Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
140/19.2T8CDR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
TRANSMISSÃO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CASTRO DAIRE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 334.º E 1380.º, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - No âmbito da preferência legal em relação a prédio confinante, em caso de alienação da propriedade pelo titular do direito de preferência, o direito de preferir, já constituído mas ainda não exercido, transmite-se ao adquirente do prédio, excepto se ocorrer renúncia ou caducidade.

II - Em tal caso, a legitimidade para exercer o direito de preferência afere-se, não em relação à data da alienação do imóvel sujeito à preferência, mas por referência à data do efetivo exercício desse direito.

III - Não é abusivo o exercício do direito de preferência onze anos após a alienação do prédio, quando: 1) não há prova de que ocorreu, entretanto, um significativo aumento de valor do imóvel, que torne obsoleto o preço da venda; 2) não ocorreu subsequente transmissão do prédio; 3) a acção do preferente não criou no adquirente uma situação objetiva de confiança de que não seria exercido o direito.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

AA, com os sinais dos autos,

deduziu ação declarativa condenatória com processo comum contra

1.ºs - BB e mulher, CC, também com os sinais dos autos, e

2.ºs - DD e mulher, EE, ainda com os sinais dos autos,

formulando os seguintes pedidos:

a) Declarar-se que o negócio de doação titulado pela escritura referida no artigo 10.º da petição inicial é nulo por simulado;

b) Declarar-se que esse negócio encobre um negócio real de compra e venda, dos primeiros RR. aos segundos RR., do prédio identificado no artigo 9.º da petição inicial;

c) Em consequência, declarar-se que o negócio dissimulado de compra e venda é um negócio válido;

d) Declarar-se que a Autora tem direito de preferência na compra e venda do prédio identificado como «pinhal e mato sito no lugar da ..., freguesia ..., inscrito na matriz rústica dessa freguesia, sob o art.º ...14, confrontando do sul com o prédio da A., do norte com FF, nascente com a estrada e poente com o caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...50/...», pagando o preço referido na alínea seguinte;

e) Declarar-se que o preço pago foi de € 2.500,00, correspondente ao valor de mercado do prédio em causa;

f) Declarar-se, se se provar que o preço efetivamente pago foi inferior a € 2 500,00, o direito da A. a exercer a preferência, pagando esse preço;

g) Mas se porventura se provar que o preço pago pelos segundos RR. foi superior a € 2.500,00, mas não superior a € 3.000,00, que à A. lhe seja conferido o direito de preferência, pagando o preço praticado até ao limite de € 3.000,00;

h) Em consequência e em qualquer caso, declarar-se a A. substituída aos segundos RR. na compra do prédio em causa, autorizando-se as necessárias correções legais na Conservatória do Registo Predial ..., de modo a que o prédio resulte inscrito nesse registo a favor da A.;

i) Que seja restituída à A. a parte do montante depositado inferior a € 3.000,00, conforme se vier a provar.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- é proprietária do prédio rústico identificado no art.º 1.º da petição inicial (p. i.), por compra celebrada em 12/06/2008, o qual vem possuindo, mediante atos materiais que descreve, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a consciência de não lesar direitos de outrem, por mais de 30 anos, o qual confronta a norte com o prédio do 2.º R., obtido por este através de escritura pública de 07/08/2018, onde os 1.ºs RR. declararam doar aos 2.ºs o prédio rústico identificado no art.º 9.º da p. i.;

- negócio este que foi simulado, já que não se tratou de uma doação, mas de uma compra e venda, pelo que a doação é nula, estando a A. convicta de que o preço pago não foi superior a € 2.500,00;

- aquando da celebração do dito negócio jurídico, não foi dado conhecimento à A. das condições essenciais do mesmo e só há cerca de dois/três meses é que esta teve conhecimento da celebração da escritura pública.

Os RR. contestaram conjuntamente, concluindo pela improcedência da ação, deduzindo reconvenção (articulado de 11/10/2019) e pedido de intervenção principal provocada, nos seguintes moldes:

- impugnaram diversa factualidade alegada pela A., designadamente a relativa à existência de um negócio simulado, assim afirmando que ocorreu verdadeira doação;

- pela via reconvencional, vieram pedir que se reconheça que aos 2.ºs RR. assiste o direito de preferência e de haverem para si, substituindo-se à A. na qualidade de compradores, o prédio identificado no art.º 1.º da p. i., pelo preço de € 300,00, atribuído na respetiva escritura de compra e venda, adjudicando-se o mesmo àqueles em propriedade plena e ordenando-se o respetivo averbamento na Conservatória do Registo Predial, na descrição ...59/...;

- pela via incidental, pediram a intervenção principal provocada de GG, por forma a assegurar a legitimidade das partes para o pedido reconvencional.

Esgrimiram que:

- os prédios identificados nos art.ºs 1.º e 9.º da p. i., desde há mais de 30 anos, confrontam entre si, sendo aptos e destinados a cultura de pinhal e mato, tendo áreas inferiores à unidade de cultura fixada para a zona de ...;

- por escritura de justificação e de compra e venda de 12/06/2008, GG declarou vender à A., que declarou comprar, o prédio identificado no art.º 1.º da p. i., sem terem dado conhecimento à mãe do 1.º R. (na altura proprietária) ou aos 1.ºs RR., sendo certo que apenas com a citação para a presente ação é que ficaram a saber quem era a proprietária do prédio confinante e só no dia 27/09/2019 souberam que ela tinha comprado aquele prédio.

A A./Reconvinda apresentou réplica, pugnando pela improcedência da reconvenção e procedência da ação.

Foi admitida a requerida intervenção principal provocada, tendo o Chamado (GG, como «associado à Autora/Reconvinda») apresentado contestação, aderindo ao articulado da A., pugnando, pois, pela improcedência da reconvenção.

Dispensada a audiência prévia, saneado o processo, com admissão da reconvenção, e definidos o objeto do litígio e os temas da prova, prosseguiram os autos para julgamento.

Realizada a audiência final, com produção de provas, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

«Por todo o exposto, o Tribunal decide:

a) Julgar a ação totalmente improcedente, por não provada, absolvendo os Réus dos pedidos contra si formulados pela Autora;

b) Julgar a reconvenção totalmente procedente, por provada, e, em consequência,

- Reconhecer o direito de preferência dos 2.ºs Réus, DD e EE, na compra do prédio rústico denominado ..., situado em ..., composto por pinhal, com 1800 m2 de área total, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...59/20... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...15, substituindo-se aqueles à Autora na qualidade de compradores, pelo preço de € 300,00 (trezentos euros),

- Ordenar o cancelamento dos registos que a Autora tenha feito a seu favor sobre o aludido prédio.» (destaques subtraídos).

Inconformada, vem a A./Reconvinda interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([1])

«1. Inconformado com a sentença proferida pela Meritissima Juiz de ..., no processo referenciado, julgando improcedente a ação de preferência, e julgando procedente a reconvenção, em que os segundos réus pretenderam exercer o direito de preferência sobre o prédio da autora, interpôs esta, para Vªas Exªas o presente recurso de apelação.

2. O recurso teve por objeto a matéria de facto, para reapreciação da prova gravada, e documentos juntos, a matéria de direito invocada na sentença e a decisão proferida a final.

3. Entende-se que, devem ser alterados, completados ou revogados, os pontos 1, 2, 4, e 5, 8, 9, 11 e 12 dos factos dados como provados e assim:

4. Deve ser alterado o ponto 1, de modo a retificar o artº ...15, da freguesia ..., é um prédio rustico e não urbano.

5. Deve completar-se o ponto 2 dos factos provados, acrescentando um ponto 2-A, nos termos referidos a fls. 4 desta motivação, em face dos meios de prova indicados nos pontos 2 a 15 que aqui se consideram reproduzidos.

6. Deve ser acrescentado no ponto 4, dos factos provados, a menção de que o prédio aí referido está inscrito na matriz rustica.

7. No ponto 6 dos factos provados, deve acrescentar-se que HH faleceu em .../.../1992, e que a viúva II faleceu em .../.../2013.

8. Pelas razões de prova invocadas a pag. 15 desta motivação, a alteração tem interesse pelas razões que mais adiante, relativa à matéria de direito se vão alegar.

9. Ao ponto 8 dos factos provados deve acrescentar-se um ponto 8-A e um ponto 8-B, correspondente ao alegado nos artºs 15 e 16 da petição inicial, devendo os pontos 8-A e o ponto 8-B terem a redação constante de fls. 16 destas alegações, pelas razões constantes e pelos meios de prova indicados de fls. 16 a fls. 31 e que aqui se dão por reproduzidos.

10. Deve dar-se como não provado, o ponto 9 dos factos provados por manifesto erro na apreciação da prova, conforme as razões e meios de prova indicados a pag. 31 desta motivação aqui dados por reproduzidos.

11. Deve ser dado como não provado, o ponto 11 dos factos provados, pelas razões constantes de fls. 32, aqui dadas por reproduzidas.

12. Deve ser dado como não provado o facto dado como provado no ponto 12 dos factos provados.

13. Tudo conforme as razões e meios de prova indicados de fls. 32 a fls. 55 destas alegações, que aqui se dão por reproduzidos.

14. Relativamente à matéria de facto dada como não provada na sentença, deve a mesma sofrer as alterações que a seguir se indicam:

15. Os factos dados como não provados nos pontos a), b) e c), devem ser dados como provados.

16. Conforme razões de facto e de direito e meios de prova indicados a fls.57 e 58.

17. O facto da alínea d) deve dar-se como provado, e tem a sua base probatória, na avaliação do prédio adquirido pelos segundos réus, conjugado com o que adiante se dirá, relativo á existência de uma simulação relativa.

18. Os factos das alíneas f) e g), devem ser dados como provados, com base nos depoimentos referidos a fls. 59 que aqui se dão por reproduzidos.

19. O facto da alínea h) deve ser dado como provado, não só pelos depoimentos atrás indicados, mas também pelas razões constantes de fls. 60 e 61 e ainda pelo depoimento de JJ, citado a fls. 62 a 68 destas alegações e que aqui se dão por reproduzidas.

20. A motivação da matéria de facto, invocada pela Srª Juiz, merece ser criticada por ter dado prevalência ao declarado pelos réus considerando relevantes tais declarações para as decisões proferidas não valorizando o interesse que os réus têm na causa.

21. Mas desvalorizando o depoimento como testemunha do pai da autora, que não tem o interesse direto na causa, contrariamente aos réus, que têm esse interesse direto.

22. Por outro lado, desvalorizou os depoimentos das testemunhas indicadas pela autora pelo simples facto de serem conhecidos do pai da mesma.

23. O que salvo o devido respeito, parece um pouco absurdo.

24. Por outro lado, a Srª Juíza não considerou que, os réus apenas foram ouvidos em depoimento de parte.

25. Esse depoimento de parte, constitui prova por confissão e tem um objeto concreto, que são os pontos de facto indicados pela autora na sua petição inicial.

26. A Srª Juiz, conforme consta das respetivas datas, ordenou que das mesmas constassem que não havia lugar á assentada, por que não teria havido confissão dos réus, de quaisquer dos factos, objeto dos seus depoimentos de parte.

27. Mas acabou por valorizar o que extravasou o depoimento de parte, com infração ao disposto nos artºs 452º a 465º do C.P. Civil.

28. E, com base num depoimento que apenas poderia ser confessório, acabou por justificar a prova de facto, com base num depoimento que apenas poderia ser confessório.

29. Não atendendo a que não foram, requeridas declarações de parte, dos réus, essas sim, é que poderiam ter sido apreciadas livremente pelo Tribunal.

30. E por isso chegamos a uma situação em que a ação é julgada, praticamente apenas com a prova feita pelo que declararam os próprios réus.

31. No entender da recorrente, a mesma fez a prova de todos os requisitos necessários a ser-lhe reconhecido o direito de preferência na compra do prédio referido no ponto 5 dos factos provados.

32. Entende que nomeadamente fez a prova de todos os requisitos previstos no artº 1380º do C. Civil, disposição legal que terá sido violada pela sentença.

33. Igualmente entende que se encontra provada a simulação relativa, relativamente ao negócio celebrado entre os primeiros e segundos réus, pelas razões de facto já atrás indicadas e, pelas razões de direito constantes de fls. 76 a 79 que aqui se dão por integralmente reproduzidas, pelo que a sentença recorrida violou o disposto nos artºs 240º e 241º do C. Civil.

34. E relativamente à procedência do pedido reconvencional, deve o mesmo ser julgado improcedente.

35. Não existia qualquer direito de preferência a favor do réu BB, em Junho de 2008, já que o prédio confinante, com o adquirido pela autora em 12/06/2008, não era propriedade desse réu, mas sim da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai KK.

36. Nunca se poderia transmitir um direito não existente na pessoa do primeiro réu, ao segundo réu, com o negócio efetuado.

37. Da citação dos Professores Pires de Lima e Varela, constantes de fls. 80 e 81, o direito de preferência, se existisse, só o podia operar a favor do comprador, enquanto não decorresse o prazo que a Lei fixa para o respetivo exercício.

38. E também do Acórdão da Relação de Coimbra de 1/06/2004, a sentença recorrida não atentou no que aí se escreve - exceto se o alienante a ele tiver renunciado ou se tiver caducado. Ora,

39. Há muito que havia caducado qualquer pretenso direito de preferência, se existisse, decorridos mais de 11 anos.

40. Conforme referem os vários autores, o fundamento específico da caducidade, é o da necessidade de certeza jurídica.

41. Essa situação jurídica já se encontrava consolidada em 7/08/2018, nos termos do artº 1294º do C. Civil, pois que a autora, tinha um título legitimo de aquisição, possuía o prédio por si e antecessores por muito mais de 10 anos, e o prédio encontrava-se registado a seu favor, na respetiva Conservatória também há mais de 10 anos.

42. A usucapião, consolidara a situação jurídica, relativa à propriedade do prédio.

43. Aliás a caducidade, resultou dos vários testemunhos citados no texto destas alegações, aqui se dando por reproduzidos.

44. Os réus DD e mulher, não eram, proprietários de qualquer prédio confinante, quando a autora adquiriu o seu prédio em 2008, pelo que nunca poderiam ter qualquer direito de preferência, relativamente ao mesmo; decidindo o contrário a sentença violou o disposto no artº 1380º do C. Civil.

45. Os réus apenas depositaram 300,00 Euros, quando se tivessem algum direito de preferência, teriam de depositar não apenas o preço estritamente entendido, mas também as despesas referentes à escritura, IMT e registos.

46. Embora as últimas decisões dos Tribunais Superiores, tenham sido no sentido de que bastaria o deposito do preço estrito senso e não as restantes despesas, tal foi sempre criticado pela Doutrina, nomeadamente pelo Professor Vaz Serra e Professor Antunes Varela, nos locais citados a pag. 84 destas alegações.

47. Não houve qualquer mudança de opinião da autora, relativamente a esta questão, pois que a mesma não podia saber o que o segundo réu pagou de escritura, se fosse declarada uma compra e venda e como foi escriturada uma doação, não sabe quais os encargos que daí resultariam.

48. Finalmente, e por cautela de patrocínio, se invoca que os réus DD e mulher, ao pretenderem exercer um direito de preferência, se o tivessem que não têm, sempre agiriam com abuso de direito, ao tentar exercer esse direito, em termos clamorosamente ofensivos da justiça, e contra a segurança das relações jurídicas que por mais 11 anos haviam sido consolidadas.

49. Não tendo em consideração a existência de abuso de direito, a sentença recorrida violou também o disposto no artº 334º do C. Civil.

50. Invoca-se o Acórdão do S.T.J. de 19/10/2000, em que se considera ser exercido com abuso de direito, uma pretensão decorrido um certo lapso de tempo.

51. O abuso de direito é entendido numa conceção objetiva, conforme Acórdão do S.T.J. citados a pag. 86, sendo o abuso de direito de conhecimento oficioso, mesmo em sede de recurso.

52. Pelas razões expostas deve ser julgada a ação inteiramente procedente, condenando-se os réus em todos os pedidos formulados pela autora.

53. E devem julgar-se improcedentes os pedidos formulados pelo segundo réu, contra a autora, absolvendo-se a mesma, dos pedidos contra ela formulados.

Assim farão Vªa Exªas

JUSTIÇA.».

A contraparte contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.


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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, importa saber:

a) Se ocorre erro de julgamento de facto, obrigando à alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto [pontos impugnados nas conclusões da Apelante];

b) Se, contrariamente ao decidido, não assiste à parte reconvinte o pretendido direito de preferência, antes devendo ser a ação a colher procedência, para o que terá de saber-se:

1. - Da existência, no quadro da ação, de simulação e decorrente direito de preferência quanto ao negócio dissimulado;

2. - Da invalidade, no âmbito reconvencional, da transmissão do direito de preferência;

3. - Da caducidade deste direito;

4. - Do abuso do direito.


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III – Fundamentação

          A) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto

A Apelante manifesta inconformismo com a decisão da matéria de facto, pretendendo, desde logo, que, diversamente do decidido na 1.ª instância, sejam «alterados, completados ou revogados, os pontos 1, 2, 4, e 5, 8, 9, 11 e 12 dos factos dados como provados» (conclusão 3), com alteração também ao ponto 6 (cfr. conclusão 7), julgando-se, em contrapartida, como provados os factos das al.ªs a), b), c), d), f), g) e h) do quadro dado como não provado (cfr. conclusões 15 a 19).

Assim, a empreendida impugnação, pela sua abrangência, contempla a esmagadora maioria da factualidade julgada pela 1.ª instância, não se cingindo, pois, a alguns pontos controvertidos, sabido, todavia, que à Relação, embora procedendo a uma autónoma convicção perante as provas convocadas, não cabe, obviamente, realizar uma repetição do julgamento, não sendo por isso de acolher, por regra, a possibilidade de impugnação recursiva da totalidade da factualidade decidida pelo Tribunal a quo ([3]).

Porém, a mais dessa pretensão de sindicância da quase totalidade da factualidade relevante dos autos, é certo que a Recorrente observou os ónus legais a seu cargo (como definidos nos art.ºs 639.º, n.º 1, e 640.º, ambos do NCPCiv.), razão pela qual será de apreciar esta vertente do recurso, à luz das provas convocadas e no confronto com a justificação da convicção plasmada na sentença, sem perder de vista, ainda assim, que, por um lado, a modificação da decisão de facto pela Relação depende da demonstração de que a prova produzida impõe decisão diversa (cfr. art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.), e, por outro lado, ser a 1.ª instância que detém – diversamente da Relação – a imediação total perante a prova de cariz pessoal, pelo que é aquela (muito mais que o Tribunal ad quem) que está em melhores condições face à prova concreta produzida, no sentido de que à Relação, limitada à audição de uma gravação áudio, escapam necessariamente diversos aspetos e fatores (físicos, emocionais, psicológicos, comportamentais) que transparecem durante a prestação dos depoimentos em sala de audiências, que só o Tribunal a quo pode visualizar/percecionar e valorizar com conhecimento direto.

Vejamos, então.

Na conclusão 4, pede a Recorrente a alteração do ponto 1 dos factos dados como provados, de modo a retificar o art.º ...15, da freguesia ..., que é um prédio rústico e não urbano.

Daquele ponto 1 consta:

«1) Sob a AP. ... de 28-07-2008, encontra-se averbada a favor da Autora a aquisição, por compra, do prédio rústico denominado ..., situado em ..., composto por pinhal, com 1800 m2 de área total, que confronta com HH a norte, com LL a sul, com estrada a nascente e com caminho a poente, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...59/20... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...15. (artigos 1.º e 2.º da petição inicial e artigo 44.º da reconvenção)».

Ora, efetivamente, a A. aludiu na sua petição a um «prédio rústico» (art.º 1.º), como também consta do corpo descritivo deste ponto fáctico 1, sendo que, ademais, o documento 1 junto com a petição (alusivo à caderneta predial e que consta de fls. 18 do processo físico) também se reporta ao art.º matricial n.º 27115 da caderneta predial rústica.

Assim, nem faria sentido que um «prédio rústico» estivesse «inscrito na matriz predial urbana», devendo-se esta última referência, por isso, a manifesto lapso de escrita, que agora se corrige, como requerido.

Termos em que aquele ponto 1 passa a ter a seguinte redação:

«1) Sob a AP. ... de 28-07-2008, encontra-se averbada a favor da Autora a aquisição, por compra, do prédio rústico denominado ..., situado em ..., composto por pinhal, com 1800 m2 de área total, que confronta com HH a norte, com LL a sul, com estrada a nascente e com caminho a poente, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...59/20... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...15. (artigos 1.º e 2.º da petição inicial e artigo 44.º da reconvenção)».

Já o ponto 2 apresenta a seguinte redação:

«2) Por escritura pública denominada de «Justificação e Compra e Venda» outorgada no dia 12-06-2008, no Cartório Notarial ..., sito em ..., GG, denominado por «Primeiro», declarou ser dono e legítimo proprietário do prédio rústico identificado em 1) e que, pelo preço de € 300,00 (trezentos euros), o vendia à Autora, AA, no ato representada pelos seus pais, denominados por «Terceiros», por ser menor de idade. (artigos 4.º e 5.º da contestação e artigo 45.º da reconvenção)».

Nesta parte, pretende a A./Apelante um aditamento, traduzido no “acrescento” de «um ponto 2-A», com a redação indicada na motivação do recurso, qual seja, «que se consigne que na escritura de justificação de compra e venda referida no artº 4º da contestação como documento nº 1 junto com essa peça consta que os vendedores GG e mulher “ têm usufruído tal imóvel, cortando matos, lenhas, há mais de 20 anos ininterruptamente com o conhecimento de toda a gente e sem a oposição de quem quer que seja, sendo por isso uma posse continua, pública e pacifica pelo que o adquiriu por usucapião.”».

Pretende-se, então, que se consigne nos factos provados o que consta de um determinado documento (junto pelos RR., a fls. 60 e segs. do processo físico), uma «escritura de justificação de compra e venda», isto é, uma escritura de justificação notarial, onde o justificante (primeiro outorgante) afirma determinada factualidade (que lhe é favorável) perante o notário, a qual é depois confirmada, integralmente e em bloco, por três testemunhas, por si escolhidas (os ali identificados segundos outorgantes), exarando o notário as declarações assim proferidas, sem, obviamente, qualquer verificação a respeito da respetiva veracidade/autenticidade.

Acresce que mencionar – no quadro fáctico – que alguém tem “usufruído tal imóvel, cortando matos, lenhas, há mais de 20 anos ininterruptamente com o conhecimento de toda a gente e sem a oposição de quem quer que seja, sendo por isso uma posse continua, pública e pacifica pelo que o adquiriu por usucapião” encerra um conteúdo conclusivo/valorativo, que, como tal, não deve constar da parte fáctica da sentença (cfr. art.º 607.º, n.º s 3 a 5, do NCPCiv.).

Ao invés, se a A./Recorrente pretende a prova dessa materialidade, na parte em que encerra conteúdo fáctico, deveria submetê-la à prova contraditória no âmbito destes autos, materialidade concreta essa que nem se vê que tenha sido alegada, como tal, na petição, sendo os RR. quem, diversamente, veio juntar o documento.

Aliás, a A. alegou a sua posse – por si e antecessores –, com indicação de atos materiais, nos art.ºs 5.º e 6.º da sua petição, matéria que foi impugnada pelos RR. (cfr. art.º 3.º da contestação), pelo que caberia à mesma à A. o correspondente ónus da prova, através de prova que não deixasse dúvidas, para o que, claramente, não bastariam as ditas declarações exaradas, sem contraditório e sem verificação/controle, pelo justificante e testemunhas de antemão escolhidas.

Em suma, nada a alterar/aditar nesta parte, improcedendo as conclusões da impugnante em contrário.

Por seu lado, o ponto 4 tem a seguinte redação:

«4) O prédio mencionado em 3) encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ...14, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 9350/20..., sendo que sob a AP. ...97 de 14-08-2018 se encontra averbada a favor dos 2.ºs Réus, DD e EE, a aquisição, por doação, do prédio rústico, que confronta a norte com MM, a nascente com estrada, a sul com GG, a poente com caminho. (artigo 9.º da petição inicial e artigo 44.º da reconvenção)».

Pugna a impugnante por dever ser acrescentada a menção de que o prédio aí referido está inscrito na matriz rústica (conclusão 6), sendo que – diga-se desde já – lhe assiste razão, por tal se mostrar comprovado documentalmente, como decorre, desde logo, da caderneta predial e, bem assim, da certidão registral juntas como documentos 3 e 4 da petição (cfr. fls. 21 e 22 do processo físico).

Termos em que se defere o requerido, passando aquele ponto 4 a ter a seguinte redação:

«4) O prédio mencionado em 3) encontra-se inscrito na matriz rústica sob o artigo ...14, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 9350/20..., sendo que sob a AP. ...97 de 14-08-2018 se encontra averbada a favor dos 2.ºs Réus, DD e EE, a aquisição, por doação, do prédio rústico, que confronta a norte com MM, a nascente com estrada, a sul com GG, a poente com caminho. (artigo 9.º da petição inicial e artigo 44.º da reconvenção)».

Do ponto 6 consta:

«6) À data da escritura mencionada em 2), o prédio mencionado em 4) e 5) integrava o acervo hereditário do pai do 1.º Réu, HH, que deixou a suceder-lhe a viúva II e o seu único filho, o 1.º Réu. (artigo 46.º da reconvenção e artigo 26.º da réplica)».

Pretende a Apelante que se acrescente que HH faleceu em .../.../1992 e a viúva, II, faleceu em .../.../2013, aludindo às «razões de prova invocadas a pag. 15 desta motivação», sendo que «a alteração tem interesse pelas razões que mais adiante, relativa à matéria de direito se vão alegar» (conclusões 7 e 8).

Compulsada tal motivação, refere a impugnante que essas datas constam dos documentos juntos pelos RR., referentes às habilitações de herdeiros, sem outra identificação.

Ora, compulsados os autos, verifica-se que estamos perante matéria expressamente alegada pelos RR. e aceite pela A. (art.ºs 46.º da reconvenção e 26.º da réplica), a resultar confortada pelos documentos n.ºs 10 a 12 da contestação/reconvenção (os de fls. 88 e segs. do processo físico).

Assim, o dito ponto 6 passa a ter a seguinte redação:

«6) À data da escritura mencionada em 2), o prédio mencionado em 4) e 5) integrava o acervo hereditário do pai do 1.º Réu, HH, este falecido em .../.../1992, que deixou a suceder-lhe a viúva II, esta falecida em .../.../2013, e o seu único filho, o 1.º Réu. (artigo 46.º da reconvenção e artigo 26.º da réplica)».

No ponto 8 foi exarado na sentença:

«8) Há anos o pai da Autora mostrou interesse em adquirir o prédio identificado em 4). (artigo 15.º da petição inicial)».

Porém, esgrime a impugnante (conclusão 9) que devem ser acrescentados dois pontos, um ponto 8-A e um ponto 8-B, correspondentes ao alegado nos art.ºs 15 e 16 da petição (nos termos constantes de fls. 16 e segs. da motivação de recurso).

É a seguinte a redação proposta para aditamento:

- ponto 8-A:

«Há anos o prédio esteve em venda através de um tio do primeiro réu, residente em ..., mas tendo o pai da autora mostrado interesse em o adquirir, o referido tio, por más relações com o pai da autora, fez constar que não fazia negocio com ele»;

- ponto 8-B:

“Esse tio acabou por ser intermediário do negocio com o réu DD, levando o primeiro réu a transmiti-lo por escritura pública indicada no ponto 5 dos factos provados”.

Ora, logo se constata que esta factualidade (dos aludidos art.ºs 15 e 16 da petição) foi julgada não provada, como se retira das respostas negativas quanto às al.ªs f) e g) do quadro de facto dado como não provado na sentença.

A este propósito, o Tribunal a quo fundamentou assim a sua convicção (após análise detalhada da prova testemunhal):

«Foi esta, em síntese, a prova produzida no que diz respeito ao negócio celebrado entre o 1.º e o 2.º Réu. Da mesma apenas ressaltou que, efetivamente, os habitantes da localidade sabiam que o terreno está na posse do 2.º Réu, mas nada sabiam, em concreto, do negócio celebrado entre ambos. Já o 1.º Réu, aquando das suas declarações, assegurou que, apesar da ideia inicial fosse vender o terreno, uma vez que vendeu os pinheiros e o terreno ficou com um valor diminuto, decidiu oferecê-lo ao 2.º Réu, como reconhecimento da amizade mantida entre ambos e, bem assim, pela circunstância da família deste ter trabalhado para a sua família (vide supra). A restante prova produzida foi claudicante, discrepante e/ou apresentou uma versão que não vingou, com os fundamentos atrás expostos, pelo que, à luz da regra cristalizada no artigo 346.º do Código Civil (decidindo contra a parte onerada com a prova, a qual, como já alvoramos, é a Autora), não restou alternativa ao tribunal senão inserir os factos n.ºs 9, 10 e 12 nos factos provados e as alíneas d), e), h) e f) na factualidade não provada.

(…)

No que contende com os factos f) e g), o que resultou do depoimento do pai da autora, a testemunha JJ, é que tinha manifestado interesse em adquirir o prédio rústico perante NN, mas que o negócio não se concretizou porque este queria uma comissão. Assim sendo, soçobra a versão vertida na petição inicial, julgando-se não provada a factualidade cristalizada nas alíneas g) e h).».

A A./Apelante pretende, então, que tal factualidade, por si alegada, passe de não provada a provada, procurando valer-se de diversos elementos de prova pessoal (cujos excertos da respetiva gravação deixou transcritos).

Desde logo, o depoimento de parte da R. CC, ouvida em sessão de audiência de 22/09/2021, como consta da ata de fls. 181 e segs. do processo físico.

Todavia, logo tem de notar-se – apreciando – que, no âmbito do respetivo «depoimento de parte de Ré», foi exarado em ata que «(…) a Ré não admitiu qualquer facto que lhe fosse desfavorável, pelo que não se procede à assentada» (cfr. fls. 182 e 183 do processo físico), do que não foi apresentada qualquer reclamação.

Assim sendo, tem de concluir-se que o Tribunal cumpriu o disposto no art.º 463.º do NCPCiv., justificando a razão da não redução a escrito do depoimento, por ausência de confissão.

Ora, como é consabido, a prova por depoimento de parte – com regime diverso da prova por declarações de parte (esta prevista no art.º 466.º do NCPCiv. e sujeita à livre apreciação do Julgador, exceto se ocorrer confissão) – destina-se apenas (exclusivamente) à obtenção de confissão, que se traduz no reconhecimento que a parte faz de factualidade (“da realidade de um facto”) que lhe é desfavorável e favorece a contraparte (art.º 352.º do CCiv.), com força probatória plena no caso de confissão judicial escrita (art.º 358.º, n.º 1, do CCiv.) e caráter irretratável (art.º 465.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Assim sendo, de nada serve à Recorrente invocar excertos da gravação desse depoimento de parte para efeitos probatórios, quando é sabido que se conformou, no âmbito do disposto no art.º 463.º do NCPCiv. – mormente, o seu n.º 2 –, com o exarado em ata, no sentido de a dita R. não ter admitido qualquer facto que lhe fosse desfavorável, pelo que, por falta de confissão, não se procedeu à assentada (registo escrito).

Depois, o depoimento de parte do R. BB, ouvido seguidamente na mesma sessão de 22/09/2021, como consta da ata de fls. 183 do processo físico.

Porém, também neste âmbito foi exarado em ata que «(…) o Réu não admitiu qualquer facto que lhe fosse desfavorável, pelo que não se procede à assentada», do que, mais uma vez, não foi apresentada qualquer reclamação (cfr. fls. 183).

Donde que, também aqui, de nada sirva à Recorrente invocar excertos da gravação desse depoimento de parte para efeitos probatórios, quando é sabido que se conformou, no âmbito do disposto no art.º 463.º do NCPCiv. – mormente, o seu n.º 2 –, com o exarado em ata (ausência de confissão).

Mas a impugnante também invoca os depoimentos testemunhais de OO e JJ, oferecendo extensas transcrições.

Sobre estas – e outras – testemunhas pode ler-se na justificação da convicção da sentença:

«Avançando para a prova testemunhal produzida a respeito, como já tivemos oportunidade de aclarar, não tinham conhecimento direto dos termos do acordo celebrado entre os Réus, senão vejamos:

PP, que conhece o pai da Autora, a instâncias da Autora (não tendo passado despercebido que iniciou a pergunta sugerindo uma compra e venda) e questionado diretamente se sabia se o terreno tinha sido comprado ou dado, apenas confirmou que, em meados de 2019 (sem explicar o motivo pelo qual se lembra do ano), ouviu uma senhora (que nem soube dizer quem era) a comentar com JJ que o terreno tinha sido comprado pelo 2.º Réu e que os pinheiros tinham sido comprados por QQ.

Ora, como é bom de ver, o depoimento de PP demonstrou ser irrelevante, já que nem conseguiu precisar quem era a pessoa que conversava com o pai da autora, nem tampouco explicou por que motivo aludiu a 2019 e não a qualquer outro ano, não se vislumbrando o motivo pelo qual a testemunha se lembraria de uma conversa tão inócua como a alegadamente mantida entre JJ e a senhora que nem soube explicar quem era, apresentando, outro sim, uma versão curiosamente favorável à Autora (filha do seu conhecido JJ), apenas conseguindo precisar aquilo que interessava a esta, isto é, que ouviu dizer que o terreno foi comprado (e não dado). De qualquer forma e mesmo que se acreditasse nesta sua versão, este depoimento do «ouvi dizer», sem mais, nunca seria suscetível de sustentar a alegação da Autora, no sentido de que o prédio foi comprado e não doado.

Do mesmo modo, OO, conhecido do pai da autora, começou por dizer que «acha» que uma doação não pode ser (sem apresentar qualquer razão plausível para a sua afirmação, encerrando, por isso, um mero juízo de valor da sua parte) e que JJ lhe tinha dito que o NN lhe queria vender o terreno, mas que acabou por ser vendido ao 2.º Réu (sem, no entanto, saber os termos do negócio ou qualquer outro elemento do mesmo, asseverando tão só que ouviu uma conversa num café acerca da suposta venda, há cerca de 8 ou 10 anos). Afirmou ainda, sem apresentar razão de ciência (uma vez que não conhecia os 1.ºs Réus), que os donos do terreno queriam vendê-lo. Isto posto e como bem se compreende, também este depoimento se revelou abnóxio para o que a Autora pretendia provar, já que a testemunha nada sabia acerca do negócio celebrado entre os Réus, descrevendo apenas aquilo que o pai da autora (claramente interessado no desfecho desta causa) lhe tinha contado e o que alegadamente tinha ouvido no café. Quanto a esta conversa mantida num café, o por si contado não logrou convencer o tribunal, porque, além de o mesmo não divulgar qualquer detalhe acerca da mesma, não se demonstra plausível, nem consentâneo com as regras da experiência comum, que a testemunha, em nada interessada no prédio rústico em causa nos autos, prestasse atenção a essa conversa num café, nem que alguém estivesse a falar disso num local público de tal modo alto que todos os demais ouvissem.

Além do exposto, não podemos perder de vista que estamos perante um negócio atinente a um mero prédio rústico, com parco valor económico (segundo a alegação da Autora valeria, no máximo, € 2 500,00), e não perante um negócio astronómico e que despertasse o interesse de toda a população do local. Acresce que a única testemunha que assertou ter mantido uma conversa no café com o dito teor foi RR, no entanto, logo elucidou que a mesma ocorreu há cerca de 3 anos (e não 8 ou 10 anos) e que achava que ninguém tinha ouvido a conversa. Do mesmo modo e com os mesmos fundamentos, acabou por não vingar a versão da testemunha SS, uma que vez que, contrariamente ao mencionado por RR, ventilou que há cerca de quatro ou cinco anos (e não há cerca de 3 anos) ouviu uma conversa no café de que é proprietário, na qual a mulher do carteiro (que se veio a apurar ser a testemunha RR) lhe dizia que quem tinha comprado o pinhal ao lado do terreno da Autora foi o 2.º Réu (sendo certo que o «carteiro», RR, disse que essa conversa foi com NN, e não com a esposa). Do cotejo destes trechos dos depoimentos das testemunhas, no que diz respeito ao diálogo mantido no café, de imediato se perceciona que as mesmas vinham com uma versão afinada e que, como é natural, acabou por apresentar desacertos flagrantes e relevantes, como seja o ano em que ocorreu e os intervenientes, o que naturalmente não colhe credibilidade perante o Tribunal.

(…)

Passando para o depoimento de JJ, pai da autora, como já destacamos, o mesmo não pode ser apreciado nos mesmos moldes que os das restantes testemunhas, já que relevou ter manifesto interesse no desfecho do litígio, revelando ser mais parcial do que a sua própria filha, que é Autora e manifestou não ter sequer conhecimento dos poucos factos sobre os quais foi questionada. Assim, além daquilo que já deixamos dito aquando da análise do depoimento de TT, JJ afirmou que, no ano de 2010 ou de 2011, a senhora que prestava serviços domésticos em sua casa (a testemunha UU) comentou «então deixou fugir o pinhal?!», manifestando ter conhecimento do negócio efetuado entre os Réus, e que só em 2018 ou 2019 é que teve conhecimento que o prédio estava registado em nome do 2.º Réu e que o negócio foi uma doação. Ora, inquirida a testemunha UU, pela mesma foi dito que foi JJ quem, há cerca de 1 ou 2 anos, lhe transmitiu que o 2.º Réu comprou ao 1.º Réu o terreno e que, apesar de NN ter dito que lhe vendia o prédio, acabou por vendê-lo a um preço inferior ao 2.º Réu. Assim sendo, a única testemunha que permitia corroborar perifericamente o propalado por JJ, acabou por contar uma versão diametralmente oposta dos factos, quer no que diz respeito ao período temporal em que ocorreram (JJ disse que foi há cerca de 10 anos e UU disse que foi há cerca de 1 ou 2 anos), quer no que diz respeito ao teor da conversa. Neste conspecto, mais uma vez se diga, não podemos obliterar que JJ assume um interesse igual ao de uma parte nos presentes autos, apresentando uma versão que permitisse corroborar aquela que se encontra vertida na petição inicial, sendo certo que, como o próprio indicou, é ele quem gere e trata do prédio rústico da filha (a Autora), pelo que não há motivo para atribuir maior credibilidade à sua versão do que à da testemunha UU, antes pelo contrário, já que esta não revelou ter qualquer interesse na causa.».

Perante esta visão da prova, vejamos então o que esgrime a Apelante.

Da oferecida transcrição do depoimento de OO, constata-se a alusão a uma conversa, «talvez há mais de 10 anos» (com o «JJ», que falou «que ia comprar o pinhal»), sendo que depois ouviu dizer na povoação «que o senhor BB tinha comprado», «Já há bastante tempo», aludindo depois a uma conversa em que o NN disse que «já tinha vendido», sem falar em nomes.

Quanto ao aludido JJ, pai da autora, a transcrição reporta-se ao relato de que NN «Vendia os prédios todos que eles tiveram», sendo que chegou a propor a venda à testemunha, dizendo mais tarde (em 2010 ou 2011) que já vendera «os pinheiros ao QQ, ao QQ, que é primo» e «o terreno ao DD», retorquindo a testemunha que «quando eles puserem aquilo em nome deles eu tenho direito de opção e tiro-lhe isso». Por outro lado, em 2011, o próprio DD disse-lhe (foi a sua casa dizer-lhe) «que tinha comprado aquilo».

Ora, em análise crítica, confrontada a valoração do Julgador a quo, tal como explanada na justificação da convicção, com estas transcrições de depoimentos testemunhais, constata-se que o depoimento da primeira destas testemunhas se mostra vago e impreciso, destituído de riqueza de pormenores e encadeamento de factos, apenas aludindo ao que ouvira dizer, mas sem conhecimento concreto, direto e pessoal, enquanto o segundo depoimento (do pai da A.) se mostra claramente interessado no desfecho do caso (a favor da sua filha), apresentando-se a testemunha como quem «tinha direito de opção e tirava-lhes isso», isto é, apresentando as “dores” da própria A. (sua descendente), para além, também aqui, de notada falta de riqueza de pormenores e encadeamento de factos, tornando o depoimento de fraco valor persuasivo e, consequentemente, probatório.

Em suma, não se mostra, salvo o devido respeito, que o Tribunal recorrido tenha, nesta parte, incorrido em erro de apreciação/valoração e, consequentemente, errado julgamento de facto.

Passando agora ao ponto 9, invoca a Recorrente que o mesmo enferma de manifesto erro na apreciação da prova, devendo ser dado como não provado (conclusão 10).

Esse ponto tem o seguinte teor:

«9) O 2.º Réu foi caseiro de familiares do 1.º Réu há mais de 45 anos e desde os 4,5 anos que aqueles brincavam juntos na aldeia de ..., onde os 1.ºs Réus são proprietários de uma habitação que dista cerca de 100 metros da habitação dos 2.ºs Réus. (artigos 29.º e 30.º da contestação)».

Constata-se, porém, que a motivação do recurso se centra (apenas) na primeira parte deste ponto fáctico [“O segundo réu foi caseiro de familiares do primeiro réu há mais de 45 anos”], dizendo a Apelante:

«Conforme consta da ata de julgamento de 22 de Setembro de 2021, relativo à identificação do segundo réu DD, é indicada a data de nascimento de .../.../1952.

Há 45 anos, tinha o mesmo 7 anos de idade.

Como esta ação entrou em 2019, tinha apenas 5 anos de idade contados desde o seu nascimento até à entrada da ação.

Assim, como é possível dar-se como provado que há mais de 45 anos, o réu DD, fora caseiro de familiares do primeiro réu!

Nem é preciso invocar as regras da experiência comum por tal facto ser despido de toda a realidade…».

Ora, se nasceu em 1952, em 2019 perfez 67 anos de idade; por isso, deduzindo 45 anos, obtemos 22 anos, idade bem mais aceitável – em termos de razoabilidade, à luz das regras da lógica e da experiência comum – para o exercício das funções indicadas do que os 5 ou 7 anos de idade a que alude, certamente por lapso, a impugnante.

Donde que, com este fundamento, nada haja a alterar, posto não se ter evidenciado prova que imponha decisão diversa (cfr. art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Prosseguindo, o impugnado ponto 11 – que a Recorrente pretende que seja dado como não provado, «pelas razões constantes de fls. 32» – tem a seguinte redação:

«11) Há cerca de 7, 8 anos, os 1.ºs Réus decidiram vender só as árvores existentes no pinhal. (artigo 35.º da contestação)».

Tais razões prendem-se com o «que foi alegado relativo à alínea anterior e com base na prova testemunhal aí referida», bem como na confissão do 1.º R..

Assim sendo, sem necessidade de outras considerações, vale de pleno a análise probatória que antecede, seja quanto a tal convocada prova testemunhal, seja quanto ao dito depoimento de parte de R., que não contém qualquer registada confissão, do que não houve oportuna reclamação, impedindo que agora se pretenda utilizar parcelas da gravação do respetivo depoimento de parte para fins probatórios.

Improcede, pois, também esta vertente da impugnação recursiva.

Quanto agora ao ponto 12 dos factos julgados provados – do qual consta, em alguma ligação ao ponto anterior, que «Pela relação de amizade que mantinha com os 2.ºs Réus, os 1.ºs Réus decidiram celebrar o acordo mencionado em 5). (artigo 37.º da contestação)» –, pretende a Recorrente que se profira juízo negativo, de acordo com «as razões e meios de prova indicados de fls. 32 a fls. 55 destas alegações» (conclusões 12 e 13).

Na sua fundamentação da convicção, o Julgador recorrido exprimiu-se assim, depois de aludir ao declarado em prestados depoimentos de parte:

«A restante prova produzida foi claudicante, discrepante e/ou apresentou uma versão que não vingou, com os fundamentos atrás expostos, pelo que, à luz da regra cristalizada no artigo 346.º do Código Civil (decidindo contra a parte onerada com a prova, a qual, como já alvoramos, é a Autora), não restou alternativa ao tribunal senão inserir os factos n.ºs 9, 10 e 12 nos factos provados e as alíneas d), e), h) e f) na factualidade não provada.».

Ora, tem de concordar-se, como visto antes, que a prova por depoimento de parte (de RR.) não pode aqui ser usada – visto não ocorrer «confissão» –, sabido, todavia, que o ónus da prova da matéria atinente à invocada simulação (teria sido querida uma venda em vez de uma doação) cabe à A./Apelante (art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.).

Vejamos, então, a prova que a impugnante convoca para demonstrar que se tratou de uma intencionada compra e venda (em vez de doação, sendo este o negócio declarado e não o de compra e venda), de molde a poder concluir-se pela existência de divergência entre a vontade declarada e a alegada vontade real de venda.

Ora, da prova testemunhal convocada resulta, como já dito na sentença, a falta do necessário conhecimento direto e pessoal por parte das testemunhas sobre factos ou circunstâncias relevantes para determinação da real intenção das partes no negócio, tratando-se, essencialmente, de testemunhos de «ouvir dizer», sem conhecimento direto e concreto do ocorrido ou de circunstâncias que, com segurança, permitam concluir que foi negociada uma doação para esconder uma pretendida venda, com um determinado preço, que haja sido efetivamente pago ([4]).

Acrescem as contradições/desencontros, pormenorizadamente elencados na fundamentação da convicção da 1.ª instância, quanto aos relatos das testemunhas que depuseram a respeito, o que fragiliza os depoimentos e abala a respetiva credibilidade, tanto mais que inelutavelmente sujeitos a uma essencial falta de conhecimento pessoal/direto e a inequívoca vacuidade.

Donde que não se mostre corporizado o pretendido erro de julgamento de facto.

Passando à impugnação da decisão referente a factos julgados não provados, pretende a Recorrente, desde logo, que se emita julgamento positivo (de «provado») quanto às al.ªs a) a c), as quais apresentam o seguinte teor:

«a) Por si e seus antecessores, a Autora vem possuindo o prédio descrito em 1), nele cortando lenhas e matos, aparando os pinheiros, limpando o terreno e extraindo dele todas as utilidades que é suscetível de proporcionar e suportando os respetivos encargos. (artigo 5.º da petição inicial)

b) À vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a consciência de não lesar direitos de outras pessoas e a convicção de exercer um direito de proprietária, continuadamente, por muito mais de 15, 20, 30 anos. (artigo 6.º da petição inicial)

c) Após a transmissão do prédio identificado em 1), todas as árvores nele existentes foram cortadas e vendidas pelo pai da Autora, tendo o prédio sido desterrado e nunca mais produziu pinhal, tão somente mato. (artigo 16.º da contestação)».

O Julgador a quo entendeu assim:

«O juízo probatório negativo formulado quanto aos factos a) e b) fundou-se na ausência de prova que os sustentasse por banda da Autora, a quem pertencia o onus probandi, nomeadamente, nenhuma testemunha inquirida em sede de audiência os relatou.

Do mesmo modo, não foi produzida prova bastante suscetível de sustentar o facto vertido na alínea c), cujo ónus da prova competia aos Réus.».

Começa por invocar a impugnante a escritura de justificação (notarial) e compra e venda já aludida, a qual provaria os factos alusivos aos atos materiais de posse ali descritos.

Porém, como já se viu, a materialidade em causa deveria ser submetida à prova contraditória no âmbito destes autos, prova essa que não deixasse dúvidas, para o que não bastam as ditas declarações exaradas, sem contraditório e sem verificação/controle, pelo justificante e testemunhas de antemão escolhidas em escritura de justificação notarial.

Por outro lado, essa prova também não pode fazer-se, logicamente, através da invocação de preceitos de direito substantivo (como os convocados art.ºs 1263.º, 1265.º, 1264.º ou 1254.º, todos do CCiv.), cujo campo de atuação é o da fundamentação jurídica da sentença (matéria de direito), isto é, depois de estabelecido o quadro fáctico a atender.

Resta a invocada prova testemunhal: «PP, ( pag. 4 a 6 destas alegações), OO, ( pag. 7 e 8 desta motivação), SS, TT, JJ (pag. 9 a 12 desta motivação) e VV.».

Ora, sopesados os excertos/transcrições da gravação, tal como convocados a este respeito pela A./Apelante, fica-se com a mesma perceção de «ausência de prova» relevante a que alude a sentença, posto as aludidas testemunhas nada esclarecerem, salvo o devido respeito, quanto a atos materiais praticados pelos «antecessores» ou mesmo pela A., a qual «está lá para ...» (como referido pelo seu pai, a única testemunha que concretizou os atos que afirmou praticar sobre o terreno), nada sendo explicitado, de forma consistente e com riqueza e encadeamento de pormenores, em termos de duração e continuidade de atos materiais (mormente, anteriormente à aquisição, isto é, quanto aos antecessores), nem que tal ocorresse, e desde quando, «à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a consciência de não lesar direitos de outras pessoas e a convicção de exercer um direito de proprietária, continuadamente, por muito mais de 15, 20, 30 anos».

Em suma, é de manter, por falta de prova convincente, o juízo negativo sobre esta matéria, não se mostrando que tenha ocorrido erro de julgamento.

Por sua vez, a al.ª d) tem o seguinte teor:

«d) Aquando do acordo mencionado em 5), os 2.ºs Réus pagaram aos 1.ºs Réus um preço não superior a € 2 500,00 (dois mil e quinhentos euros). (artigos 11.º e 25.º da petição inicial)».

Trata-se, como logo se perceciona, de factualidade relacionada com a alegada simulação, cuja materialidade de suporte não resultou provada (como já visto), sendo que nenhuma prova convocada foi esclarecedora no sentido de afirmar o pagamento daquele ou de qualquer outro preço.

Donde que seja de manter o julgamento de não provado.

Já as al.ªs f), g) e h), também objeto de impugnação (conclusões 18 e 19), têm a seguinte redação:

«f) (…) mas, por existirem más relações pessoais entre aquele e o tio do 1.º Réu, este fez constar que não celebrava o negócio com ele. (artigo 15.º da petição inicial)

g) Esse tio foi o intermediário no acordo celebrado com o 2.º Réu, DD. (artigo 16.º da petição inicial)

h) Os Réus atuaram por acordo, com o propósito de enganar a Autora, fazendo uma declaração negocial que não correspondia à sua vontade. (artigo 19.º da petição inicial)».

Continua a tratar-se de factualidade relacionada com a alegada simulação, cuja materialidade de suporte não resultou provada, sendo que nenhuma prova convocada (incluindo as aludidas testemunhas, numa análise de conjunto) foi esclarecedora e consistente – com o necessário conhecimento pessoal e direto, em depoimentos com riqueza e encadeamento de pormenores, de molde a convencer ([5]) – no sentido de afirmar o pagamento de qualquer preço e de haver um propósito de enganar a A., fazendo-se, para tanto, uma declaração negocial que não correspondesse à vontade real dos declarantes.

Donde que seja de manter o julgamento de não provado.

De notar, por fim, que a Apelante, no seu acervo conclusivo, apenas alude, em jeito de impugnação, a estas referidas alíneas do quadro fáctico dado como não provado (cfr. conclusões 14 e segs.), não mencionando quaisquer outras, como a al.ª k) – ou j) –, a que se refere na sua motivação/alegação, mas sem transposição para as conclusões recursivas (cfr. conclusões 20 e segs.).

Por isso, sabido que são as conclusões de definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, não se apreciará a matéria da dita al.ª k), ou outra, já que não contemplada naquele acervo conclusivo [limitado às al.ªs a) a d) e f) a h)] ([6]).

 

B) Matéria de facto

1. - Sindicada já a decisão de facto – com as inerentes alterações introduzidas pela Relação –, é a seguinte a factualidade apurada:

«1) Sob a AP. ... de 28-07-2008, encontra-se averbada a favor da Autora a aquisição, por compra, do prédio rústico denominado ..., situado em ..., composto por pinhal, com 1800 m2 de área total, que confronta com HH a norte, com LL a sul, com estrada a nascente e com caminho a poente, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...59/20... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...15. (artigos 1.º e 2.º da petição inicial e artigo 44.º da reconvenção) [ALTERADO]

2) Por escritura pública denominada de «Justificação e Compra e Venda» outorgada no dia 12-06-2008, no Cartório Notarial ..., sito em ..., GG, denominado por «Primeiro», declarou ser dono e legítimo proprietário do prédio rústico identificado em 1) e que, pelo preço de € 300,00 (trezentos euros), o vendia à Autora, AA, no ato representada pelos seus pais, denominados por «Terceiros», por ser menor de idade. (artigos 4.º e 5.º da contestação e artigo 45.º da reconvenção)

3) Confrontando a norte com o prédio identificado em 1), existe outro prédio, composto por pinhal e com área de 1920 m2. (artigo 8.º da petição inicial e artigo 44.º da reconvenção)

4) O prédio mencionado em 3) encontra-se inscrito na matriz rústica sob o artigo ...14, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 9350/20..., sendo que sob a AP. ...97 de 14-08-2018 se encontra averbada a favor dos 2.ºs Réus, DD e EE, a aquisição, por doação, do prédio rústico, que confronta a norte com MM, a nascente com estrada, a sul com GG, a poente com caminho. (artigo 9.º da petição inicial e artigo 44.º da reconvenção) [ALTERADO]

5) Por escritura pública denominada de «Doação», outorgada no dia 07-08-2018, no Cartório Notarial ..., o 1.º Réu, BB, casado com CC, na qualidade de «primeiros outorgantes», declarou doar aos 2.ºs Réus, na qualidade de «segundos outorgantes», o prédio identificado em 3) e 4), fazendo ainda constar, nomeadamente, que «(…) o prédio agora transmitido, integra a herança de II, que também usava e era conhecida por II, da qual foi seu único herdeiro, o seu único filho, o referido BB, aqui primeiro outorgante marido, (…)». (artigo 10.º da petição inicial)

6) À data da escritura mencionada em 2), o prédio mencionado em 4) e 5) integrava o acervo hereditário do pai do 1.º Réu, HH, este falecido em .../.../1992, que deixou a suceder-lhe a viúva II, esta falecida em .../.../2013, e o seu único filho, o 1.º Réu. (artigo 46.º da reconvenção e artigo 26.º da réplica) [ALTERADO]

7) Os prédios identificados em 1) e 4) confrontam entre si e destinam-se a cultura de pinhal. (artigos 35.º, alíneas a) e b) da petição inicial e 22.º da contestação).

8) Há anos o pai da Autora mostrou interesse em adquirir o prédio identificado em 4). (artigo 15.º da petição inicial)

9) O 2.º Réu foi caseiro de familiares do 1.º Réu há mais de 45 anos e desde os 4,5 anos que aqueles brincavam juntos na aldeia de ..., onde os 1.ºs Réus são proprietários de uma habitação que dista cerca de 100 metros da habitação dos 2.ºs Réus. (artigos 29.º e 30.º da contestação)

10) Essa amizade foi-se estreitando e quando o 1.º Réu vinha passar férias a ... convivia com o 2.º Réu. (artigo 32.º da contestação)

11) Há cerca de 7, 8 anos, os 1.ºs Réus decidiram vender só as árvores existentes no pinhal. (artigo 35.º da contestação)

12) Pela relação de amizade que mantinha com os 2.ºs Réus, os 1.ºs Réus decidiram celebrar o acordo mencionado em 5). (artigo 37.º da contestação)

13) A 12-06-2008 a Autora não era proprietária de qualquer prédio rústico confinante a sul. (artigo 50.º da reconvenção)».

2. - E permanece julgado como não provado:

«a) Por si e seus antecessores, a Autora vem possuindo o prédio descrito em 1), nele cortando lenhas e matos, aparando os pinheiros, limpando o terreno e extraindo dele todas as utilidades que é suscetível de proporcionar e suportando os respetivos encargos. (artigo 5.º da petição inicial)

b) À vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a consciência de não lesar direitos de outras pessoas e a convicção de exercer um direito de proprietária, continuadamente, por muito mais de 15, 20, 30 anos. (artigo 6.º da petição inicial)

c) Após a transmissão do prédio identificado em 1), todas as árvores nele existentes foram cortadas e vendidas pelo pai da Autora, tendo o prédio sido desterrado e nunca mais produziu pinhal, tão somente mato. (artigo 16.º da contestação)

d) Aquando do acordo mencionado em 5), os 2.ºs Réus pagaram aos 1.ºs Réus um preço não superior a € 2 500,00 (dois mil e quinhentos euros). (artigos 11.º e 25.º da petição inicial)

e) Entre os Réus não existe qualquer relação de amizade. (artigo 14.º da petição inicial)

f) (…) mas, por existirem más relações pessoais entre aquele e o tio do 1.º Réu, este fez constar que não celebrava o negócio com ele. (artigo 15.º da petição inicial)

g) Esse tio foi o intermediário no acordo celebrado com o 2.º Réu, DD. (artigo 16.º da petição inicial)

h) Os Réus atuaram por acordo, com o propósito de enganar a Autora, fazendo uma declaração negocial que não correspondia à sua vontade. (artigo 19.º da petição inicial)

i) Os herdeiros da herança aberta por óbito de HH tiveram conhecimento do negócio mencionado em 2), bem como do respetivo registo efetuado pela Autora, através do seu pai. (artigos 26.º, 28.º e 30.º da réplica e artigo 47.º da reconvenção)

j) À data da escritura pública mencionada em 5), os 1.ºs Réus deram conhecimento à Autora da pessoa do comprador, a data da escritura, o preço e as respetivas condições de pagamento. (artigo 31.º da petição inicial)

k) A Autora teve conhecimento da outorga da escritura referida em 5) cerca de dois, três meses, antes da propositura da ação. (artigo 32.º da petição inicial)

l) (…) por cerca de € 5 000,00 (cinco mil euros). (artigo 35.º da contestação)

m) VV soube do negócio mencionado em 2) e deu conhecimento do mesmo aos Réus. (artigos 8.º e 10.º do articulado do Chamado)».


***

C) Substância jurídica do recurso

1. - Da simulação

Nas suas conclusões 31 a 33, defende a Recorrente estar demonstrada a existência da alegada simulação relativa (uma declarada doação a encobrir uma pretendida e real compra e venda), concorrendo todos os requisitos necessários ao reconhecimento do seu direito de preferência na alienação/venda do prédio em perspetiva na ação.

Donde que deva começar-se pela invocada simulação.

É por demais consabido quais os requisitos da simulação absoluta, impondo-se “a verificação simultânea de três requisitos: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório e o intuito de enganar terceiros (que se não deve confundir com o intuito de prejudicar)”, sendo também incontroverso que o “ónus da prova dos factos integradores de tais requisitos (os elementos que constituem o instituto jurídico da simulação), porque constitutivos do respectivo direito, cabe, segundo as regras gerais nesta matéria, a quem invoca a simulação” ([7]).

A simulação relativa – a que agora importa – tem, por seu lado, a especificidade de, sob o negócio simulado, existir um outro que as partes quiseram realizar, caso em que é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se houvesse sido concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada, por regra, pela nulidade do negócio simulado (cfr. art.º 241.º do CCiv.).

Em matéria de direito, a Apelante fundava-se, neste âmbito, no sucesso da sua impugnação da decisão de facto, para, logrando demonstrar erro de julgamento do Tribunal a quo relativamente à matéria de facto, mostrar que outra deveria ter sido, do mesmo modo, a solução jurídica da causa, pois que sem demonstração da simulação não poderiam proceder os pedidos da ação, julgados improcedentes pela 1.ª instância ([8]).

Ora, como visto, a empreendida impugnação da decisão de facto não logrou proceder, mantendo-se não provados os factos do quadro factual julgado não provado da sentença em crise, designadamente, quanto ao que agora importa, que, aquando do acordo mencionado em 5), os 2.ºs RR. pagaram aos 1.ºs Réus um preço [al.ª d)], e que os RR. atuaram por acordo, com o propósito de enganar a A., fazendo uma declaração negocial que não correspondia à sua vontade [al.ª h)].

Assim, não logrou a A. provar, como lhe competia – por ser seu o ónus probatório e se tratar de factualidade essencial à procedência dos seus pedidos –, os diversos requisitos cumulativos da alegada doação simulada (e venda dissimulada), tal como antes enunciados.

Ao invés, mantém-se como provado que, por escritura pública de «Doação», o 1.º R. declarou doar aos 2.ºs RR. o prédio identificado em 3) e 4), tendo as partes decidido celebrar tal acordo/negócio em virtude da relação de amizade que mantinham entre si [factos 5 e 12].

Tal é quanto basta – ante o quadro fáctico julgado provado e o não provado dos autos, não se mostrando que tenha ocorrido, desde logo, qualquer divergência entre a vontade e a declaração – para se dever concluir pela não verificação dos requisitos da invocada simulação (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), impedindo a pretendida declaração consequente de nulidade do negócio de doação (por via desse vício), que se mantém, tal como terá de manter-se, nesta parte, a decisão absolutória proferida quanto aos demais pedidos, a que também se reporta o recurso (existência de um contrato dissimulado/real de compra e venda, que pudesse ser declarado válido, e decorrente direito de preferência perante a compra e venda, deixando, assim, inelutavelmente prejudicados todos os demais pedidos subsequentes, por dependentes daqueles).

2. - Da matéria reconvencional

2.1. - Da invalidade da transmissão do direito de preferência

Resta a pretensão reconvencional, em que os 2.ºs RR. obtiveram ganho de causa, com o reconhecimento do seu invocado direito de preferência, situação com a qual a A./Reconvinda/Apelante não se conforma.

Na sentença em crise foi entendido que o direito potestativo de preferência legal – quanto ao prédio adquirido pela A. em 12/06/2008, mediante compra e venda –, constituído anteriormente à transmissão para os 2.ºs RR. (esta ocorrida em 07/08/2018), se transferiu para tais RR. (adquirentes/donatários), que o vieram exercer nos autos, pela via reconvencional, embora não fossem proprietários confinantes ao tempo daquela aquisição pela A./Reconvinda (negócio agora sob preferência).

E é certo, nesta senda, que Pires de Lima e Antunes Varela defendem que «Se, após a verificação de todos os pressupostos do direito real de preferência, o preferente vender o seu prédio antes de exercer o direito, este transmite-se ao adquirente, que poderá fazê-lo nas mesmas condições, enquanto não decorrer o prazo que a lei fixa para o respetivo exercício (…)» ([9]).

Na mesma linha de entendimento se posicionou o Ac. TRC de 01/06/2004 ([10]), em cujo sumário pode ler-se:

«1. O direito de preferência previsto no art. 1380° do CC, porque não estabelecido “intuitu presonae” transmite-se ao adquirente do prédio, excepto se o alienante a ele tiver renunciado ou se tiver caducado;

2. A legitimidade para o exercício do direito de preferência deve ser aferida em relação à data em que é exercido tal direito e não em relação à data da alienação, pelo que o direito deve ser exercido pelo titular do direito de propriedade do terreno confinante ao tempo da propositura da acção; (…)».

Contrapõe a Apelante que não existia qualquer direito de preferência a favor do 1.º R., BB, em junho de 2008, já que o prédio não era pertença deste, mas da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, KK.

Ora, da factualidade provada resulta que quem outorgou na transmissão do imóvel (por doação) para os 2.ºs RR. foi aquele 1.º Réu, casado com CC, na qualidade de «primeiros outorgantes», fazendo, todavia, constar que o prédio integra a herança de II, da qual foi seu único herdeiro, o seu único filho, o referido BB, aqui primeiro outorgante marido (facto 5).

Sabido que, à data da escritura de venda para a A. (12/06/2008), o prédio que veio a ser transmitido aos 2.ºs RR. integrava o acervo hereditário do pai do 1.º Réu, HH (falecido em .../.../1992), que deixou a suceder-lhe a viúva II, esta falecida em .../.../2013, e o seu único filho, o 1.º R. (facto 6).

Quer dizer, quando se constituiu o direito de preferência (ano de 2008), o imóvel integrava a herança daquele HH, de que eram herdeiros a viúva e o filho (1.º R.). Portanto, o direito cabia à herança (ilíquida e indivisa).

Com o óbito da viúva, em 2013, abriu-se também a herança desta, de que era herdeiro único o 1.º R., que veio a outorgar na doação para os 2.ºs RR. em 2018, donde que deva concluir-se que o imóvel integrava aquelas heranças, de que era herdeiro único o 1.º R., que outorgou na doação, com a decorrente transmissão do direito de propriedade.

Com a transmissão deste, transmitiu-se também o aludido direito potestativo legal de preferência do acervo hereditário (doador), com representação pelo dito outorgante (único herdeiro), para os donatários (2.ºs RR.).

Donde que, assim perspetivadas as coisas – em termos de substância –, nada se veja que possa obstar à transmissão (e respetiva validade) de tal direito de preferência, não propriamente pelo “transmitente” 1.º R., mas por aquele transmitente acervo hereditário, representado por este R./outorgante, para a esfera jurídica dos 2.ºs RR. (adquirentes), assim decaindo, salvo o devido respeito, o argumentado sob as conclusões 35.ª e 36.ª da Recorrente.

2.2. - Da caducidade do direito de preferência

Esgrime ainda a Apelante que, passados mais de onze anos, há muito havia caducado o dito direito de preferência, para o que convoca o disposto no art.º 1294.º do CCiv., por dispor de título de aquisição e registo deste, donde que a usucapião consolidasse a situação jurídica quanto à propriedade do imóvel na esfera jurídica da A./Recorrente (conclusões 39 e segs. desta).

Porém, cabe dizer que não está em causa a aquisição do direito de propriedade pela A., que invocou nos autos ter adquirido o imóvel por contrato de compra e venda, com registo de aquisição e operância até da usucapião.

Mas, precisamente, por ter adquirido através de contrato de compra e venda é que se coloca a questão do direito de preferência perante uma tal transmissão/venda a favor de um proprietário de prédio confinante ou daquele para quem este veio depois a transmitir validamente esse prédio.

Assim, a aquisição do domínio pela A. não é obstáculo, mas pressuposto, do invocado direito de preferência (nessa aquisição), razão pela qual não pode proceder a invocação da acessão da posse (soma da posse da A. com a dos seus antecessores) para, em nome da consolidação do domínio, afastar a preferência.

Depois, a Apelante invoca que a caducidade (matéria de direito) resultou de «vários testemunhos» (provas), o que também não pode proceder, posto essa matéria jurídica não poder extrair-se das provas mas dos factos provados, sendo que destes nada resulta que permita ilustrar tal caducidade ([11]), cujo ónus da alegação e prova, enquanto matéria de exceção (art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.), cabia à Reconvinte/Recorrente ([12]).

Mais esgrime a Recorrente que os 2.ºs RR. apenas depositaram o valor do preço – € 300,00 –, faltando «depositar não apenas o preço estritamente entendido, mas também as despesas referentes à escritura, IMT e registos», muito embora logo admitindo que «as últimas decisões dos Tribunais Superiores, tenham sido no sentido de que bastaria o deposito do preço estrito senso e não as restantes despesas» (conclusões 45 e 46).

Ora, é certo que na sentença se expendeu a este respeito que, «(…) atualmente, é pacífico que o preço a ser depositado na ação de preferência respeita apenas à contraprestação paga pelo adquirente ao alienante, não abrangendo quaisquer outras despesas, nomeadamente impostos ou registos, entendimento este que subscrevemos na íntegra (vide, entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-04-1973, processo n.º 064460, de 10-12-1992, processo n.º 082353, de 10 de janeiro de 2008, processo n.º 07B3588 e de 01-04-2014, processo n.º 854/07.0TBLMG.P1.S1, acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de setembro de 2007, processo n.º 296/1998.C1, de 20-01-2015, processo n.º 360/12.0TBCNF.C1 e de 18-05-2021, processo n.º 178/19.0T8MBR.C1, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24-11-2016, processo n.º 234/09.2TBVLP.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).».

Sobre esta matéria foi expendido já em aresto desta Relação ([13]) que:

«Muito embora não se trate de uma questão de todo pacífica, vem, todavia, hoje constituindo entendimento dominante da nossa jurisprudência, e sobretudo do nosso mais alto tribunal, e ao qual vimos aderindo, que a expressão “preço devido” a que se refere o citado artº. 1410º, nº. 1, apenas diz respeito à contraprestação paga, tout court, pelo adquirente ao vendedor/alienante, ou seja, ao custo monetário correspondente ao valor da coisa alienada, não abrangendo, assim, quaisquer outro tipo de despesas, relacionadas ou ocasionadas pelo negócio, as quais a existirem, e a não terem sido depositadas, devem ser reclamadas pelo credor por via reconvencional ou em ação própria. (Vide neste sentido, e por todos, Acs. do STJ de 22/2/2005, in “CJ, Acs. do STJ, Ano XIII, T1 – 92”; de 7/3/95 e de 17/3/93, in “www.dgsi.pt/jstj”; de 2/3/99, in “Agravo nº. 24/99, 1ª. sec.”; de 9/11/2004, in “Revista nº. 3373/04”; de 13/3/2003, in “Revista nº. 288/03, 2ª. sec.” e de 19/4/2001, in “Revista nº. 270/01, 7ª. sec.” e Acs. da RC de 18/10/94 e de 7/6/94, respetivamente, in “BMJ nº. 440 – 552 e BMJ nº. 438 – 558” e o prof. Oliveira Ascensão, in “Rev. Trib. 93 - 147”).».

Concorda-se com esta perspetiva jurisprudencial, seguida, como visto, nesta Relação e também na decisão em crise, pelo que nada haverá a alterar à sentença nesta parte.

2.3. - Do abuso do direito de preferência

Por fim, invoca agora a Recorrente – guardou esta matéria para o recurso ([14]), não a sujeitando a decisão pela 1.ª instância, arriscando algum efeito surpresa – o abuso do direito, suscitando, pois, uma questão nova em sede de recurso, de que apenas se conhecerá por estarmos perante inequívoca matéria de conhecimento oficioso.

Com efeito, é sabido que as questões a decidir no recurso não podem ser questões novas – a não ser as de conhecimento oficioso –, mas somente as já colocadas ao Tribunal recorrido e por este decididas. Na verdade, os recursos não servem para apreciar questões novas, não colocadas ao Tribunal a quo, mas para reapreciar a decisão sobre questões/matérias por aquele julgadas ([15]).

Refere, então, a Apelante que o modo como pretende exercer-se in casu o direito de preferência é manifestamente/“claramorosamente” ofensivo da justiça e da segurança nas relações jurídicas, «que por mais de 11 anos haviam sido consolidadas», havendo, então, abuso do direito (conclusões 48 e segs.), designadamente por o prédio agora (e ao tempo da dedução da reconvenção) valer muito mais do que os € 300,00 pagos há onze anos.

Ora, sobre este aumento de valor do prédio nada se sabe, posto nada se ter provado a respeito, ao que não será estranha a circunstância de o abuso do direito apenas em derradeiro esforço e inconformismo – perante o insucesso à luz da sentença – vir invocado, já na tardia esfera do recurso, o que levou a que não fosse alegada (e, por isso, não sujeita à prova) a factualidade de suporte, mormente a referente ao valor atual do imóvel.

Por outro lado, é seguro que não resultou provado que o negócio efetuado pela A., ou respetivo registo de aquisição, fosse conhecido dos RR., designadamente dos «herdeiros da herança aberta por óbito de HH» [cfr. al.ª i) do factos não provados].

Mas também é verdade que decorreu apreciável lapso temporal (os invocados onze anos) entre a aquisição da A. e o exercício do direito de preferência pelos 2.ºs RR./Reconvintes.

Traduzirá este hiato temporal, sem mais, abuso do direito, por ofensa clamorosa ao princípio da boa-fé, com prejuízo intolerável para a segurança jurídica, quando o imóvel se mantém no domínio da A./adquirente, sem contender, pois, com expetativas ou direitos de terceiros que fossem sub-adquirentes desta ([16])?

É sabido que a figura do abuso do direito, na parte em que assenta no princípio da boa-fé, convoca um exercício de tal modo abusivo de direitos ou, em geral, de posições jurídicas, que, de forma clamorosa (manifesta e excessiva), atente contra os ditames da boa-fé objetiva, que postula, por seu lado, a adoção nas relações intersubjetivas (contratuais ou outras, de que nasçam deveres entre as partes/sujeitos) de uma conduta honesta, correta e leal, bem como razoável, equilibrada e transparente, sempre reportada «ao correto agir, ao viver honesto», à atuação «como pessoa de bem» ([17]).

É também líquido que o exercício do direito de preferência pressupõe a decisão de preferir, adquirindo, pelo preço do contrato a que a preferência se reporta, o bem transmitido.

Bem se compreende, pois, que ninguém esteja em condições de poder decidir-se a exercer o direito respetivo se não conhecer os elementos essenciais do negócio, mormente o preço.

Com efeito, como poderia exercer-se, em condições de normalidade, o direito potestativo de preferir/adquirir, obtendo para si o imóvel vendido, sem se saber o respetivo preço?

É sabido, assim, que ninguém se arriscaria a comprar ou obter para si ([18]) um imóvel sem saber o preço da venda, posto só à luz desse preço o pretendente poder avaliar se o negócio (ou o exercício da preferência) lhe é vantajoso.

No caso, sabido que se trata de prédios confinantes entre si, da factualidade provada não resulta quando se tornaram conhecidos para os preferentes (e para quem os antecedeu no domínio) os elementos essenciais da compra e venda a favor da A./Recorrente, designadamente o preço por esta pago ([19]).

Por isso, no desconhecimento desta circunstância, parece não poder formular-se um juízo de censura – por abuso e contraditoriedade à boa-fé objetiva – sobre os RR. pelo exercício da preferência apenas onze anos depois da compra e venda ([20]).

Isto é, aquele decurso do tempo, de per se, não permite censurar, no quadro das exigências do princípio da boa-fé, a conduta em análise, pelo que a A./Recorrente apenas de si própria se pode queixar, ao deixar, de forma surpreendente, a questão do abuso do direito (meio de defesa que, enquanto reconvinda na ação, deveria ter invocado em sede de articulados) para o recurso, sem ter, por isso, carreado para os autos, no tempo oportuno, os necessários factos de suporte (em sede de alegação, para depois poder fazer prova).

De notar, por fim, que a falta de comunicação legal para preferir impede que se considere uma atuação em abuso de direito, por não se poder considerar que com a ação para exercício coercivo da preferência se exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, «nomeadamente na modalidade de "supressio", decorrente da criação de uma situação objectiva de confiança na parte contrária de que não exerceriam este direito, violando os princípios da boa fé e da confiança da contra parte», havendo de considerar-se que “não basta que o exercício do direito pelo seu titular, cause prejuízo a alguém – a atribuição de um direito traduz deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com aqueles confluantes, sendo necessário, sim, que o titular dele manifestamente exceda os limites que lhe cumpre observar, impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido” ([21]).

Em suma, improcede a apelação, sendo de manter, inalterada, a decisão recorrida.

                                                 ***

(…)                                           ***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, por isso, a decisão recorrida.

Custas da apelação pela A./Apelante.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 10/05/2022

Vítor Amaral (Relator)

         

Luís Cravo

                                      

Fernando Monteiro





([1]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([2]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([3]) V., por todos, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 124.
([4]) Veja-se, a título de exemplo, o seguinte excerto do depoimento da testemunha ... (cfr. fls. 268 v.º do processo físico: «(…) estávamos os três na conversa e ele [Sr. ...] saiu porque alguém falou e ele depois veio e disse, eu ouvi isso apenas e é isso que eu posso dizer só, de que afinal aquele terreno que estava ali, a doação foi só para evitar possível preferência de alguém que o quisesse comprar e então que, eu não estranhei porque já soube de outras coisas que surgiam nesse género e ele é que nos contou. Eu ouvi isso pela terceira pessoa, não é. O senhor ... é que contou que alguém que estava a dizer ali que a doação foi só um subterfugio para evitar qualquer esquema de preferência e não sei quê. Valores eu não sei.
Perguntado pelo Advogado da autora:
- Sr. Dr. ouviu isso ao próprio ...?
Resposta da testemunha:
- Ao próprio ....
Perguntado pelo Advogado da autora:
- Numa conversa que estavam……
Resposta da testemunha:
- Estávamos os três e lá apareceu um moço que eu nem sei quem era e esteve a falar com ele e ele então quando voltou para a mesa e voltou para ao pé de nós é que nos disse “olhe ó J... afinal ao que parece aquela coisa da doação foi tudo um esquema para evitar aquela coisa”, não sei se ele tinha preferência, era capaz de ter, porque era proprietário ali também junto.
Perguntado pelo Advogado da autora:
- Então a doação feita, não era doação….
Resposta da testemunha:
- Supostamente, pelo que ele disse, foi que teria sido uma espécie de subterfugio para escapar à concorrência ou se alguém tinha exercício de preferência, assim uma coisa, e, pronto, foi isso.» (itálico aditado).
([5]) Em vez de meros depoimentos de «ouvir dizer» e/ou baseados em suposições.
([6]) Mas ainda que assim não fosse entendido, seria de manter, pela motivação já aduzida quanto à prova testemunhal, a apreciação – negativa – da sentença a respeito de tal al.ª k), nos seguintes moldes: «Relativamente ao facto k), era à Autora que competia o ónus da prova e, neste inciso, veio apenas a testemunha J... (cuja credibilidade já foi sobejamente escrutinada supra) afirmar que andava constantemente a ver nas finanças se a venda tinha sido registada e que, em 2018 ou 2019, apurou que tinha sido registada uma doação entre o 1.º Réu e o 2.º Réu. Ora, facilmente se compreende que esta alegação, com um conteúdo tão vago e genérico, não tem aptidão para julgar provado o alegado na petição inicial (onde se escreve que a Autora teve conhecimento dois ou três meses antes da propositura da ação, isto é, no limite, em junho de 2019).».
([7]) Vide, por todos, o Ac. desta Relação (e Secção) de 15/11/2016, Proc. 394/11.2TBNZR.C1 (Rel. Fonte Ramos), disponível em www.dgsi.pt, em que foi Adjunto o aqui Relator.
([8]) O art.º 1380.º, n.º 1, do CCiv., só admite o direito de preferência «nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento», o que exclui, manifestamente, a doação (cfr., sobre o tema, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 2.ª ed., 1987, ps. 270 e segs.).
([9]) Cfr. Código Civil Anotado, vol. III, cit., p. 271 (aliás, citado pela decisão recorrida).
([10]) Proc. 1580/04 (Rel. Ferreira de Barros), disponível em www.dgsi.pt, com destaque aditado (também citado na sentença).
([11]) Veja-se o prazo de seis meses a que alude o art.º 1410.º, n.º 1, ex vi art.º 1380.º, n.º 4, ambos do CCiv., resultando a caducidade do excesso desse prazo por quem se propõe preferir.
([12]) Como entendido, inter alia, no Ac. STJ de 09/06/2021, Proc. 12214/18.2T8LRS.L1.S1 (Cons. José Rainho), em www.dgsi.pt, quanto à caducidade do direito de ação do preferente, é aos demandados «que cabe alegar e provar que o preferente teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação há mais de seis meses, e não ao preferente que cabe alegar e provar que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação há menos de seis meses» (cfr. o respetivo sumário).
([13]) Trata-se do Ac. TRC de 18/05/2021, Proc. 178/19.0T8MBR.C1 (Rel. Isaías Pádua), em www.dgsi.pt, aliás, oportunamente citado na decisão recorrida.
([14]) Não a invocou no seu articulado de réplica (cfr. fls. 115 a 121 do processo físico), onde deveria ter oferecido toda a defesa à matéria de reconvenção (art.º 584.º, n.º 1, do NCPCiv.), muito embora se trate de matéria de conhecimento oficioso (cfr. o lugar paralelo do art.º 573.º, n.º 2, in fine, do mesmo Cód.).
([15]) Cfr., por todos, o Ac. STJ, de 06/07/2006, Proc. 06S1067 (Cons. Sousa Peixoto), e o Ac. Rel. Coimbra, de 08/11/2011, Proc. 39/10.8TBMDA.C1 (Rel. Henrique Antunes), ambos em www.dgsi.pt., sendo por demais pacífico que, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais, e não meios de julgamento de questões novas.
([16]) É indubitável, no caso, que o bem não saiu da esfera da relação entre o obrigado à preferência e o seu adquirente (o domínio apenas passou para a titularidade deste), não tendo, entretanto, sido celebrado com terceiro sub-adquirente qualquer direito incompatível com a preferência, pelo que não se encontra posta em causa nesse âmbito alargado a segurança do comércio jurídico.
([17]) Cfr., por todos, José Vítor dos Santos Amaral, Contrato de Seguro, Responsabilidade Automóvel e Boa-Fé, Almedina, Coimbra, 2017, ps. 21, 169 e 192, bem como P. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 1995, p. 398.
([18]) O efeito visado pela ação de preferência legal, com vista a fazer valer o direito potestativo respetivo, é o de o preferente se substituir ao adquirente, nos mesmos moldes em que este havia adquirido.
([19]) V., a propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, cit., p. 372.
([20]) Não se apura inércia culposa destes ou da aludida herança, tendo sido alegado, sob os art.ºs 48.º e seg. da contestação-reconvenção, que «Só com a receção da citação para a presente é que os réus ficaram a saber quem era a proprietária do prédio confinante», bem como «só no dia 27-09-2019 é que ficaram a saber» do «preço de € 300,00», o que os factos apurados não logram deixar contrariado/infirmado.
([21]) V. Ac. TRC de 08/03/2022, Proc. 291/18.0T8GRD-C1 (Rel. Cristina Neves), em www.dgsi.pt.