Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
617/10.5TBMMV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRESUNÇÕES
INSOLVÊNCIA CULPOSA
EFEITOS
INDEMNIZAÇÃO
QUALIFICAÇÃO
Data do Acordão: 05/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – SEC. COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 186º, Nº 2, E 189º, Nº 2, AL. E), AMBOS DO CIRE.
Sumário: I – O nº 2 do art.186º do CIRE estabelece, nas diversas alíneas ( a) a i)), presunções juris et de jure de insolvência culposa, a partir de certas condutas dos administradores, como os actos destinados a empobrecer o património do devedor e ao não cumprimento de determinadas obrigações legais. Consagra-se uma presunção inilidível de culpa grave, como do nexo de causalidade entre esses comportamentos e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

II - A Lei nº 16/2012 de 20/4 (com entrada em vigor em 21/5/2012), que alterou o CIRE, aditou ao art.189º, nº 2, a alínea e), com o que criou um novo efeito da qualificação da insolvência ao estabelecer os pressupostos para a constituição do direito de indemnização a favor dos credores. Tratando-se de uma lei sobre o modo de constituição do direito de indemnização (alterando e ampliando a fattispecie constitutiva), não se aplica aos factos anteriores.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

            1.1.- Na Comarca de Montemor-o-Velho, por sentença de 25/2/2011, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade S..., Lda.

            A credora D...,  Lda  requereu a qualificação da insolvência como culposa, alegando que a actuação do gerente da insolvente, P..., subsume-se à previsão das alíneas a) e b) do nº 2 do art. 186 do CIRE.

            O Administrador de Insolvência emitiu parecer no sentido da qualificação culposa da insolvência e o Ministério Público concordou.

            A insolvente e P... deduziram oposição.

            1.2.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença, que decidiu:

Tudo visto, ao abrigo do disposto nos artigos 186, nºs 1 e 2, alíneas a), b) e d) e 189, nº 1 do CIRE, decide-se qualificar a insolvência da sociedade comercial “S..., Lda.” como culposa.

Concomitantemente, ao abrigo do disposto no art. 189, nº 2, alíneas a) a e) do CIRE:

- É pessoa afectada pela qualificação o administrador da insolvente, P..., que actuou com dolo na agravação da respectiva situação de insolvência da devedora (alínea a)).

- Decreta-se a inibição de P... para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 2 (dois) anos (alínea b)).

- Declara-se P... inibido para o exercício do comércio durante um período de 2 (dois) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (alínea c)).

- Determina-se a perda de quaisquer créditos detidos por P... sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, bem como condena-se o mesmo na restituição dos bens ou direitos por si já recebidos em pagamento desses créditos (alínea d)).

- Condena-se P... a indemnizar os credores da devedora insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património, em montante a liquidar em execução de sentença, a quantificar de harmonia com os critérios enunciados supra (alínea e) e art. 189, nº 4 do CIRE).

Fixo valor da causa incidental nos €5.000,00 (cinco mil euros), o qual corresponde à utilidade económica do pedido, ante o critério legal enunciado no art. 304, nº 1 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 17º do CIRE.

Custas da acção incidental, em partes iguais, pela devedora insolvente e pelo afectado com a qualificação da insolvência como culposa, P...

Registe e notifique e, após trânsito, dê cumprimento ao disposto no art. 189, nº 3 do CIRE “

            1.3.- Inconformado, P... recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

...

            Contra-alegou o MP no sentido da improcedência do recurso.


II - FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- O objecto do recurso

            As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes:

            (i)Alteração de facto

            (ii)A qualificação da insolvência

            (iii)A indemnização aos credores.

            2.2.- Os factos provados ( descritos na sentença )

...

2.3.- Alteração de facto

...

2.4. – A qualificação da insolvência

O incidente da qualificação da insolvência ( arts.185 e sgs. do CIRE ) destina-se a averiguar as razões que determinaram a situação de insolvência, face às duas modalidades previstas: culposa e fortuita.

            O art.186 do CIRE contém os pressupostos da insolvência culposa, através da formulação de uma noção geral (nº1), complementada e concretiza com o recurso a presunções ( nºs 2 e 3 ).

            Diz o nº 1 do art.186 – “ A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

            Postula-se não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos administradores, mas também o nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência.

            O nº 2 do art.186 estabelece, nas diversas alíneas ( a) a i) ), presunções juris et de jure de insolvência culposa, a partir de certas condutas dos administradores, como os actos destinados a empobrecer o património do devedor e ao não cumprimento de determinadas obrigações legais.

            Consagra-se uma presunção inilidível de culpa grave, como do nexo de causalidade entre esses comportamentos e a criação ou agravamento da situação de insolvência (cf., por ex., C. Fernandes/J. Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, pág.14).

Neste contexto, conforme se explicita no Ac. T.C. nº 570/2008, de 26/11/2008 (disponível em www.tribunal constitucional.pt) “é duvidoso que na previsão do nº 2 do artigo 186º do CIRE se instituam verdadeiras presunções (…) o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa”.

            A sentença enquadrou a actuação do gerente P... quanto à alienação dos veículos automóveis nas alíneas a), b) e d) do nº 2 do art.186 CIRE.

            Para tanto, argumentou-se:

“ A factualidade relatada resultou efectivamente provada, tendo-se apurado que a insolvente alienou os mencionados veículos à mãe do seu sócio-gerente pelo valor total de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), quando, na verdade, à data da alienação, os mesmos tinham um valor comercial global de pelo menos €8.000,00 (oito mil euros), sendo que a alienação de tais veículos automóveis agravou a situação económica da insolvente.

Perante este quadro fáctico inexistem dúvidas que o administrador de facto e de direito da insolvente (única pessoa responsável pela gestão e destino da insolvente), P..., dolosamente, fez desaparecer parte considerável do património daquela (bens em causa valiam, pelo menos, €8.000,00, sendo que o património da devedora apreendido em favor da massa insolvente foi apenas de €4.163,00) mediante a alienação a baixo custo, por valor substancialmente inferior ao real, de dois veículos que constituíam parte integrante do seu património, sendo que com tal actuação o administrador da insolvente operou uma agravação do passivo e prejuízos da ora insolvente, traduzindo os negócios realizados um propósito conseguido de frustrar a satisfação dos direitos de crédito de que são titulares os credores da devedora insolvente.

Estamos perante dois negócios ruinosos celebrados pelo administrador da insolvente em proveito de pessoas com ele especialmente relacionadas, designadamente a sua mãe, que contribuíram para o agravamento da situação económica da insolvente, podendo concluir-se, de igual modo, que P... dispôs dos referidos bens do património da insolvente em proveito de terceiros”.

            Concorda-se com fundamentação, embora a factualidade seja apenas subsumível à previsão das alíneas b) e d) do nº 2 do art.186 do CIRE.

            E como já se referiu, nas alíneas do nº 2 do art.186 CIRE consagra-se presunção inilidível tanto de culpa grave como do nexo de causalidade (cf., por ex., Ac STJ de 6/10/20111, proc. nº 46/07; Ac RC de 5/2/2013, proc. nº 380/09; Ac RC de 28/5/2013, proc. nº 102/12, disponíveis em www dgsi.pt).

            2.5.- A indemnização aos credores

            A sentença condenou o Apelante P... “a indemnizar os credores da devedora insolvente no montante dos créditos não satisfeitos até às forças do seu património, em montante a liquidar em execução de sentença, a quantificar de harmonia com os critérios enunciados supra ( alínea e) e art.189 nº 4 CIRE ).“

            A liquidação posterior foi assim justificada:

“Na aplicação da alínea e) do nº 2 do art. 189.º do CIRE o tribunal não dispõe dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, pelo que irá fixar, apenas, os critérios necessários à quantificação da indemnização a satisfazer pelo afectado com a qualificação da insolvência, que são os seguintes: valor global dos créditos reconhecidos e não satisfeitos, de que são titulares os credores da devedora insolvente; a diferença entre o valor real (pelo menos de €8.000,00) dos dois veículos da insolvente que foram alienados, em seu prejuízo, e o valor da sua venda (€1.500,00), grau e intensidade da culpa do afectado com a qualificação da insolvência; a circunstância da actuação do sócio- gerente da insolvente ter, apenas, agravado a situação de insolvência daquela, não traduzindo facto criador/gerador da insolvência da devedora”.

            Considera o apelante que existem elementos suficientes para a liquidação, por os prejuízos eventualmente sofridos se computarem em € 6.500,00, correspondente à diferença entre o valor de mercado dos veículos (€ 8.000,00) e o valor inscrito na contabilidade (€ 1.500,00).

            A liquidação dos danos pressupõe a prévia existência de uma obrigação, e no caso concreto ela não tem fundamento legal.

            A Lei nº 16/2012 de 20/4 (com entrada em vigor em 21/5/2012), que alterou o CIRE, aditou ao art.189 nº 2, a alínea e) - “ Condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre tosos os afectados”.

            E acrescentou o nº 4 – “Ao aplicar o disposto na alínea e) do nº 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas, ou caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor de elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença”.

            A qualificação da insolvência como culposa produz um conjunto de efeitos de natureza civil na esfera jurídica das pessoas afectadas (por ex. a inibição para o exercício do comércio, perda de créditos), e o legislador (2012), ao elenco já previsto acrescentou a indemnização aos credores, criando uma autónoma e nova fonte de obrigação, tratando-se de uma causa de responsabilidade civil delitual, com pendor sancionatório.
Relativamente às normas de natureza substantiva, das quais fazem parte as que regulam os efeitos da qualificação da insolvência, não se prevendo regime transitório especial, impõe-se a regra do art.12 do CC.
O princípio geral do art.12 do CC é o da aplicação prospectiva da lei – “a lei só dispõe para o futuro “ (nº 1). Daqui resulta que a lei só se aplica a factos futuros, ou seja, os factos que se produzirem após a entrada da lei nova. Quanto às relações jurídicas duradouras, a lei nova aplica-se não só às relações jurídicas constituídas na sua vigência, mas também às relações que constituídas antes protelem a sua vida para além do momento da entrada em vigor da nova regra.
O princípio da aplicação prospectiva da lei assume duas faces distintas, mas complementares: salvo disposição em contrário, a lei aplica-se a factos futuros, mas quanto à relações jurídicas duradouras, a lei nova aplica-se não só às relações constituídas na sua vigência, como às constituídas antes que se mantenham na vigência da lei nova (cf., Antunes Varela, RLJ ano 120, pág.151).
A Lei nº 16/2012 criou um novo efeito da qualificação da insolvência ao estabelecer os pressupostos para a constituição do direito de indemnização a favor dos credores. Trata-se, assim, de uma lei sobre o modo de constituição do direito de indemnização (alterando e ampliando a fattispecie constitutiva), e não de uma lei sobre o modo de exercício desse direito. Ora, se o modo de exercício do direito surgido sob a lei anterior pode ser atingido pela lei nova, já o mesmo não sucede em relação ao modo de constituição, porque a lei nova que dispõe sobre os próprios pressupostos constitutivos não se aplica aos factos anteriores (cf, neste sentido, Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, pág.128).
Porque tanto a venda dos veículos, como a sentença que declarou a insolvência são anteriores à vigência da Lei nº 16/2012, não tem aqui aplicação, significando, por conseguinte, inexistir fundamento legal para a liquidação e necessariamente para a condenação na indemnização aos credores, o que implica ipso facto a revogação da sentença, nesta parte.
2.6.- Síntese conclusiva

i)O nº 2 do art.186 estabelece, nas diversas alíneas ( a) a i) ), presunções juris et de jure de insolvência culposa, a partir de certas condutas dos administradores, como os actos destinados a empobrecer o património do devedor e ao não cumprimento de determinadas obrigações legais. Consagra-se uma presunção inilidível de culpa grave, como do nexo de causalidade entre esses comportamentos e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

ii)A Lei nº 16/2012 de 20/4 (com entrada em vigor em 21/5/2012), que alterou o CIRE, aditou ao art.189, nº 2, a alínea e), criando um novo efeito da qualificação da insolvência ao estabelecer os pressupostos para a constituição do direito de indemnização a favor dos credores. Tratando-se de uma lei sobre o modo de constituição do direito de indemnização (alterando e ampliando a fattispecie constitutiva), não se aplica aos factos anteriores.

III – DECISÃO
            Pelo exposto, decidem:
1)
            Julgar parcialmente procedente a apelação e revogar a sentença na parte em que condenou “P... a indemnizar os credores da devedora insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património, em montante a liquidar em execução de sentença, a quantificar de harmonia com os critérios enunciados supra. (alínea e) e art. 189, nº 4 do CIRE)”-, confirmando-se o demais decidido.
2)
            Custas pela massa insolvente (art.303 e 304 CIRE).
Coimbra, 27/5/2015
( Jorge Arcanjo )
( Teles Pereira )
( Manuel Capelo )