Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
117/19.8TFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
COMPRA E VENDA
TERCEIRO
NULIDADE DO NEGÓCIO
REGISTO PREDIAL
NULIDADE DO REGISTO
REGISTO DA ACÇÃO
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - F.VINHOS - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS3, 7, 8, 13, 17 CRP, 291 CC.
Sumário: 1. Para obter o cancelamento do registo de compra de um prédio, feito por quem adquiriu de um justificante, não é necessário declarar a nulidade do respetivo negócio de compra e venda celebrado entre ambos, bastando obter a declaração de insubsistência do ato justificado que serviu de base ao contrato posterior, desde que o terceiro adquirente tenha sido também demandado na ação.

2. Visando o registo da ação, além da publicidade do litígio, assegurar a oponibilidade do direito a declarar na ação face a terceiros, tal oponibilidade fica assegurada com a demanda do terceiro na própria ação, mesmo que esta não seja registada.

Decisão Texto Integral:

Tribunal da Relação de Coimbra – 2.ª Secção

Recurso de Apelação – Processo n.º 117/19.8T8FVN.C1


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Juiz relator…………....Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto………José Vítor dos Santos Amaral

2.º Juiz adjunto……….Luís Filipe Dias Cravo


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Sumário:

1. Para obter o cancelamento do registo de compra de um prédio, feito por quem adquiriu de um justificante, não é necessário declarar a nulidade do respetivo negócio de compra e venda celebrado entre ambos, bastando obter a declaração de insubsistência do ato justificado que serviu de base ao contrato posterior, desde que o terceiro adquirente tenha sido também demandado na ação.

2. Visando o registo da ação, além da publicidade do litígio, assegurar a oponibilidade do direito a declarar na ação face a terceiros, tal oponibilidade fica assegurada com a demanda do terceiro na própria ação, mesmo que esta não seja registada.


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Recorrente ………………..T (…), Lda.;

Recorrida…………………..A (…)


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I. Relatório

a) O recurso vem interposto da sentença que decidiu a presente ação instaurada por A (…) contra os réus M (…) e T (…), Lda.

Com a ação a Autora pretende, no confronto com os Réus, que o tribunal declare procedentes os seguintes pedidos:

«1/ Se declare impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura pública de justificação notarial em causa, por o 1.º Réu não ter adquirido o prédio nela identificado por usucapião;

2/ Se declare ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura, por forma, a que os Réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado;

3/ Se ordene o cancelamento dos registos de aquisição efetuados pelos Réus com base na dita escritura».

Os réus contestaram alegando a existência de uma partilha verbal e amigável entre autora e réu M (…), ocorrida antes do divórcio em abril de 1997, e que a partir desta data, até setembro de 2017, praticou atos materiais próprios de proprietário.

Concluíram pela improcedência da ação, tendo ainda a ré T (…) Lda., deduzindo pedido reconvencional subsidiário para que, em caso de procedência da ação, a autora fosse condenada a pagar-lhe €14.350,00 e reconhecido o direito de retenção sobre o prédio.

A autora pronunciou-se pela inadmissibilidade da reconvenção e impugnou os factos alegados pelo primeiro Réu.

No despacho saneador foi julgado inadmissível o pedido reconvencional subsidiário.

A seu tempo foi realizada a audiência de julgamento e proferida sentença com o seguinte dispositivo:

«Em face do exposto, julga-se procedente a presente acção e em consequência decide-se:

i) Declarar impugnado, para todos os efeitos, o facto justificado na escritura pública de justificação notarial datada de 15 de Novembro de 2017 outorgada pelos 1.º e 2.º Réus, outorgada no Cartório Notarial de (…) sito na Rua (...) , em Coimbra, de aquisição do prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, logradouro e quinta, sito em x... , freguesia de y... , concelho de z... , inscrito na matriz sob o artigo 354 e descrito na Conservatória do Registo Predial de z... sob o n.º 1245.

ii) Declarar ineficaz e de nenhum efeito a escritura referida em i), não podendo os Réus através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado;

iii) Ordenar o cancelamento dos registos de aquisição efectuados pelos Réus com base na sobredita escritura;

iv) Condenar os Réus nas custas do processo»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da ré T (…), Lda., cujas conclusões são as seguintes:

«1 – O tribunal “a quo” declarou ineficaz e de nenhum efeito a escritura de justificação referida em i)

2 – Tal determinou o cancelamento do registo de aquisição da recorrente (compra e venda), nos termos do art. 8º e 13º do C. Registo Predial, o que não pode decorrer directamente de tal decisão (Ap. Nº 1620 de 24/01/2018 – Descrição Nº 1245 – C. Registo Predial z... )

3 – De verdade o réu M (…), declarou vender à recorrente livre de ónus ou encargos, o imóvel identificado no artº 8º da petição inicial, o que a Ré recorrente, aceitou, constituindo tal acto um contrato de compra e venda, autónomo, do acto justificado.

4 - Nos autos, como resulta do pedido constante dos pontos 1, 2, 3, apenas se vem pedir a impugnação e ineficácia do acto justificado, e não da compra e venda.

5- A impugnação do acto impugnado, não pode fazer presumir o pedido de cancelamento dos registos posteriores, mas tão só o do acto impugnado nos termos do art. 8º do C. Registo Predial.

6- Qualquer vício do acto de compre a venda, configurável no âmbito da venda de coisa alheia, será medido pela nulidade do acto, e não da sua ineficácia.

7- E no caso, nunca estaríamos perante venda de coisa alheia, uma vez que o réu é sempre titular ou co-titular, do imóvel vendido. E assim,

8- No caso tal nulidade só judicialmente pode ser declarada, e tem de ser alegada, o que no caso não sucede, e como o impõe o art. 17º do C. R. Predial, e 292 do C.C.

9- De verdade a Ré recorrente sempre tem de ser entendida como terceira de boa fé, nos precisos termos do art. 291 do C.C.

10 – Por outro lado, e ainda, tal questão sempre imporia, face ao posterior registo de aquisição da recorrente, o registo da acção o que no caso também não sucedeu, e não pode agora tempestivamente ocorrer. Assim,

11 – Atentos os factos alegados, mostra-se válido e eficaz o registo de aquisição da recorrente, nos precisos termos do art. 7.º do C. Registo Predial, não podendo assim ser cancelado, como decidido. Donde,

12 – A aliás douta sentença viola além do mais o disposto no art. 291 do C.C. e art. 7º, 8º, 13º e 17º do C.R.P

Termos em que face ao exposto, deve revogar-se a aliás douta sentença, e substituir-se por outra que julgue válido o registo de aquisição da recorrente, tudo com as legais consequências».

c) Não há contra-alegações.

II. Objeto do recurso.

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o presente recurso coloca apenas uma questão que é a seguinte:

Verificar se o tribunal podia ordenar o cancelamento do registo de aquisição do prédio em causa nos autos a favor da recorrente, fundado na compra e venda que esta fez do mesmo ao réu M (…), porquanto este contrato de compra e venda é um ato posterior e autónomo em relação ao ato justificado impugnado através da presente ação.

E dada esta autonomia, a impugnação do ato, sendo procedente, não pode implicar o cancelamento dos registos posteriores, mas tão só o do ato impugnado nos termos do artigo 8.º do C. Registo Predial.

Por outro lado, no caso concreto, qualquer vício do ato de compre a venda, configurável no âmbito da venda de coisa alheia, que não existe porque o réu é titular ou co-titular do imóvel, geraria a nulidade do ato e não a sua ineficácia.

Acresce que a nulidade só pode ser declarada judicialmente e para isso tem de ser alegada, o que não sucede no caso, como o impõe o artigo 17.º do C. R. Predial, e 292.º do Código Civil.

Além disso, a Ré recorrente sempre tem de ser entendida como terceira de boa fé, nos precisos termos do artigo 291.º do Código Civil, sendo certo que a ação não foi registada.

III. Fundamentação

a) 1. Matéria de facto – Factos provados

1. M (…) (1.º Réu), instaurou em 28 de Setembro de 2017, no Cartório Notarial de (…), sito na Rua (...) , em Coimbra, um «Processo de Justificação para reatamento do trato sucessivo», invocando ser «dono e possuidor legítimo» do prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, logradouro e quinta, sito em x... , freguesia de y... , concelho de z... , inscrito na matriz em nome da autora, sob o artigo 354 e descrito na Conservatória do Registo Predial de z... sob o n.º 1245, e com registo de aquisição a seu favor e da autora, no estado de casados entre si sob o regime de comunhão geral pela apresentação três, de 20 de Julho de 1990.

2. Mais ali refere que o prédio foi por si adquirido no início do mês de abril de 1997, por acordo verbal de partilha, na sequência do divórcio ocorrido entre si e a Autora, tendo entrado na posse plena e exclusiva do imóvel naquela data.

3. Alega, ainda, no referido processo, que «está na posse e fruição do mencionado prédio, em nome próprio há mais de vinte anos, pagando os respetivos impostos, utilizando-o como sua habitação própria e permanente, realizando nele obras necessárias à sua conservação e manutenção, tudo isto ininterruptamente, sem violência ou oposição de quem quer que seja e à vista de toda a gente», pelo que terá adquirido tal prédio por «usucapião».

4. Pretendendo «realizar uma escritura de justificação para reatamento do trato sucessivo», requereu «previamente, nos termos do artigo 99.º do Código do Notariado, a notificação postal e edital, de A (…) que também usa e é conhecida por (…)», ora Autora, «com última residência conhecida (…), k... ».

5. A 28 de Setembro de 2017, foi proferido despacho pela Notária com o seguinte teor: «Tendo verificado a regularidade do requerimento e da prova documental junta, ordeno a notificação de A (…), que também usa e é conhecida por A (…), com última residência conhecida na Rua (…) k... , por via postal e por meio de editais a remeter para a Conservatória competente para o Registo e para a sede da Junta de Freguesia da situação do prédio».

6. A ora Autora não recebeu a referida notificação postal nem sequer teve conhecimento da afixação dos editais.

7. Em 15 de Novembro de 2017, foi outorgada escritura de «Justificação e Compra e Venda», no Cartório Notarial de (…), sito na Rua (...) , em Coimbra, mediante a qual o ora primeiro Réu declarou o seguinte:

“Que, com exclusão de outrem, é dono e legítimo possuidor do seguinte bem imóvel:

Prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar, logradouro e quintal, sito em x... , freguesia de y... , concelho de z... , descrito na Conservatória do Registo Predial de z... sob o número mil duzentos e quarenta e cinco, da aludida freguesia, inscrito na matriz sob o artigo 354, com o valor patrimonial tributário de 14.530,00 euros.

Que este imóvel se mostra registado, pela apresentação três, de vinte de julho de mil novecentos e noventa a favor de A (…) e M (…), casados sob o regime da comunhão geral.

Que o mencionado imóvel foi pelo primeiro outorgante adquirido por divórcio do seu dissolvido casal com aquela A(…), partilha essa meramente verbal, realizada em data que não pode precisar, mas que se situa no mês de Abril do ano de mil novecentos e noventa e sete.

Que desde aquela data o mencionado justificante está na posse e fruição plena e exclusiva daquele prédio urbano, pose que sempre exerceu pacífica e publicamente, com conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, com convicção de ser o único e legítimo proprietário daquele imóvel, exercendo sobre ele todos os atos de posse, utilizando-o como sua habitação própria e permanente e nele realizando todas as obras necessárias à sua manutenção e conservação, posse esta que conduziu à sua aquisição por usucapião que invoca.

Que pretendendo fazer o registo a seu favor e, por não ter documento que lhe permita fazer o trato sucessivo no Registo Predial, requereu, nos termos do disposto no artigo 99.º do Código do Notariado a notificação postal e edital da restante titular inscrita, uma vez que, dado o lapso temporal entre a aquisição e esta data, não tem conhecimento da sua morada, para a Junta de freguesia da situação do imóvel, para a última morada conhecida da titular inscrita e para a Conservatória do Registo Predial competente.

Que, pela presente escritura, Vende à Sociedade representada dos terceiros outorgantes o imóvel acima identificado e ora justificado, livre de quaisquer ónus ou encargos e pelo preço de Catorze Mil Quinhentos e Trinta Euros, que já recebeu”.

8. Nessa mesma escritura de «Justificação e Compra e Venda», os representantes da segunda Ré declararam que «para a sua representada aceitam e presente venda nos termos exarados».

9. O primeiro Réu bem sabia que estas suas declarações não eram verdadeiras.

10. O prédio acima indicado encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de z... sob o número 1245, da freguesia de y... , mediante a AP. 1620 de 2018/01/24, a favor de T (…) ora segunda Ré, por «compra» efetuada a M (…), ora primeiro Réu.

11. A Autora e o primeiro Réu contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia 25 de março de 1970.

12. Encontrando-se divorciados desde 21 de abril de 1997, por sentença, transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Família e Menores de Coimbra.

13. O imóvel identificado foi adquirido pela Autora e primeiro Réu, a título oneroso, na constância do seu casamento.

14. Tal imóvel constituía a casa de morada de família da Autora e primeiro Réu.

15. A Autora divorciou-se do primeiro Réu em abril de 1997 e foi residir para a Vila do w... , concelho de k... .

16. Alguns meses depois, a autora regressou àquela casa de morada de família.

17. No dia 16 de fevereiro de 1999, a Autora saiu definitivamente do imóvel acima identificado.

18. Foi a Autora que sempre pagou o imposto municipal sobre imóveis (IMI).

19. Ao contrário do declarado pelo primeiro Réu, não ocorreu qualquer partilha verbal feita entre si e a Autora.

Da contestação do primeiro Réu:

20. Desde abril de 1997, naquela casa, constituiu a casa de morada de família.

21. E desde essa data, até ao dia de hoje que o Réu.

22. Ali confeciona as suas refeições.

23. Come.

24. Dorme.

25. Lava e estende a roupa.

26. Despeja o lixo.

27. Que consigo ali viveram, até aqueles atingirem a maioridade e iniciarem as suas vidas.

28. Foram feitas a afixação edital no local próprio e pelo período legal e;

29. Nada a A. veio dizer ou opor à legalização do prédio em nome do Réu.

30. Decorridos os prazos legais, em 15 de Novembro de 2017, o primeiro Réu, no mesmo Cartório Notarial de S... , celebrou escritura de Justificação e Venda.

Da réplica:

31. Foi a Autora que sempre pagou o imposto municipal sobre imóveis (IMI), sendo falso que o Réu M (…)alguma vez lhe tenha entregue qualquer quantia a esse título.

32. Foi a Autora que sempre limpou ou mandou limpar o imóvel e efetuou o pagamento.

2. Matéria de facto – Factos não provados

Da petição inicial:

A. Em 2015, a Autora mandou efetuar limpeza ao referido imóvel cujo serviço foi por si pago.

B. Nunca o primeiro Réu realizou quaisquer obras no identificado imóvel.

C. O primeiro Réu passou as festividades de Natal e Ano Novo dos anos de 2015, 2016 e 2017 na atual residência da Autora em k... .

Da contestação:

D. Autora e Réu partilharam os bens amigavelmente.

E. Ficando a «casa» propriedade do ora Réu, para ali viver e residir.

F. Acordo esse verbal, sendo igualmente acordado que mais tarde formalizariam tal partilha.

G. Assim, por força dessa partilha verbal.

H. O Réu passou a ser o exclusivo dono e legítimo proprietário do seguinte prédio “Prédio urbano composto de casa de habitação de rés do chão, primeiro andar, logradouro e quintal, sito em Ferrarias de x... , freguesia de y... , concelho de z... , inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 354”.

I. O Réu, por força da partilha verbal.

J. Vem por si, há mais de vinte anos, sobre aquele imóvel, agindo como exclusivo dono e legítimo proprietário do mesmo.

K. Foi ali que o Réu, ao longo dos anos, após o abandono do lar pela Autora, criou os filhos do casal.

L. E sendo certo que, em termos de certidão de teor, o imóvel se encontrava inscrito em nome da Autora – por esta se recusar a formalizar a partilha – em termos reais, o Réu fazia entrega do montante da contribuição à Autora, sendo ele quem efetivamente pagava a contribuição.

M. No decurso dos anos, desde 1997, e por força dessa partilha verbal, realizou a expensas suas obras necessárias e de conforto no imóvel, a saber: - Construiu uma placa; - Reconstruiu o telhado; - Colocou azulejos; - Pintou o imóvel.

N. Praticou tais atos de forma diária.

O. Publicamente.

P. À vista de toda a gente.

Q. Sem oposição de ninguém.

R. Ininterruptamente.

S. Na convicção de estar a exercer um direito de correspondente a tal situação.

T. Certo de com essa prática não estar a lesar direitos ou interesses de outrem

U. Atos assumidos publicamente, visíveis e presenciáveis por terceiros e pela Autora.

V. Dizendo-se o Réu exclusivo, dono e legítimo proprietário do imóvel e sendo considerado publicamente como tal.

W. Certo de não lesarem com essa prática direitos ou interesses de outrem.

X. Na firme convicção de, assim, exercer um direito exclusivo, próprio, pleno e singular – o de propriedade.

Y. O Réu ao longo dos anos vinha junto da Autora, insistindo no sentido de esta formalizar a partilha de bens realizada quando do divórcio.

Z. A Autora, com várias desculpas, sempre se mostrou indiferente, a tal formalização.

AA. Perante a indiferença da Autora e do argumento de que não estava disposta a gastar dinheiro.

BB. Decidiu legalizar os bens em seu nome.

CC. A Autora foi notificada da realização da escritura.

DD. Reproduzindo em tal escritura a realidade e a verdade dos factos, tendo o Réu e as testemunhas prestado declarações de acordo com os factos.

Da réplica:

EE. Nunca o Réu M (…) realizou quaisquer obras no imóvel.

b) Apreciação das questões objeto do recurso

Não se farão considerações sobre o enquadramento jurídico geral dos factos, por estar já feito na sentença e não ter sido colocado em causa no recurso, seguindo-se, por isso, diretamente para análise das questões colocadas no recurso.

A questão colocada pelo recurso consiste em saber se o tribunal podia ordenar o cancelamento do registo de aquisição do prédio em causa nos autos a favor da recorrente T (…), Lda., fundado na compra que esta fez do prédio ao réu M (…), porquanto este contrato de compra e venda é um ato posterior e autónomo em relação ao ato justificado que é impugnado através da presente ação.

O registo em causa é o registo dessa aquisição resultante da apresentação n.º 1620 de 24/01/2018.

Vejamos os diversos argumentos apresentados.

1 – A recorrente alega que o pedido formulado nesta ação abrange apenas a justificação da propriedade do réu M (…) e o respetivo registo, mas não a compra que a ré recorrente fez ao mencionado réu F (…)

Sendo assim, argumenta, dada esta autonomia, a impugnação do ato, sendo procedente, não pode implicar o cancelamento dos registos posteriores, mas tão só o do ato impugnado nos termos do artigo 8.º do C. Registo Predial.

Vejamos.

Recapitulando, com a ação a autora pretende, no confronto com os réus, que o tribunal declare procedentes os seguintes pedidos:

«1/ Se declare impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura pública de justificação notarial em causa, por o 1.º Réu não ter adquirido o prédio nela identificado por usucapião;

2/ Se declare ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura, por forma, a que os Réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado;

3/ Se ordene o cancelamento dos registos de aquisição efetuados pelos Réus com base na dita escritura».

Verifica-se que o pedido da Autora também se dirige ao negócio de compra e venda exarado nessa mesma escritura.

Com efeito, a Autora, além impugnar a factualidade narrada na escritura e que era a base da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio, por usucapião, também pediu no número «2» do pedido, como consequência disso, que «Se declare ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura, por forma, a que os Réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado».

Resulta com clareza que a Autora dirigiu o seu pedido contra os «Réus», ou seja também contra a compradora ora recorrente T (…)por conseguinte, contra ambos os negócios.

Relativamente à «autonomia» entre ambos os negócios (justificação notarial e compra e venda).

 A autonomia é invocada para justificar que a impugnação do direito do justificante, do réu F (…), não pode implicar o cancelamento dos registos posteriores, mas tão só o do ato impugnado, nos termos do artigo 8.º do Código do Registo Predial.

A resposta é negativa, no sentido de que há dependência entre ambos os atos.

Em primeiro lugar, verifica-se que o negócio de compra e venda só se torna possível porque o réu F (…) conseguiu adquirir, através da escritura de justificação, pelo menos em termos formais, a propriedade sobre o prédio e que depois vendeu, transmitiu, à Ré recorrente T (…), Lda.

Há, por isso, dependência cronológica e jurídica entre os dois atos de tal modo que se os efeitos do primeiro forem suprimidos, o segundo logicamente não subsiste porque depende ontologicamente do primeiro.

Isto mesmo deriva do princípio consagrado na expressão latina «nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet», ou seja, ninguém pode transferir a outrem o que não tem; mais direitos do que aqueles que tem.

Não se trata aqui de fazer valer um valor ético, mas sim o princípio lógico da identidade do objeto.

Ou seja, uma vez definido um prédio «x» como não pertencente a «A», o prédio «x» não pode ser definido mais tarde, num segundo momento, num ato de venda, como prédio pertencente a «A», continuando a existir ao mesmo tempo a primeira definição que declara que o prédio «x» como não pertencente a «A».

Tutelando esta mesma lógica, o n.º 1 do artigo 9.º do Código do Registo Predial (aprovado pelo Decreto-Lei nº 224/84, de 6 de julho, doravante identificado apenas por CRP) determina que os «Os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo».

Isto quer dizer que se pretende que haja no momento dos negócios substantivos correspondência entre o que declara o registo e a realidade jurídica, o direito efetivo (no caso de venda, quem vende há de constar do registo como proprietário).

Conclui-se que não existe uma autonomia entre ambos os negócios que o segundo, a venda, fique imune às vicissitudes do primeiro.

2 – Em segundo lugar, a Recorrente argumenta que qualquer vício do ato de compre a venda, configurável no âmbito da venda de coisa alheia, que não existe porque o réu é titular ou co-titular do imóvel, geraria a nulidade do ato e não a sua ineficácia.

E que, acrescenta, como a nulidade só pode ser declarada judicialmente e para isso tem de ser alegada, verifica-se que no caso isso não sucedeu, como o impõe o artigo 17.º do C. R. Predial e 292.º do Código Civil.

Cumpre começar por referir que as nulidades do registo previstas no artigo 17.º do CRP são casos de nulidade do próprio ato de registo e não do negócio jurídico registável.

Com efeito, o artigo 16.º do CRP refere os casos de nulidade de registo e são os seguintes:

«O registo é nulo:

a) Quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos;

b) Quando tiver sido lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado;

c) Quando enfermar de omissões ou inexatidões de que resulte incerteza acerca dos sujeitos ou do objeto da relação jurídica a que o facto registado se refere;

d) Quando tiver sido efetuado por serviço de registo incompetente ou assinado por pessoa sem competência, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil e não possa ser confirmado nos termos do disposto no artigo seguinte;

e) Quando tiver sido lavrado sem apresentação prévia ou com violação do princípio do trato sucessivo».

Não consta deste artigo a própria nulidade do ato registado.

Por conseguinte, este artigo do CRP não é convocável para a resolução do presente recurso.

Esta conclusão não implica, claro está, que atendendo a outras normas a nulidade do negócio substantivo não implique a nulidade do registo, a sua insubsistência e cancelamento.

Por conseguinte, o facto da autora não ter pedido a declaração de nulidade do negócio de compra e venda, tal não implica que a decisão tomada em 1.ª instância tenha de ser revogada.

Aliás, a Recorrente liga essa nulidade do negócio de compra e venda à nulidade do registo prevista no artigo 17.º do CRP, mas já se viu que não se trata da mesma classe de nulidades.

Por isso, a Autora não tinha obrigatoriamente de pedir a nulidade do negócio de compra e venda celebrado entre o réu justificante do direito de propriedade sobre o prédio e o terceiro adquirente desse mesmo prédio, bastando-lhe pedir e obter a destruição dos efeitos jurídicos produzidos pelo conteúdo da escritura de justificação notarial, pois desse modo ficava claro e certo que o terceiro afinal não adquiriu qualquer direito sobre o prédio.

A impugnante tinha, sim, de demandar na ação não só o justificante como o terceiro adquirente, para lhe estender os efeitos da sentença e isso foi feito.

E tanto basta para o tribunal ordenar o cancelamento desse segundo registo (o da compra) feito por esse terceiro.

Com efeito, o artigo 13.º do CRP dispõe que «Os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos, em execução de decisão administrativa, nos casos previstos na lei, ou de decisão judicial transitada em julgado».

Ou seja, a extinção do direito (substantivo, material) que serviu de base ao facto registado implica o cancelamento desse registo, porquanto a realidade regitral deve coincidir com a realidade substantiva, não podendo existir no registo um direito e esse mesmo direito inexistir na ordem jurídica substantiva (princípio da presunção de verdade do registo ou da exatidão – Cfr. Mouteira Guerreiro. Noções de Direito Registral, Coimbra Editora, 1993, pág. 68-69.

E implica logicamente o cancelamento em cascata de todos os registos que se fundam nesse primeiro registo cancelado, desde que, todos os interessados tenham sido demandados e abrangidos pela eficácia do caso julgado.

Improcede, por isso, este argumento recursivo, ou seja, para o cancelamento do registo feito pelo adquirente do justificante não é necessário declarar a nulidade do negócio de compra e venda celebrado entre ambos, bastando declarar insubsistente o ato justificado que serviu de base ao contrato posterior, desde que o terceiro adquirente tenha sido também demandado na ação.

3 -  A Recorrente invoca ainda ser terceiro de boa fé, nos precisos termos do artigo 291.º do Código Civil, pelo que os seus direitos não podem ser prejudicados, sendo certo que a presente ação não foi registada e, por isso, os seus efeitos não são oponíveis a terceiros.

Cumpre começar por dizer que tendo o terceiro adquirente, a aqui Ré recorrente, sido demandado na presente ação, o registo da ação nada acrescentaria de útil em relação a si própria (T (…).).

Tal registo, previsto no artigo 3.º do CRP, só poderia ter relevo em relação a outros eventuais interessados, se os houver, porque não estão no processo.

Como se questionou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-6-94 (publicado no BMJ n.º 438, pág. 406/407), «…o registo da acção não terá apenas por finalidade dar publicidade à pretensão do demandante?

Afigura-se-nos que, não tendo, embora, o registo predial carácter constitutivo, o registo da acção tem como finalidade demonstrar que a partir da sua feitura nenhum interessado poderá prevalecer-se, contra o registante, dos direitos que sobre o mesmo imóvel adquira posteriormente ou, adquiridos antes, tenha negligenciado o seu registo - vide os artigos 53.º e 59.º, n.º 1.

Conforme refere Seabra de Magalhães - Estudos de Registo Predial, págs. 24 e segs., «o registo da acção mais não é que a antecipação do registo da própria sentença transitada - com a condição, clara, de que esta acolha o pedido do autor e dentro dos limites em que o acolher.

Atento o exposto, no presente caso, estamos perante hipótese de prioridade de registo a que os tribunais não podem deixar de atender - artigo 6.º, n. 1 e 3, do Código do Registo Predial».

Ou seja, visando o registo da ação, além da publicidade do litígio, assegurar a oponibilidade do direito a declarar na ação no confronto com terceiros, tal oponibilidade fica assegurada com a demanda do terceiro na própria ação.

Daí a irrelevância da falta de registo da ação neste caso concreto, mesmo para efeitos do disposto no artigo 291.º do Código Civil.

Improcede, também este argumento recursivo.

Passando à questão da aplicabilidade ao caso do disposto no artigo 291.º do Código Civil, onde se dispõe o seguinte:

«1. A declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.

2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro de três anos posteriores à conclusão do negócio.

3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável».

Acerca da razão de ser do artigo 291.ª do Código Civil, Luís M. Couto Gonçalves refere que «O fundamento de protecção do terceiro para efeitos do artigo 291.º é, exclusivamente, a estabilidade dos negócios jurídicos. O primeiro transmitente sofre as consequências se não ter actuado, em prazo razoável, em defesa do seu direito interpondo a competente acção judicial de nulidade. A protecção do art. 291.º representa uma excepção ao regime jurídico da declaração de invalidade dos negócios jurídicos» - A aplicação do artigo 291.º, n.º 2, do Código Civil a terceiros para efeitos de registo – Ac. do S.T.J. de 19.2.2004, Proc. 4369/03 – Cadernos de Direito Privado, n.º 9 (Janeiro/Março 2005), pág. 51-52.

No mesmo sentido Heinrich Ewald Hörster sustenta que «A finalidade do art. 291.º é, portanto, salvaguardar os efeitos de alguns negócios ao exceptuar determinados direitos, apenas, de terceiros da regra geral do art. 289.º por considerar demasiadamente violento, nos casos por ele ressalvados, o impacto da declaração de nulidade ou da anulação sobre aqueles direitos de terceiros. Esta finalidade do art. 291.º é assim bem diversa dos objectivos do registo, ou seja, do fim de dar publicidade aos direitos. Não obstante, a estrutura do art. 291.º assenta sobre princípios do registo, nomeadamente sobre o facto de o registo não ter efeitos constitutivos. (Caso contrário, as preocupações e cautelas do art. 291.º seriam escusadas). Este facto determina a lógica do preceito» - Efeitos do registo – terceiros – aquisição «a non domino» (anotação ao ac. do S.T.J. de 4 de Março de 1982, BMJ n.º 315-244). Revista de Direito e Economia, Ano VIII (1982), n.º 1, pág. 139.

Sendo esta a razão de ser do preceito, cumpre referir que, como é patente, não decorreram os três anos até à instauração da presente ação, mencionados no n.º 2 deste artigo, contados a partir da escritura de compra e venda em questão, que tem a data de 15 de novembro de 2017.

Além disso, verifica-se também que não há factos alegados e, claro, provados de onde se possa concluir pela boa fé da Ré, como se exige no n.º 1 deste mesmo artigo.

Conclui-se, por conseguinte que o caso dos autos não é subsumível ao disposto no artigo 291.º do Código Civil.

Improcede também, pelo exposto, este argumento e bem assim o recurso na sua totalidade.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida. Custas pela Recorrente.


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Coimbra, 23 de junho de 2020

Alberto Ruço ( Relator )

Vítor Amaral

Luís Cravo