Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
780/04.4TBCBR-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
FGADM
Data do Acordão: 02/11/2014
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 69.º, N.º 1 DA CRP; 9.º Nº 1, 592.º, N.º 1,1878.º, 2003.º E 2004º DO CÓDIGO CIVIL; 6.º, N.º 3 DA LEI 75/98; AL. B) DO ART.º 3.º. 4º, 5.º E 6.º) DO DL 164/99, DE 13 DE MAIO
Sumário: I. A obrigação a cargo do FGADM assume uma natureza garantística-assistencial, competindo-lhe “assegurar o pagamento das prestações de alimentos em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor”, quando verificada uma situação de carência.

II. Por assim ser, a prestação a cargo do FGADM, garante da obrigação que vincula o devedor prioritário, que continua a ser o progenitor inadimplente, não pode ser superior àquela a que este se encontra judicialmente obrigado.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
No 2.º juízo do Tribunal Judicial de Menores e Família de Coimbra, e por via de incidente de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais antes fixada por sentença relativa à menor A..., sendo requerido seu pai B..., mediante pelo M.P. promovida intervenção do FGADM, foi proferida decisão em 20 de Setembro de 2013 nos termos da qual, julgado verificado o incumprimento do devedor, foi o FGA condenado a entregar à requerente progenitora, a título de prestação alimentar, a quantia mensal de € 100,00.

Inconformado com o decidido, interpôs o condenado FGADM o presente recurso e, tendo produzido alegações, em remate formulou as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª Vem o presente recurso interposto do douto despacho a fls…., de 20/09/2013 proferido nos autos à margem indicados, na parte em que o Mmo. Juiz do Tribunal de Família e Menores de Coimbra condena o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM), a assegurar a prestação de alimentos, no montante mensal de €100,00, à menor, A... , em substituição do devedor incumpridor, isto é, em montante superior ao fixado ao progenitor incumpridor.

2.ª- Nos termos do preceituado no art.º1.º da Lei n.º75/98, de 19 de Novembro (com a redacção introduzida pela Lei n.º 66-B/2012 de 31 de Dezembro) e no art.º3.º do DL n.º 164/99 de 11 de Maio (com a redacção introduzida, pela Lei n.º 64/2012 de 20 de Dezembro), para que o FGADM seja chamado a assegurar as prestações de alimentos atribuídas a menores residentes no território nacional é necessário que se verifiquem os pressupostos seguintes:

- que o progenitor esteja judicialmente obrigado a alimentos;

- a impossibilidade de cobrança das prestações em dívida nos termos do art.º 189.º da OTM;

- que o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS), nem beneficie de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao valor do IAS;

3.ª A lei faz depender a obrigação do FGADM da verificação cumulativa dos requisitos previstos nos diplomas que o regulamentam.

4.ª O sentido e a razão de ser da lei é apenas o de assegurar que, através do FGADM, os menores possam receber os alimentos fixados judicialmente a seu favor, mas apenas estes, e após esgotados os meios coercivos previstos no art.º 189.º da OTM.

5.ª- A obrigação do FGADM sendo nova e autónoma, não deixa de revestir natureza subsidiária, substitutiva relativamente à obrigação familiar (a dos progenitores).

6.ª- Verificados os pressupostos para a sua intervenção, o FGADM só assegura a prestação alimentícia do menor, em substituição do devedor incumpridor, enquanto este não iniciar ou reiniciar o cumprimento da sua obrigação.

7.ª- Ao FGADM não cabe substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida ao menor.

8.ª- A prestação paga pelo FGADM é uma prestação reembolsável, conforme resulta do estatuído no art.º 6, n.º 3 da Lei 75/98 e art.º 5.º n.º 1 do DL 164/99, ficando o Fundo sub-rogado em todos os direitos do menor a que sejam atribuídas prestações, tendo o direito de exigir do devedor de alimentos a totalidade das prestações pagas.

9.ª- O valor da prestação de alimentos a suportar pelo FGADM não pode exceder o montante da prestação de alimentos fixada, e incumprida pelo obrigado originário.

10.ª- É prolífera a jurisprudência no sentido que ora se defende.

11.ª- Nos termos do preceituado no art.º 3.º n.º 3 do DL 164/99, as prestações a pagar pelo FGADM são fixadas pelo tribunal, “devendo o tribunal atender, na fixação deste montante, à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação fixada e as necessidades específicas do menor”, resultando expressamente do referido normativo que o tribunal terá de atender ao montante da prestação de alimentos fixada ao progenitor incumpridor.

12.ª- Por decisão de 11/03/2010, o progenitor incumpridor ficou obrigado a pagar à menor em causa nos autos uma pensão mensal de alimentos no valor de € 60,00 (sessenta euros), actualizável anualmente em Janeiro, de acordo com a taxa de inflação a publicar pelo INE, com referência ao ano anterior.

13.ª- A prestação de alimentos fixada ao obrigado originário corresponde, a partir de Janeiro de 2013, ao montante de € 62,22 (sessenta e dois euros e vinte e dois cêntimos).

14.ª- Salvo o devido respeito, não tem qualquer suporte legal fixar-se uma prestação alimentícia a cargo do FGADM no valor de € 100,00 (cem euros), isto é, superior à fixada ao progenitor incumpridor, a qual na actualidade ascende a € 62,22 (sessenta e dois euros e vinte e dois cêntimos).

15.ª- O legislador estabeleceu pressupostos e limites à protecção/garantia de alimentos aos menores, instituindo um Fundo que tem como objectivo assegurar que os menores possam receber os montantes que os obrigados judicialmente não prestaram, isto é, um Fundo que assegura montantes inferiores ou iguais (mas não superiores) aos que foram incumpridos pelo judicialmente obrigado.

16.ª- O despacho ora recorrido violou o disposto no art.º 2.º n.º 2 da Lei 75/98 de 19 de Novembro e art.º 3.º n.º 5 do DL n.º 164/99 de 13 de Maio”.

Com tais fundamentos, pretende a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que declare que o montante da prestação de alimentos a cargo do FGADM está limitado pelo valor da prestação fixada judicialmente ao progenitor dos menores.

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A requerente progenitora e a D. Magistrada do M.P. contra alegaram, defendendo a manutenção da decisão recorrida, concluindo que “O FGA, quando assegura o pagamento de uma prestação alimentar, fá-lo no cumprimento de uma obrigação própria, não se tratando de garantir o pagamento da prestação de alimentos que a pessoa judicialmente obrigada não satisfez, mas sim e após a verificação de vários pressupostos cumulativos, o “quantum” que o Tribunal fixe, que pode ser diferente, sendo esse novo montante aquele que o FGADM garante, agora com as “vestes” de prestação social. Montante este que é fixado no incidente de incumprimento após a realização de diligências instrutórias (art.º 2.º, n.º 2 da Lei n.º 75/98), só então se tornando líquido e exigível ao FGADM, como direito social do alimentando”.

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Como se alcança das transcritas conclusões, formuladas pelo recorrente, e sabido que por elas se delimita o objecto do recurso (art.ºs 684.º n.º 3 e n.º 1 do art.º 685.º-A do CPC), constitui única questão a decidir saber se, no caso de intervenção do FGADM, pode esta entidade ser condenada no pagamento de prestação superior à fixada e a cargo do devedor inadimplente.

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II. Fundamentação

De facto

Da 1.ª instância vêm assentes os seguintes factos, factualidade esta que, por não impugnada, se mantém:

1. Por decisão proferida em 11/3/2010, ficou o pai da A... obrigado a pagar à sua filha uma pensão mensal de alimentos no valor de € 60, actualizável anualmente em Janeiro, de acordo com a taxa de inflação a publicar pelo INE, com referência ao ano anterior.

2. O pai da menor deixou de pagar tal pensão e não tem registados rendimentos em seu nome.

3. A A... vive com a mãe, o avô materno e uma irmã menor de idade, estudante.

4. A requerente está desempregada e recebe 70,38 euros de abonos de família; o avô está reformado e recebe 328,50 euros de pensão de reforma.

5. A A... despende 30 euros em transportes.

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De Direito

Estando em causa a fixação de prestação de alimentos a suportar pelo FGADM assinala-se, em primeiro lugar, a escassez da factualidade alinhada, completamente omissa quanto à situação económica do devedor[1], não revelando sequer os presentes autos de recurso se foram e, na afirmativa, quais foram, as diligências efectuadas tendo em vista a cobrança coerciva das prestações vencidas e em dívida, e das vincendas. Todavia, porque a (in)verificação destes requisitos não foi suscitada pela recorrente, abordando a questão que se deixou enunciada, cremos que, efectivamente, a razão está do seu lado.

Vejamos:

Cabe ao Estado, decorrência dos princípios constitucionalmente consagrados nos art.ºs 63 e seguintes da CRP -interessando à questão que nos ocupa, essencialmente, os artigos 67.º a 69.º- acorrer aos cidadãos que se encontram em situação de particular necessidade ou carência de recursos económicos para subsistir condignamente, assim se assumindo como Estado de Direito Social.

Todavia, uma advertência se impõe, desde logo, fazer: “Não se pense, com isto, que a intervenção do Estado ou das demais pessoas colectivas públicas pretende constituir uma alternativa ou tornar essencialmente subsidiária a tarefa alimentar da pequena família ou família nuclear, especialmente para com os seus membros mais desfavorecidos: os menores.

Ao invés, o direito da segurança social (…) propicia, em tendência, prestações assistenciais que, sobrepondo-se aos diversos deveres jurídicos do grupo familiar (…), não os elimina, pois só tem por missão assegurar a subsistência das pessoas (menores, deficientes) colocadas em específicas e concretas situações de necessidade (…)”[2].

Deste modo, assumindo o Estado um papel meramente subsidiário, mantendo os progenitores incontornável protagonismo nesta matéria -note-se que mesmo o progenitor inibido do poder paternal mantém o dever de alimentar o seu filho menor, conforme consagra o art.º 1917.º do Código Civil- o direito à prestação social aqui em causa encontra-se subordinado à efectivação da responsabilidade que, em primeira linha, recai sobre os obrigados prioritários. Daí exigir-se o prévio reconhecimento judicial da obrigação e fixação do respectivo montante, bem como a verificação da impossibilidade da cobrança coerciva nos termos prescritos no art.º 189.º da OTM, prevendo-se, doutro lado, o reembolso do que pelo Estado (Segurança Social) haja sido prestado.

Com efeito, havendo que distinguir entre prestações sociais do regime contributivo, que constituem um verdadeiro direito subjectivo do seu beneficiário, abstraindo, na sua concessão, da concreta situação familiar do respectivo titular, daquelas que não prescindem desta apreciação, as prestações sociais dirigidas aos menores não constituem um direito subjectivo dos destinatários, permanecendo as prestações familiares como primeira linha de apoio. Deste modo, a prestação a suportar pelo FGADM “(…) visa substituir, ainda que só parcial e incompletamente, os rendimentos que o beneficiário deixou de auferir (…)[3] e desde que verificada uma situação de manifesta necessidade, mantendo-se, como é óbvio, o dever fundamental, também ele com assento constitucional, dos progenitores proverem ao sustento dos seus filhos.

O art.º 69.º/1 da CRP reconhece às crianças o direito “à protecção da sociedade e do Estado”. Tal direito, inscrevendo-se na área do Estado Social ou Estado Previdência, ao qual incumbe promover o bem-estar dos cidadãos no âmbito dos direitos sociais, está, no seu efectivo exercício, subordinado à reserva do possível, dado o carácter finito dos recursos a afectar  e, sendo de conteúdo programático, a sua concretização far-se-á de harmonia com lícitas opções de política legislativa do legislador ordinário.[4]  

A Lei de Garantia de Alimentos -Lei 75/98, de 19 de Novembro-, regulamentada pelo DL. 164/99, de 13 de Maio, visou precisamente assegurar, conforme expresso no Preâmbulo deste último diploma, “o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral, direito este constitucionalmente consagrado (artigo 69.º).

Ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação, a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais, e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24º).

Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade, e, em última instância, ao próprio Estado, as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna”.

Depois de afirmar que o diploma cria uma nova prestação social, expressamente atribui ao Fundo de Garantia a função de “assegurar o pagamento das prestações de alimentos em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor”, assim instituindo um mecanismo de garantia de alimentos a suportar pelo Estado, sendo os pagamentos assegurados pelo FGADM.

Dispondo sobre os pressupostos de intervenção do Fundo, dispõe o art.º 1.º da referida Lei n.º 75/98 (na redacção da Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro), que “Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS), nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.

Consoante o n.º 1 do art.º 2.º deste mesmo diploma, as prestações atribuídas são fixadas pelo Tribunal não podendo exceder, mensalmente e por cada devedor, o montante de 1 IAS, independentemente do número de filhos menores (são nossos os destaques). Para a determinação do montante, o tribunal atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor (vide n.º 2).

Sob a epígrafe “Pressupostos e requisitos de atribuição”, o DL 164/99, de 13 de Maio (na redacção introduzida pelo DL 70/2010, de 16 de Junho, e da Lei n.º 64/2012, de 20 de Dezembro) diploma que, como referido, veio regulamentar a Lei n.º 75/98, reitera, no seu artigo 3.º, que “O Fundo assegura o pagamento das prestações de alimentos referidas no artigo anterior até ao início do efectivo cumprimento da obrigação quando:

a) A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro; e

b) O menor não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre” (vide n.º 1 do preceito).

Nos termos do n.º 2 “Entende-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao valor do IAS, quando a capitação do rendimento do respetivo agregado familiar não seja superior àquele valor”, sendo que, consoante estabelece o n.º 3, “O agregado familiar, os rendimentos a considerar e a capitação dos rendimentos, referidos no número anterior, são aferidos nos termos do disposto no Decreto-Lei.º 70/2010, de 16 de Junho, alterado pela Lei n.º 15/2011, de 3 de Maio, e pelos Decretos-Leis n.ºs 113/2011, de 29 de Novembro, e 133/2012, de 27 de Junho”.

Finalmente, importa à decisão a proferir quanto estatui o n.º 5, por cujos termos “As prestações a que se refere o n.º 1 são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, devendo aquele atender, na fixação deste montante, à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor”.

À luz do referido enquadramento legal, as prestações a cargo do FGA assumem claramente uma natureza assistencial-garantística[5], sendo pressuposto da sua intervenção em substituição do devedor a impossibilidade de obter deste a satisfação das prestações por alguma das formas previstas no art.º 189.º da dita LTM, não visando portanto substituir de forma definitiva uma obrigação legal de alimentos. Com efeito, sendo o pressuposto legitimador da intervenção do FGA a fixação judicial de determinada prestação a cargo do primeiro obrigado a alimentos e a constatação da inviabilidade da sua cobrança coerciva -o Fundo não intervém caso o devedor cumpra ou a cobrança seja bem sucedida- certo é também que a lei determina a cessação de tal obrigação tão logo o devedor de alimentos se encontre em condições de assegurar o cumprimento da obrigação previamente fixada (voluntária ou coercivamente).

Trata-se ainda de prestações cuja atribuição depende da verificação de uma situação de manifesta carência por banda dos beneficiários (daí a sua natureza assistencial). Deste modo, e não obstante estarmos perante prestação referenciada àquela a que o devedor se achava vinculado, a verdade é que se trata de uma prestação nova, dependente da verificação de novos pressupostos. Por assim ser, a prestação a suportar pelo FGA não tem que coincidir com aquela a que o devedor originário se obrigara, sendo certo que, em nosso entender -e tomando posição em questão que vem dividindo a jurisprudência[6]- a tem como limite máximo. E funda-se tal entendimento em várias ordens de razões:

“Prima facie”, estamos perante uma prestação nova, mas claramente substitutiva da obrigação que recai sobre o obrigado prioritário, que persiste nos seus precisos termos -note-se, a propósito, que a intervenção do Fundo é suscitada precisamente no incidente de incumprimento, sem vocação para nele operarem alterações da prestação fixada. Quer isto dizer que o menor, retomando o progenitor inadimplente o cumprimento da obrigação ou sendo possível a sua cobrança coercitiva, passará a dispor apenas do montante previamente fixado pela via judicial, não podendo accionar o FGADM para reclamar desta entidade eventual diferença entre aquele valor e o outro, superior, que haja sido fixado a suportar pelo Estado[7]. Aliás, se o devedor nunca tivesse entrado em incumprimento (que pode ser parcial), sempre faleceria o pressuposto legitimador da intervenção do Fundo, bastando-se o menor com o montante fixado a título de prestação a cargo do progenitor. A eventual insuficiência do montante assim disponível poderia dar origem a outras formas de apoio por banda da segurança social ou até à demanda de outros obrigados a alimentos no círculo definido pelo art.º 2009.º do Código Civil, mas não à intervenção do FGADM.

O referido carácter claramente subsidiário e garantístico da prestação a cargo do Fundo mais se acentua quando se ponderem aquelas hipóteses em que o progenitor fica desonerado por força de uma incapacidade permanente e absoluta para o trabalho, não dispondo de quaisquer rendimentos que lhe permitam sustentar o seu filho menor. Nesta eventualidade, reconhecida a impossibilidade de fixar judicialmente uma prestação alimentícia a cargo do progenitor incapacitado, inexiste pressuposto legitimador para a intervenção do Fundo, mesmo quando se trate de uma situação de grave carência da criança.[8]

Nesta mesma lógica, mas no reconhecimento de que os organismos de segurança social têm um interesse próprio na realização da prestação, na estrita medida em que é tarefa do Estado (Social) assegurar a protecção das crianças com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono (já citado art.º 69.º, n.º 1 da CRP), a lei consagrou a favor do FGADM a sub-rogação legal nos direitos do credor quanto às quantias que houver pago nos termos previstos no art.º 592.º, n.º 1 do código Civil, regulando cuidadosamente o reembolso dos montantes despendidos em substituição do devedor, sendo certo que, repete-se, este se mantém vinculado à obrigação previamente fixada (cf. o art.ºs 6.º, n.º 3 da Lei 75/98 e art.ºs. 5.º e 6.º) do DL 164/99).

Daqui decorre que se o Estado pagar mais, não pode depois exigir do devedor originário a totalidade do que pagou, assumindo como terceiro uma obrigação não exigível. Constata-se, porém, que os diplomas em referência, construídos segundo uma lógica substitutiva, consagram de modo claro que a prestação é reembolsável, não estando prevista a subtracção de nenhuma parcela da prestação a esse reembolso.

Acresce que, tratando-se embora de uma nova prestação social, a mesma não tem total autonomia relativamente à prestação originária, antes fazendo a lei depender a sua atribuição, a par de outros pressupostos, do facto de ter sido proferida decisão judicial determinativa do montante de alimentos a prestar, circunstância que, a nosso ver, aponta igualmente para a existência de um tal limite.

Já se defendeu que as actividades probatórias prescritas pelo art.º 4.º do DL 164/99, de 13 de Maio seriam inúteis caso se visasse a fixação a cargo do Fundo de uma prestação de montante igual ou inferior àquela que onerava o obrigado prioritário, e isto porque nunca ocorreria diminuição das necessidades do menor[9]. Tal argumento, porém, e salvo o respeito que nos merece a opinião assim expressada, é reversível e não convence.

Assim, e antes de mais, tenha-se presente que a fixação de alimentos em favor do menor pode ocorrer -e ocorre frequentemente- mediante sentença homologatória do acordo dos progenitores, sem precedência de qualquer diligência instrutória por banda do Tribunal, sendo assim os autos completamente omissos quanto à medida das necessidades do alimentando. Sentiu por isso o legislador a mais que justificada necessidade de prevenir o conluio entre os progenitores, com fixação de prestações alimentares que ultrapassem os montantes necessários. Depois, é necessário ponderar que o conteúdo do dever de alimentos que onera os progenitores em relação aos seus filhos menores extravasa claramente do conceito consagrado no art.º 2003.º do CC, compreendendo tudo o que for necessário ao seu sustento, incluindo vestuário e habitação, segurança, saúde e educação (cf. art.º 1878.º), havendo mesmo a obrigação dos progenitores assegurarem ao menor o mesmo “trem” de vida de que desfrutam (critério das possibilidades do credor, um dos elementos do binómio consagrado no art.º 2004.º do CC). Diversamente, a obrigação a cargo do Fundo pressupõe e exige uma situação de efectiva carência -carência, em nosso entender, decorrente da supressão daquele rendimento, pois só esta se destina a colmatar- cujo apuramento não prescinde, obviamente, da realização das diligências necessárias ao apuramento da situação económica do menor beneficiado e seu agregado familiar, compreendendo este o círculo de pessoas definido pelo art.º 4.º do DL 70/2010, de 16 de Junho. Bem pode acontecer, portanto, por um lado, que o progenitor judicialmente obrigado se encontre obrigado a pagar uma prestação que excede em muito a satisfação das necessidades básicas do menor alimentando e, por outro, que o incumprimento deste obrigado prioritário não dê lugar à intervenção do Fundo, o que ocorre se o agregado dispuser de capacidade económica para assegurar a satisfação daquelas necessidades ou o menor for titular, ele próprio, de rendimentos bastantes. Daí que a verificação do requisito previsto na al. b) do art.º 3.º do DL 164/99, a par do apuramento das necessidades do menor, aqui com um conteúdo diferente e reduzido ao necessário à subsistência e desenvolvimento condignos, demande sempre a realização das aludidas diligências de inquérito.

Conforme deflui do que se deixou referido, não parece rigoroso afirmar que a prestação a cargo do progenitor inadimplente se situa sempre (ou quase sempre) abaixo das necessidades do menor, só tendo sentido útil a realização das diligências previstas quando se tiver em vista a majoração de tal prestação e sua adequação às efectivas necessidades do menor (embora se não diga a abrangência deste conceito para efeitos de fixação da nova prestação a cargo do Fundo)[10]. Com efeito, e conforme se assinalou já, não só aquela prestação pode -e deve, no caso do obrigado ter essa possibilidade- exceder essa medida, caso em que não parece ser defensável exigir do FGA que a prestação a seu cargo seja de montante idêntico àquele a que o progenitor se encontrava vinculado (e a hipótese é bem real, essencialmente nos tempos que correm, em que pessoas com trabalhos bem remunerados se vêem inesperadamente em situação de desemprego), como também pode acontecer que as necessidades do menor se encontrem asseguradas pelos rendimentos próprios ou do agregado, caso em que a intervenção do FGADM se encontra excluída.

Também não se aceita o postulado, de que parte a D. Magistrada do M.P. nas suas doutas contra alegações, de que “a prestação de alimentos incumprida pelo primitivo devedor funcionaria apenas como um pressuposto justificativo da intervenção subsidiária do Estado para satisfação de uma necessidade actual do menor”. Acontece que a lei é clara quando manda atender, na fixação do montante a cargo do FGA, a par das necessidades do menor e rendimentos do agregado, ao montante da prestação de alimentos fixada, critério modelador daquela outra prestação e, em nosso entender, seu limite, atendendo à fisionomia da obrigação que impende sobre o Fundo como obrigação de garante.

Pode ainda argumentar-se que se das diligências instrutórias resultar o apuramento de relevante alteração -para mais- das necessidades do menor, não faria sentido não as repercutir na prestação alimentar a cargo do Fundo. Todavia, também tal argumento não o temos por decisivo, antes se afigurando que tal situação não deve merecer tratamento diverso daquele que mereceria caso o progenitor não fosse inadimplente, devendo dar lugar a providência de alteração da prestação fixada, repercutindo-se no montante a cargo do FGA apenas e na medida em que persistisse o incumprimento. E aqui com a vantagem, que se assinala, de se encontrar actualizada a prestação a cargo do obrigado quando este retomar os pagamentos. De resto, e conforme se deixou já referido, no caso do devedor cumprir ou ser possível a cobrança coerciva das prestações fixadas, eventual insuficiência desta prestação para a satisfação das necessidades do alimentando daria eventualmente lugar ao accionamento de outros mecanismos de apoio social e eventual demanda dos demais obrigados, mas não legitimaria a demanda do Fundo.

Por último, e lançando mão dos critérios interpretativos que nos são fornecidos pelo art.º 9.º do Código Civil, nomeadamente no seu art.º 1.º, não podemos deixar de assinalar que os diplomas de que nos ocupamos nasceram para acudir a situações de emergência e de excepção, por maior que seja a frequência com que se registem. A vocação do Estado é aqui meramente garantística e de segunda linha, sendo chamado a suprir situações de carência decorrentes do incumprimento por parte da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos, mantendo-se incólume, sublinha-se mais uma vez, o dever fundamental dos progenitores proverem ao sustento dos seus filhos menores. Deste modo, a interpretação do regime legal emergente dos diplomas em causa há-de ater-se, por um lado, a esse pressuposto básico da intervenção do Fundo e, por outro, à finalidade dessa mesma intervenção, não consentindo, em nosso entender, que se transforme o FGADM no principal obrigado, encabeçando uma obrigação inteiramente nova e desligada da originária, ficando vinculado a satisfazer as necessidades dos menores como se fosse um progenitor de possibilidades infinitas, pois nem sequer haveria aqui de observar o segundo critério do par necessidades do credor/possibilidades do devedor. Sucede que não é assim que as coisas se passam. Com um Estado Social progressivamente mais empobrecido, impõe-se o maior rigor na aplicação dos critérios de elegibilidade dos beneficiários das prestações sociais, rigor que deve igualmente presidir à fixação dos respectivos montantes, sob pena de, num futuro não muito longínquo, não ser possível manter quaisquer apoios, mesmo quando verificadas situações limite.

No caso, a prestação a cargo do FGADM tem por pressuposto e fundamento a verificação de uma situação de carência provocada pelo incumprimento, visando substituir o rendimento de que o menor ficou privado por força do incumprimento do devedor, verificada a impossibilidade de cobrança do crédito -logo, o limite não pode deixar de ser esse rendimento perdido e, por esta via, garantido. O Estado, ainda que interessado na satisfação, e a despeito de estarmos perante uma obrigação nova, radicando na solidariedade estadual, cumpre em vez do devedor -só esta função de garantia da obrigação de alimentos explica a sub-rogação legal- e a sua obrigação cessa tão logo o inadimplente retome os pagamentos ou seja possível a sua cobrança. Não se vê, pois, razão, para que, no âmbito deste quadro legal,[11] pague mais do que o devedor prioritário porquanto, repete-se, sejam quais forem as necessidades do menor, suprimido o fundamento legitimador da intervenção do FGADM, a prestação que se mantém (até eventual alteração) é aquela que foi judicialmente fixada a cargo do inadimplente. Aliás, tomando como referência duas crianças em idêntica situação e com similares necessidades, aquela cujo progenitor se esforça por cumprir com a obrigação a que se encontra adstrito ficaria prejudicada face àquela outra cujo progenitor incumpriu e que passou a beneficiar de uma prestação superior, esta a cargo do FGADM (sem prejuízo de ficar privado do excedente tão logo o progenitor retome o cumprimento). Tal efeito perverso, convidativo do inadimplemento[12], é de repudiar e não pode ter sido querido pelo legislador.

Tudo em suma para concluir que a fixação da prestação a cargo do FGADM não pode exceder aquela que onera o progenitor inadimplente, procedendo assim na íntegra as conclusões recursivas.

    *

III Decisão

Em face do exposto, e na procedência do recurso, acordam os juízes que constituem a 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra alterar a decisão proferida, fixando no montante de € 62,20 (sessenta e dois euros e vinte cêntimos) a prestação a cargo do FGADM, mantendo-se quanto ao mais.

Custas da apelação a cargo da apelada.

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Sumário (n.º 7 do art.º 713)

I. A obrigação a cargo do FGADM assume uma natureza garantística-assistencial, competindo-lhe “assegurar o pagamento das prestações de alimentos em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor”, quando verificada uma situação de carência.

II. Por assim ser, a prestação a cargo do FGADM, garante da obrigação que vincula o devedor prioritário, que continua a ser o progenitor inadimplente, não pode ser superior àquela a que este se encontra judicialmente obrigado.

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Maria Domingas Simões (Relatora)

Hélder Almeida

Nunes Ribeiro (vencido. Entendo, contrariamente à tese que fez vencimento, que a prestação a cargo do FGADM pode ser fixada em montante inferior, igual ou superior à pensão a que se encontrava obrigado o progenitor incumpridor).

[1] A propósito, não pudemos deixar de notar encontrar-se o requerido pai assistido por Il. Mandatário constituído o que, atenta a presumida natureza onerosa do mandado (cf. art.º 1158.º, n.º 1, parte final), e na ausência de prova em contrário, constitui inegável indício de que alguma fonte de rendimento há-de ter.

[2] Remédio Marques, “Algumas notas sobre alimentos (devidos a menores)”, Coimbra Editora, 2.ª Ed. revista, pág. 16.

[3] Assim, Remédio Marques, ob. cit., pág. 216.

[4] A Lei Fundamental impõe igualmente aos poderes públicos o dever de assegurar a suficiência económica das pessoas idosas -cf. art.º 72.º, n.º 1- também este, todavia, subordinado à reserva do possível.

[5] Neste preciso sentido acórdão desta Relação de 25 de Maio de 2010, proferido no proc. n.º 2215/05.6.1 TBMGR-A. C1, acessível em www.dgsi.pt.

[6] No sentido de que pode exceder a prestação a que o devedor se encontra vinculado decidiu o STJ em aresto de 4/6/2009 (processo n.º 91/03.2 TQPDL.S1), tendo sido admitida essa mesma possibilidade no aresto do mesmo Tribunal de 7/4/2011, processo 9420/06.6 TBCSC.L1.S1, acórdão da Relação de Coimbra de 22/10/2013, processo 2441/10.6 TBPBL-A. C1 (c/ voto de vencido da Ex.mª 1. adjunta), entre outros; em sentido contrário encontram-se, a título exemplificativo, os recentes arestos desta mesma Relação de 19/2/2013 (processo n.º 3819/04.0 TBLRA.C1) e 5/11/2013 (processo n.º 1339/11.5 TBTMR-A. C1), e da Relação de Lisboa de 8/11/2012 e 12/12/2013 (processos n.º 1529/03.4 TZLRS e 2214/11.9 TMLRS.L1 2), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

[7] Deste modo, e por mais apelativo que pareça o argumento de que o Estado se substituiria ao devedor “não para pagar as prestações que este deva, mas para assegurar os alimentos de que o menor precise (…)” “(…) porquanto a sua função de protecção só se mostraria cumprida se a prestação que venha a pagar garantir a satisfação das apuradas necessidades do menor” (V. arestos da Relação do Porto de 3/12/2013 proferidos nos processos 1621/11.1.TBPNF-B P1) e 262/07.2 TBCON.P1, in www.dgsi.pt) afigura-se que não procede, uma vez que o Estado, no âmbito do quadro jurídico em que nos movemos, deixará (licitamente) de cumprir tal invocada função no caso do progenitor cumprir ou ser possível cobrar coercivamente a prestação fixada, tal como sempre faleceria o pressuposto de intervenção do Fundo caso não tivesse ocorrido o incumprimento.

[8] Assim também, defendendo embora a possibilidade da prestação fixada ser superior, Remédio Marques, ob. citada, págs. 236/237.

[9] Neste sentido, autor e ob. citada, págs. 238/239.

[10] Como parece defender Remédio Marques, in  ob. cit.  pág. 238.

[11] Aceita-se sem dificuldade que o Estado Segurança Social assumisse em primeira linha a obrigação de alimentar todos os menores necessitados, e não apenas daqueles a favor de quem se encontre fixada prestação alimentar -independentemente do seu montante- que esteja a ser incumprira. Todavia, não é essa, afigura-se, a fisionomia da específica prestação aqui em causa.

[12] Sem tomarmos aqui em linha de conta situações de fraude, sendo os progenitores tentados a conluiarem-se para fazer reconhecer judicialmente uma prestação de elevado montante, a ela se vinculando um dos progenitores sem que tenha, “ab initio”, qualquer intenção de cumprir e isentando-se do esforço de procurar, com a força do seu trabalho, sustentar o menor seu filho, tendo em vista apenas e só fazer accionar o FGADM. Pode argumentar-se que a situação de carência da criança se mantém, independentemente do que lhe subjaz. Admite-se até que o legislador pudesse ter feito uma diferente opção de política legislativa, assumindo em primeira linha a obrigação de promover a satisfação das necessidades dos menores. Todavia, não foi esse, afigura-se, o caminho trilhado, e reconhece-se até que, face à escassez crescente dos recursos disponíveis para apoiar políticas sociais, a adoptada tenha sido a boa -sob reserva do possível- solução. É esta a lei que temos e ao julgador cabe apenas interpretá-la. Temos para nós que a interpretação mais consentânea com a sua letra e o seu espírito é a defendida no texto, salvo o respeito que nos merece a opinião contrária.