Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
434/10.2TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: PENA ACESSÓRIA
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
CRIME DE VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO CRIMINAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 353º CP
Sumário: 1.- Não pratica o crime de violação de imposições, proibições ou interdições do artigo 353º CP quem, na sequência da aplicação da pena acessória, em virtude da advertência e notificação que lhe foi feita, não entrega a carta de condução, na secretaria do Tribunal, no prazo de 10 dias, contados a partir do trânsito da sentença,

2.- A entrega do título não é parte integrante da pena acessória, mas apenas um meio processual que visa efetivar o seu cumprimento

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Por sentença proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal condenar o arguido A... como autor material de um crime de violação de proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), ou seja, na multa de € 900 (novecentos euros), a que corresponde a prisão subsidiária (artigo 49.º/1 do Código Penal) de 100 (cem) dias.

Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

I. Não comete crime p. e p. artigo 353.° do Código Penal (violação de imposições, proibições ou interdições) o agente que, condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, não integra o titulo de condução, pese embora a expressa notificação para o efeito levada a cabo pelo tribunal da condenação, como aliás, o diz o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12-05-2010 (proferido no Processo n.º 1745/08.2TAVIS.C1 in www.dgsi.pt
II. Não foi provado em audiência e julgamento, que o arguido conduziu durante o período em que o mesmo se encontrava inibido de conduzir pelo período de 4 (quatro) meses por sentença condenatória.
III. O preceito que regula a execução da proibição de conduzir, não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.
IV. Resulta claramente da norma (artigo 69°, nº 3 do CP e 500°, nº 3 do CCP), em que o legislador previu expressamente para a falta de cumprimento da entrega voluntária da licença de condução, a sua apreensão.
VI. A alteração do artigo 353° do Código Penal operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ao acrescentar à previsão legal a violação de "imposições", a par das de "proibições ou interdições", pretendeu a punição da violação das penas com obrigações de conteúdo positivo, como as injunções cominadas a pessoas colectivas, penas acessórias que, com o mesmo diploma, passaram a estar contempladas nos artigos 90º-A, nº 2, alínea a), e 90º-G do Código Penal.
VII. Contudo, o arguido veio acusado pelo M.P., não por imposição, mas antes, por proibição ou interdição nos termos do art. 353.° CP.
VIII. As normas atinentes à pena acessória de proibição de conduzir não sancionam com o cri-me de desobediência, a falta de entrega da carta de condução no termos do artigo 353.° CP, a título proibição.
IX. Pelo que, e reitera-se, que não ficou provado em sede de audiência e julgamento que o arguido conduziu
X. O princípio da legalidade exige, pois, que a infracção esteja claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal;
XL. A função de garantia do principio da legalidade exige a qualidade da lei, previsibilidade e acessibilidade, de modo que qualquer pessoa possa perceber e saber quais as consequências sancionatórias de uma sua acção ou omissão.
XII. A douta sentença está sujeita ao princípio da legalidade, como resulta dos artigos 29° e 32.° da Constituição da República Portuguesa, e ainda do artigo 1.° do Código Penal e do artigo 65.° do mesmo Código.
XIII. Ora, como diz o douto Acórdão no Tribunal da Relação de Coimbra, de 22 de Outubro de 2008 (proferido no Processo n.º 43/08.6TAALB.C1, visualizável in www.dgsi.pt), que: «Para a execução da pena acessória de proibição de conduzir o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução — entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem especifica para esse efeito — tem como consequência a determinação da sua apreensão, pelo que entende a jurisprudência que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua entrega contraria o sentido da norma.
Significa isto claramente que se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente
XIV. No mesmo sentido, se tem vindo a afirmar maioritariamente a jurisprudência, tais como: Acórdão da Relação de Coimbra Proc. Nº 1745/0S.2TAVIS.C1 de 12.05.2010; Acórdão da Relação do Porto - Proc. Nº 583/09.0TAFRP1 de 02.03.2011; Acórdão da Relação do Porto .- Proc. Nº 583/09,OTAVFRP1 de 13.02.2011; Acórdão da Relação de Coimbra - Proc. n° 43/08.6TAALB.C1 de 22.10.2011; Acórdão da Relação de Lisboa - Proc. n° 1932/2008-9 de 18.12.2008; Acórdão da Relação de Coimbra - Proc. Nº 329107.GTAVRC1 de 22.4.2009; Acórdão da Relação de Coimbra - Proc. Nº 1001íOa.6TAVIS.C1 de 23.06.2010; Acórdão da Relação de Coimbra - Proc. Nº 45/09.2GTGRD.C1, de 21.01.2009, in www.dgsi.pt
XV. Porém, os factos integradores do crime em sede de sentença não preenchem os elementos essenciais do crime de desobediência qualificada, previsto no Art. 69.º, nº 1, al. a), do Código Penal, por referência ao disposto no Art 138.°, n.º 2, do Código da Estrada (e não no art. 139.°, n.º 4, aludido na versão deste diploma vigente à data dos factos).
Termos em que e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência
Revogar-se a sentença recorrida, absolvendo-se o arguido.

Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida.


O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.


Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso.


No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse.


Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.


Cumpre conhecer do recurso


Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.


É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).


Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questão a decidir: integração jurídica dos factos dados por provados como crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artº 353º do Código Penal

Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):

I. O arguido foi condenado no Processo n.º 198/09.2GTVIS, Processo Especial Sumário, do 1.º Juízo Criminal, que correu termos neste Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 (quatro) meses, devendo entregar a carta de condução no prazo de 10 (dez) dias após o trânsito em julgado da sentença, no Tribunal ou em qualquer Posto de Polícia;------
II. O arguido foi notificado da sentença, a 21 de Outubro de 2009, tendo estado presente no momenta da leitura da mesma, tendo assim ficado ciente do seu teor, designadamente do dever de entrega da carta de condução, nos termos supra referidos;------
III. A sentença transitou em julgado, mas o arguido não procedeu à entrega da carta de condução no aludido prazo, desrespeitando a ordem dada;------
IV. A fim de executar a sentença, transitada em julgado, e assegurar o cumprimento pelo arguido da pena acessória, foi determinada a apreensão da carta de condução, o que foi cumprido pela autoridade policial – a G.N.R. – a 20 de Fevereiro de 2010;------
V. O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, violou a imposição que lhe foi determinada pela sentença a título de pena acessória, que lhe foi regularmente comunicada e da qual ficou ciente, desrespeitando-a;------
VI. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por Lei e que incorria em responsabilidade criminal;------
VII. O arguido tem os antecedentes criminais, que constam do seu C.R.C., junto a fls. 86 a 90, contando 1 condenação em pena de multa (crime que deu origem aos presentes autos) – e pena acessória de proibição de conduzir –, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, cujas penas principal e acessória foram declaradas extintas, pelo pagamento e cumprimento, bem como uma condenação em pena de multa, pela prática de um crime de falsificação de documento, cuja pena foi declarada extinta pelo pagamento.------
VIII. É agente imobiliário, sendo também sócio-gerente (um dos seis) da imobiliária (“Predial Viseense”), auferindo mensalmente a quantia de € 950;------
IX. É casado, a esposa não trabalha, sendo pais de 1 filha menor, de 2 anos de idade;-
X. É pai de 2 filhos do 1.º casamento, a quem paga a prestação alimenta mensal de € 125 e ½ da despesa médica e educação;------
XI. Vivem em casa cedida pelos pais do arguido;------
XII. Paga mensalmente de um crédito à habitação a quantia de € 100;------

O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

A convicção do Tribunal para considerar provados os factos acima referidos resultou:------
a) Do teor do C.R.C. do arguido, junto a fls. 86-90, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa;------
b) Do teor da certidão da sentença condenatória, junta a fls. 4-23, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa;--
c) Do teor da “informação policial” de fls. 83-84, solicitada por iniciativa do Tribunal, relativamente à situação pessoal, familiar, económica e social do arguido, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa;------
d) Das declarações do arguido, o qual a instâncias da Ex.ma Magistrada do Ministério Público (após ter referidos que logo após a leitura quis entregar a carta na secção, o que fez, mas uma funcionária disse-lhe que não a podia receber, porque haveria prazos a cumprir, declarações que são manifestamente falsas, pois que em inúmeras outras situações arguidos acabados de ouvir a sentença em que foram condenado na pena acessória de proibição de conduzir logo foram à secretaria, onde entregaram a carta, que sempre é recebida,, a fim de começara imediatamente a contar o prazo daquela pena acessória, implicando a entrega renúncia ao direito de recorrer e imediato trânsito da sentença, nunca a secção se tendo recusado a aceitar a entrega da carta em tais circunstâncias) referiu que efectivamente aquando da leitura da sentença pelo Ex.mo Colega o mesmo lhe disse expressamente, dito tendo ficado bem ciente, que tinha 20 dias (10 dias do trânsito e mais 10 dias) a contar daquela data (leitura da sentença) para entregar a carta de condução no Tribunal ou em qualquer posto policial, o que não fez efectivamente. Fundou ainda o Tribunal a sua convicção nas declarações do arguido quanto à sua situação profissional, familiar e económica;------
e) Das declarações das testemunhas de defesa, relativamente à situação social o arguido. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada;------


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O objecto do recurso restringe-se à discordância do arguido quanto à integração jurídica dos factos dados por provados: considera que os mesmos, ao contrário do entendimento do tribunal a quo, não integram um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artº 353º do Código Penal e consequentemente, deveria ter sido absolvido.

Tem razão.

Explicando:

Ficou provado que no Processo n.º 198/09.2GTVIS, foi o recorrente foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 4 (quatro) meses, tendo ficado a constar da sentença que devia entregar a carta de condução no prazo de 10 (dez) dias após o trânsito em julgado da mesma ou em qualquer Posto de Polícia. Ficou ainda provado que apesar de ter ficado ciente do dever de entrega da carta de condução, nos termos antes referidos, não procedeu à entrega do referido documento dentro do prazo indicado.
A questão tem sido debatida na jurisprudência e na doutrina, sem que, até ao momento, tenha havido qualquer consenso (como bem se explica no Acórdão da Relação de Coimbra de 9 de Novembro de 2011[ In www.dgsi.pt, tal como todos os demais arestos citados neste acórdão e cuja acessibilidade não esteja localmente indicada ]).
No entanto, parece-nos que as divergências jurisprudenciais não têm razão de ser.
Com efeito, comete o crime previsto e punido pelo artº 353º do Código Penal “quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade”, ou seja, no que ao caso interessa, comete o crime em causa quem incumprir o conteúdo material da pena acessória, que se consubstancia na proibição de conduzir veículos a motor durante período fixado na sentença (artº 69º do Código Penal).
Ora, como resulta claramente da lei (artº 500º, nºs 3 e 4) e é jurisprudência pacífica, a pena acessória de proibição de conduzir só se executa a partir do momento em que o condenado entrega o título de condução ou o mesmo lhe é apreendido, o que equivale a dizer que é irrelevante para o cumprimento da pena acessória, o facto de o condenado continuar a conduzir até à data da entrega ou da apreensão do título, pois só a partir de uma destas situações se iniciará execução da pena da proibição de conduzir.
Quer isto dizer que o incumprimento da pena acessória aplicada na sentença só ocorrerá se durante o período de duração da mesma o condenado conduzir veículos a motor.
Por isso, não sendo a entrega do título parte integrante da pena acessória, mas apenas um meio processual que visa efectivar o seu cumprimento, não vemos como pode integrar o elenco dos comportamentos descritos no tipo do artº 353º do Código Penal.
Assim sendo, uma vez que apenas ficou provado que o arguido foi notificado para entregar a carta em 10 (dez) dias após o trânsito da sentença e que o não fez, há que concluir que este comportamento omissivo não integra o crime por que vinha acusado e pelo qual veio a ser condenado.
Teria por isso que ter sido absolvido.
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Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e consequentemente absolve-se o arguido.
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Sem tributação.
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Luís Ramos (Relator)
Olga Maurício