Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2790/19.8T8CBR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
CIRE
PARECER DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR
Data do Acordão: 02/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTº 222º-G, Nº 4 DO CIRE.
Sumário: I - O parecer do Administrador Judicial Provisório emitido nos termos do nº 4 do art.º 222º-G do CIRE, no qual este conclui pela situação de insolvência do devedor, requerendo a respetiva insolvência, constitui uma verdadeira petição inicial de insolvência, nos termos do art.º 23º, nº 1, do CIRE.

II - Como tal, ele deve conter todos os factos que permitam ao juiz concluir pela impossibilidade do devedor cumprir as suas obrigações vencidas, ou seja, pela sua situação de insolvência, conforme o art.º 3º, nº 1, do CIRE.

III - Sendo a partir dessa alegação precisa e completa que o devedor deve ser citado para deduzir, querendo, oposição, nos termos do art.º 30º do CIRE.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

M... deu início a um processo especial para acordo de pagamento (CIRE) no Juízo de Comércio de Coimbra, Comarca de Coimbra, o qual terminou num acordo cuja homologação foi recusada nos termos do nº 1 do art.º 222º-G do CIRE.

Em 20.02.2019 veio o Sr. Administrador Judicial Provisório apresentar o seu parecer nos termos do nº 4 do art.º 222º-G do CIRE, no qual, após reiterar o alegado pela devedora no sentido de que vive com grandes dificuldades económicas, tem dificuldade em cumprir pontualmente as prestações de crédito à habitação bem como em obter crédito e prover ao sustento do seu agregado familiar, se pronunciou no sentido de ser declarada a respectiva insolvência.

Em 04.11.2020 foi proferida sentença a declarar a insolvência da devedora ...

Inconformada, deste veredicto recorreu a devedora, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

Foram os seguintes os factos considerados provados na decisão recorrida:

1º A Requerente encontra-se divorciada por decisão de 27 de Agosto de 2009 transitada em 29 de Agosto de 2009.

2º Tem duas filhas menores, uma nascida em 04/01/2004 e outra filha nascida em 06/06/2000.

3º Vive com as suas duas filhas menores, sendo o seu agregado familiar constituído por si e pelas suas duas filhas menores.

4º Exerce a profissão de esteticista, manicure e pedicure por conta própria.

5º Tem despesas mensais de alimentação não inferiores a €250,00 (duzentos e cinquenta euros).

6º Auferiu no ano de 2016 o valor anual de €7.179,48€.

7º Vive no prédio urbano sito na ..., imóvel com hipoteca voluntária a favor do Banco B..., S.A. cujo crédito a requerente se encontra a pagar.

8º Em 2015 a C...  instaurou o processo executivo com o nº ... que corre termos no Juízo de Execução de Águeda, do Tribunal da Comarca de Aveiro, no qual foi penhorado o prédio urbano sito ... afeto a habitação (1º Dtº). Inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...;

9º A fls.16 do apenso B e anexa ao plano de pagamentos junto, foi junta a seguinte relação por ordem alfabética de credores: ...

10º A requerente é titular do prédio urbano, fracção ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o nº ..., com hipoteca do banco B..., S.A.

11º Conforme resulta do Apenso A, o processo especial para acordo de pagamento terminou, por recusa de homologação de Acordo de Pagamento apresentado pela devedora, nos termos do disposto no art.º 222º-G, nº 1 do CIRE.

12º Foi junto parecer pelo Ilustre Administrador Judicial Provisório entendendo estar a requerente em situação de insolvência, a aceitação por parte da devedora da impossibilidade de efectuar o pagamento dos créditos, e bem assim a manifestação e junção de plano de pagamentos.

13º Nos autos de incidente de aprovação de plano de pagamento foi proferida decisão de não homologação do plano de pagamentos (não aprovado) apresentado pela requerente M..., decisão essa confirmada por Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra e Supremo Tribunal de Justiça.

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação e delimitam o objecto recursivo a apelante levanta as seguintes questões:

Se o parecer do Administrador Judicial Provisório não pode ser aceite como tal por não integrar toda a factualidade necessária à comprovação da situação de insolvência;

Se a sentença é nula por ter sido proferida sem o contraditório da devedora/apelante;

Se não foi atendido o facto de o valor da dívida à credora C..., SA, ser muito inferior ao valor constante do acordo de pagamento, conforme rectificação aí oportunamente apresentada pela apelante;

Se o activo patrimonial da apelante é suficiente para cobrir o passivo, não se encontrando em situação de insolvência.

Não houve contra-alegações.

Apreciando.

Da inexistência de um verdadeiro parecer do AJP.

Entende a recorrente que o parecer junto pelo Administrador Judicial Provisório após a recusa de homologação do acordo de pagamento no qual vem pedida a declaração de insolvência não pode ser considerado como tal porquanto contém afirmações genéricas, não se mostrando devidamente fundamentado, para além de não ter sido precedido da audição da devedora, ora apelante.

Vejamos.

Apesar de na sentença de insolvência se ter deixado assente que no parecer do AJP se alude a uma “aceitação” por parte da devedora da sua impossibilidade de efectuar o pagamento dos créditos – significando uma “conformação” com a própria declaração de insolvência – o certo é que, percorrido o teor dessa sucinta peça processual, não conseguimos descortinar uma tal referência.

Nem sequer decorrendo do parecer ou dos restantes elementos disponíveis que tenha existido prévia audição da devedora pelo AJP.

O parecer do AJP a que alude a recorrente insere-se na disciplina do Processo Especial Para Acordo de Pagamento (PEAP), a que se referem as normas dos art.º 222º-A a 222º-J do CIRE que foram introduzidas pelo DL 79/2017, de 30 de Junho. A ele se reporta específicamente o nº 4 do art.º 222º-G do CIRE – artigo que tem a epígrafe “Conclusão do processo negocial sem a aprovação de acordo de pagamento” – sendo que, por força do nº 6 do art.º 222º-F do mesmo diploma, tal número é também aplicável à situação de não homologação do acordo.

Dispõe-se então naquele nº 4 do art.º 222º-G:

“Compete ao administrador judicial provisório na comunicação a que se refere o n.º 1 e mediante a informação de que disponha, após ouvir o devedor e os credores, emitir o seu parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a insolvência do devedor, aplicando-se o disposto no artigo 28.º, com as necessárias adaptações, e sendo o processo especial para acordo de pagamento apenso ao processo de insolvência”.

Contudo, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 258/2020, publicado no DR 1ª Série de 07/07/2020 foi declarada “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 4 do artigo 222.º-G do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º do mesmo Diploma - ainda que com as necessárias adaptações -, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência”.

Não ficou particularmente definido neste aresto o quando ou o modo em que se teria de manifestar a discordância de devedor.

Pensamos ser suficiente a discordância plasmada na própria interposição do recurso, a menos que em momento anterior o devedor tenha adoptado uma outra e incompatível posição.

Também no chamado PER (processo específicamente destinado aos devedores que sejam empresas) a correspondente norma do nº 4 do art.º 17º-G foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 675/2018, de 18 de Dezembro, publicado na 1ª Série do DR de 23.01.2019. Em ambos os casos considerou-se ofendido o disposto nos art.º 20º, nºs 1 e 4 e 18º, nº 2, da CRP, ou seja, o desrespeito do princípio do contraditório relativamente ao devedor pela circunstância de a insolvência ter sido declarada na mera sequência do parecer do AJP, operando-se uma equivalência entre tal parecer e a apresentação do devedor à insolvência nos termos do art.º 28 do CIRE.

No Ac. do STJ de 13.10.2020, proferido no P. 1114/19.6T8STB-E.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, consignou-se que pela citação para, querendo, deduzir oposição ao “pedido de insolvência” formulado pelo AJP se observariam os preceitos constitucionais acima referidos e se cumpriria adequada e plenamente o contraditório do devedor.

Isto supõe desde logo, como é óbvio, que o parecer do AJP a que alude o nº 4 do art.º 222º-G do CIRE, se comporte também – ou sobretudo - como uma verdadeira petição ou requerimento, o que implica que nele se tenha de observar o ónus de alegação próprio de um requerimento de insolvência, e, designadamente, que ele contenha a discriminação dos factos que fundamentam o pedido de insolvência, conforme o disposto nos art.ºs 23º, nº 1, e 3º, nº 1, do CIRE[1].

Sem os fundamentos de facto clara e distintamente expostos pelo AJP não pode o devedor deduzir a sua eventual oposição ao pedido de declaração da sua insolvência, conforme o disposto no art.º 30º do CIRE.

Não tendo sido observado o dito ónus de alegação, o tribunal pode e deve, no entanto, convidar o AJP à correcção do parecer, nos termos da alínea b) do nº 1 do art.º 27º do CIRE.

Compulsando o teor do parecer do Sr. AJP de 06.02.2019 (fls. 6-6v) – que, aliás, é um segundo parecer diante que fora junto em 06.02.2019 (fls. 4-4v)[2] – rapidamente pode concluir-se que, na verdade, não são nele perceptíveis – nem sequer intuíveis – os fundamentos que motivaram o pedido de declaração de insolvência da devedora.

Com efeito, ali apenas surge alegado que “com as informações constantes da petição inicial" "a devedora está em situação económica muito de difícil”, que esta “vive com grandes dificuldades económicas”, “tem dificuldades para cumprir pontualmente as prestações de crédito”, “dificuldades em obter crédito e em prover ao sustento do seu agregado familiar”, e que um dos credores instaurou uma acção para cobrar o seu crédito.

Salvo neste último segmento, não se vislumbram aqui quaisquer factos, mas antes meras conclusões e juízos de valor. E mesmo estes sempre através de uma remissão para o requerimento da devedora que dá início ao PEAP.

Em face de tão clamorosas deficiências, era a todas as luzes que se impunha ao Sr. Juiz que convidasse – uma vez mais, mas agora pela última – o Sr. AJP a discriminar/explicitar todos os factos que concorriam para a impossibilidade da devedora de cumprir as suas obrigações vencidas, ou seja, para a respectiva situação de insolvência, de harmonia com o disposto no nº 1 do art.º 3º do CIRE. O que necessariamente pressupunha a indispensabilidade de uma clara inventariação do respectivo activo (bens imóveis, salário, rendimentos, etc) e passivo (créditos vencidos, outros eventuais co-responsáveis, montante, prestações e prazos de pagamento, despesas com agregado familiar, etc), sem que para tanto interessasse o que a devedora tinha feito constar do plano de pagamentos que veio ser objecto do acordo não homologado (plano que para este fim nunca relevaria e que até já poderia estar desactualizado).

Tal não sucedeu.

Como se não bastasse, o processo avançou para a sentença de insolvência sem que à devedora, ora apelante, fosse dada a oportunidade constitucional e fundamental de se defender do pedido do Sr. AJP.

O que torna inexorávelmente ilícita e inválida a decisão proferida e aqui impugnada.

É exacto que o nº 5 do art.º 222º-G estatui que, recebida a comunicação e o parecer do AJP favorável à insolvência, o juiz notifica o devedor para, querendo e caso se mostrem preenchidos os respectivos pressupostos, apresentar o plano de pagamentos a que aludem os art.ºs 249º e ss ou requerer a exoneração do passivo restante nos termos dos art.ºs 235º e ss..

Se a notificação para o requerimento da exoneração do passivo restante é compaginável com a citação do devedor para, querendo, deduzir oposição ao pedido de insolvência – cfr. o nº 2 do art.º 236º do CIRE – já a apresentação de um plano de pagamentos por um devedor que discorda e quer opor-se à sua declaração de insolvência aparece como incoerente ou incompreensível[3]. Um plano de pagamentos oriundo de alguém que não se considera impossibilitado de solver os seus débitos - e que, inclusivamente, viu anteriormente não ser homologado o acordo com os credores que propusera – é algo de profundamente contraditório. Assim sendo, afigura-se-nos que a notificação para este fim deverá efectuar-se apenas para o caso de o devedor não pretender opor-se ao pedido de insolvência.

O que está deve excluir-se é a sobreposição ou antecipação da notificação do devedor para ambos estes fins ao exercício do direito de defesa do devedor perante o pedido de insolvência, como poderia decorrer de uma leitura mais rígida do mencionado nº 5 do art.º 222º-G.

Acresce que o Sr. AJP não esclareceu se procedeu à prévia audição dos credores e da devedora, de harmonia com o procedimento previsto na 1ª parte do nº 4 do art.º 222º-G do CIRE – de que igualmente deveria ter dado conta – também não dispondo o tribunal de informação sobre o seu não acatamento.

Em tese, a audição da devedora poderia ter a virtualidade de dissuadir o AJP de propor/requerer a insolvência. Mas ao que se depreende do parecer junto aos autos (fls. 6v, última parte), o seu emitente tinha a situação de insolvência como o resultado automático da não aprovação (terá aqui querido dizer-se não homologação) do plano de pagamentos.

Seja como for, o que dito fica já torna evidente que não pode deixar de assistir razão à apelante na primeira das questões recursivas elencadas.

Sobre o cumprimento do contraditório da devedora.

Em sintonia com o que já se ponderou a propósito da questão da natureza e valor do parecer que foi emitido pelo Sr. AJP ao abrigo do nº 4 do art.º 222º-G do CIRE, ao proferir-se a sentença declaratória da insolvência sem a prévia citação da devedora para, querendo, deduzir oposição ao pedido nesse sentido ali formulado, nos termos do art.º 30º do CIRE, ofenderam-se os princípios constitucionais dos art.º 20º, nºs 1 e 4, e 18º, nº 2, da CRP, sendo aquela, por isso, nula e de nenhum efeito.

Não sendo os direitos constitucionalmente consagrados nestes preceitos prejudicados pela eventual audição da devedora antes da emissão do parecer pelo AJP a que alude aquele nº 4.

Donde que, também na procedência desta questão, e na inutilidade da apreciação das subsequentemente elencadas, a decisão recorrida não possa ser mantida.

Pelo exposto, na procedência da apelação, declaram nula a sentença recorrida, e, em função disso, determinam que, em seu lugar, o tribunal recorrido providencie pela notificação do Sr. AJP para proceder à correcção do parecer que juntou aos autos, por forma a nele alegar todos os factos relevantes para a requerida declaração de falência da devedora ora apelante, de acordo com o disposto no art.º 3º, nº 1, do CIRE e conforme se deixou explanado, parecer ao qual deverá seguir-se a citação da devedora para, nos termos do art.º 30º, deduzir, querendo, oposição.

Sem custas.

Coimbra, 18 de Fevereiro de 2021

Sumário:
1. O parecer do Administrador Judicial Provisório emitido nos termos do nº 4 do art.º 222º-G do CIRE, no qual este conclui pela situação de insolvência do devedor, requerendo a respectiva insolvência, constitui uma verdadeira petição inicial de insolvência, nos termos do art.º 23º, nº 1, do CIRE.
2. Como tal, ele deve conter todos os factos que permitam ao juiz concluir pela impossibilidade do devedor cumprir as suas obrigações vencidas, ou seja, pela sua situação de insolvência, conforme o art.º 3º, nº 1, do CIRE.
3. Sendo a partir dessa alegação precisa e completa que o devedor deve ser citado para deduzir, querendo, oposição, nos termos do art.º 30º do CIRE.

                                                                       ***


[1] Neste sentido, ainda que no âmbito do PER., pode ver-se a anotação de Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, Almedina, 2015, p. 75, onde se alude a essa interpretação do nº 4 art.º 17-G por Alexandre Soveral Martins, O PER (Processo Especial de Revitalização), “AB INSTANTIA, Revista do Instituto do Conhecimento AB”, Ano I, nº 1, Almedina, Coimbra, p.37.
[2][2] Onde o AJP se limitava a expressar “o seu entendimento” de que “a devedora se encontra em situação de insolvência”.
[3] Repare-se que por alguma razão o art.º 251º do CIRE estabelece que o plano de pagamentos aos credores deve ser junto com a petição inicial do devedor, ou seja, com a sua apresentação à insolvência.