algumas provas documentais justificariam uma outra apreciação sobretudo quando sujeitas à livre apreciação do tribunal e baseadas numa prudente convicção e dentro das regras da ciência, do raciocínio lógico e em máximas da experiência.
6 - O tribunal poderia e deveria apreciar livremente as provas, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (nº 5 do artº 607º do CPC) e sem limitação – à excepção da prova vinculada - valorando-as, ponderando-as recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre e própria convicção acerca de cada facto controvertido.
7 - É nosso entendimento ter existido violação das regras da ciência, da lógica e da experiência. Ou seja, a convicção do tribunal “a quo” sobre a realidade - ou falta dela – dos factos não foi alcançada com o uso da prudência e perturbou a faculdade de decidir da forma mais correcta (art.º 607º nº 5 do NCPC), violando o princípio da livre apreciação da prova.
8 - Nada obsta que na investigação sobre a nulidade do ato da ultima vontade, por ausência ou redução do discernimento do testador, deva o juiz fazer uso da prova indirecta concretizada por presunções, ou por indícios, ou por sinais, ou por suspeitas, ou por adminículos. Somente esses elementos poderão comprovar a falta de discernimento de quem já não existe mais, fisicamente, no plano dos factos.
9 - No fundo, o que se pretende é a prevalência da verdade material sobre a forma pois cabe ao processo civil procurar a verdade material em vez de se privilegiarem aspectos formais, que não assumem verdadeira importância perante o objectivo de boa aplicação do direito substantivo ao caso concreto, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo e a realização da justiça.
10 - Com efeito, a descoberta da verdade material envolve um alto interesse do estado e assim se promove a confiança na justiça dos tribunais, que só pode ser adquirido através da eliminação de restrições que se refere à limitação do uso dos meios probatórios ou de todas as diligências necessárias ao apuramento da respetiva verdade e da justa composição de litígio.
11 - É nosso parecer (salvo melhor opinião) que os factos enunciados nos pontos 13 (treze) e 24 (vinte e quatro) e 25 (vinte cinco), constantes nos factos provados na sentença, não foram adequada e convenientemente sustentados através dos meios de prova apresentados em discussão de julgamento.
12 - Dos factos integrados na matéria não provada e que deveria ser considerada provada, evidenciamos os pontos 10 (dez), 11 (onze), 12 (doze), 13 (treze), 16 (dezasseis), 19 (dezanove), 23 (vinte e três), 27 (vinte e sete), 34 (trinta e quatro), 40 (quarenta), 41 (quarenta e um), 43 (quarenta e três) da P.I. e os factos 19 (dezanove), 20 (vinte), 21 (vinte e um), 23 (vinte e três) e 27 (vinte e sete) da Contestação.
13 - Efectivamente, o Meritíssimo Juiz para alcançar aquela conclusão apenas valorou as declarações da Notária, Dra. FF, quanto ao ponto 13 (treze) e dos réus, quanto aos pontos 24 (vinte e quatro) e 25 (vinte e cinco), depreciando completamente as declarações de parte do Autor e os depoimentos das testemunhas por si arroladas, nomeadamente, familiares e vizinhos do de cujus.
14 - Em síntese da prova produzida e examinada em audiência, observamos que para o meritíssimo juiz apenas teve preponderância o depoimento da notária que considerou “de relevante” e por considerar a Notária uma “profissional qualificada para o efeito, experiente e imparcial”.
15 - O Meritíssimo Juiz não deu qualquer crédito às declarações do Autor/Apelante nem às testemunhas por si arroladas, o que nos leva a crer existir erro ou desacerto na valoração das provas porque, apesar da livre apreciação da prova posta ao dispor do Julgador.
16 - O Recorrente considera ter sido incorrectamente julgado o facto provado em 13 (contestação): “ À data da outorga dos testamentos em causa o referido EE tinha noção do que estava a fazer e fê-lo porque quis.”
17 - A decisão não se reporta a qualquer fundamentação deste ponto concreto da matéria de facto dada como provada, nem de qual elemento probatório foi retirada esta conclusão. De toda a prova testemunhal e documental produzida na audiência de julgamento, não resulta provado qualquer facto que pudesse ser valorado neste sentido, nem sequer da senhora Notária, nem dos testamentos elaborados, nem das declarações dos Réus.
18 - Deste modo, o juiz ad quo não justificou nem fundamentou o resultado desta ilação ou conclusão bem como a sua sustentação fáctica porquanto nenhumas testemunhas houve que concretizassem ou contextualizassem ou justificassem tal afirmação.
19 - No que tange a este facto concreto dado como provado, “À data da outorga dos testamentos em causa o referido EE tinha noção do que estava a fazer e fê-lo porque quis.”, não merece provimento, desde logo, por duas ordens de razão: A primeira, porque é manifesto que não se trata de qualquer facto mas, antes, de uma asserção de cariz jurídico-conclusivo. Saber se o testador se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou de formar livremente a sua vontade, é uma conclusão jurídica a extrair dos factos apurados. A segunda porque, ainda que se entendesse tratar-se de “facto”, o que não se concebe, o recorrente não localizou em qual testemunha ou documento foi concretizada esta prova o que, obviamente sempre deveria ser inviabilizada e, consequentemente deve proceder-se à sua reapreciação no âmbito da matéria de facto.
20 – Do depoimento da Sra. Notária extraiu-se o seguinte: - “Normal, normal. O procedimento dos testamentos é sempre igual para com todos. É perguntar o nome, perguntar os dados de identificação, a data de nascimento, a idade, o nome dos pais, para ver se eles estão psicologicamente bem ou mentalmente bem, se me souberem responder, depois dizem-me a vontade deles e é lavrado o testamento”.
21 - Deste depoimento denota-se, com evidência, quais as perguntas que a Sra Notária fez ao testador: “O procedimento dos testamentos é sempre igual para com todos. É perguntar o nome, perguntar os dados de identificação, a data de nascimento, a idade, o nome dos pais, para ver se eles estão psicologicamente bem ou mentalmente bem, se me souberem responder, depois dizem-me a vontade deles e é lavrado o testamento.”
22 - Perguntas essas que declarou serem iguais para todos os testadores e que apenas se tangem à questão sobre o nome, data de nascimento, idade e nome dos pais. Acrescentando, a Sra. Notária, serem estas as questões que coloca para ver se as pessoas estão psicologicamente bem ou mentalmente bem.
23 - Com o devido respeito pela Sra. Notária, mas é indubitável, mesmo à luz da experiência de um cidadão comum, que a realização de tais perguntas e a resposta às mesmas é um meio claramente insuficiente para atestar as faculdades mentais de uma pessoa, bem como a sua capacidade de discernimento quanto ao ato que está a praticar e ao alcance do mesmo.
24 - Mais se acrescenta que a Sra. Notária, não possui (e não tem obrigação de possuir) conhecimentos clínicos que lhe permitam aferir, com total grau de certeza, da existência de capacidades mentais por parte de um testador.
25 - Tal falta de conhecimento, aliada ao facto de nunca e em momento algum, (anterior ao momento da realização do ato), ter estado ou convivido com o testador, a realização apenas das questões que foram colocadas pela Dra. FF ao falecido testador, por si só não permitem aferir ou sequer suspeitar das condições mentais do mesmo.
26 - Não se compreende, e por isso não se aceita, que o Tribunal tenha dado total relevância à Sra. Notária que apenas contactou pessoalmente com o testador num só ato, em detrimento das outras testemunhas arroladas pelo depoente que eram familiares, amigos, vizinhos e outras que com ele lidaram diariamente no âmbito da sua actividade profissional.
27 - Cite-se, por exemplo a testemunha GG, a qual por ser auxiliar num Lar e por isso com larga experiência no tratamento e convívio com idosos e pessoas com deficiências físicas e mentais (por força do exercício da sua profissão), se apercebeu e não hesitou em afirmar que o Sr. EE não se encontrava bem psicologicamente no período de 2008 a 2013, data em que ela prestou apoio domiciliário.
28 - Todas as testemunhas supra mencionadas foram unânimes em afirmar que o “Sr. EE já não estava bem da cabeça.”
29 - Esta observação empírica das testemunhas, adquirida através do convívio frequente com o testador e por meio da observação direta e pessoal aos seus comportamentos, notoriamente indiciários de um estado de demência, merece toda a pertinência e relevância.
30 – A falta de discernimento do testador não poderia ser considerada por afastada através do depoimento da Sra. Notária, através do qual se comprovou que no momento da prática dos atos a mesma, com as questões colocadas, não tinha como aferir o discernimento do testador e muito menos a sua convicção e percepção quanto ao conteúdo, alcance e consequências do ato de disposição que estava a levar a cabo.
31 - Atenta a prova da matéria de facto constata-se numerosa prova directa (relatório médico e relatório da psicóloga) e indirecta (presunções, indícios, sinais, suspeitas e até adminículos) cujos elementos poderiam, objectiva e eficazmente, comprovar a falta de discernimento de quem já não existe mais, fisicamente, no plano dos factos na pretendida investigação sobre a nulidade/anulidade do acto de última vontade.
32 - Dúvidas não se suscitam que existia uma alegada falta, e comprovada, de capacidade (estava privado ou perturbado das suas faculdades psíquicas) do testador no momento em que lavrou os testamentos pelo que existe um vício que levaria à nulidade dos testamentos invocados na petição, ao abrigo do disposto no artº 2199º do CC..
33 - Diga-se que o julgador, dentro do princípio da livre apreciação da prova (previsto no artigo 607º, nº 5 do CPC), deve valorar e ponderar, sem limitação, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, a tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre e própria convicção acerca de cada facto controvertido.
34 - Neste percurso lógico a apreciação daquelas provas testemunhais, devidamente conjugadas e contextualizadas, permitiu perceber que no plano clinico e científico ficou comprovada a doença de degenerescência evolutiva das condições de percepção, compreensão, raciocínio, gestão de pensamento abstracto e concreto e discernimento das opções comportamentais básicas e factores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, que mais tarde se vieram a comprovar com base no relatório médico que legitimou a procedência da ação de interdição.
35 - O Meritíssimo Juiz deveria, sem limitação, valorar e ponderar todos os elementos probatórios, recorrendo às regras daa experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, para obter uma conclusão diferente daquele que retirou dos presentes autos.
36 - Dúvidas não restam ao apelante, que por meio dos depoimentos das supra citadas testemunhas, deveria ter ficado comprovado que em data anterior ao da realização dos testamentos colocados em crise na presente ação, o testador já se encontrava demente e totalmente incapaz de se reger e de reger os seus bens.
37 - O Tribunal não estava privado de solicitar outros meios de prova, não ficando obrigado a cingir-se, apenas à apreciação dos meios probatórios e provas levadas pelas partes ao processo para prova dos factos por si alegados.
38 - Em nome do princípio da descoberta da verdade material e de forma a alcançar uma decisão justa e equilibrada do litígio, deve o Tribunal para formação da sua convicção usar de todos os meios ao seu alcance, mesmo que obtidos oficiosamente, de forma a sopletar quaisquer dúvidas ou incertezas.
39 - No que ao caso em concreto diz respeito, forçoso é considerar que o Tribunal tinha ao seu alcance outros meios complementares de prova, nomeadamente o histórico clínico do falecido testador, que oficiosamente poderia requerer e que lhe permitia aferir, sem margem para dúvidas, desde que data é que o testador apresentou a suscitada demência.
40 - Diga-se que a referida prova documental – histórico clínico – revestia natureza essencial para a decisão da causa, e mesmo que não apresentada pelas partes, dada a sua essencialidade, poderia e deveria ter sido suscitada pelo Tribunal para formação da sua decisão.
41 - Na verdade, ainda que nenhuma das partes tenha indicado aquele meio probatório, podia e devia o Tribunal, por sua exclusiva iniciativa e face ao narrado pelas testemunhas supra citadas, determinar a junção aos autos de todo o histórico clínico do testador.
42 - Determina, com efeito, o artigo 411º do CPC, que consagra o princípio do inquisitório, que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, toas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
43 - Ao abrigo e em nome do apuramento da verdade e à justa composição do litígio, o Tribunal tem o poder/dever de oficiosamente promover as diligências que, pese embora não requeridas, se revelem necessárias ao prosseguimento daquele fim.
44 - Na verdade, não é só um poder, mas sim também um dever do julgador procurar a verdade material, em vez de privilegiar os aspectos formais, que não assumem verdadeira importância perante o objectivo de boa aplicação do direito substantivo ao caso concreto.
45 - Note-se que quer a doutrina, quer a jurisprudência mais recente vão no sentido de ser privilegiado o princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo, ao encontro do que se tem denotado ao longo das reformas operadas ao processo civil, onde cada vez mais se têm vindo a reforçar os poderes de direcção do processo pelo juiz, conferindo-se-lhe o poder-dever de adotar uma posição mais interventora no processo e funcionalmente dirigida à plena realização do fim deste.
46 - E diga-se que através do depoimento da testemunha HH é claro que desde há doze anos atrás o falecido já apresentava comportamentos reveladores de demência.
47 - Ora estes depoimentos, só por si e ainda mais corroborados com os restantes depoimentos já aqui citados, eram suficientes para suscitar no julgador a convicção de que o testador apresentava comportamentos indicativos de uma alteração do seu estado de saúde psíquica/sanidade mental.
48 - E se dúvidas restassem ao Tribunal quanto à data em que tais comportamentos surgiram (o que refutamos com base na localização temporal das testemunhas que, pelos menos remonta aos anos de 2008/2009), podia e devia o Juiz, ao abrigo do princípio do inquisitório, requerer o já aqui mencionado histórico clínico.
49 - Por conseguinte, não podendo proceder o argumento de que seria ao autor que incumbia fazer prova da data do início da demência/insanidade mental do testador falecido, uma vez que na falta de tal prova, poderia o julgador lançar mão, por força do princípio do inquisitório, de outros meios probatórios, nomeadamente, e como atrás já se referiu, através do historial clínico do falecido.
50 - E embora se respeite e aceite o princípio do dispositivo quanto à matéria da alegação dos factos, é aceite uma linha de orientação diferente quanto à prova desses mesmos factos, quando se atribui ao juiz a possibilidade de ordenar todas as diligências que considere necessárias para a descoberta da verdade.
51 - Pondere-se que a lei atribui importantes poderes instrutórios ao Tribunal – que podem recair sobre os factos essenciais, complementares e instrumentais – justificados pela “necessidade de evitar que, pela falta de prova, a decisão da causa seja imposta pelo non liquet e não pela realidade das coisas averiguada em juízo, Nenhum facto relevante para a decisão da causa deve ficar por esclarecer.
52 - Não se compreendendo, nem podendo aceitar as conclusões do tribunal “ad quo” plasmadas na Douta Sentença, cuja decisão apenas e praticamente assentou nos documentos (testamentos) e no depoimento da Notária em detrimento de toda a restante prova que deveria ser conjugada e contextualizada bem como ordenar outras diligências, oficiosamente, que se considerassem pertinentes, essências para descoberta da verdade cujas exigências dependeriam da incumbência do juiz.
53 - O Meritíssimo Juiz, em nome da livre apreciação da prova, não valorizou os concretos meios probatórios (testemunhas) constantes do processo, nem chamou à demanda, em nome do princípio do inquisitório, outros elementos probatórios (mais concretamente documentos – histórico clínico do testador) que nos parecem essenciais e determinantes que permitiam auxiliar a descoberta da verdade material e, desse modo, impedir uma tomada de decisão absolutamente infundada.
54 - A fundamentação da douta sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal de 1ª Instância, não teve, assim, em consideração o previsto nos artigos 411º, 413º e 607, nº 5 do CPC.
55 - Tendo em consideração que não foi produzida prova essencial para a descoberta da verdade material, no caso em concreto não foi analisado, nem valorado o histórico clínico do testador, impõe-se que seja ordenada a produção de tal meio de prova (por documentos – relatório do histórico clinico), nos termos do previsto no artigo 662º, nº 2, alínea b) do CPC.
56 - Desta forma, violou-se a letra e o espírito dos artigos 5º, nº 2 al. a), b) e c), 411º, 413º, 436º e 607, nº 5 do CPC; bem como ass normas previstas nos artigos 257º, 342º, 396º e 2199º do CC.
57 - E, por isso a sentença recorrida deve ser revogada e a acção ser julgada procedente por provada. Nestes termos, e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, consequentemente, devendo prolatar-se Acórdão que revogue a decisão proferida no despacho final, julgando a acção procedente nos termos peticionados pelo autor. E, ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA
3. Os RR contra-alegaram, concluindo que:
1 - O presente recurso tem um propósito meramente dilatório, atendendo à evidente falta de fundamentos das alegações apresentadas face à sentença proferida e prova constante dos autos.
2 - O que ressalta à vista é que o autor recorre, não por não entender ou discordar do julgador (porque na realidade não existe de facto atendendo à prova, outra decisão que fosse de esperar) mas sim porque se recusa a aceitar a vontade que o seu falecido irmão deixou plasmada nos testamentos em causa nos autos e que, por ser legítima e válida essa vontade, levou a que o autor nada herdasse do seu falecido irmão.
3 - O autor entende a douta decisão e as razões de facto e de direito que suportam essa mesma decisão; por certo que, depois dos autos, outra não esperaria, atendendo a toda a prova que dos autos consta; no entanto só recorrendo da douta sentença poderia o autor continuar a alimentar o seu inconformismo pelas decisões do seu irmão, que livremente e de forma consciente, decidiu deixar expressas nos testamentos que outorgou.
4 - A sentença recorrida aplica devidamente o direito aos factos e faz uma apreciação correta da prova produzida nos autos e em julgamento, tendo por isso concluído, como não poderia deixar de fazer, pela total improcedência do pedido.
5 - É clara e inequívoca quanto à identificação da prova que valorou e que não merece qualquer reparo, para decidir pela improcedência do pedido.
6 - O fundamento do autor para a anulabilidade que pretendia fosse declarada era a da incapacidade do testador de entender a sua declaração ou que não tivesse este o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, nos termos do disposto no artigo 2199.º do CC.
7 - O ónus da prova dos fundamentos que permitissem a declaração de anulabilidade dos testamentos recaia na totalidade sobre o autor.
8 - Durante os autos o MM Juiz proporcionou ao autor toda a produção de prova que por este foi sendo requerida ao longo dos autos, deferindo todos os pedidos por este solicitados no que à produção de prova diz respeito.
9 - Essa produção de prova, a que foi sendo requerida pelo próprio autor, não só não provou a verificação dos fundamentos necessários para a anulabilidade impostos pelo normativo 2199.º do CC, como veio deixar evidente o contrário: de facto à data dos testamentos em causa o testador estava de facto capaz e livre no exercício da sua vontade para cristalizar em testamento a sua decisão sobre quem deveria receber e o quê dos seus bens, após a sua morte.
10- Nesse sentido e sem qualquer possibilidade de equívocos valem, entre outros meios de prova:
1 - Os próprios testamentos (documentos com força probatória plena);
2 – O depoimento da Sra. Notária que redigiu os testamentos, confirmando na integra o que neles consta e deixando bem claro que, como em todos os testamentos que faz, também nos que estão em causa nos autos se assegura se o testador está capacitado (tendo nomeadamente referido várias perguntas que costuma fazer para disso ficar certa) e livre no exercício da sua vontade, tendo também dito que se alguma dúvida tivesse sobre o não preenchimento desses requisitos, nunca os testamentos teriam sido celebrados.
3 – A prova pericial realizada nos autos, a pedido do autor, pelo IML, com base em todos os relatórios clínicos e episódios de doença ou consultas existentes nos registos do serviço nacional de saúde, tendo ainda em consideração a toma de medicação.
11 – As respostas dadas aos quesitos pelo Sr. Perito são inequívocas:
Quesito 1: O Processo que levou à verificação da anomalia psíquica na data constante da sentença de interdição de EE (20/03/2012) é do ponto de vista médico um longo processo que se vai arrastando e agravando ao longo dos anos anteriores podendo fixar-se pelo menos que durou desde o início de 2010?
Resposta: Não.
Quesito 2 Os factos alegados na petição inicial a provarem-se, são idóneos a estabelecer a incapacidade de EE para entender o sentido da declaração constante dos testamentos de 29/01/2010 e 23/02/2011 afetando o libre exercício da sua vontade? Resposta: Não.
Quesito 3: O facto de, em breves anos, EE, ter outorgado 10 testamentos, é revelador de insegurança e incapacidade de entendimento e determinação da vontade, refletindo-se quando outorgou os 2 últimos testamentos referidos? Resposta: Não.
12 - Cada uma das respostas dadas a esses quesitos foi devidamente fundamentada pelo senhor perito Prof. Doutor II, perito do Instituto Nacional de Medicina Legal e destacamos parte da fundamentação do Sr. Perito dada ao quesito 2: “Por essa razão, os factos alegados na P.I., a provarem-se, não são suficientes nem são idóneos para estabelecer a incapacidade de EE no que respeita ao seu entendimento sobre o sentido das declarações constantes dos testamentos de 29/01/2010 e 23/02/2011 e ao livre exercício da sua vontade”.
13 - O que o Sr. Perito diz de forma inequívoca é que, ainda que o autor tivesse feito prova da factualidade que alegou na PI (que não fez) com vista a obter a anulação dos testamentos, mesmo provados esses factos, tal não permitiria concluir pela incapacidade do EE, uma vez que essa factualidade não é sequer idónea para estabelecer a sua incapacidade no que respeita ao seu entendimento sobre o sentido das declarações constantes nos testamentos.
14 - O autor despoletou também, em vida do seu falecido irmão, processo de interdição do (no qual os réus nem sequer foram partes ou intervieram fosse de que forma fosse, pelo que não puderam contribuir nesses autos para a prolação de qualquer decisão que lhes pudesse ser mais favorável), que correu termos com o n.º 361/15...., cuja sentença se encontra nos autos. O autor aí requerente promoveu o processo nos termos que quis, certamente já com o intuito de procurar fixar a incapacidade do seu irmão o mais cedo possível, por forma a poder depois vir a conseguir a eventual anulabilidade de alguma disposição testamentária realizada por este.
15 - Essa ação foi intentada pelo autor em 19/01/2015, conheceu sentença em 6/06/2016.
16 - Mesmo tendo intentado a ação apenas em janeiro de 2015, o autor conseguiu que nessa ação, com base nos elementos que o próprio promoveu naqueles autos, fosse fixada a incapacidade do seu irmão em 20/03/2012. De que forma conseguiu tal feito, visto que só em 2015 é que interpôs o processo de interdição, os réus desconhecem, mas também para o que aqui importa nestes autos, nenhuma diferença faz, visto que os testamentos em causa nos autos foram outorgados 9/01/2010 e 23/02/2012.
17 - Se nem no processo de interdição a que se fez referência o autor conseguiu fixar a incapacidade sequer próxima da data em que foram celebrados os testamentos, sem qualquer interferência ou contradição de terceiros sobre tudo aquilo que entendeu fazer ou sobre a prova que entendeu produzir e levar à queles autos para o efeito, como poderia esperar que nestes autos isso viesse a acontecer?!
18 - Nenhuma prova existe nos autos que pudesse permitir ao MM Juiz julgar procedente o pedido, como de resto está bem evidente não obstante o esforço do Ilustre mandatário do autor em tentar encontrar algo a que se pudesse “agarrar” para que, pelo menos, lhe permitisse alegar, pelo que não espanta a evidente falta de fundamento das alegações apresentadas nos autos pelo autor.
19 - Alegações que mais não são do que o retrato do desespero inconformado do autor em relação às disposições testamentárias que o seu irmão, de forma consciente e livre, decidiu fazer em vida, não lhe tendo calhado nada em sorte!
20 - Por conseguinte, e sem necessidade de mais delongas ou outras considerações - pois melhor do que o que aqui se deixa em defesa da douta decisão recorrida, falam os próprios autos e todos os elementos probatórios que neles constam e bem assim a brilhante e imaculada fundamentação da douta decisão proferida – deverá o presente recurso ser julgado improcedente por provado, devendo ainda o autor ser exemplarmente condenado em custas processuais pela evidente falta de fundamento das alegações apresentadas perante o que é a prova dos autos.
21 - Consubstanciando o presente recurso um expediente meramente dilatório, devendo o autor ser sancionado por tal procedimento.
TERMOS EM QUE, julgando totalmente improcedente o recurso interposto pelo recorrente e confirmando a sentença recorrida, V/Exas. Farão V.Exas. justiça.


II - Factos Provados


petição

1 O autor, nascido em .../.../1966, é filho de JJ e de KK, sendo seus avós paternos AA e LL e avós maternos MM e NN.
2 É sobrinho de EE, falecido em .../.../2017.
3 O qual era filho de AA e LL, sendo assim irmão do pai do autor.
4 O pai do referido EE e o pai do autor, eram ambos filhos de AA e de LL.
5 O falecido EE, faleceu no estado de solteiro, sem ascendentes nem descendentes.
6 Tinha 5 irmãos: - OO; PP; QQ; JJ e RR.
7 O autor é filho de JJ e KK, já falecidos respetivamente em .../.../1998 e .../.../2004 e que deixaram a representá-los 5 filhos, um dos quais é o autor.
8 Em 29/01/2010, EE, outorgou no Cartório notarial ..., um testamento em que instituiu legatários de vários prédios os aqui réus.
9 Em 23/02/2011, no Cartório notarial ..., outorgou noutro testamento deixando vários legados em favor dos réus, instituindo-os seus únicos e universais herdeiros e revogando testamentos anteriores, nomeadamente o celebrado em 29/01/2010.
13 Em momento que não foi possível fixar com rigor, nem com referência a ambos os testamentos, o tio do autor viveu sozinho.
17 O autor era sobrinho do falecido e, entre ambos, havia relacionamento cordial. 22 Foi internado na Unidade de Cuidados Continuados ..., onde entrou em .../.../2014.
24 Aquando do internamento, desconhecia inteiramente as suas obrigações fiscais.
25 Aquando do internamento, era incapaz de tomar decisões sobre a administração dos seus bens, nomeadamente para atos de conservação.
26 Aquando do internamento, mantinha uma alteração da compreensão oral e escrita.
27 Aquando do internamento, por vezes apresentava ideias delirantes.
28 Aquando do internamento, por vezes oferecia riscos de agressões a terceiros. 29 Aquando do internamento, necessitava de medicação sedativa e supervisão do pessoal auxiliar de enfermagem e de cuidados médicos.
30 Quando já se encontrava na Unidade de Cuidados Continuados ..., foi prestada a informação médica de que se junta cópia e aqui se dá por reproduzida.
32 O autor sempre prestou ao seu tio EE, todos os cuidados e amparo que o mesmo necessitava.
33 O autor promoveu o internamento do mesmo na Unidade de Cuidados Continuados na Santa Casa da Misericórdia ....
34 Para acautelar o seu património, o autor interpôs no Tribunal Judicial ... em 19/01/2015, uma ação de interdição
35 Ação essa a que coube o nº 361/15.... e que foi julgada procedente, por sentença transitada de 6/06/2016.
36 Sendo na mesma nomeado tutor do interdito o autor, seu sobrinho AA.
37 Nessa sentença a Srª Juíza deu como provado que o EE sofria de demência vascular não especificada.
38 Nessa sentença foi fixada a data da incapacidade em 20/03/2012.
40 O autor dos testamentos, à data em que os Outorgou, tinha 81 e 82 anos.
46 O falecido não tinha qualquer parentesco com os réus.

contestação

5 O médico que escreve a “informação médica” que consta do documento n.º 5, redigiu essa informação em 10/12/2014.
6 A data da observação médica é posterior ao internamento do agora falecido EE na Unidade de Cuidados Continuados ....
9 Os réus não foram partes ou sequer intervenientes na acção de interdição.
13 À data da outorga dos testamentos em causa o referido EE tinha noção do que estava a fazer e fê-lo porque quis.
24 O falecido EE foi responsável por cuidar da sua irmã RR, sua vizinha, após a mesma ter sido submetida a uma cirurgia em ....
25 Desde então esta ficou dependente de terceiros e coube ao falecido EE cuidar da mesma, era este quem geria a sua reforma, tratava das compras e era o responsável e representava-a no serviço de apoio domiciliário da Associação ..., sendo este quem pagava à referida instituição os custos desses serviços.
*
Factos não provados:

petição

10 Quando outorgou ambos os testamentos, o referido EE, padecia de anomalia psíquica que, o impedia de ter consciência e determinação sobre os seus atos e sobre o conteúdo do referido testamento.
11 Estava afetado nas suas faculdades mentais de modo a não ter a capacidade de avaliar os seus atos e determinar a sua livre vontade.
12 Isso acontecia desde alguns anos antes da celebração dos referidos testamentos.
13 Desde há vários anos antes da outorga dos testamentos que o tio do autor, vivia sozinho, sendo uma irmã que tratava dele, que o lavava, que lhe tratava da roupa e que lhe fazia a comida, já que o mesmo se encontrava incapaz de o fazer.
(…)
16 Desde há anos antes do penúltimo testamento, já distribuía dinheiro a qualquer pessoa.
(…)
19 Desde há vários anos antes da outorga dos testamentos, despia-se à vista das pessoas, chegando a andar na rua nu da cintura para baixo.
(…)
23 Desde há 5 ou 6 anos antes, vinha tendo alterações do seu estado mental e incapacidade de qualquer juízo critico.
(…)
27 Há 5 ou 6 anos antes, por vezes apresentava ideias delirantes.
(…)
34 A acção de interdição foi instaurada dada a total incapacidade de seu tio EE, em reger a sua pessoa e bens, e para acautelar a subsistência do mesmo.
(…)
40 O autor dos testamentos, à data em que os outorgou, encontrava-se totalmente incapacitado de entender o sentido das declarações constantes do testamento que outorgava e já não tendo o livre exercício da sua vontade.
41 Nos 10 anos anteriores, o falecido EE já havia outorgado em 9 ou 10 testamentos, alterando constantemente as suas disposições testamentárias.
(…)
43 Revelando não ter já a capacidade para determinar a sua verdadeira vontade. (…)

contestação

(…)
19 O autor nunca teve uma relação de proximidade com o falecido EE.
20 Até este ser internado na Unidade de Cuidados Continuados ... nunca procurou saber do seu tio.
21 Raramente o visitava, ou com ele partilhava refeições, nunca o acompanhou a consultas médicas, não existindo sequer qualquer relação de afeto ou carinho entre ambos.
(…)
23 Nem com RR, também tia do autor, este mantinha uma relação de afeto.
27 Não era nem nunca foi o autor uma visita assídua dos seus agora falecidos tios, nem nunca com estes demonstrou grandes preocupações em prestar cuidados ou sequer querer saber se os mesmos viviam condignamente (uma vez que não tiveram filhos e viviam sozinhos).


III – Do Direito


1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.
Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.
- Alteração da matéria de facto.
- Anulação dos testamentos.

2. O A. impugna a decisão da matéria de facto, relativamente aos factos provados 13, 24 e 25, da contestação, e factos não provados 10 a 13, 16, 19, 23, 27, 34, 40, 41, 43 da P.I. e 19 a 21, 23 e 27 da contestação, pelas razões e meios probatórios que indica (cfr. conclusões de recurso 4 – a 55 -).
Na aludida decisão foi exarada a seguinte motivação:
São especificamente os seguintes os motivos que levaram à prova dos factos aqui descritos.
Primeiramente, os relacionamentos familiares entre o autor e o falecido, o teor dos testamentos, os termos e actos do processo de interdição, todos foram factos que se dão como provados por virtude do teor dos documentos autênticos a esse mister juntos, e que, aliás, constituem matéria que de os sujeitos processuais não discordam.
De seguida, a doença, a circunstância de o estado de saúde do falecido estar, pelo menos desde o momento da sua institucionalização, fortemente deteriorado, são factos que relevam de todos quantos os presenciaram – com especial destaque para os profissionais qualificados, que observaram o testador com a qualificação de que dispõem para o efeito – e que atestaram por escrito o seu estado de saúde e ou prestaram depoimentos inatacáveis. Médico, e com a experiência nestas questões que lhe advém de ser clínico da Unidade de Saúde ... – instituição onde estes casos não são, infelizmente, raros – o Dr. SS atesta que o falecido apresentava, em .../.../2014, “alteração do seu estado mental, sendo incapaz de juízo crítico, incapaz de autocuidados e incapaz de gestão de quaisquer bens”; que o mesmo “possui alteração da compreensão oral e escrita, não se encontrando capaz de tomar decisões de forma ponderada e senso crítico”; e ainda que “apresenta ideias delirantes, com risco de auto-agressões e agressões a terceiros, necessitando de medicação sedativa e supervisão”. Psicóloga da Unidade de Cuidados Continuados ..., a Dra. TT observou-o à chegada à Unidade, vindo de outra instituição, em ..., e logo atestou que se encontrava, nas quatro vertentes – espaço, tempo, auto e alopsiquicamente – “desorientado”, que não sabe o dia, o ano, onde estava, apenas que não estava na casa dele. A “memória de curto prazo também estava afectada”. Havia três pessoas, o Sr. AA, a UU e o VV, sim, ele conhecia, e a depoente recorda que era “afectuosa” a relação do paciente com o autor. Era o AA quem tratava de tudo e pagava à instituição, era com ele que contactavam sempre que precisavam, “era a nossa figura de referência”. A dada altura, o falecido “começou a mostrar agitação psico-motora”, provavelmente por estar permanentemente com pessoas e num espaço que não conhecia, e foi necessário um “ajuste da medicação, mas não foi sedado”. A incapacidade foi fixada em Março de 2012 e a técnica, com referência a antes dessa data, “não consigo, com base naquilo que privei com o Sr. EE, não posso garantir”. Por seu turno, WW, assistente social da mesma instituição, sabe que o tio do autor ali deu entrada por “deterioração cognitiva e perturbações de memória”, e que o autor, pessoa “bastante preocupada com a situação” do falecido, o visitava frequentemente, havendo entre ambos boa relação. Ele não poderia ter alta para o domicílio, por falta de condições pessoais para cuidar de si mesmo. Estas as pessoas com grau de saber apto para que o autor pudesse apresentar no sentido de lhe ser reconhecida razão ao pretender fixar a incapacidade do paciente aquando dos testamentos; e que, claramente, não o puderam fazer. De seguida, as opiniões de quem pode, eventualmente, conhecer, mas que não tem mais do que percepções empíricas, dificilmente podendo ser suficientes para alterar um diagnóstico médico especializado e uma sentença que, nele apoiada, se estabilizou na ordem jurídica. Têm razão os réus ao referirem que não foram parte no processo de interdição. Mesmo assim – matéria que aqui apenas menciono perfunctoriamente – é indiscutível que, por sentença transitada, foi fixada uma data para a incapacidade, para mais, uma data diferente da do exame médico, cerca de três anos anterior, pelo que, necessariamente, a questão foi ponderada. Logo, podem os réus, aqui, tentar discuti-la, argumentando, desde logo, com questões formais e processuais, mormente, que não foram parte no processo, mas a mesma sentença – que, ademais, prescindiu destes réus mas, repito, se apoiou em referências especializadas – sempre exercerá, mesmo para terceiros, a “autoridade de caso julgado” que dela emana.
Mas falemos dos testamentos, admitindo que se queira e possa pugnar por uma diferente data de incapacidade, no mínimo, contemporânea dos referidos actos dispositivos. Num primeiro momento, ambos os actos estão documentados, e não por um documento qualquer; trata-se, nos termos do disposto no art.º 363º do código civil. E, por força do disposto no art.º 371º nº 1 do mesmo código, “os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora“. Por este diapasão, aliás, tem afinado a jurisprudência, pois que, e por exemplo, já entendeu a Relação de Lisboa – e em situação, de facto, bem mais premente do que a presente – que “a fé pública de que goza um notário e o testamento público por este lavrado não é afastada apenas porque duas testemunhas dizem o contrário do que lá consta(1Acórdão de 28 de Junho de 2018, …, no processo 733/13.1TbCsc). E não se trata de caso único, ou de decisão com contornos ou características peculiares: “O documento autêntico que incorpora o testamento dos autos, ao qual não foi oposta (muito menos, provada) falsidade, faz prova plena dos factos que refere como praticados pela notária, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções desta; o simples facto de a notária, tendo ouvido as declarações da testadora e com ela conversado, não se ter apercebido de qualquer incapacidade da mesma é primeira e qualificada garantia de que a testadora gozava, quando testou, de capacidade de entender, de querer e de adequadamente manifestar a sua vontade(2 Acórdão de 22 de Maio de 2018, …, no processo 2414/15.2T8Csc). Assim, dois tipos de realidades se deverão dar, à partida, como provadas, por força dos documentos em apreço: primeira, que o falecido tio do autor compareceu perante a Notária, e que então proferiu as declarações documentadas; segunda, que o mesmo, aquando da realização desses actos, estava psiquicamente capaz. Isto pelas razões que passo a avançar. De harmonia com o disposto na alínea c) do nº 1 do art.º 173º do código do notariado, “o notário deve recusar a prática do acto que lhe seja requisitado (…) se tiver dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos intervenientes”; ou, no mínimo, se a incapacidade do declarante não for ostensiva, sempre o notário poderá avançar, agora por via do nº 2 do referido art.º 173º, “se no acto intervierem dois peritos médicos que garantam a sanidade mental” do interveniente. Quer isto dizer que a aferição da capacidade do declarante, em testamento, é sempre alvo da percepção do notário; e, se ela avançou para a consumação do acto, mesmo sem necessidade de intervenção de especialistas, foi porque, por duas vezes, se assegurou da sanidade mental do testador – facto este que, assim, cabe entro da força probatória dos documentos em apreço. Num segundo momento, relevante se tornou analisar os elementos de prova fornecidos pelo autor para abalar – no caso de se entender possível – esta percepção do notário.
Oficial de justiça e, também ela, sobrinha do falecido, XX afirma que “nos últimos anos de vida dele, já não tinha o discurso muito coerente”. Internado na ..., não reconheceu a depoente quando esta, por uma vez, o visitou. Mais referiu que “enquanto esteve na casa dele, era ele que tratava das coisas”, antes era uma irmã que faleceu antes dele. Questionada sobre o que, manifestamente, não pode saber – desde quando está incapacitado, se foi um processo evolutivo ou se ocorreu subitamente, vai respondendo em função das perguntas, denotando que não tem quaisquer certezas: “sei lá, talvez, isso foi-se arrastando”, ou “sei lá, um ano, talvez”, e outra vez “talvez”. HH trabalha no supermercado do grupo ... em ... e opina sobre o que lhe perguntam, mesmo depois de ter dito que as suas relações com o falecido, que era vizinho do avô da testemunha, “era bom dia boa tarde, a gente falava do tempo, dos animais e nada mais do que isso”. Mesmo assim, avançou que “havia algumas situações que eu notava que ele já não estava bom”, porque dizia que “precisava de falar com pessoas que já tinham morrido”, e dizia que “se deitava da janela abaixo”. Andava na rua “com pouca roupa e a chover”. O depoente está nesta região há uma dúzia de anos, e não sabe quanto anos depois de cá estar se passaram as cenas que narra. Assistente operacional no Agrupamento de Escolas local, YY, esposa do anterior depoente, e também ela diz que “aquilo era um contacto de bom dia, boa tarde, boa noite”. Que “sim, uma por outra vez” ouviu que ele se queria deitar da janela. Esta testemunha reafirma que vivia pouco na zona, era “se me cruzava com ele e quando me cruzava”. A melhor capacidade de compreensão das coisas parece ser a apresentada pela testemunha ZZ, que “fez domicílios” para a ... de 2008 a 2013 e, nessa tarefa, conheceu o falecido, porque dava apoio à irmã. Refere que “via-se que o sr. não andava bem”, e que “ele dava dinheiro assim à toa”. Ajudada pelas perguntas, acha que ele “usava” a comida dela. Esclareceu que uma ocasião, o falecido deu 40 euros à depoente, que os não aceitou, porque diz que não lhe eram devidos, mas que entendeu que o tio do autor o fez “por agradecimento para cuidar dela”, da sua irmã, o que a não impede de concluir que “da cabeça dele eu acho que ele não andava bem”.
Na última sessão de audiência, e ainda em prol da pretensão do autor, foi inquirida UU, prima do autor, e que, objectivamente – e pese embora o valor monetário aqui em disputa não ser absolutamente relevante – sempre seria herdeira do falecido, no caso de este se ter finado intestado. Todo o seu depoimento foi visivelmente orientado por ter opinião no sentido de que o seu primo deveria ter sido o beneficiado, desde as opiniões que manifestou ao tom perfeitamente distinto com que respondeu a cada um dos mandatários, pese embora o respeito que, por igual, ambos lhe tributaram. De concreto, apenas as considerações vagas – e pouco fundamentadas – que foram transmitidas pelos anteriores depoentes. Referiu que “ele sempre teve alguns problemitas”, que não foi capaz de concretizar, unicamente que “tipo, não era bem igual aos outros”. E “sim, tinha alturas que sim”, quando questionada sobre se confundia as pessoas. Em seu entender, os “problemitas” do falecido aumentaram aquando do decesso da irmã com quem convivia: “ela teve um neurisma em 2009, e ele ficou assim mais perturbado”. Concretizando, às vezes ele “não queria abrir a porta, não queria que ninguém visse a irmã”. Um senhor, que identificou, disse à depoente que ele “algumas vezes apareceu nu na rua”. Testamentos? Opina que “era conforme o vento”. Referindo-se aos aqui réus, acha que eles “sentiram alguma coisita e actuaram”, esclarecendo que se aperceberam da fragilidade do falecido e o industriaram, pois que “já no tempo dos meus avós as duas famílias não sedavam bem”. No mais, “sim, já antes”, e ”não, não”, respondendo a perguntas que contêm em si mesmas a resposta. “ele conhecer o dinheiro, conhecia, mas começou a esbanjar”. Uma vez chamaram-na porque o tio estava a sangrar da cabeça, e aponta para o nariz, o que “devia já ser do problema que ele tinha”. E finaliza a sua prestação com o comentário elucidativo da sua opinião: “não é assim que se faz, acho eu”.
Ou seja, e recapitulando, penso que está já claro os motivos pelos quais nada de relevante foi dado como provado quanto ao estado de saúde psíquica do testador aquando dos referidos actos aqui em apreço.
Pese embora se me afigurasse desnecessário, foi produzida prova, por iniciativa dos réus, quanto à sanidade mental do testador; que, ao que alegam – e alegar, no processo civil português, é prerrogativa que raramente acarreta responsabilidade para quem o faz – se manteve em perfeitas condições, mesmo depois da data que, com apoio em peritos e com a força de sentença transitada, foi fixada no processo especial de interdição. E que prova? Fundamentalmente, nenhuma, pois que, prudentemente, foi a mesma quase integralmente prescindida.
De relevante – admitindo essa relevância – foi inquirida a Notária. A Dra. FF, que exerce em ... há 15 anos, e que só por motivos profissionais contactou com o falecido, recorda – e disse-o por três vezes, tantas quantas as que foi questionada – que o testador efectuou, no seu Cartório, mais do que um acto dispositivo, mas não recorda quantos. Esclareceu que se recorda, “lembro-me da figura dele, digamos assim”. Bem como que efectuou o procedimento normal de todos os testamentos, “para ver se estão psicologicamente bem, mentalmente bem”, esclarecendo que “isso eu faço em todos os actos”. Depoimento que – obviamente – não deu a mínima indicação de que pudessem, facilmente, ter sido ludibriada pela prestação de uma pessoa mentalmente incapaz.
Assim, o que importa considerar é exactamente o contrário: conforme atestou a Notária – profissional qualificada para o efeito, experiente e imparcial – o falecido, de ambas as vezes em que se apresentou a testar, estava mentalmente são.”.
2.1. Recorde-se que a norma que regula a impugnação da decisão da matéria de facto (art. 640º do NCPC) estatui que tem de observar-se os ditames fixados no seu nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, sob pena de rejeição.
Ou seja, de tal dispositivo verifica-se que a lei exige 5 requisitos:
i) Que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
ii) Que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa;
iii) Que o recorrente obrigatoriamente especifique o sentido concreto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado a tais pontos;
iv) E por que razão assim seria, com análise crítica criteriosa;
v) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes.
Ora, a aludida impugnação, relativamente aos apontados factos provados não pode proceder, por desrespeito do terceiro requisito processual atrás apontado.
Na verdade, impunha-se que o recorrente tomasse posição concreta sobre qual a decisão de facto a proferir em relação a cada facto, como resulta do acima mencionado art. 640º, nº 1, c). Portanto, o apelante teria que manifestar qual a resposta concreta a dar a tais factos, designadamente se os factos deviam ser dados por não provados por inteiro, ou se apenas provados parcialmente ou limitadamente, o que não fez em lado algum (nem no corpo das alegações, nem nas conclusões de recurso). Ou seja, não especificou quais as respostas que no seu entender se impunha fossem dadas aos indicados factos.
Nem se cogitando como possível ou admissível que seja o tribunal ad quem a fazê-lo, porque se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, compreende-se que a parte, além de indicar os concretos pontos de facto sobre que recaiu o alegado erro de julgamento, tenha de indicar qual o sentido correcto da resposta, que na óptica do apelante, se impõe seja dada a tais pontos de facto.
No caso, vê-se que o recorrente não refere qual o sentido da decisão a proferir relativamente a cada um desses pontos de facto, isto é, se deviam ser considerados totalmente não provados, ou provados parcialmente ou com limitações (restritivas ou explicativas), e neste caso quais. Em suma, devia ter especificado ou indicado dos referidos factos, quais em concreto considerava não provados na totalidade ou se provados parcialmente, restritiva ou explicativamente, explicitando-o claramente.
Na realidade, o ónus imposto a qualquer recorrente na aludida c) do nº 1 do art. 640º do NCPC não se satisfaz, por exemplo, com a simples afirmação de que: a decisão devia ser diversa; ou que houve uma errada valoração da matéria de facto; ou que esta está incorrectamente julgada (por ex., por estar em contradição ou divergência com os elementos probatórios produzidos); ou que não se vislumbra em que provas produzidas se baseou o tribunal a quo para dar como provados tais factos; ou que eles não decorrem da motivação apresentada. Que foi a postura adoptada pelo recorrente, por exemplo nas conclusões de recurso 11 -, 15-, 16 -, e 53 - (e semelhantemente no corpo das alegações). Antes se exigindo ao apelante que afirme e especifique qual a resposta que havia de ser dada em concreto a cada um dos diversos pontos da matéria de facto controvertida, pois só desta forma se coloca ao tribunal de recurso uma concreta e objectiva questão para apreciar, sendo que só sobre estas (a não se lhe impor qualquer situação excepcional de conhecimento oficioso, que não é o caso), se poderá pronunciar.
Aliás, a não se entender assim, haver-se-ia de concluir, por absurdo, que estava cometido ao tribunal de recurso averiguar as diversas soluções possíveis (ao nível da decisão da matéria de facto), e depois responder, fosse tal resposta favorável, menos favorável, ou prejudicial ao recorrente, impedindo-se, desta forma, que o mesmo pudesse concluir pela existência de uma das situações possíveis (vide Ac. da Rel. Porto, de 16.5.2005, Proc.0550879, em www.dgsi.pt). Inclusive esta interpretação que já decorria pacificamente da interpretação do art. 685º-B, nº 1, b), do CPC, é hoje ponto assente, por expressamente ter sido previsto no mencionado art. 640º, nº 1, c).
Em resumo e conclusão, pelas apontadas e explicitadas razões é de rejeitar, a impugnação da matéria de facto apresentada pela recorrente, relativamente aos apontados factos provados 13, 24 e 25 (vide, também, o Ac. do STJ de 3.11.2020, Proc.294/08.3TBTND, em www.dgsi.pt).
2.2. Relativamente aos factos não provados 19 a 21, 23 e 27 da contestação, o recorrente indicou que devem considerar-se como provados. Nesta parte deparamo-nos com a curiosa situação dessa factualidade ter sido alegada pelos RR e de serem os AA a pugnar pela sua comprovação !?
Essa factualidade visava demonstrar que não havia relação de proximidade ou afecto entre o A./recorrente e o seu tio/testador ao contrário do que o A. dizia na p.i. Mas, a provarem-se tais factos, simplesmente instrumentais, eles, em concreto, não são suficientes, por si, para influírem na solução de direito do pleito e na decisão final do recurso e do mérito da causa. Ademais porque a factualidade essencial, alegada pelo mesmo e que resultou não provada, já se mostra por ele impugnada.
Ora, é apodíctico que a impugnação da matéria de facto consagrada no art. 640º do NCPC não é uma pura actividade gratuita ou diletante.
Se ela visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados, ela tem, em última instância, um objectivo bem marcado. Possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada ou não provada, para que, face à eventual nova realidade a que se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. Isto é, que o enquadramento jurídico dos factos tidos por provados ou não provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada.
Assim, se por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante ou insuficiente para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois nesse caso mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo factual anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada.
Por isso, nestes casos de irrelevância ou insuficiência jurídica, a impugnação da matéria de facto não deve ser conhecida sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (vide Ac. desta Relação de 12.6.2012, Proc.4541/08.3TBLRA, em www.dgsi.pt).
Isto porque, a alteração da matéria de facto, nos pontos precisos que forem impugnados será irrelevante ou insuficiente se nenhuma interferência tiver na dita solução de direito.
No nosso caso verifica-se que os mencionados factos não têm importância para o recurso do A. e para a solução jurídica da causa, como atrás dissemos.
Considerando o explicitado, e tendo em conta que a impugnação de facto deduzida pelo A. visa factualidade meramente instrumental que acaba por se tornar insuficiente para a sorte do seu recurso, ademais porque a factualidade essencial, alegada pelo mesmo e que resultou não provada, já se mostra por ele impugnada, então a referida impugnação, relativamente à apontada factualidade não tem de ser conhecida.
2.3.1. Há que conhecer, então, da remanescente factualidade impugnada, os factos não provados 10 a 13, 16, 19, 23, 27, 34, 40, 41, 43 da P.I., com base na prova indicada pelo apelante.
O mesmo invoca as suas declarações de parte. Mas o A. não prestou quaisquer declarações de parte. Apenas depoimento de parte, e neste âmbito nada confessou. Pelo que o seu depoimento de parte não pode ser invocado a seu favor.
Invocou o depoimento da Dra. AAA, psicóloga da Unidade de Cuidados Continuados ..., depoimento gravado, mas nem sequer indica quaisquer passagens da gravação em que a mesma terá dito o que alega. O que viola o disposto no art. 640º, nº 2, a), do NCPC, o que implica rejeição do seu depoimento.
Mutatis mutandis, o mesmo ocorre com o depoimento de WW, assistente social da mesma instituição.
Ouvimos os restantes depoimentos das testemunhas pelo recorrente arroladas, gravadas em CD, reportados à matéria agora em apreço.
XX, sobrinha do falecido testador e prima do A., disse que o tio nestes últimos anos de vida dele era uma pessoa que já não tinha um discurso muito coerente, era histórias muito antigas o que levava a pensar que ele não estaria muito bem nesse sentido. Entretanto, ele foi para um lar e para cuidados continuados. E houve uma altura em que eu fui vê-lo já em ..., estava nos serviços continuados. Ele não me conheceu, não sabia quem era, não sabia onde estava. Nessa altura já não era capaz de se governar sozinho. Ele enquanto esteve na casa dele, era ele que tratava das coisas. Até um determinado momento, não sei qual é esse momento. Havia uma irmã dele, RR, que cuidou sempre dele. Entretanto, essa irmã adoeceu e faleceu antes dele. Ela limpava-lhe a casa, fazia-lhe a comida e ia-lhe levar à casa dele. Isso foi há 10/15 anos. Depois a irmã dele, para aí em 2010/ 2011 teve um AVC e deixou de cuidar dele. Nunca viu o tio a despir-se à vista das pessoas e andar na rua nu da cinta para baixo. Apenas ouviu dizer, a uma irmã dela e ela ouviu dizer a uma pessoa lá da aldeia que se chama BBB. Pouco tempo antes de ser internado, de ir para os cuidados continuados, talvez 1/2 anos, já notava aí uma certa demência.
HH, que conheceu o falecido testador por ser vizinho do seu avô, referiu (depoimento prestado em 3.12.2021) que está na zona há 12 anos. Houve algumas situações que notava que ele já não estava bom. Era uma pessoa que frequentemente me pedia para chamar pessoas que já tinham morrido. Situar isso no tempo não consegue. Ás vezes passava lá à porta dele com os animais e ele dizia que se botava da janela abaixo. Sem dizer porquê. Assistiu a ele andar na rua com pouca roupa e a chover. Nu nunca viu. Sabe que ele era apoiado por uma irmã. Eles viviam os dois, mas essa senhora faleceu antes dele. Depois teve conhecimento quer o falecido foi para os cuidados continuados de ... e nessa altura ele já estava mais degradado da cabeça. Quem tratava de quem lá dentro de casa se ele ou a irmã não sabe.
YY, marido da anterior testemunha, declarou (depoimento prestado em 3.12.2021) que está na zona há 11 anos. Conheceu o falecido testador. O contacto com ele era de bom dia, boa tarde, boa noite. Por uma ou outra vez, junta com o marido, pensou que ele não andava bem da cabeça, porque ele dizia que se queria deitar abaixo da janela. A justificação foi que estava fechado em casa e não conseguia sair. Não sabe em concreto se ele tinha a chave na porta. Nunca o viu nu.
GG, mencionou o que consta da motivação supra exarada pelo julgador de facto. Mencionou que trabalhava como ajudante familiar num Lar, e fazia domicílios, o que ocorreu de 2008 a 2013. Conheceu o falecido porque dava apoio à sua irmã. Ele muitas vezes fechava a irmã dentro de casa, mas não sabe porquê. Mas achava estranho ele fechar a porta à chave. Ela ia lá levar as refeições à irmã e fazer a higiene pessoal dela. Muitas vezes faltava-lhe a comida e a gente achava muito estranho e perguntava onde é que estava e ele dizia que ia buscar lá a casa dele a marmita, mas não sabe se ele comia a comida. Mas ela via que a irmã não comia a comida. Via-se que o senhor não andava bem, psicologicamente não andava bem. Cada vez foi ficando pior. Ele dava dinheiro às empregadas muitas vezes, 10/20 euros, assim do nada. Muitas vezes ele estava ausente, mas não sabe onde é que se encontrava. Não sabe se ele sabia para onde ia e para onde não ia. Depois com a irmã a gente ficava à hora de almoço até ela acabar de almoçar, para ter a certeza que a senhora almoçava. Nunca o viu na rua despido, mas mal vestido, mal arranjado, sim. E também o viu na rua à chuva sem nada. Depois a irmã foi para casa do A. e o falecido deve ter ficado sozinho na casa dele.
UU, sobrinha do falecido testador e prima do A., disse que o falecido e uma irmã, ambos solteiros, viveram juntos. Quando ele esteve internado em ... ainda foi lá algumas vezes visitá-lo. Nos últimos anos de vida, nos últimos 2, 3, 4, 5 anos, já padecia um bocadinho da cabeça. Aliás, ele sempre teve assim alguns problemitas. Quando a irmã teve um aneurisma em 2009 e ficou mais doente ele ficou assim mais perturbado, em 2009/2010. Não é nenhuma mentira, porque foi verdade. Às vezes ela chegava lá a casa e ele não queria abrir a porta, não queria que ninguém visse a irmã. Havia um problema de que as senhoras queriam lavá-la lá dentro e ele não queria sair para fora. Isso já não é uma pessoa que está muito bem. Ele aparecer na rua despido nunca viu, mas disse-lhe um senhor que também vive lá na rua chamado BBB, o que acha que não é normal. Os dois testamentos que estão em causa foram feitos aos vizinhos, que até dantes nem nunca se davam. Em 2010/2011, até já antes, não era o tipo de pessoa que tinha lucidez. Apercebi-me muitas vezes que a minha tia também sofria, às vezes, um bocadinho com ele, porque é estranho. Ouviu falar que ele distribuía dinheiro. Uma vez viu o tio a sangrar da cabeça, pelo nariz. Devia ser algum derramezito já ali. Devia ter tudo a ver com o problema que ele, sei lá. Ele foi internado na CCC Dair porque ele já não tinha condições nenhumas de estar sozinho, ele já não fazia nada, ele ficava de noite sozinho, não é. A irmã orientava-o, mas depois que a irmã teve o problema de saúde a coisa agravou-se. A relação entre os referidos vizinhos e a sua família alargada, já dos tempos dos meus avós, nunca foi boa. Não sabe muito bem como é que o falecido foi parar a ..., mas sabe que ele já não estava em condições de estar em casa e foi para lá. Mais referiu os acrescentos exarados pelo julgador na sua motivação de facto.
A Sra. Notária declarou o que consta da motivação de facto exarada pelo julgador. Mais especificou que em relação ao procedimento que levou à redação destes testamentos, foi o procedimento normal. O procedimento dos testamentos é sempre igual para com todos. É perguntar o nome, perguntar os dados de identificação, a data de nascimento, a idade, o nome dos pais, para ver se eles estão psicologicamente bem ou mentalmente bem, se me souberem responder, depois dizem-me a vontade deles e é lavrado o testamento. Normalmente nem é no mesmo dia, primeiro é feita a reunião com o testador e depois é que é lavrado o testamento. Se a pessoa responder direito não desconfia. Se tivesse desconfiado de algo nos aludidos testamentos não teria feito o testamento.
Analisando.
Do depoimento da testemunha XX, considerado pelo julgador na sua motivação supra transcrita, não decorre que o falecido testador estivesse incapacitado à data dos dois testamentos, 1/2010 e 2/2011. A testemunha diz que o tio nestes últimos anos de vida dele era uma pessoa que já não tinha um discurso muito coerente, mas pergunta-se quais esses últimos anos se o mesmo faleceu em 10/2017. Há mais de 6 anos atento a data do último testamento ? Não se sabe. Apenas se sabe, da acção de interdição que a sua incapacidade se iniciou em 3/2012, igualmente em data posterior (cerca de 1 ano) ao do último testamento. A testemunha diz que quando foi ver o tio aos cuidados continuados em ... ele não a conheceu, nem sabia onde estava e nessa altura já não era capaz de se governar sozinho. Como sabemos que ele entrou nessa ... em 9/2014 então também não se pode afirmar que à data dos testamentos estava incapaz. O que sabemos é que só após o internamento o Dr. SS atestou que o falecido apresentava em 12/2014 essa incapacidade, como se refere na motivação de facto. O que é confirmado pelo relatório da psicóloga AAA, também referido e mencionada na dita motivação. Ademais a testemunha indica que o falecido enquanto esteve na casa dele, era ele que tratava das coisas até um determinado momento, que não sabe qual é esse momento, embora em momento anterior, uma irmã dele, RR, que teve depois um AVC e faleceu antes do referido testador, lhe limpasse a casa e lhe fosse levar comida à casa dele, o que nada tem de anormal. Também nunca viu o tio a despir-se à vista das pessoas e andar na rua nu da cinta para baixo, apenas ouvindo dizer de modo muito indirecto. Mesmo quando afirma que pouco tempo antes de ser internado, de ir para os cuidados continuados, talvez 1/2 anos, já notava aí uma certa demência, não se consegue concluir em sentido diferente, pois 1/2 anos antes do internamento, em 9/2014, apenas alcança no seu limite máximo 9/2012, bastante posterior à data dos apontados testamentos.
Também do depoimento da testemunha HH, considerado pelo julgador na sua motivação supra transcrita, e que vive na zona desde há 12 anos, ou seja desde mais ou menos 12/2009 (atento a data do depoimento), nada se consegue concluir sobre a demência ou incapacidade do falecido testador à data dos testamentos, pois a testemunha não conseguiu situar no tempo as 3 situações que relatou, pedir para chamar pessoas mortas, andar com pouca roupa e a chover, nu nunca vi, e mandar-se da janela para baixo. Nem sabendo também se era a irmã que cuidava dele ou ao contrário. Afirmou que o falecido foi para os cuidados continuados de ... e nessa altura ele já estava mais degradado da cabeça, mas isso é em 9/2014, muito depois da data dos aludidos testamentos.
Igualmente do depoimento da testemunha YY, considerado pelo julgador na sua motivação supra transcrita, e que vive na zona desde há 11 anos, ou seja desde mais ou menos 12/2010 (atento a data do depoimento), ainda menos se retira sobre a demência ou incapacidade do falecido testador à data dos testamentos, pois a testemunha além de não situar no tempo a situação que relatou, mandar-se o mesmo da janela para baixo, só começou a viver na zona já depois de feito o 1º testamento e nas vésperas do 2º. Nu nunca vi o falecido.
O depoimento da testemunha GG, considerado pelo julgador na sua motivação supra transcrita, deixa alguma estranheza de comportamento do falecido, devido às situações relacionadas com o mesmo fechar a irmã dentro de casa e fechar a porta à chave e ficar eventualmente com a comida que era destinada a esta, achando a testemunha que o falecido não andava psicologicamente bem. Também referiu que o mesmo dava dinheiro à toa, o que não é normal, mas num episódio que lhe disse directamente respeito não foi à toa, pois embora não tivesse aceite entendeu que o falecido lhe quis dar 40 euros por agradecimento para cuidar da sua irmã.
É o único depoimento situado temporalmente no período dos 2 testamentos em apreço nos autos que suscita dúvidas, embora não muito significativas sobre o bem-estar psicológico, consciência ou desequilíbrio do falecido. A nós parece-nos mais revestir uma conduta estranha do falecido que uma atitude nitidamente indicadora de demência ou incapacidade do mesmo.
Este depoimento não abala, porém, o que resulta da observação da Sr. Notária, designadamente que o falecido testador estava incapacitado para compreender o que estava a testar ou não tinha livre exercício para expressar a sua vontade.
Quanto ao depoimento da testemunha UU, prima do A., pouca credibilidade lhe damos. Na verdade, subscrevemos a apreciação feita pelo julgador de facto, acima mencionada, porque “sentimos” exactamente o mesmo do que o julgador descreve. O seu depoimento foi visivelmente orientado por ter opinião no sentido de que o seu primo deveria ter sido o beneficiado, desde as opiniões que manifestou ao tom perfeitamente distinto com que respondeu a cada um dos mandatários, pese embora o respeito que, por igual, ambos lhe tributaram. De concreto, deparamo-nos com respostas vagas e pouco fundamentadas, num tom ora impertinente ora de simples afirmações pré-estabelecidas, com um toque final na frase dita e algumas exclamações nitidamente a pender para a defesa dos interesses do A., seu primo. Referiu que “ele sempre teve alguns problemitas”, que nunca concretizou com clareza. Em seu entender, os “problemitas” do falecido aumentaram aquando do decesso da irmã com quem convivia, pois teria ficado “mais perturbado”. O que concretizou foi que às vezes ele “não queria abrir a porta, não queria que ninguém visse a irmã”. Por conhecimento indirecto, ouviu falar a um conhecido que o tio teria aparecido nu na rua. Referindo-se aos réus, acha que eles “sentiram alguma coisita e actuaram”, esclarecendo que se aperceberam da fragilidade do falecido e o industriaram, pois que “já no tempo dos meus avós as duas famílias não se davam bem”. “Pelos vistos” (?) também esbanjava dinheiro. Uma vez viu o tio a sangrar da cabeça, sangue que saía pelo nariz (!?), o que “devia já ser do problema que ele tinha”. E finaliza a sua prestação com o comentário elucidativo da sua opinião quanto à postura dos RR “não é assim que se faz, acho eu”.
Portanto, o depoimento desta testemunha não merece qualquer valorização de relevo.
Por fim, como os recorridos invocam, temos o parecer científico junto aos autos, do INML (elaborado por Professor Doutor Catedrático de Psiquiatria) no qual se deixa uma resposta clara e inequívoca e fundamentada aos quesitos formulados pelo A.:
Quesito 1: O Processo que levou à verificação da anomalia psíquica na data constante da sentença de interdição de EE (20/03/2012) é do ponto de vista médico um longo processo que se vai arrastando e agravando ao longo dos anos anteriores podendo fixar-se pelo menos que durou desde o início de 2010?
Resposta:
Não. (… fundamentação).
Quesito 2: Os factos alegados na petição inicial a provarem-se, são idóneos a estabelecer a incapacidade de EE para entender o sentido da declaração constante dos testamentos de 29/01/2010 e 23/02/2011 afetando o livre exercício da sua vontade? Resposta:
Não. (…fundamentação) - Na parte final desta fundamentação diz-se mesmo que “Por essa razão, os factos alegados na Petição Inicial, a provarem-se, não são suficientes nem são idóneos para estabelecer a incapacidade de EE no que respeita ao seu entendimento sobre o sentido das declarações constantes dos testamentos de 29/01/2010 e 23/02/2011 e ao livre exercício da sua vontade”.
Quesito 3: O facto de, em breves anos, EE, ter outorgado 10 testamentos, é revelador de insegurança e incapacidade de entendimento e determinação da vontade, refletindo-se quando outorgou os 2 últimos testamentos referidos?
Resposta: Não. (… fundamentação).
De sorte que, perante o explicitado, aderimos à convicção do julgador a quo, porque formamos idêntica convicção.
Sendo, agora, o momento de lembrar que estamos, no domínio do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art. 607º, nº 5, 1ª parte, do NCPC, segundo o qual o juiz aprecia as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
Sendo certo que, como em qualquer actividade humana, existirá sempre na actuação jurisdicional uma margem de incerteza e aleatoriedade, no que concerne à decisão sobre a matéria de facto, o que importa, pois, é que se minimize o mais possível tal margem de erro, tendo, porém, o sistema válvulas de segurança. Efectivamente, nesta apreciação livre há que ressalvar que o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, dos princípios da lógica, ou das regras científicas (vide Anselmo de Castro, D. P. Civil, Vol. 3º, pág. 173, e L. Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1ª Ed., pág. 157).
Ou dito de outro modo, “I - A criação da convicção do julgador que leva à decisão da matéria de facto tem de assentar em dados concretos, alguns dos quais elementos não repetíveis ou tão fiáveis na 2.ª instância como na 1.ª, em situação de reapreciação da prova. Na verdade, escapam à 2.ª instância, por princípio, a imediação e a oralidade que o juiz da 1.ª instância possui.
II - Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela” vide Ac. do STJ de 20.5.2010 (relator Mário Cruz), Proc.73/2002.S1, em www.dgsi.pt.
Da prova produzida, antes apontada, decorre, apesar de não termos toda a riqueza de ajuizamento resultante da imediação, apenas dispondo da oralidade constante da gravação, que a versão trazida a recurso pelo ora apelante, em sentido contrário ao decidido, não é sólida nem sustentada probatoriamente.
Assim, resulta que a convicção do julgador, expressa na decisão da matéria de facto, tem sustentabilidade, sendo razoável, aceitável, sendo por isso compreensível o modo como fixou tal matéria de facto, não se mostrando, por outro lado, infirmada por outra prova de apreciação livre suficientemente convincente. Desta maneira, considerando que o direito não é uma ciência exacta, nem se pode aspirar humanamente a que do depoimento testemunhal possam resultar certezas absolutas, no caso dos autos podemos extrair duas conclusões.
Uma, é que compulsando o que resulta do teor da actividade probatória, resulta para nós que nenhuma máxima da experiência, advinda da observação das coisas da vida, princípios da lógica, ou regra científica, foi violada. Outra, é que, tendo sustentabilidade e sendo compreensível a convicção do julgador de facto, é razoável, é de aceitar a decisão da matéria de facto que o mesmo expressou, pois também não mostra desconformidade à luz dos meios de prova indicados e produzidos nos autos – depoimentos testemunhais e prova documental.
Decisão da matéria de facto que nós aceitamos, repetimo-lo, por, igualmente, podermos formular semelhante convicção. Desta sorte, ponderando todos os elementos probatórios indicados e analisados criticamente não se descortina motivo para alterar a decisão da matéria de facto proferida pelo julgador a quo, já que agindo ele e agindo nós sob o princípio da livre apreciação da prova (art. 663º, nº 2, do NCPC) é esse o melhor resultado decisório de facto a que se chegou, sem violação das regras da lógica e da experiência.
Por conseguinte, face ao explanado, a impugnação da matéria de facto tem de ser rejeitada relativamente aos apontados factos não provados 10 a 13, 16, 19, 23, 27, 34, 40, 41, 43 da P.I., que formam um bloco (salvo o 41, que não integra este bloco mas do qual nenhuma prova foi feita).
2.3.2. Defende, também, o recorrente que o tribunal a quo devia ter lançado mão do princípio do inquisitório, previsto no art. 411º do NCPC, em nome do princípio da descoberta da verdade material, nomeadamente o histórico clínico do falecido testador, que oficiosamente poderia requerer e que lhe permitia aferir, sem margem para dúvidas, desde que data é que o testador apresentou a suscitada demência, prova documental essa que revestia natureza essencial para a decisão da causa, atento até os diversos depoimentos probatórios produzidos (especificamente conclusões de recurso 37 – a 54 -).
Não há dúvida que cabia ao autor o ónus de prova dos factos que integram a causa de pedir que alegou, como se sublinhou na sentença recorrida. Cabia-lhe provar, por isso, a data do início da alegada demência/insanidade mental do testador falecido, para se poder concluir que na altura em que testou já se encontrava nesse estado. O A. apresentou vários meios probatórios, incluindo prova documental. Aos autos foram juntos relatórios médicos, parecer científico do INML e diversos documentos clínico-médicos, solicitados por tal Instituto, que o próprio A. indicou onde podiam ser obtidos. Todos esses meios probatórios foram apreciados pelo julgador a quo. Mais se constata que a audiência de julgamento se desenrolou por várias sessões espaçadas no tempo (3 sessões entre Setembro de 2021 e Dezembro de 2021), tendo sido ouvidas 7 testemunhas do A. e uma dos RR.
Mas só agora o A. “descobriu” que o juiz a quo devia ter solicitado o que denomina de histórico-clínico do falecido. O que não merece acolhimento.
Nos termos do indicado artigo, que se refere ao princípio do inquisitório, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Ora, o recorrente poderia perfeitamente, decorridos 4 meses de produção de prova em várias sessões, a primeira dedicada à audição das partes, a segunda ocupada apenas com a audição de 6 das suas 7 testemunhas, e a terceira e última com uma sua testemunha e uma outra, e única, dos RR, ter-se lembrado, antes das alegações que era essencial o tal histórico-clínico do falecido, e requerer apresentação por si próprio ou requerer ao tribunal a respectiva solicitação. O que não fez, apesar de a produção de prova estar terminada e de o mesmo dever saber, para defesa dos seus interesses, se nesse momento era essencial ou não a junção de tal histórico-clínico, bem conhecendo, igualmente, que lhe cabia o ónus de provar o alegado, como acima referimos.
É que o princípio do inquisitório tem necessariamente de ser conjugado com outros ditames, designadamente com o da autorresponsabilidade das partes. Se a parte podia ter requerido, com toda a largueza e possibilidade, certa diligência probatória e não o fez, sibi imputet.
A intervenção do juiz, em última instância, substituindo-se a ela, vai, em tese geral, acabar por violar o princípio da igualdade das partes no processo, pois estaria a permitir a prática de um acto já precludido e a esvaziar a aludida autorresponsabilidade de uma das partes, eventualmente favorecendo-a.
Mais até. Em concreto, nem se vislumbra essa necessidade ou pertinência. Na realidade, como se disse atrás, foram juntos aos autos, relatórios médicos e inúmeros documentos clínico-médicos, solicitados pelo INML para elaborar o seu parecer científico, tendo sido o próprio A. que indicou onde todos eles podiam ser obtidos. Pergunta-se, pois, que mais documentos clínico-médicos podiam ser obtidos que não estejam já juntos aos autos ? Não se vislumbram, nem o recorrente os especifica, limitando-se a uma referência vaga e genérica de “histórico-clínico”. Portanto, prefigura-se tal diligência como inócua, não pertinente, e consequentemente dispensável.
2.3.3. Defende, igualmente, o recorrente que no caso em concreto não foi analisado, nem valorado o histórico clínico do testador, impõe-se que seja ordenada a produção de tal meio de prova (por documentos – relatório do histórico clinico), nos termos do previsto no art. 662º, nº 2, b), do NCPC (especificamente conclusão de recurso 55 -). Não é assim, sem mais.
O funcionamento desse preceito só pode ser desencadeado se a Relação, mesmo oficiosamente, ficar em estado de dúvida fundada sobre a prova realizada, o que no caso não acontece. Como acima analisámos, (em ponto 2.3.1. chegou-se à conclusão que a impugnação da matéria de facto não merecia provimento).
Por conseguinte não há que acionar tal mecanismo processual.
3. Na sentença recorrida escreveu-se que:
Primeiro que tudo, é pretensão do autor “anular-se (ou declarar-se anulados) os testamentos”; funda o pedido no disposto no art.º 2199º do código civil. … Estatui o preceito invocado – e, efectivamente, outro não visiono que possa sustentar a pretensão do autor – que “é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória“. A esta sanção se deverá, portanto, reconduzir o pedido – aparentemente alternativo – formulado. Para o efeito, ademais, importa considerar que, no caso dos testamentos, o regime da sua anulação por incapacidade não é exactamente o mesmo que o regime geral deste vício na formação da vontade. Por exemplo, analisando, comparativamente, ambos os normativos, a Relação de Lisboa decidiu já que “as incapacidades de testar são menos rigorosas, mais restritas, que as incapacidades gerais (3Acórdão de 20 de Dezembro de 2018, …, no processo 4331/16.0T8Lsb). Importa analisar se os dados de facto integram a previsão em apreço.
Relativamente ao estado de saúde do falecido tio do autor aquando da outorga de ambos os testamentos, e no sentido de que o mesmo o incapacitaria de entender o que disse, não foi possível recolher, no processo, mais do que meras suposições, apoiadas na locução “talvez” e, mesmo assim, não temporalmente circunstanciadas com rigor. Não é, portanto, possível, falar na prova da incapacidade do referido testador. Como não poderia deixar de ser, o nosso mais alto tribunal não costuma vacilar nestas situações: “o art. 2199.º do CC exige que a testadora não entenda o sentido das declarações no momento em que faz o testamento; na falta dessa prova, a acção fundada naquele normativo deve ser julgada improcedente (4Acórdão de 19 de Junho de 2019, relatado pela Conselheira Fátima Gomes, no processo 3375/13.8TbVCt.). Não seria necessário, mas chamo, inclusivamente, a atenção para a circunstância de, nestes casos, se poder mesmo falar num acréscimo de exigência. Como foi já decidido pela Relação de Évora, “sendo o testamento uma das manifestações mais expressivas da autonomia da vontade do de cujus, que livremente escolhe quem há-de suceder-lhe, (…) a sua anulação só será possível quando se provem rigorosamente factos subsumíveis a quaisquer das referidas normas que a prevêem (5Acórdão de 19-11-2020, …, no processo 214/18.7T8RMz.). O que, manifestamente, não foi o caso. (…)
A sucessão testamentária é o instituto em que o legislador se sobrepôs à autonomia individual, limitando a decisão do próprio – contrariamente a algumas legislações, ainda hoje, noutras latitudes e longitudes, em que é possível privar os filhos da herança, em favor de animais domésticos – e reservando uma quota dos bens a transmitir. Todavia, e para além desta reserva, a vontade do testador é o critério máximo a seguir. Como dizem os especialistas, a lei “desinteressa-se de saber quem serão os sucessores, quando indicados pelo de cuiús (ou seja) reconhece, assim, a designação dos sucessíveis feita pelo auctor successionis ao abrigo da sua autonomia (6João Menezes Leitão, “A Interpretação do Testamento”, Associação Académica, Faculdade de Direito, Lisboa, pág. 58.). O que perfeitamente se compreende, uma vez que, por tradição multimilenar, estamos a regular uma das actividades psicologicamente mais densas de que há memória. Trata-se, este, de um assunto que, porventura mais do que qualquer outro, nos faz permeáveis aos receios e sentimentos associados à morte, sobretudo quando – como é o caso – um conjunto de familiares sente que, de alguma maneira, se debate algo que tem que ver com a morte de um dos seus próximos. Porque “a dor provocada por uma morte só existe se a individualidade do morto tiver sido presente e reconhecida: quanto mais o morto for chegado, íntimo, familiar, amado ou respeitado, isto é ‘único’, mais a dor é violenta; não há nenhumas ou há poucas perturbações por ocasião da morte do ser anónimo, que não era ‘insubstituível (7Edgar Morin, “O Homem e a Morte”, Publicações Europa-América, pág. 31.). Daí que, mais do que tudo, a vontade do testador deva ser respeitada.
Tudo recapitulando, dispõe o art.º 342º do código civil, nos seus nºs 1 e 3, que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, sendo que “em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”. Assim, invocando que o seu falecido tio praticou actos jurídicos de disposição, mormente, dois testamentos, quando não se encontrava consciente para o fazer, competia ao aqui autor a prova de que, efectivamente, tais factos ocorreram e estiveram subjacentes aos negócios que se pretende sejam invalidados. Não o tendo logrado, mais não resta do que proferir decisão em desconformidade com ambas estas pretensões do autor, por falta de provas.”.
Na verdade, assim é, inexistindo censura a fazer a este discurso jurídico, apenas havendo que o chancelar.
Efectivamente, o referido art. 2199º do CC abrange duas situações distintas de incapacidade acidental do testador, geradoras da anulação do testamento, transitórias ou não: a) a incapacidade de compreensão do significado do acto e das disposições testamentárias; b) a ausência da liberdade de exprimir a sua vontade. O vício contemplado no referido artigo é, como acentua A. Varela, em CC Anotado (Vol. VI, nota 3. ao indicado artigo, pág. 323) a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada. A anulação do acto assenta na falta alegada e comprovada de capacidade do testador – por perda momentânea de faculdades, devido a morte iminente, idade muita avançada, doença prolongada, memória mitigada, etc, por embriaguez ou estupefacientes, por hipnose, etc, -, no preciso momento em que lavrou o testamento, ou capacidade de entendimento para entender o sentido e alcance da sua declaração, ou capacidade volitiva para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.
Ora, no nosso caso nada provou o A. nesse sentido, pelo que necessariamente a acção tinha de improceder.
(…)
IV – Decisão


Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.
*
Custas pelo A./recorrente.
*
Coimbra, 24.5.2022

Moreira do Carmo

Fonte Ramos

Alberto Ruço