Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/08.8SAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE
ELEMENTOS DO TIPO SUBJECTIVO DE ILÍCITO
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 143º, 144º, 147ºDO CP,124º,125º,127º, 410, Nº2 AL.A) ,426º E 428ºDO CPP.
Sumário: 1.O preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
2.O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido; ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
3. O dolo no crime de ofensa à integridade física grave p.e p. pelo artigo 144º do CP, abrange a ofensa e o resultado. No caso da alínea a) daquele preceito, o dolo, ainda que na modalidade de dolo eventual, abarca a desfiguração grave e permanentemente da vítima.
4.Tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime p e.p pelo artigo 144º, al a) do CP e não constando na decisão da matéria de facto os factos integradores do tipo subjectivo doloso, em nenhuma das suas modalidades, relativamente às consequências que agravam as ofensas à integridade física, verifica-se nesta parte insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Decisão Texto Integral: Pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, sob pronúncia que recebeu parcialmente a acusação do Ministério Público e o requerimento de abertura da instrução do arguido/assistente Luís Bernardo, foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, ao abrigo do art.16.º, n.º 3 do C.P.P., os arguidos
H filho de J e de A nascido a 31 de.. de 1988, natural de Sé, Guarda, solteiro, estudante, residente …. Guarda,
L filho de L e de Ma nascido a 25 de …de 1985, …. Guarda,
F, filho de J e de M, nascido a 28 de.. de 1986, …, Guarda,
P, filho de JJ e de D, nascido a 7 de .. de 1988, …, Guarda,
imputando-se:
- ao arguido H, a prática de factos pelos quais teria cometido, em autoria material e na forma consumada, dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1, do Código Penal, e um crime de ofensa à integridade física grave, p e p. pelo artigo 144º, al. a), do Código Penal, e
- aos arguidos L. F. e P., a prática de factos pelos quais teriam cometido, cada um, em autoria material e na forma consumada, um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º n.º 1, do Código Penal.

H. deduziu pedido de indemnização civil nestes autos contra L, F e contra P, peticionando o pagamento de uma indemnização no valor de € 500,00 por cada um dos demandados.

L deduziu pedido de indemnização civil contra H. peticionando o pagamento de uma indemnização ao demandado H. no valor de € 7.500,00, por danos não patrimoniais.

No decurso da audiência de julgamento, os arguidos P e F declararam desistir das queixas que haviam apresentado contra o arguido H, assim como H declarou desistir das queixas que apresentara contra os arguidos P e F, tendo os respectivos ofendidos declarado aceitar as desistências de queixa apresentadas pelos restantes. Tais desistências de queixa foram homologadas e declarado totalmente extinto o procedimento criminal contra os arguidos P e F.

O pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante H foi declarado extinto por impossibilidade superveniente da lide na parte em que demandava os aludidos P e F, atendendo às desistências de queixa apresentadas e consequente extinção da responsabilidade criminal destes últimos.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 2 de Dezembro de 2009, decidiu julgar a pronúncia parcialmente procedente e, em consequência:
- Condenar o arguido H, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física previsto e punido pelos artºs 143.º n.º 1 e 144.º al. a), ambos do C. Penal, na pena de (três) anos de prisão, e suspender a sua execução por idêntico período de 3 (três anos; e
- Absolver o arguido L da prática em autoria material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1, do Cód. Penal.
Mais decidiu:
- julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado por L e condenar o demandado civil H a pagar-lhe a quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) a titulo de indemnização civil; e
- julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado por H contra o demandado civil L. e absolver este do mesmo pedido.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido H concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1- O Tribunal fez uma interpretação incorrecta dos factos julgados e dados como provados, pelo que, a sua correcta apreciação impunha decisão diversa.
2- O arguido ao ser empurrado e pressionado contra uma parede, por alguém de elevada estampa física, embora ficando com os braços livres, estava impedido de ver fosse quem fosse que estivesse à sua frente.
3- Pelo que, não podia o M.mo Juiz a quo dar como provado que o arguido agiu com intenção de atingir as pessoas que atingiu.
4- Existiu uma deficiente avaliação da prova produzida e que deveria ter levado a outras conclusões e, não podia o Mmo Juiz a quo subsumir o comportamento do arguido no crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelos art.s 143.º, n.º 1 e 144.º, al. a) do C.P..
5- Assim, analisados os factos nenhuma circunstância revela que o arguido tenha agredido o ofendido com o dolo de resultado, ou seja, que a sua actuação dolosa tenha abrangido o resultado gravoso verificado.
6- As circunstâncias conhecidas e provadas, maxime ter o arguido sido empurrado contra a parede e estar a ser pressionado, embora com os braços livres, por pessoa de elevada estatura física, faz presumir que efectivamente poderia o resultado verificado ser tão só obra do acaso e sem que o arguido o tivesse querido ou até previsto como possível, dado que se encontrava impedido de ver quem se encontrava à sua frente.
7- Logo, sempre o arguido beneficia do princípio in dubio pro reo no sentido de que na dúvida da verificação ou não da sua actuação dolosa relativamente ao evento verificado, esta actuação não deverá ter-se por verificada.
8- Face aos elementos e circunstâncias provadas, a conduta do arguido subsume-se na previsão da norma incriminadora do artigo 145.º n.º 2, ou seja, no crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado.
9- A deficiente avaliação da matéria de facto, não só viola o art.127.º do CPP, como consubstancia também erro notório na apreciação da prova, nos termos do n.º 2 do art.º 410 do CPP.
10- Ao crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado cabe uma pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
11- No caso concreto, atentas as circunstâncias em que o crime foi perpetrado, as exigências de prevenção geral e as exigências de prevenção especial a pena a aplicar nunca deveria ser superior a 15 meses de prisão.
12- Caso assim se não entenda e a considerar-se que a conduta do arguido se subsume ao crime de ofensa à integridade física grave, sempre a pena em que o arguido foi condenado foi excessiva se ponderarmos o grau de culpa documentado nos factos e as exigências de prevenção geral e especial, pelo que o Mmo Juiz a quo aplicou de forma deficiente o art. 71º do CPP.
13- Logo, deve a pena do arguido ser reduzida, porque assim o determinam os princípios constitucionais e de prevenção especial, nunca deveria ser superior a 15 meses de prisão suspensa na sua execução
Nestes termos e nos mais de direito requer-se a V. Exa. que dando provimento ao recurso revoguem a decisão recorrida, nos termos supra referenciados, assim se fazendo a habitual, Justiça.

O Ministério Público na Comarca da Guarda respondeu ao recurso interposto pelo arguido Hugo Alexandre, pugnando pela manutenção da sentença recorrida nos seus precisos termos.

O Ex.mo Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
A) No dia 9 de Março de 2008, cerca das 5:30, no interior do bar denominado “Praxis Bar”, sito na Rua do Sol, nesta cidade da Guarda, ocorreu uma troca de palavras pouco amistosas entre o arguido H e A, irmão do arguido P, o que motivou a intervenção dos seguranças do referido estabelecimento e a saída do bar do arguido H e dos seus amigos com que se encontrava S.
B) O arguido H juntamente com os referidos S permaneceu nas imediações do referido bar até à saída de A
C) Algum tempo depois, quando A saiu do bar, no cruzamento da Rua do Sol com a Rua Comandante Salvador do Nascimento, o arguido agarrou numa vigota em cimento, com cerca de 60/70cm de comprimento, e com ela no ar, à altura da cabeça, dirigiu-se a A.
D) Para evitar a agressão a A, o arguido L posicionou-se entre H e aquele A.
E) Nesse momento, o arguido H desferiu uma pancada com a vigota de cimento no corpo do arguido L, tendo-o atingido na cabeça e nas mãos.
F) Nesse momento, F, P e outras pessoas envolveram-se na contenda.
G) Nessas circunstâncias, o arguido H munido de um pedaço de vidro cortado, provocou um ferimento na parte esquerda do tórax de P.
H) Com o referido vidro, o arguido H deu um golpe no corpo de F, tendo-lhe provocado uma ferida no abdómen, e ainda alguns golpes no rosto do arguido L.
I) O arguido H, como consequência directa e necessária da sua conduta, provocou em P uma ferida na face lateral do hemitorax esquerdo, terço médio, com dois centímetros. Esta lesão demandou para a sua cura um período de oito dias de doença.
J) E provocou também no arguido L uma ferida com catorze centímetros de comprimento, que vai desde o lábio superior, no início da asa direita do nariz, estende-se pelo lábio e face esquerdos, até dois centímetros do ângulo esquerdo da mandíbula e que descreve ligeira curvatura e ferida na face lateral esquerda, no prolongamento da anterior, que vai desde o ângulo esquerdo da mandíbula, com ligeira curvatura, com um comprimento de sete centímetros até à região cervical esquerda. Estas lesões demandaram para a sua cura um período de 12 dias de doença.
L) E provocou ainda em F uma ferida no abdómen.
M) Ao actuar da forma supra descrita, o arguido H agiu com intenção de molestar fisicamente e de ofender, como ofendeu, a integridade física de outras pessoas, e actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era ilícita e punível por lei.
N) O arguido H vive com e a cargo dos pais, sendo o pai vendedor e distribuidor e a mãe recepcionista. Suportam renda de casa em que habitam. E estudante, frequentando curso profissional de Multimédia, com vista a obter equivalência ao 12.º ano, pretendendo vir a ingressar no ensino superior.
O) O arguido L é estudante universitário, frequentando o 1.º ano do curso de Engenharia Electrotécnica. Vive com e a cargo dos pais, sendo a mãe professora reformada e o pai camionista. Tem um irmão que faz parte do agregado familiar e é professor.
P) Aos arguidos não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais.
Q) L tem vivido momentos de grande angústia e desgosto, andando abalado, nervoso, amargurado e traumatizado, tendo receado pela sua vida, uma vez que perdeu muito sangue.
R) E a cicatriz que neste momento tem no rosto poderá acompanhá-lo por tempo indeterminado, uma vez que não é ainda aconselhável efectuar qualquer operação cirúrgica por os tecidos não se terem regenerado, apenas podendo vir a suportar tal operação com o auxílio dos seus pais.
S) L ficou desfigurado de forma permanente, procurando andar sempre com a barba por fazer, de forma a que a cicatriz que ostenta não seja visível para o resto das pessoas, tanto mais, que atentas as dimensões desta última, as pessoas que se cruzam com L na rua por vezes comentam entre si.
T) L evita sair sozinho, procurando estar sempre acompanhado, e sempre que sai, solicita o acompanhamento de amigos e familiares.
Factos não provados
1) Na mesma altura e lugar referidos na matéria provada, P, F e L tenham desferido diversos murros e pontapés no corpo do arguido H
2) Ao actuar fosse de que forma fosse, o arguido L tivesse agido com intenção de molestar fisicamente e de ofender, tendo ofendido, a integridade física de qualquer outra pessoa e que tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta fosse ilícita e punível por lei.
3) No dia e hora dos factos, L F e P, após uma discussão verbal, tenham desferido um violento empurrão em H que o tenha feito cair ao chão, lugar onde os mesmos L, F e P tenham desferido diversos murros e pontapés que tenham atingido H na cara, mãos, cabeça e estômago.
4) E que com tal agressão, os aludido L, F e P tenham provocado em H um hematoma do lado esquerdo da cara e hematoma em várias partes do corpo.
5) E que em consequência de tais agressões, tenha H sofrido fortes dores, mal-estar físico, angústia e dificuldades na sua vida normal nos dias que se seguiram, tendo-se sentido revoltado e receoso de que fosse novamente agredido.
6) L, F e P tenham agido deliberada, livre e conscientemente, com o objectivo nítido e determinado de agredir H.
Motivação
A respeito da dinâmica dos factos constantes da pronúncia e da contenda tal como se deram como provados, o tribunal baseou a sua convicção sobretudo no teor dos depoimentos das testemunhas J, PD, AP, T e CM, todos os quais se encontravam presentes e demonstraram um elevado conhecimento directo dos factos, tendo deposto de forma consonante entre si, coerente, séria, espontânea, circunstanciada e mesmo desinteressada, apesar de todos serem desde há longa data amigos do arguido L e apenas conhecendo de vista o arguido H, assim todos terem merecido credibilidade por parte do tribunal.
Em sentido convergente com todas as testemunhas acabadas de aludir declarou ainda o arguido L, em termos que consequentemente mereceram também credibilidade.
Em sentido em grande medida diverso depôs desde logo o arguido H, de cujas declarações resultou designadamente que não estaria no exterior do estabelecimento denominado “Praxis Bar” a aguardar por A, mas ao invés já estaria prestes a dirigir-se para casa juntamente com os seus amigos S e LM quando A saiu do mesmo estabelecimento, que em momento algum empunhou ou sequer existiu qualquer vigota em cimento e portanto não agrediu quem quer que fosse com a mesma, que embora tivesse brandido um pedaço de vidro cortado, apenas o teria recolhido naquele momento do chão com vista a defender-se, tendo agitado o mesmo apenas de forma a que cessassem as agressões que contra si vinham sendo efectuadas, e que teria sofrido diversos murros e pontapés provenientes de pessoas entre as quais estariam os restantes arguidos, mas que contudo, não soube identificar com o mínimo de precisão.
Ora, como já fomos referindo, tais declarações, na medida em que contradisseram as circunstanciadamente prestadas por todas as testemunhas já acima referidas, não mereceram suficiente credibilidade, designadamente por provirem de forma em grande parte isolada apenas do próprio arguido H, como pessoa directamente interessada no desfecho destes autos. É particularmente pouco credível o depoimento deste arguido na parte em que nega de todo a ausência de qualquer vigota em cimento, na medida em que a forma como o mesmo a brandiu e com ela desferiu nas mãos e cabeça do co-arguido L é ndescrita de forma particularmente explícita, circunstanciada e isenta de r dúvidas por parte de todas as testemunhas acima referidas. Também não mereceu credibilidade o arguido H ao afirmar que o vidro que tinha consigo teria sido recolhido por si do chão naquele momento ao ser derrubado, na medida em que todas as referidas testemunhas afirmaram que em momento nenhum tal arguido foi projectado ao solo, tendo sido apenas empurrado e pressionado contra uma parede, sobretudo pela testemunha F, pessoa de elevada estampa física.
Não se diga em sentido diverso que, a ter sido empurrado e pressionado contra uma parede, o arguido H estaria impedido de agredir quem quer que fosse com o pedaço vidro que tinha consigo e como o fez, pois todas as testemunhas e mesmo F referiram que Hugo Sousa terá recolhido tal objecto do seu bolso e tinha ainda assim os braços plenamente livres de forma a brandir o pedaço de vidro em causa, como o fez, tendo atingido as pessoas que atingiu, com intenção disso mesmo, causando as lesões que se deram como provadas, das quais os relatórios médico-legais e registos fotográficos constantes dos autos não deixam dúvidas.
Acerca das testemunhas LM e S, diremos que as mesmas não mereceram credibilidade por parte do tribunal, e nem sequer o seu depoimento se revelou minimamente esclarecedor e circunstanciado, ao contrário do prestado por todas as restantes testemunhas já aludidas. Desde logo, os depoimentos em causa orientaram-se claramente no sentido de defesa da tese do seu amigo H, tal como a testemunha S não se coibiu sequer de afirmar que tinha interesse em depor no sentido de defender tal seu amigo. Por outro lado, foi notória a postura de claro nervosismo e desconforto de tais testemunhas no seu depoimento através da sua linguagem corporal, sendo certo ainda que, acerca do conteúdo do seu depoimento, como já se foi dizendo, o mesmo não se revelou de todo esclarecedor, na medida em que apenas insistiam em afirmar que, juntamente com o arguido H, foram agredidos e empurrados por diversas pessoas, entre as quais se encontrariam os restantes arguidos, mas sem que, tal como o arguido H, as conseguissem identificar com o mínimo de precisão ou descrever de forma minimamente pormenorizada tais agressões, insistindo sempre que tudo teria sido uma grande confusão.
É claro que aqui chegados, não podemos de facto excluir por completo a possibilidade de o arguido H ter sofrido de facto murros e/ou pontapés tal como afirmou, tendo em consequência ficado dorido como o afirmou e como foi referido pela sua mãe, que contactou com tal arguido no dia imediato. No entanto, a existência de tais agressões foi apenas afirmada de forma extremamente vaga pelo próprio arguido e por S e LM de forma nenhuma se podendo afirmar a sua ocorrência com suficiente segurança, e muito menos imputá-las a qualquer pessoa em concreto, muito menos ao aqui restante co-arguido e co-demandado L. O que temos como certo é apenas a existência de empurrões a que H foi sujeito. È por esta razão que a sua existência e a conduta imputada a este ultimo arguido foi dada como não provada.
Os factos respeitantes às condições sociais, familiares e económicas dos arguidos L e H foram dadas como provadas com base nas suas declarações, bem como nas prestadas pelas respectivas mães, não havendo razões para delas duvidar.
Quanto à matéria constante do pedido de indemnização civil deduzido pelo arguido e demandante H, a respectiva matéria foi no essencial dada como não provada pelos mesmos motivos que presidiram à decisão quanto á matéria criminal de que o mesmo era ofendido.
Relativamente ao pedido de indemnização civil formulado pelo arguido e demandante L, os respectivos factos foram dados como provados também essencialmente pelos mesmos motivos já adiantados quanto à matéria criminal, e ainda com base nos depoimentos prestados pelas testemunhas MJ e MM, respectivamente mãe e tia do aqui ofendido, que presenciaram e relataram de forma pormenorizada e circunstanciada as sequelas físicas e psicológicas do evento para L.
Relativamente ao pedido de indemnização civil formulado pelo arguido e demandante L, os respectivos factos foram dados como provados também essencialmente pelos mesmos motivos já adiantados quanto à matéria criminal, e ainda com base nos depoimentos prestados pelas testemunhas MJ e MM, respectivamente mãe e tia do aqui ofendido, que presenciaram e relataram de forma pormenorizada e circunstanciada as sequelas fisicas e psicológicas do evento para L.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. (Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do arguido H as questões a decidir são as seguintes:
- se o Tribunal a quo, ao dar como provado que o arguido/recorrente agiu com intenção de atingir as pessoas que atingiu, violou o disposto no art.127.º do C.P.P. e o princípio in dubio pro reo e incorreu no erro notório na apreciação da prova a que alude o art.410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P.;
- se dos elementos e circunstâncias provadas não resulta que o arguido/recorrente H agiu com dolo do resultado agravado, pelo que deve a sua conduta subsumir-se ao crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado , p. e p. pelo art.145.º, n.º 2 do C.P.;
- se em face da subsunção dos factos provados ao crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado, deve o recorrente ser condenado em pena não superior a 15 meses de prisão, suspensa na execução; e
- se o Tribunal a quo, ao aplicar ao recorrente H uma pena de 3 anos de prisão, suspensa na execução por igual período, pela prática de um crime de ofensa à integridade grave, violou o disposto no art.71.º do C.P., pois a pena fixada nunca deveria ser superior a 15 meses de prisão, suspensa na sua execução.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
Para decidirmos se o Tribunal a quo, ao dar como provado que o arguido/recorrente agiu com intenção de atingir as pessoas que atingiu, violou o disposto no art.127.º do C.P.P. e o princípio in dubio pro reo e incorreu no erro notório na apreciação da prova a que alude o art.410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P., importa fazer algumas considerações sobre os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo e sobre o vício do erro notório na apreciação da prova.
O princípio da livre apreciação da prova, consagrado expressamente no art.127.º Código de Processo Penal, dispõe que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.” .
A regra, na apreciação da prova, é a ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova. O valor probatório atribuído por lei a alguns meios de prova, designadamente aos documentos autênticos e autenticados ( art.169.º do C.P.P.), à prova pericial ( art.163.º do C.P.P.) e à confissão integral e sem reservas ( 344.º do C.P.P.), são excepções à regra da livre apreciação da prova, que se integram no princípio da prova legal ou tarifada, por razões de segurança ou de celeridade processual.
Sobre o significado a dar à expressão livre convicção, na apreciação da prova, parece haver consenso no sentido de que não se confunde com a apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
A convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, como as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento , que ali transparecem.
Pese embora na convicção assumam frequentemente relevo elementos racionalmente não explicáveis, que se retiram da imediação e da oralidade, a livre apreciação da prova não pode significar apreciação arbitrária, imotivável e incontrolável.
Como diz o Prof. Figueiredo Dias, a convicção do juiz na apreciação da prova é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá e só quando (…) o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
No mesmo sentido se expressa o Prof. Germano Marques da Silva ao defender que “... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”. – in “Curso de Processo Penal”, Vol II, edição Verbo, pág. 131.
Sobre as regras da experiência, na apreciação da prova, estas são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
Do exposto resulta que o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal, isto é, o princípio da livre apreciação da prova, deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
O princípio da livre apreciação da livre apreciação da prova, valendo embora para o decurso de todo o processo penal, assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355.º do Código de Processo Penal.
È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.
Se a decisão do julgador, estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra , de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Se o recorrente impugna somente a credibilidade da testemunha deve indicar os elementos objectivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade do depoimento, pois a credibilidade, quando estribada em elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, que foge ao reexame do Tribunal de recurso.
Passando agora ao princípio in dubio pro reo , diremos , em breves considerações, que este princípio da prova estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido.
O mesmo identifica-se com a presunção de inocência do arguido a que alude o art.32.º, n.º 2 , da Constituição da República Portuguesa e o art.11.º, n.º1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem , e impõe que o julgador valore sempre em favor daquele um non liquet.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que , face a ele , escolheu a tese desfavorável ao arguido .- Cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 ( C.J. , ASTJ , ano IV , 1º, pág. 177 ) .
Por fim, sobre o erro notório na apreciação da prova, importa atender ao disposto no art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal.
Estatui este preceito que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento , desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; ou
c) O erro notório na apreciação da prova .
Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P. têm de resultar do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum , sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.
O erro notório a que alude esta alínea c) , n.º 2, do art.410.º do Código de Processo Penal – que o recorrente H aponta à decisão recorrida – tem lugar “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável , quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo ) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, Rei dos Livros , 2ª ed. ,Vol. II , pág. 740.
No mesmo sentido decidiram , entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).
Para se poder determinar se o tribunal usou um processo racional e lógico na apreciação da prova é que, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal ( art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal) .
O erro notório na apreciação da prova, é o erro ostensivo, que não escapa ao homem de média cultura e nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida na sentença e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida oralmente em audiência de julgamento.
O arguido H defende que o Tribunal a quo avaliou deficientemente a prova produzida relativamente à intenção com que ele agiu, partindo da análise de segmentos da motivação da matéria de facto da sentença recorrida. Num refere-se que “ …todas as referidas testemunhas afirmaram que em momento nenhum tal arguido foi projectado ao solo, tendo sido apenas empurrado e pressionado contra uma parede, sobretudo pela testemunha FF pessoa de elevada estampa física.” e, noutro, que “…todas as testemunhas e mesmo F F referiram que H terá recolhido tal objecto do seu bolso e tinha ainda assim os braços plenamente livres de forma a brandir o pedaço de vidro em causa, como o fez, tendo atingido as pessoas que atingiu, com intenção disso mesmo…”.
No seu entender, resulta do texto destes segmentos da motivação da matéria de facto, que o recorrente ao ser empurrado e pressionado contra uma parede por alguém de elevada estampa física, embora ficando com os braços livres , estava impedido de ver quem quer que fosse, pelo que não podia o Mmo Juiz a quo dar como provado que o arguido agiu com intenção de atingir as pessoas que atingiu.
Resulta também da motivação, que o arguido referiu que apenas teve a intenção de se defender, agitando pedaço de vidro de forma a que cessassem as agressões que contra si vinham a ser efectuadas.
As circunstâncias conhecidas e provadas, maxime ter o arguido sido empurrado e pressionado contra uma parede, embora com os braços livres, por alguém de elevada estampa física, faz presumir que o resultado verificado poderia ser tão só obra do acaso e sem que o arguido o tivesse querido ou até previsto como possível, dado que se encontrava impedido de ver quem se encontrava à sua frente.
O arguido/recorrente, perante a dúvida sobre a verificação ou não da sua actuação dolosa relativamente ao evento verificado, deveria ter beneficiado do princípio in dubio pro reo e , assim, dar-se como não verificada aquela actuação.
Vejamos.
O Tribunal a quo deu como provado, designadamente, que no momento em que o L se posicionou entre o arguido H e o A, para evitar que o H agredisse este com uma vigota de cimento, o H desferiu uma pancada com essa vigota na cabeça e mãos do L.
Envolvendo-se então na contenda outras pessoas, como os arguidos F e P, o arguido H, munido de um pedaço vidro, desferiu com ele ao L vários golpes no rosto, causando-lhe as feridas descritas na na alínea J) da respectiva matéria de facto da sentença recorrida, bem como causou um ferimento no tórax ao arguido P e uma ferida no abdómen do arguido F
Na alínea M) da mesma matéria de facto, o Tribunal a quo deu como provado que « Ao actuar da forma supra descrita, o arguido H agiu com intenção de molestar fisicamente e de ofender, como ofendeu, a integridade física de outras pessoas, e actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era ilícita e punível por lei.».
Da motivação da matéria de facto provada resulta que os factos dados como provados, designadamente que o arguido H “agiu com intenção de molestar fisicamente e de ofender, como ofendeu”, designadamente o L, resultaram, no essencial, do depoimento das testemunhas J PF. FF, A, T e C, que depuseram com conhecimento directo e circunstanciado dos factos, de forma coerente e séria, merecendo credibilidade, tal como o assistente/arguido L, credibilidade.
Não resulta dos segmentos da motivação da matéria de facto da sentença transcritos pelo recorrente, nem de qualquer outra parte da mesma motivação, que o arguido/recorrente atingiu por acaso o L e os ex-arguidos F e P, com o pedaço de vidro que brandia.
Tal circunstância não resulta minimamente indiciada do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Das regras da experiência comum não resulta que, quem é empurrado e pressionado contra uma parede, mantendo os braços plenamente livres permitindo brandir um pedaço de vidro, fica impedido de ver as pessoas que atinge com o pedaço de vidro que manipula com os braços plenamente livres e que as ofensas corporais que então causa são “obra do acaso”.
O agente da agressão só não veria as pessoas que atinge e onde as atinge, com o pedaço de vidro que agitava na mão, se lhe tapassem os olhos ou de algum modo lhe limitassem a visão, o que não resulta do texto da motivação da matéria de facto.
Quanto ao alegado animus deffendendi, por parte do recorrente, o mesmo não resulta dos factos provados nem da fundamentação da matéria de facto, sendo que consta dos factos dados como não provados da sentença que o L desferiu murros e pontapés no corpo do arguido H
Analisando o texto da decisão recorrida, nomeadamente a fundamentação da matéria de facto , e as referências que na mesma são feitas às declarações do L e aos depoimentos das testemunhas tidas como credíveis, no âmbito da imediação e da oralidade, não vemos que o Tribunal recorrido , ao dar como provada a matéria de facto constante da alínea M) – único ponto onde se faz menção à intenção com que o arguido H agiu -, tenha seguido um raciocínio ilógico, arbitrário ou contraditório, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum , de onde se possa concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova ou de violação da livre apreciação da prova.
Da motivação ou fundamentação da matéria de facto da douta sentença não se vislumbra também que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido H dos factos dados como provados, designadamente do constante da alínea M), ou seja, nomeadamente, que ao dar uma pancada com uma vigota de cimento na cabeça e nas mãos do L e alguns golpes com um vidro no rosto deste, agiu com intenção de ofender a integridade física do L.
O que resulta daquela fundamentação, da fundamentação de direito e do dispositivo, é um estado de certeza do Tribunal recorrido relativamente à prática pelo arguido/recorrente H dos factos dados como provados naquela alínea M), pelo que está deste modo afastada a violação pelo Tribunal recorrido do principio in dubio pro reo.
Do exposto resulta a improcedência desta questão.
A segunda questão a decidir é se dos elementos e circunstâncias provadas não resulta que o arguido/recorrente agiu com dolo do resultado agravado, pelo que deve a conduta deste subsumir-se ao crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado, p. e p. pelo art.145.º, n.º 2 do C.P.
Em defesa do seu ponto de vista, de alteração da qualificação jurídica para um crime punido menos gravemente, defende o recorrente H que o crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art.144.º do Código Penal, exige o elemento objectivo do tipo de ilícito e, para além de uma actuação com dolo em qualquer uma das suas modalidades, ainda, um dolo do resultado verificado, ou seja, que o resultado gravoso verificado tenha sido efectivamente querido ou pretendido pelo agente, ainda que a título individual..
O crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado, p. e p. pelo art. 145.º, n.º 2, do Código Penal, exige o resultado verificado e caracterizado no art.144.º do Código Penal, mas não o dolo relativamente ao resultado.
No caso em apreciação, embora o arguido/recorrente actuasse com dolo ou propósito de ofender a integridade física do L, todavia não actuou com dolo relativamente ao resultado verificado, ou seja, não se provou que agisse com intenção de causar ao arguido L as ofensas corporais verificadas.
Não se tendo provado que o arguido/recorrente agiu com intenção de causar ao ofendido as ofensas corporais verificadas, a sua conduta preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado.
A decisão desta questão objecto de recurso pelo Tribunal da Relação impõe a prestação de esclarecimentos sobre os elementos constitutivos de alguns dos crimes de ofensa à integridade física previstos no Capitulo III, do Título I, da Parte Especial do Código Penal.
O art.143.º, n.º 1, do Código Penal estabelece que « Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.».
Este é o tipo fundamental em matéria de crimes contra a integridade física, cujo bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana.
O crime fica preenchido com ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa, praticado com dolo em qualquer das três modalidades enunciadas no art.14.º do Código Penal.
Para além do crime de ofensa à integridade física simples, agora referido, o Código Penal prevê casos especiais de ofensas à integridade física, designadamente, o crime de ofensa à integridade física grave e o crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado.
Não se verificando algum dos casos especiais de ofensas à integridade física previstos no Código Penal , no capítulo dos “ Crimes contra a integridade física”, as ofensas à integridade física terão o tratamento do art.143.º do Código Penal.
O arguido/recorrente H foi pronunciado e veio a ser condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art. 144.º, alínea a) do Código Penal , que estatui, designadamente, o seguinte:
« Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a:
a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente; (…)
é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.».
A desfiguração significa deformação da figura, degradação da aparência. A gravidade da desfiguração afere-se comparando a aparência da vítima antes e depois da prática do facto. Ela será grave se dessa comparação resultar uma lesão intensa da integridade física.
Para além de grave, a desfiguração, para integrar o tipo da alínea a), do art.144.º, do Código Penal, tem de ser permanente, isto é, duradoura, de duração imprevisível, à data da sentença judicial.
O elemento subjectivo é constituído pelo dolo em qualquer uma das suas modalidades. O dolo no crime de ofensa à integridade física grave tem de abranger não só o tipo fundamental ( art.143.º, n.º1 do Código Penal ), como as consequências que o qualificam. Dito de outro modo, o dolo no crime de ofensa à integridade física grave tem de abranger o resultado grave, pelo que no caso da alínea a), que está em causa nestes autos, tem de abranger a desfiguração grave e permanentemente da vítima, pelo menos a título de dolo eventual. – cfr. os Prof.s Augusto Silva Dias, in “ Crimes contra a vida e a integridade física”, edição da AAFDL, ano 2007, páginas 101 a 107 e Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, pág.223 a 234.
Com a revisão do Código Penal de 2007, pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro - que entrou em vigor a 15 de Setembro de 2007 - o crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado consta do art.147.º, n.º 2 do Código Penal.
Os factos em apreciação ocorreram em 9 de Março de 2008, portanto na vigência da última revisão do Código Penal.
Assim, apenas por lapso do recorrente H se pode entender a referência que o mesmo faz ao crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado, como sendo p. e p. pelo art.145.º, n.º 2 do C.P., pois tal era o tipo penal que previa esse crime antes da revisão do Código Penal de 2007.
O crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado, p. e p. pelo art.147.º, n.º 2 do Código Penal, estatui o seguinte:
« Se das ofensas previstas no artigo 143.º, na alínea a) do n.º 1 do artigo 145.º e na alínea a) do art.146.º resultarem as ofensas previstas no art.144.º, o agente é punido com a pena aplicável ao crime respectivo agravada de um quarto nos seus limites mínimo e máximo.».
Na anotação ao crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado, então p. e p. pelo art.145.º, n.º 2 , do Código Penal, afirma Paula Ribeiro de Faria, que «Estamos perante um delito qualificado pelo resultado que se caracteriza por uma especial combinação de dolo e negligência (crime preterintencional). O delito fundamental doloso (aqui a lesão da integridade física) é por si só susceptível de punição, no entanto, a pena é substancialmente elevada com base numa especial censurabilidade do agente, uma vez que o perigo específico que envolve esse comportamento se concretiza num resultado agravante negligente (morte ou lesão da integridade físicas graves). (…) É claro que a morte ou a ofensa à integridade física grave deverão ser expressão de um perigo específico que o comportamento do agente envolve (e aqui, conjuntamente com a especial censurabilidade; cfr. infra § 9; Figueiredo Dias, Responsabilidade cit. 135, fala numa "previsibilidade subjectivamente possível").
Todavia, por imposição da própria letra do art. 145°, da sua estrutura e do próprio processo típico do crime em análise, deve esse perigo específico estar directamente relacionado com o crime fundamental doloso (que apresenta uma determinada natureza e que por isso anda associado a efeitos de determinado tipo), não se podendo responsabilizar o agente por consequências imprevisíveis ou anormais que não se relacionem com o mesmo crime. ” – cfr. obra citada páginas 240 e 242.
Portanto, no ilícito previsto no art.147.º do Código Penal o crime base é doloso e o resultado é imputado a título de negligência (acórdão do STJ de 7/3/90, proc. nº 40419), sendo que a negligência dever-se-á referir às possíveis consequências da lesão.
Descendo agora ao caso em apreciação, verificamos que dos factos dados como provados na sentença recorrida consta que o arguido/recorrente H desferiu uma pancada com uma vigota de cimento na cabeça e mãos do L e, com um pedaço de vidro, agrediu, entre outras pessoas, o mesmo L, a quem desferiu vários golpes no rosto, causando-lhe uma ferida com catorze centímetros de comprimento, que vai desde o lábio superior, no início da asa direita do nariz, estende-se pelo lábio e face esquerdos, até dois centímetros do ângulo esquerdo da mandíbula e que descreve ligeira curvatura e ferida na face lateral esquerda, no prolongamento da anterior, que vai desde o ângulo esquerdo da mandíbula, com ligeira curvatura, com um comprimento de sete centímetros até à região cervical esquerda.
Quando na alínea M) da mesma matéria de facto, o Tribunal a quo dá como provado que « Ao actuar da forma supra descrita, o arguido H agiu com intenção de molestar fisicamente e de ofender, como ofendeu, a integridade física de outras pessoas, e actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era ilícita e punível por lei.», afirma-se que aquele arguido agiu com dolo genérico e directo, ao ofender corporalmente, entre outros, o L
A alínea M) é retirada da acusação do Ministério Público, o qual havia deduzido acusação contra o arguido H apenas pelo crime de ofensa à integridade física simples.
O arguido H vem a ser pronunciado pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art. 144.º, alínea a) do Código Penal, na sequência de abertura da instrução requerida pelo assistente L, depois da Ex.ma Juiza de Instrução decidir que as lesões padecidas por este, pelo local em que se situam e alteração substancial da aparência do ofendido, o desfiguram grave e permanentemente.
Da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida resulta que o L, em consequência da acção do arguido H ficou desfigurado de forma grave e permanente.
O que já não consta dos factos dados como provados da sentença – nem da pronúncia, apesar de constar do art.16 do requerimento de abertura da instrução do assistente L, que o ora arguido H sabia que utilizando um objecto de natureza cortante determinava ao assistente feridas que causariam a este desfiguração do rosto de forma grave e permanente e mesmo assim não se coibiu de as praticar – é o dolo do arguido/recorrente relativamente às consequências que qualificam as ofensas como integradoras do crime de ofensa à integridade física grave, pelo qual o ora recorrente foi pronunciado.
Dito de outro modo, não resulta dos factos provados, o dolo relativamente às consequências que agravam as ofensas à integridade física.
Tem assim razão o arguido/recorrente quando defende que embora actuasse com dolo ou propósito de ofender a integridade física do L, não se provou que agisse com intenção de causar ao arguido L as ofensas corporais verificadas, isto é, que tenha agido com conhecimento e vontade de desfigurar grave e permanentemente o L.
Aliás, nem sequer foi apurada a possibilidade da existência de dolo eventual, no sentido de o arguido/recorrente ter representado como consequência possível da sua conduta desfigurar grave e permanentemente o L e haver-se conformado com essa realização.
Daqui não resulta, porém, como defende o arguido/recorrente, que não se tendo provado que agiu com intenção de causar ao ofendido as ofensas corporais verificadas, a sua conduta preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado.
È que dos factos provados também não constam elementos que permitam concluir que ao querer ofender o L no rosto, com alguns golpes desferidos através de um pedaço de vidro, o comportamento do recorrente se materializou num resultado agravante não previsto – a lesão da integridade física grave – ou que, representado o mesmo como possível, não se conformou com essa realização.
Se o arguido/recorrente actuou com dolo, em qualquer das modalidades, querendo desfigurar grave e permanentemente o L, a sua conduta preencherá o crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art. 144.º, alínea a) do Código Penal, pelo qual está pronunciado.
Se o arguido/recorrente actuou com dolo relativamente à lesão, mas o resultado ou possível consequência da lesão, só lhe pode ser imputado a título de negligência, praticará o crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado, p. e p. pelo art.147.º, n.º 2 do Código Penal, como defende o recorrente.
A matéria de facto provada, tal como consta da sentença recorrida, não permite a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento.
A sentença recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude o art.410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, que é de conhecimento oficioso – acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19 de Outubro de 1995, in DR, I-A Série, de 28 de Dezembro de 1995.
Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada , previsto nesta al. a), quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que , podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ( e da medida desta) ou de absolvição .- Cfr. entre outros , os Acórdãos do STJ de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49) .
Admite-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, seriam dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas – Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques , in “Código de Processo Penal anotado” , 2ª ed., pág. 737 a 739.
Impõe-se, deste modo, reenviar o processo para novo julgamento, restrito ao apuramento dos pontos relativos ao tipo subjectivo de ilícito, nos termos do art.426.º, n.º1, do Código de Processo Penal, sem prejuízo do cumprimento, se necessário, do disposto n.º art.358.º, do mesmo Código.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude o art.410.º, n.º 2, alínea a), do C.P.P. e reenviar o processo para novo julgamento , restrito aos pontos supra indicados, a realizar pelo tribunal referido no art. 426.º-A, do mesmo Código.
Não há lugar a tributação.
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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,