Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | VÍTOR AMARAL | ||
Descritores: | CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA TRADITIO POSSE | ||
Data do Acordão: | 03/26/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JC CÍVEL - JUIZ 4 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.410, 1251, 1276, 1287, 1293, 1299, 1316, 1317 CC | ||
Sumário: | 1. - Por regra, o promitente-comprador com traditio é um mero possuidor em nome de outrem, o promitente-vendedor. 2. - Excecionalmente, porém, pode ser da vontade das partes no contrato-promessa a transferência, desde logo, a título definitivo, para o promitente-comprador, por razões específicas, da posse correspondente ao direito de propriedade. 3. - O facto de não ter sido paga a totalidade do preço acordado na promessa, de ter sido prevista data posterior para a celebração da escritura pública de compra e venda (e satisfação do remanescente desse preço), a qual o promitente-vendedor optou por não celebrar, vindo, ao invés, a transmitir o bem prometido vender a terceiro, apesar da existência de traditio para o promitente-comprador, não permite concluir pela existência, ao tempo da promessa, de uma vontade comum das partes no sentido da transferência, imediata e definitiva, da posse correspondente ao direito de propriedade. 4. - Em tal caso, sendo manifesta a improcedência da pretensão do promitente-comprador, que pretendia o reconhecimento do seu direito de propriedade por via de usucapião, é de manter a decisão que conheceu de mérito em saneador-sentença, não se justificando o prosseguimento dos autos para produção de provas. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO “S (…), LDA”, com os sinais dos autos, intentou ([1]) a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra M (…), também com os sinais dos autos, pedindo a condenação da R. a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre determinada fração autónoma destinada a habitação (composta de rés-do-chão e garagem na subcave, de prédio urbano constituído em propriedade horizontal, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...) , da freguesia de (...) , concelho de (...) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art.º (...) ), e a restituir à A. o imóvel que ocupa, livre de pessoas e bens. Alegou, para tanto, em síntese, a aquisição por contrato de compra e venda, livre de pessoas e bens, e o registo do imóvel a seu favor, assistindo-lhe o direito de propriedade, sendo o prédio ocupado ilegitimamente pela R.. Contestou e reconveio a R. ([2]), pugnando pela improcedência da ação e defendendo que: - celebrou, com o seu então marido, contrato-promessa de compra e venda do imóvel aludido, em 31/12/2004, sendo promitente vendedora a sociedade “G (…), Lda.”, à qual foi entregue, nessa data, a quantia de € 70.000,00, perante um preço convencionado para a venda de € 135.000,00; - o valor remanescente (€ 65.000,00) seria pago pela venda/permuta àquela sociedade de um terreno, pertença dos promitentes-compradores, avaliado nesse montante, sendo que a escritura pública de transmissão da propriedade deveria realizar-se até ao final de maio de 2005; - operada, em inícios de setembro de 2004, a traditio, adquiriu a R. o imóvel em causa, por usucapião, muito embora a aludida sociedade “G (…), Lda.”, antiga dona do imóvel, tenha vindo, já em junho de 2010, a constituir sobre ele garantia hipotecária a favor da C (…), com esta celebrando depois (em 2012) escritura de dação em cumprimento, pela qual lhe entregou a fração autónoma em causa, a que se seguiu a venda por esta à aqui A.; - peticiona, por isso, em reconvenção, como única e exclusiva possuidora da fração até hoje, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel, adquirido por usucapião, e, subsidiariamente, o pagamento pela A. da quantia adiantada pela R. à sociedade “G (…)Lda.”, por conta do contrato-promessa (€ 70.000,00, a que acrescem juros vencidos, à taxa legal, desde a notificação da reconvenção e até integral pagamento). Replicou a A., concluindo pela improcedência da matéria de contestação e reconvenção e, na procedência da ação, pela condenação da R., como litigante de má-fé, em multa. Na audiência prévia, admitida a reconvenção, o Tribunal, entendendo observado o princípio do contraditório, considerou-se habilitado para decisão imediata de meritis, assim proferindo saneador-sentença, com decisão da matéria de facto e de direito, onde exibe o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, julga-se: - a presente acção totalmente procedente, por totalmente provada, termos em que decide condenar a ré a: 1) Reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o imóvel fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra «F», composta de um rés-do-chão esquerdo lado nascente norte, destinado a habitação e uma garagem na sub-cave, sendo a 3ª a contar de nascente para poente lado norte, designada pelo nº 8, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito em (…)f reguesia de (...) , concelho de (...) , descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº (...) , da freguesia de (...) , concelho de (...) e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (...) e já identificado no artigo 1º da petição, 2) Restituir à autora o imóvel que ocupa, livre de pessoas e bens. - a reconvenção improcedente, dela absolvendo a autora.». Inconformada, a R. recorre do assim decidido, apresentando alegação recursiva, onde formula as seguintes Conclusões ([3]): (…)”.
A Recorrida não contra-alegou. O recurso foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo ([4]), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime e efeito fixados. Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados das partes – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([5]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, está em causa na presente apelação saber se há necessidade de produção de provas para cabal julgamento da causa ou se, ao invés, é manifesta a improcedência da defesa/pretensão da R./Reconvinte.
III – FUNDAMENTAÇÃO A) Matéria de facto Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como provada: «1. A fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra «F», composta de um rés-do-chão esquerdo lado nascente norte, destinado a habitação e uma garagem na sub-cave, sendo a 3ª a contar de nascente para poente lado norte, designada pelo nº 8, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito em (…), freguesia de (...) , concelho de (...) , descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº (...) , da freguesia de (...) , concelho de (...) e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (...) , está registada a favor da autora na conservatória do registo predial de (...) pela apresentação nº (...) de 29 de Março de 2016. 2. Em 31 de Dezembro de 2004, a ré e o seu marido C (…) celebraram um acordo designado por contrato-promessa de compra e venda de imóvel com a sociedade «G (…) Lda.», primitiva dona, na sequência do qual foi entregue à ré o que viria a ser a fracção referida em 1.» ([6]).
B) Substância jurídica do recurso Da necessidade de produção de provas ou manifesta improcedência da pretensão da R./Reconvinte 1. - Já se viu que a ação foi intentada em 25/10/2016, caraterizando-a a decisão recorrida – e bem – como “uma típica acção de reivindicação” (cfr. ata de fls. 137 v.º do processo físico), sendo que a reconvenção visa, por sua vez, em primeira linha, o reconhecimento do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel, adquirido por via de usucapião, a favor da R./Reconvinte. Em tal decisão recorrida considerou-se «demonstrado que a autora é beneficiária de registo definitivo em seu favor, sendo certo que a presunção da existência do direito que este estabelece não foi ilidida pela ré», razão pela qual se julgou «reconhecer o direito de propriedade invocado pela autora.». Já quanto à matéria reconvencional, entendeu-se que, apesar da traditio, inexiste posse por parte da promitente-adquirente (R./Reconvinte), vista esta como mera detentora ou possuidora precária (em nome de outrem, a promitente-vendedora, verdadeira possuidora e proprietária ante a não celebração do contrato prometido). E, se inexiste posse, forçoso seria concluir pela inexistência de usucapião, implicando a procedência da ação e a improcedência da reconvenção, também, quanto a esta, no plano indemnizatório, posto a A./Reconvinda nada ter contratado com a R., a qual, como promitente compradora, a ter sido lesada, no plano contratual, só pode responsabilizar a contraparte no contrato-promessa incumprido (a sociedade promitente vendedora). A ora Apelante esgrime, então, que alegou factos e ofereceu provas tendentes a demonstrar que adquiriu o direito de propriedade sobre a fração autónoma em causa por via de usucapião, desde logo factos demonstrativos da sua posse, pelo que se impõe o prosseguimento dos autos para que possa demonstrar os requisitos do instituto da usucapião a seu favor. Ao assim pretender, deveria, naturalmente, a Apelante mostrar, para ser consequente, qual a factualidade relevante carecida de prova, posto que já existe um quadro fáctico fixado nos autos (os factos dados como assentes/apurados na decisão recorrida). Ora, constata-se da alegação e das conclusões de recurso que a Recorrente, pretendendo ainda a acessão da posse, invoca tal factualidade que considera relevante e carecida de prova, apresentada, oportunamente, no seu articulado de contestação-reconvenção. Vejamos. 2. - A posse, como é consabido, é constituída por um corpus e por um animus ([7]). Na verdade, quanto à usucapião (cfr. art.ºs 1287.º e 1299.º, ambos do CCiv.), enquanto modo de aquisição originária do direito de propriedade (cfr. art.ºs 1316.º e 1317.º, al.ª c), também do CCiv.) sobre bens móveis (sujeitos ou não a registo) ou imóveis, dir-se-á que este instituto postula, no âmbito dos seus elementos integrantes, uma posse (art.º 1251.º do mesmo Cód.), a qual se traduz num “corpus” – consubstanciado na prática de atos materiais correspondentes ao exercício do direito –, tal como num “animus” – intenção e convencimento do exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica –, posse essa que deve ser exercida por um certo lapso de tempo e que deve revestir as caraterísticas da pacificidade, publicidade e continuidade (cfr. art.ºs 1293.º e segs. e 1298.º e segs. ainda do CCiv.). A posse assume relevância jurídica fundamental, não só pelos mecanismos legais adotados para a sua defesa (cfr. art.ºs 1276.º e segs. do CCiv.), mas também por nela poder fundar-se a presunção da titularidade do respetivo direito, já que, com alude o art.º 1268.º, n.º 1, do CCiv., o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, a não ser que exista presunção, a favor de outrem, fundada em registo anterior ao início da posse. Quer dizer, em ação de reivindicação caberá ao demandante o ónus da alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar o seu pretendido direito de propriedade sobre a coisa reivindicada – cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv. ([8]) –, prova essa a ser efetuada através de factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio, por sua parte ou dos seus antecessores na posse. Quando, porém, a aquisição for derivada terão de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, exceto nos casos em que ocorra presunção legal de propriedade (cfr. art.ºs 349.º e 350.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CCiv.), como a resultante da posse ou do registo definitivo de aquisição ([9]). No caso, deparamo-nos com uma pretendida posse obtida mediante traditio no âmbito de contrato-promessa reportado a contrato-prometido que nunca chegou a ser celebrado. São conhecidas as dificuldades jurisprudenciais nesta matéria, âmbito em que é de ponderar o Ac. STJ de 18/10/2012 ([10]), em cujo sumário consta: “VII - Em regra, o contrato promessa não é, por si só, susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador, que a exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – sendo, por conseguinte, mero detentor ou possuidor precário. VIII - Não é suficiente para transferir a posse um contrato promessa de compra e venda que, embora contenha uma cláusula expressa que prevê a tradição dos imóveis, quando nele se prevê, também, a realização da escritura e esta não possa ser realizada, sendo certo também que a posse, nos termos do art. 1251.º do CC, não se consuma se o promitente comprador não praticar ou realiza quaisquer actos materiais correspondentes ao exercício do direito (…)”. Na fundamentação deste aresto esclarece-se: «Portanto, não tendo a recorrente o corpus, elemento integrativo da posse e não sendo o invocado contrato promessa de compra e venda meio idóneo translativo da posse, nos termos que acima se descreveu, não se verificam os requisitos da acessão a que se alude no citado art. 1256 nº 1 do C, Civil, sendo certo também que surge intrinsecamente contraditório em sede da presente acção de reivindicação, para efeitos de acessão invocar contra precisamente a 1ª Ré a posse desta (…).». 3. - A possibilidade, a título excecional, de uma tal posse assente em contrato-promessa de compra e venda vem sendo admitida por parte significativa da doutrina ([11]) e da jurisprudência ([12]). Assim, não obstante a regra de que o promitente-comprador exerce a posse em nome de outrem (o promitente-vendedor), concorda-se que o promitente adquirente pode, todavia, excecionalmente, ser havido como possuidor em nome próprio, desde que, além da entrega da coisa, pratique, em nome próprio, atos materiais correspondentes ao exercício do direito em causa com o intuito de o exercer ([13]). Por isso, já defendemos em anterior aresto desta Relação ([14]) o seguinte: «1. - Por regra, o promitente-comprador com traditio é um mero possuidor em nome de outrem, o promitente-vendedor. 2. - Excecionalmente, porém, pode ser da vontade das partes no contrato-promessa a transferência, desde logo, a título definitivo, para o promitente-comprador, por razões específicas, da posse correspondente ao direito de propriedade.». 4. - Mesmo na perspetiva do factualismo alegado pela R./Reconvinte, o que aconteceu no caso dos autos reveste-se de tal excecionalidade? Pensamos que não. Reitera-se, com a jurisprudência citada, que, se a presunção da continuação da posse em nome do promitente-vendedor pode ser ilidida – no sentido de a vontade das partes ser a de transferir, desde logo, para o promitente-comprador, por razões específicas, alicerçadas em situações excecionais, a título definitivo, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade –, tal não ocorre quando não se alegue (nem prove) quaisquer dessas situações excecionais, designadamente se falta o animus possidendi, por parte do promitente-comprador. Com efeito, alegou a R./Reconvinte tratar-se de um contrato-promessa de compra e venda de uma fração autónoma, ao tempo em construção, pelo preço acordado de € 135.000,00, tendo sido entregue, ao tempo da promessa, o montante parcial de € 70.000,00. A parte restante do preço (€ 65.000,00) seria paga mediante um contrato de venda ou permuta de um terreno (este pertença da parte promitente-adquirente), tendo ficado contratualizado que “a escritura pública de permuta, ou de compra e venda de cada um dos imóveis se for essa a preferência dos outorgantes, deverá realizar-se até final do mês de Maio de 2005 (…)”, sendo ainda que “ambos os prédios (…) serão transmitidos livres de quaisquer ónus ou encargos”. Consumada a traditio, a verdade – nos moldes alegados pela R./Reconvinte – é que a promitente-vendedora foi adiando a celebração da escritura, que nunca veio a realizar, antes constituindo hipoteca sobre a fração em causa a favor de terceiro (em 2010) e, depois, dando-a mesmo em cumprimento ao M (…) (em 2012), o que, à luz da lei vigente, é passível de constituir, a provar-se, incumprimento definitivo por tal promitente-vendedora do contrato-promessa. Temos, pois, que, de acordo com a tese da R./Apelante, estava prevista a realização de escritura pública de compra e venda da fração, a qual não se veio a realizar. O preço só seria integralmente pago/satisfeito, segundo esta tese, aquando de tal escritura de formalização do contrato prometido, altura em que seria formalizada a venda/permuta do aludido terreno, sem o que faltaria pagar/satisfazer parte substancial do preço acordado. Quer dizer, nem a prevista escritura pública de transmissão da fração autónoma (contrato prometido) se realizou, nem o preço convencionado foi totalmente pago, posto apenas ter sido efetivamente entregue o montante de € 70.000,00 de um preço total de € 135.000,00. No mais, apesar da operada traditio, sobreveio o invocado incumprimento da promessa pela promitente-vendedora, que depois veio a alienar o imóvel prometido vender a outrem. Assim, aquela traditio, sem mais, não permite concluir que as partes na promessa pretenderam, unanimemente, transferir, desde logo, a posse (em termos de direito de propriedade) para a parte promitente-compradora. Esta parte, na economia de um tal contrato, no quadro alegado, não passava de mera possuidora precária, mera detentora em nome de outrem, pois, sem realização do contrato prometido, a propriedade da fração autónoma não se transferiu para a aqui R./Apelante (persistia na esfera jurídica da sociedade promitente-vendedora), nem esta chegou a pagar a totalidade do preço convencionado. Por isso, sem ter pago a totalidade do preço e ainda à espera da acordada – mas não realizada – escritura pública de transmissão da propriedade, a Apelante não podia ignorar que o domínio continuava na esfera jurídica da contraparte, resultando, por isso, a ocorrida traditio de um ato de condescendência de quem ainda não havia recebido a totalidade do preço (e mantinha a propriedade do imóvel). A posse decorrente dessa concedida traditio não passava, pois, de uma posse em nome de outrem, a sociedade promitente-vendedora, que depois até optou por alienar o imóvel a outrem (terceiro), incumprindo a promessa. Neste contexto, relevando aqueles aspetos do não pagamento integral do preço da prometida venda e de as partes terem ficado a aguardar a convencionada realização da escritura pública de transmissão – com a qual, essa sim, se daria a transferência do direito de propriedade, superando-se, por esse via, os efeitos contratuais obrigacionais para se atingir os visados efeitos reais –, é de concluir pela inexistência de vontade (das partes na promessa, ao menos de uma delas, a promitente-vendedora) de transferência, desde logo e a título definitivo, para o promitente-comprador, da posse correspondente ao direito de propriedade. Com efeito, não se surpreendem aqui as aludidas “razões específicas”, que caraterizassem a excecionalidade do caso, no sentido de se ter querido encabeçar, por mero efeito da promessa, os promitentes-compradores, em termos imediatos e definitivos, na posse correspondente ao direito de propriedade, mormente tendo em conta que ainda haveria de ser, efetivamente, paga futuramente parte substancial do preço convencionado ([15]). Em suma, mesmo na tese da Apelante, os promitentes-compradores, embora beneficiários de traditio, devem ser vistos, no caso, como meros possuidores em nome de outrem, a promitente-vendedora. Donde que, desde logo, e salvo o devido respeito, falte uma posse em nome próprio – existe, no âmbito alegado, a prática de atos materiais sobre a coisa, mas por condescendência de outrem –, não se logrando demonstrar o invocado animus possidendi, a necessária intenção e convencimento de exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica (em termos de direito próprio e exclusivo de propriedade). Concorda-se, pois, com o Tribunal a quo quando assevera que “não há posse, e, não havendo posse, não pode dar-se usucapião” (cfr. fls. 140 do processo físico). De notar ainda que, desde a data alegada como da ocorrência da traditio, nunca poderia ter-se como transcorrido o prazo da usucapião, sendo ainda de ter em conta a oposição da sociedade promitente-vendedora, que, para além do mais, onerou o imóvel com uma posterior hipoteca e o transmitiu a terceiro, não se vendo como pudesse a R. beneficiar de acessão na posse dos antecessores, desde logo aquela opositora sociedade. Improcedem, pois, as conclusões da Apelante em contrário, não sendo caso, por manifesta improcedência da sua pretensão, de ordenar o prosseguimento dos autos, antes sendo de confirmar integralmente a decisão recorrida ([16]).
IV – SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.): 1. - Por regra, o promitente-comprador com traditio é um mero possuidor em nome de outrem, o promitente-vendedor. 2. - Excecionalmente, porém, pode ser da vontade das partes no contrato-promessa a transferência, desde logo, a título definitivo, para o promitente-comprador, por razões específicas, da posse correspondente ao direito de propriedade. 3. - O facto de não ter sido paga a totalidade do preço acordado na promessa, de ter sido prevista data posterior para a celebração da escritura pública de compra e venda (e satisfação do remanescente desse preço), a qual o promitente-vendedor optou por não celebrar, vindo, ao invés, a transmitir o bem prometido vender a terceiro, apesar da existência de traditio para o promitente-comprador, não permite concluir pela existência, ao tempo da promessa, de uma vontade comum das partes no sentido da transferência, imediata e definitiva, da posse correspondente ao direito de propriedade. 4. - Em tal caso, sendo manifesta a improcedência da pretensão do promitente-comprador, que pretendia o reconhecimento do seu direito de propriedade por via de usucapião, é de manter a decisão que conheceu de mérito em saneador-sentença, não se justificando o prosseguimento dos autos para produção de provas.
*** V – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em, na improcedência da apelação, manter a decisão recorrida. Custas da apelação pela R./Apelante.
Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior). Assinaturas eletrónicas.
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