Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
118/07.9TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
NULIDADE
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1415º, 1416º, Nº 1 E 1418º DO C.CIV.
Sumário: I – Depois do artigo 1415º do CC estabelecer os requisitos de natureza substantiva ou material do prédio para a sua admissão ao regime da propriedade horizontal, estatui-se no artº 1416º, nº 1, do mesmo diploma, que a falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418º, ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção.

II - Nulidade essa para cuja arguição apenas têm legitimidade os condóminos e o MPº - este apenas mediante participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções (e daí dizer-se que está perante um nulidade especial ou mista).

III - Também a inobservância do disposto no artº 1418º do CC (conteúdo do título constitutivo) é susceptível de conduzir à nulidade do título de constituição da propriedade horizontal (quer por aplicação do artº 1416º, nº 1, quer mesmo por força do disposto no artº 294º do CC, sendo que na actual redacção do citado artº 1418º, nº 3 já tal nulidade se encontra ali directa e expressamente prevista).

IV - A nulidade do acordo, por inobservância do disposto no artº 1415º, tem como consequência o retorno à constituição inicial da propriedade horizontal; e só no caso desse retorno não ser possível, se sujeitará então o prédio ao regime da compropriedade nos termos do artº 1416º, nº 1.

V - Quando o valor relativo das fracções autónomas seja fixado por acordo dos condóminos, a nenhuma regra ou limitação tem de obedecer a avaliação a fazer por eles: os condóminos são livres de atribuir a cada fracção o valor que, segundo o seu arbítrio, consideram razoável.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. Os autores, A... e sua mulher B..., instauraram (em 19/1/2007) contra os réus, C... e sua mulher D... - todos melhor identificados nos autos -, a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário.

Para o efeito, alegaram, em síntese, o seguinte:

Por escritura pública celebrada em 28/11/1977, lavrada na Secretaria Notarial da ..., o réu e E... e sua mulher, este ali representados por um tal F... declararam-se donos de dum prédio urbano, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., da freguesia da então freguesia de ..., tendo ainda ali submetido, de seguida, o prédio ao regime da propriedade horizontal, constituindo as seguintes fracções:

FRACÇÃO "A" - Primeiro Andar, com quatro assoalhadas, cozinha, quarto de banho, sótão com uma divisão e cave do lado poente.

FRACÇÃO "B" - rés-do-chão, com quatro divisões assoalhadas, cozinha, quarto de banho e despensa e cave do lado nascente com duas divisões.

Mais declararam ainda ali que o prédio tinha 70 m2 de área coberta um logradouro com 120 m2.

Posteriormente, em 31/10/1979, por escritura pública exarada no mesmo Cartório Notarial, aqueles mesmos outorgantes, ou seja, o réu e os tais E... e sua mulher, procederam à rectificação da sobredita escritura de constituição de propriedade horizontal de 28/11/1977, declarando então que o prédio urbano objecto da mesma, além do logradouro com 120 m2 nela referido, tem outro logradouro com a área de 135 m2, rectificando ainda a composição das respectivas fracções, que passou a ser a seguinte:
FRACÇÃO "A": - Primeiro Andar - um fogo com quatro divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho, sótão com uma divisão, cave do lado poente com uma divisão, que confronta com H..., cave do lado nascente com duas divisões e um logradouro com 135 m2;
FRACÇÃO "B": - rés-do-chão - um fogo com quatro divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho e uma despensa.
Mais declararam ali que mantinham ainda os valores e permilagens atribuídos naquela 1ª escritura a ambas as fracções e que eram iguais (na proporção de 50%) para cada uma delas.
Todavia, na sequência e por efeito da aludida escritura de rectificação, as áreas e composições de tais fracções autónomas foram modificadas.
Assim, a fracção "A" ficou com a área coberta total de 372,10 m2 e um logradouro com 135 m2.
Por seu turno a fracção "B" ficou com a área coberta total de 81,50 m2.
São, assim, diferentes os valores das fracções, correspondendo o valor da fracção "A" a pelo menos o dobro da “B” e, em consequência valor percentual das referidas fracções no valor total do prédio modificou-se na exacta proporção em que se alterou o respectivo valor patrimonial efectivo ou real.
Não obstante as alterações introduzidas na composição e áreas das referidas fracções, formalizadas pela escritura de rectificação de 31/10/79, não se procedeu à correspectiva modificação do valor relativo das mesmas, nem da sua expressão em percentagem ou permilagem do valor total do prédio.

Por outro lado, a escritura de propriedade horizontal lavrada em 28/11/77, bem como a escritura de rectificação da mesma lavrada em 31/10/79, não estão em conformidade com a vistoria da Câmara Municipal da ..., realizada no âmbito do respectivo processo de obras, para efeito de emissão de respectiva licença de habitabilidade.

O projecto inicial foi objecto de diversas alterações, que obtiveram aprovação e licenciamento.

Após a conclusão das obras de construção do edifício e, de todo o modo, em data anterior à constituição da propriedade horizontal objecto das escrituras a que se vem aludindo, a Câmara Municipal da ... realizou uma vistoria para efeito de emissão da licença de habitabilidade.
Sucede que o referido auto de vistoria e o título constitutivo da propriedade horizontal do prédio - as aludidas escrituras de 28/11/1977 e de 31/10/1979 - não são inteiramente coincidentes.

Ora, a escritura lavrada em 31/10/1979, rectificativa da escritura de constituição da propriedade horizontal celebrada em 28/11/1977, ao modificar substancialmente a composição e a área das duas fracções autónomas, não alterando o seu valor relativo, nem a respectiva percentagem ou permilagem, viola o disposto no n.º 1 do art. 1418° do Código Civil.

E a falsa ou incorrecta indicação do valor relativo de cada fracção e da sua percentagem ou permilagem na totalidade do prédio é equivalente à não indicação e, portanto, à omissão de tal requisito do título constitutivo da propriedade horizontal.

Os autores adquiriram, posteriormente, a propriedade sobre a fracção “A”, quer por via de contrato de compra e venda, quer mesmo através do instituto da usucapião.

Pelo que terminaram os autores pedindo a procedência da acção e, em consequência, dever:

“a) - declarar-se que, na sequência e por efeito da escritura de rectificação de 31/10/79, exarada a fls. 122-verso a 123-verso do Livro de Escrituras diversas Quatro - E, do Cartório Notarial da ..., pela qual foi rectificada a escritura de constituição de propriedade horizontal de 28 de Novembro de 1977, lavrada na Secretaria Notarial da ..., perante o Notário do Primeiro Cartório, F..., as áreas, composições e valores das duas fracções autónomas objecto das mesmas foram modificados;

b) - declarar-se que, não obstante as alterações introduzidas no título através da escritura de rectificação aludida na alínea anterior, no que concerne às áreas e composições das duas fracções autónomas do prédio objecto da mesma, e à consequente alteração do valor patrimonial relativo de cada fracção, não se procedeu à correspondente modificação dos valores patrimoniais de cada fracção e dos respectivos valores relativos, expressos em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio;

c) - declarar-se que, face às áreas e composições de ambas as fracções autónomas, o valor relativo da fracção "A" é superior ao valor da fracção "B";

d) - declarar-se que o valor relativo das fracções "A" e "B" do prédio identificado no artigo 1° deste articulado, expresso em percentagem, do valor total do prédio, é, respectivamente, de 75% e 25%, ou outro que o tribunal venha a apurar;
e) - declarar-se nulo o título constitutivo da propriedade horizontal do prédio identificado no artigo 1º deste articulado, objecto das escrituras públicas de constituição e rectificação juntas sob os documentos n.ºs 1 e 2, com todas as legais consequências.

f) - declarar-se, como consequência da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, que o prédio identificado no artigo 1º deste articulado fica sujeito ao regime legal da compropriedade, nos termos do artigo 1416º do Código Civil, atribuindo-se a cada consorte, neste caso aos Autores e aos Réus, a quota correspondente ao valor real relativo da sua fracção do prédio.
g) - ordenar-se o cancelamento de todas as inscrições registais referentes à constituição da propriedade horizontal do prédio identificado no artigo 1° do presente articulado.”

2. Os RR. contestaram, defendendo-se por excepção e impugnação
No que concerne àquele 1º tipo de defesa invocaram a existência da excepção caso julgado, que fundamentaram no seguinte:
Os autores intentaram a presente acção alegando, em suma, que são donos de uma fracção habitacional e que a mesma representa um valor relativo superior ao que foi atribuído na escritura de propriedade horizontal (50% do valor do prédio).
Alegam que o valor efectivo e real da fracção "A" (dos autores) corresponde, pelo menos, ao dobro do valor da fracção "B".

Ora, a questão como é configurada pelos autores foi já objecto de decisão judicial no âmbito do processo que correu termos no 1° juízo deste Tribunal, sob o n.º 60/2000 e que foi objecto de recurso.
Em tal processo também os ora autores pediam a condenação dos ora RR. a reconhecer que os mesmos são donos da fracção "A" do prédio e que a mesma representa mais de 2/3 do valor e permilagem do prédio em questão.
Os, ora, RR. foram ali absolvidos de tal pedido, em decisão que transitou em julgado.
Sendo assim a presente acção uma repetição daquela pretensão ali formulada (por via reconvencional) pelos autores (que ali assumiram a qualidade de réus), existindo uma identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
No que concerne àquele segundo tipo de defesa, depois de aceitarem os factos decorrentes das aludidas escrituras de constituição de propriedade horizontal e rectificação, contraditaram uma boa parte da versão factual aduzida pelos AA., defendendo ainda não serem aquelas portadoras de qualquer vício conducentes à sua nulidade.

Terminaram pedindo a procedência da aludia excepção de caso julgado e, caso assim não s e entenda, sempre a improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

3. Replicaram os AA., pugnando pela improcedência daquela excepção aduzida pelos RR. e pela procedência da acção.

4. No despacho saneador julgou-se improcedente a sobredita excepção (dilatória) de caso julgado invocada pelos RR., afirmando-se a validade e a regularidade da instância, após o que se procedeu à selecção da matéria de facto, cuja elaboração não mereceu qualquer censura das partes.

5. Não se tendo conformado com aquela decisão que, no despacho saneador, julgou improcedente a excepção (dilatória) de caso julgado, os RR. dela interpuseram recurso, o qual foi admitido como agravo, a subir com o primeiro recurso que, depois deles, houvesse de subir imediatamente.

6. Nas correspondentes alegações que apresentaram referentes a tal recurso de agravo, os RR. concluíram as mesmas nos seguintes termos:

1 – Correu termos sob o nº 60/2000 do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã um processo onde os, ora, Recorridos, pretendiam ver alterado o título constitutivo da propriedade horizontal de um prédio urbano que tem duas fracções sendo uma deles e outra dos Recorrentes.

2 – Tal decisão que julgou improcedente tal pretensão, foi proferida no mesmo sentido pelos Tribunais de 1ª e 2ª Instância e pelo Supremo Tribunal de Justiça, tendo transitado em julgado.

3 – Os Recorrentes pretendem que, tal como foi decidido judicialmente, os Recorridos procedam à demolição de obras de inovação que fizeram nas partes comuns do prédio sem a autorização de 2/3 dos condóminos.

4 – Para evitar os efeitos daquela decisão, já em fase de execução, intentaram os Recorrentes a presente acção com o objectivo de obter a nulidade do título de constituição da propriedade horizontal pelo facto de a fracção dos AA. ter valor superior ao constante desse título e pretendem submeter a administração do imóvel ao regime legal da compropriedade.

5 – Há uma clara similitude de pretensões, de efeitos jurídicos pretendidos em ambas as acções.

6 – Entendem os Recorrentes que a presente acção apenas visa evitar que a decisão do processo 60/2000 produza os seus efeitos e de nada sirva, seja inútil!

7 – Os Recorrentes contestaram alegando a excepção de caso julgado material pois que a presente acção pode original decisões contraditórias.

8 – A Mma. Juiz do Tribunal “a quo” entendeu que para ser julgada procedente tal excepção teria de haver tríplice identidade entre as duas acções.

9 – É entendimento da Doutrina e Jurisprudência maioritária que:

Para a autoridade de caso julgado não se exige a tríplice identidade do artigo 498º do C.P.C (…)

10 – A excepção de caso julgado abrange todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas na sentença, por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do Autor. (…).

11 – Razões de segurança, estabilidade e certeza das relações jurídicas impõem que se adopte posição diversa da defendida pelo Tribunal “a quo” e que não se voltem a apreciar as mesmas questões.

12 – Com efeito, não pode, nem deve, julgar-se o mérito desta acção 118/07.9 TBCVL, pois não podem voltar a apreciar-se questões iguais (ou semelhantes), por se lhe impor decisão anterior sobre a relação material controvertida, com força obrigatória dentro e fora do processo ou seja com a autoridade de caso julgado (artigo 671º, nº1 e 673º do C.P.C.).

13 – Ao não acolher a pretensão dos Recorrentes o douto despacho recorrido violou, entre outros, o disposto nos artigos 497º, 493º, 494º, al i), 671º, nº1 e 673º do Código do Processo Civil.

14 – Violou, ainda, o princípio da economia processual, o princípio da estabilidade e certeza das relações jurídicas e o princípio da autoridade de caso julgado.

15 – Deve, assim, revogar-se o douto Despacho e substituir-se por outro que julgue procedente a excepção de caso julgado invocada pelos Recorrentes (… ).

7. Os AA. não contra-alegaram tal recurso.

8. Após a realização de prova pericial, procedeu-se à realização do julgamento, que terminou com a decisão da matéria de facto.

9. Seguiu-se a prolação da sentença que, a final, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu declarar que:
“a) Na sequência e por efeito da escritura de rectificação de 31/10/79, exarada a fls. 122-verso a 123-verso do Livro de Escrituras diversas Quatro - E, do Cartório Notarial da ..., pela qual foi rectificada a escritura de constituição de propriedade horizontal de 28 de Novembro de 1977, lavrada na Secretaria Notarial da ..., perante o Notário do Primeiro Cartório, F..., as áreas, composições e valores das duas fracções autónomas objecto das mesmas foram modificados;

b) - Com as alterações introduzidas no título através da escritura de rectificação aludida na alínea anterior, no que concerne às áreas e composições das duas fracções autónomas do prédio objecto da mesma, e à consequente alteração do valor patrimonial relativo de cada fracção, não se procedeu à correspondente modificação dos valores patrimoniais de cada fracção e dos respectivos valores relativos, expressos em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio;

c) - Face às áreas e composições de ambas as fracções autónomas, o valor relativo da fracção "A" é superior ao valor da fracção "B";

d) O valor de construção das fracções "A" e "B" do prédio identificado no artigo 1° deste articulado, expresso em percentagem, do valor de construção total do prédio, é, respectivamente, de 81% e 19%,” e

e) Absolver “os réus do demais peticionado.”

10. Não se conformando com tal sentença, os autores dela apelaram.

11. Os autores/apelantes concluíram as respectivas alegações desse seu recurso nos seguintes termos:

“1ª - Na escritura de constituição de propriedade horizontal celebrada em 28/11/77 foi atribuído ao prédio o valor total de quatrocentos e setenta e cinco mil e duzentos escudos, distribuído igualitariamente pelas duas fracções autónomas constituídas, atribuindo, assim, a cada uma dessas fracções o valor de duzentos e trinta e sete mil e seiscentos escudos e uma percentagem de cinquenta por cento do valor total do prédio.

2ª - Foi dado como assente nos autos que, à data da celebração da dita escritura de 28/11/77, face à composição e áreas das duas fracções autónomas pela mesma constituídas, o valor de ambas era idêntico.

3ª - Da factualidade provada resulta que, não obstante as alterações introduzidas na composição e áreas das referidas fracções, formalizadas pela supra referida escritura de rectificação, celebrada em 31/10/79, não se procedeu à correspectiva modificação do valor relativo das mesmas, nem da sua expressão em percentagem ou permilagem do valor total do prédio e que, na sequência e por efeito de tal escritura de rectificação, a fracção "A" ficou com a área coberta total de 372,10 m2 e um logradouro de 135 m2 e a fracção "B" com a área coberta total de 85,50 m2.

4ª - Ficou também demonstrado nos autos que a fracção "A" tem o valor de construção de € 244.765,92 e a fracção "B" € 57.385,75, e que o valor percentual das referidas fracções no valor total do prédio se modificou na exacta proporção em que se alterou o respectivo valor patrimonial efectivo ou real.

5ª - Não obstante se tenha celebrado a mencionada escritura de 31/10/79, para rectificar a propriedade horizontal constituída em 28/11/77, pela mesma alterou-se substancialmente a composição das duas fracções, passando a fracção "A" a ter um valor mais de quatro vezes superior ao da fracção "B".

6ª - O valor relativo das fracções do prédio constituído em propriedade horizontal deve ser expresso em percentagem ou permilagem do valor total do prédio, sendo que o valor inicial das fracções autónomas – que se toma por base para o cálculo das proporções ou dos valores relativos a cada fracção autónoma (expressos em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio), deve reportar-se sempre à data da construção.

7ª - Não obstante na escritura de rectificação celebrada em 31/10/79 se tenha procedido à modificação do título quanto à composição das fracções e tal alteração consubstancie uma substancial modificação do valor relativo de cada uma das fracções, que deveria traduzir-se também nas respectivas percentagens ou permilagens, nela se declarou, em clara violação legal, que se mantêm os valores e permilagens.

8ª – O nº 1 do artigo 1418º do Código Civil dispõe que "no título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma a que fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio".

9ª - A par da especificação das partes do edifício correspondentes às várias fracções, o citado normativo impõe que no título constitutivo da propriedade horizontal seja fixada, como conteúdo obrigatório, a percentagem ou permilagem da fracção relativamente ao valor total do prédio, o que é indispensável para diversos fins especialmente previstos na lei, nomeadamente para os referidos nos artigos 1412º, 1426º, 1430º, nº 2, 1431º, nº 2 e 1432º.

10ª – O nº 2 do mesmo normativo prescreve que a falta da especificação exigida pelo nº 1 determina a nulidade do título constitutivo.

11ª - A escritura lavrada em 31/10/1979, rectificativa da escritura de constituição da propriedade horizontal celebrada em 28/11/1977, ao modificar substancialmente a composição e área das duas fracções autónomas, não alterando o seu valor relativo, nem a respectiva percentagem ou permilagem, viola o disposto no nº 1 do artigo 1418º do Código Civil.

12ª - A falsa ou incorrecta indicação do valor relativo de cada fracção e da sua percentagem ou permilagem na totalidade do prédio é equivalente à não indicação e, portanto, à omissão de tal requisito do título constitutivo da propriedade horizontal, atentas as consequências daí resultantes e os interesses que o legislador pretendeu acautelar com tal exigência.

13ª - A errada indicação do valor relativo de cada fracção, quer em termos patrimoniais, quer em percentagem ou permilagem, consubstancia uma deturpação ou falseamento da realidade quanto a aspectos essenciais à constituição da propriedade horizontal.

14ª - A disposição legal que impõe a quem outorga como declarante, perante oficial público, a obrigação de prestar declarações exactas e verdadeiras é de carácter imperativo, pelo que a violação de tal obrigação acarreta a nulidade do negócio, neste caso, a nulidade da escritura de rectificação da propriedade horizontal celebrada em 31/10/1979, nos termos do preceituado no artigo 294º do Código Civil. Finalmente:

15ª - A interpretação que a sentença recorrida faz do preceituado no artigo 1418º do Código Civil é inconstitucional, porque viola o princípio da igualdade, na medida em que confere os mesmos direitos e deveres a quem deveria ter direitos e deveres diferentes.

16ª – A sentença recorrida viola, assim, designadamente, o preceituado nos artigo 294º e 1418º do Código Civil, pelo que deve ser revogada na parte que julgou a acção improcedente, proferindo-se acórdão que a julgue totalmente procedente (…).

12. Os RR. não contra-alegaram o recurso.

13. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação


A) De facto.

Pelo tribunal da 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1. Por escritura pública celebrada em 28 de Novembro de 1977, na Secretaria Notarial da ..., perante o Notário do Primeiro Cartório, F..., em que foram outorgantes C... e G..., este na qualidade de procurador de E... e esposa, foi declarado que o primeiro e os representados do segundo são donos dum prédio urbano, constituído por uma casa de alvenaria com três pavimentos, destinada a habitação, composta de uma cave com três divisões, rés-do-chão com sete divisões e sótão, sita em ..., então freguesia de ..., concelho da ..., a confrontar a nascente com ..., a poente com H..., a norte com estrada e a sul com ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., não descrito na competente Conservatória do Registo Predial com a situação, confrontações e composições indicadas, mas construído no já descrito sob o número trinta e sete mil e sessenta e três, a folhas vinte e nove do Livro B-91;

2. Pela mesma escritura os outorgantes submeteram o prédio atrás identificado ao regime da propriedade horizontal, constituindo as seguintes fracções:

FRACÇÃO "A" - Primeiro Andar, com quatro assoalhadas, cozinha, quarto de banho, sótão com uma divisão e cave do lado poente. FRACÇÃO "B"- rés-do-chão, com quatro divisões assoalhadas, cozinha, quarto de banho e despensa e cave do lado nascente com duas divisões.
3. Na referida escritura foi ainda declarado que o prédio a que a mesma
se reporta tem 70 m2 de área coberta um logradouro com 120 m2;

4. Ulteriormente, por escritura pública exarada a fls. 122-verso a 123-verso do Livro de Escrituras diversas Quatro-E, do mesmo Cartório Notarial, lavrada em 31 de Outubro de 1979, foi rectificada a referida escritura de constituição de propriedade horizontal de 28 de Novembro de 1977, declarando-se então que o prédio urbano objecto da mesma, além do logradouro com 120 m2 nela referido, tem outro logradouro com a área de 135 m2, rectificando-se ainda a composição das respectivas fracções, que passou a ser a seguinte:
FRACÇÃO "A": - Primeiro Andar - um fogo com quatro divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho, sótão com uma divisão, cave do lado poente com uma divisão, que confronta com H..., cave do lado nascente com duas divisões e um logradouro com 135 m2;
FRACÇÃO "B": - rés-do-chão - um fogo com quatro divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho e uma despensa.
5. O prédio objecto das mencionadas escrituras encontra-se descrito sob o n. ... da freguesia de ..., concelho da ..., com a seguinte composição:
FRACÇÃO "A" - primeiro andar, um fogo, com quatro divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho, sótão com uma só divisão, cave do lado poente com uma divisão, cave do lado nascente com duas divisões e logradouro com 135 m2;
FRACÇÃO "B" - rés-do-chão, um fogo com quatro divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho e uma despensa.

6. Na escritura de constituição de propriedade horizontal celebrada em 28/11/1977 os outorgantes nela intervenientes atribuíram ao prédio objecto da mesma o valor total de quatrocentos e setenta e cinco mil e duzentos escudos, distribuído igualitariamente pelas duas fracções autónomas constituídas, atribuindo, assim, a cada uma dessas fracções o valor de duzentos e trinta e sete mil e seiscentos escudos e uma percentagem de cinquenta por cento do valor total do prédio;
7. À data da celebração da dita escritura, face à composição e áreas das duas fracções autónomas pela mesma constituídas, o valor de ambas era idêntico.

Não obstante as alterações introduzidas na composição e áreas das referidas fracções, formalizadas pela supra referida escritura de rectificação de 31/10/79, não se procedeu à correspectiva modificação do valor relativo das mesmas, nem da sua expressão em percentagem ou permilagem do valor total do prédio;

8. O edifício onde se integram as fracções autónomas identificadas em 1. e 2. foi objecto do processo de obras n.º 33.576 da Câmara Municipal da ..., inicialmente referenciado com o n.º 27.149;
9. Os Autores adquiriram, por compra, a fracção autónoma designada pela letra "A", correspondente ao primeiro andar, com quatro divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho, sótão com uma só divisão, cave do lado poente, cave do lado nascente e logradouro com 135 m2;

10. A fracção referida em 9. encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º ..., a fls. 29 do Livro B-98, e aí definitivamente inscrita a favor do Autor - marido pela inscrição n.º 26.171, de 20 de Julho de 1984, a fls. 160 do Livro G-34;
11. Na sequência e por efeito da aludida escritura de rectificação de 31/10/79, as áreas e composições de tais fracções autónomas foram substancialmente modificadas, sendo que:

a) A fracção "A" ficou com a área coberta total de 372,10 m2 e um logradouro com 135 m2.

b) A fracção "B" ficou com a área coberta total de 81,50 m2.

12. A fracção "A" tem o valor de construção de 244.765,92 euros e a fracção “B” de 57.385, 75 euros;

13. O valor percentual das referidas fracções no valor total do prédio modificou-se na exacta proporção em que se alterou o respectivo valor patrimonial efectivo ou real.

14. Há mais de 20 anos que os Autores vêm ocupando, como coisa própria, a fracção autónoma referida em 9. e 10. o que tudo têm feito de forma contínua e ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

15. Na escritura pública de rectificação referida em 4. foi ainda declarado pelos outorgantes que se mantinham os valores e permilagens (facto este aditado nesta Relação, à luz do disposto no artº 659, nº 3, ex vi artº 713, nº 2, do CPC, por constar da referida escritura, e não ter sido objecto sequer de qualquer impugnação).


***

A) De direito.

1. Como resulta do que supra se deixou exarado, os autos subiram a esta Relação para a apreciação de dois recursos: um de agravo (interposto pelos RR. da parte despacho saneador que julgou improcedente a excepção da caso julgado por si invocada) e um de apelação (interposto pelos AA. da sentença final).

Começaremos por sublinhar que tais recursos, dada a data da instauração da acção, foram processados e serão julgados à luz das disposições do CPC vigentes à data da reforma que lhe foi introduzida pelo DL nº 303/2007 de 24/8 (artºs 11, nº 1, e 12, nº 1, desse DL) e a cuja versão (anterior a esse DL) pertencerão os normativos daquele diploma que porventura venham doravante a ser indicados.

Conforme resulta do estatuído no artº 710, nº 1, do CPC, “A apelação e os agravos que com ela tenham subido são julgados pela ordem da sua interposição; mas os agravos interpostos pelo apelado que interessem à decisão da causa só apreciados se a sentença não for confirmada”. (sublinhado nosso)

No caso em apreço, os RR. (agravantes e apelados) conformaram-se com sentença final, pois dela não interpuseram recurso, ao contrário do que fizeram os AA..

Sendo assim, passaremos a conhecer do recurso de apelação, e só conheceremos depois do recurso de agravo se a referida sentença não vier a ser confirmada. (cfr. ainda, a propósito, entre outros, o cons. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo, 4ª ed., revista e actualizada, Almedina, págs. 198/199 e 287/288”).

2. Do Recurso de Apelação

2.1 Constitui entendimento, desde há muito pacífico, que são as conclusões das alegações dos recursos que fixam e delimitam o seu objecto (cfr. ainda artºs 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, do CPC).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações de recurso, verifica-se que o seu objecto contende, essencialmente, com a questão de saber se o título constitutivo da propriedade horizontal do prédio no qual se integram as fracções “A” e “B”-  das quais os autores e os réus são actualmente os seus respectivos proprietários - é nulo e, caso afirmativo, extrair daí as necessárias consequências (na perspectiva da pretensão dos AA. consubstanciada sob as als. e), f) e g) acima descritas do seu petitório formulado no final do seu articulado inicial, e que não obtiveram procedência na sentença recorrida), pois que é da declaração de tal nulidade que depende a procedência dos demais pedidos a ele subsequentes.

O referido prédio foi constituído em regime de propriedade horizontal através de escritura pública notarial outorgada em 21/11/1977, e do qual resultou a “divisão” do mesmo em duas fracções autónomas entre si, a “A” e a “B”, e nos demais termos e condições que ali constam (cfr. nºs 1, 2, e 3 dos factos assentes, e a cuja peça nos estaremos a referir sempre que doravante nos limitemos a indicar somente os números).

Constituição essa que foi levada a efeito pelos então proprietários do referido prédio (entre aos quais se encontrava o réu).

Tal significa, desde logo, que tal regime foi constituído na sequência de um negócio jurídico (bilateral, pois resultou de duas declarações de vontade); que, como se sabe, é um dos modos legalmente previstos para a constituição da propriedade horizontal (cfr. artº 1417, nº 1, do CC).

Aquando de tal constituição do referido prédio em propriedade horizontal o seus outorgantes atribuíram ao prédio objecto da mesma o valor total de quatrocentos e setenta e cinco mil e duzentos escudos, distribuído igualitariamente pelas duas fracções autónomas constituídas, atribuindo, assim, a cada uma dessas fracções o valor de duzentos e trinta e sete mil e seiscentos escudos e uma percentagem de cinquenta por cento do valor total do prédio (cfr. nº 6).

Posteriormente, por escritura pública notarial lavrada em 31/10/1979, aqueles mesmos outorgantes (sendo que só mais tarde o proprietário da fracção “A” veio a vender a mesma aos autores) procederam à rectificação da daquela 1ª escritura que constituiu o referido prédio em propriedade horizontal, declarando-se então que o prédio urbano objecto da mesma, além do logradouro com 120 m2 nela referido, tem outro logradouro com a área de 135 m2, rectificando-se ainda a composição das respectivas fracções, nos termos constantes daquela escritura (cfr. nº 4).

Porém, nessa escritura rectificativa os seus outorgantes declararam ainda que se mantinham os valores e as permilagens (cfr. nº 14).

Todavia, na sequência e por efeito da aludida escritura de rectificação, as áreas e composições das respectivas fracções autónomas foram substancialmente modificadas, sendo que: a) a fracção "A" ficou com a área coberta total de 372,10 m2 e um logradouro com 135 m2; b) e a fracção "B" ficou com a área coberta total de 81,50 m2 (cf. nº 11).

A fracção “A” tem o valor de construção de € 244.765,92 e a fracção “B” de € 57.385,75; sendo que o valor percentual das referidas fracções no valor total do prédio modificou-se então na exacta proporção em que se alterou o respectivo valor patrimonial efectivo ou real (cfr. nº s 12 e 13).

Pois bem, entendem os AA./apelantes que a escritura lavrada em 31/10/1979, rectificativa da escritura de constituição da propriedade horizontal celebrada em 28/11/1977, ao modificar substancialmente a composição e a área das duas fracções autónomas, tal deveria traduzir-se também na modificação em conformidade do valor das aludidas fracções e das respectivas percentagens ou permilagens (sendo estas uma expressão daquele). Ora, não tendo ocorrido a alteração do valor relativo das fracções, e nem das respectivas percentagens ou permilagens, defendem aqueles que foi violado o disposto no nº 1 do artigo 1418 do CPC, o que conduz, assim, à nulidade do título, já que, no seu entender, a falsa ou incorrecta indicação do valor relativo de cada fracção e da sua percentagem ou permilagem na totalidade do prédio é equivalente à não indicação e, portanto, à omissão de tal requisito do título constitutivo da propriedade horizontal.

Mas será que, in casu, deverá ser essa a conclusão a extrair-se (ao contrário daquela que foi retirara pela sentença recorrida)?

Vejamos.

Depois do artigo 1415 do CC estabelecer os requisitos de natureza substantiva ou material do prédio para a sua admissão ao regime da propriedade horizontal, estatui-se no artº 1416, nº 1, do mesmo diploma, que a falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418, ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção. Nulidade essa para cuja arguição apenas têm legitimidade os condóminos e o MPº - este apenas mediante participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções - (e daí dizer-se que está perante um nulidade especial ou mista).

Por sua vez, dispõe o artigo 1418 do CC (na redacção anterior à actualmente vigente, que foi introduzida pelo DL 267/94 de 25/10, e aqui aplicável, à luz do disposto no artº 12, do CC, já que foi na sua plena vigência que foi celebrada a escritura de constituição do regime de propriedade horizontal do prédio aqui em causa e bem como daquela que posteriormente a rectificou – se bem que a solução fosse sempre igual se se aplicasse o sua actual redacção, dado que os regimes daí resultantes pouco ou nada diferem a tal respeito) que “no título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma a que fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio”.

A inobservância de tal normativo é susceptível também de conduzir à nulidade do título de constituição da propriedade horizontal (quer por aplicação do artº 1416, nº 1, quer mesmo por força do disposto no artº 294 do CC, sendo que na actual redacção do citado artº 1418, nº 3, já tal nulidade se encontra ali directa e expressamente prevista).

Por último, importa reter o artigo 1419 do CC (também, e pelas mesmas razões atrás aduzidas para o artigo 1418, na sua redacção anterior àquela que recentemente lhe foi introduzida pelo DL nº 116/08 de 4/7), onde se dispõe que “o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública, havendo acordo de todos os condóminos (nº 1) e que a inobservância do disposto no artº 1415º importa a nulidade do acordo; esta nulidade pode ser declarada a requerimento das pessoas e entidades designadas no nº. 2 do artigo 1416º”.

Resulta deste último normativo, com carácter de imperatividade, que, independentemente do grau ou abrangência da modificação levada a efeito, a alteração do título que constituiu a propriedade horizontal terá sempre que ser feita com o acordo de todos os condóminos (exarado antes sempre escritura pública, sendo que na sua actual redacção também o poderá ser feito por documento particular autenticado).

Como salientam os profs. Pires de Lima e A. Varela (in “Código Civil anotado, Vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 415”), muito embora o regime de nulidade proveniente da infracção ao disposto no artigo 1415 seja também o prescrito no nº 2 do citado artigo 1416, já, porém, os seus efeitos não são os mesmos. É que a nulidade do acordo, por inobservância do disposto no artº 1415, tem como consequência o retorno à constituição inicial da propriedade horizontal; e só, porém, no caso desse retorno não ser possível, se sujeitará então o prédio ao regime da compropriedade nos termos do artº 1416, nº 1.

Resulta da matéria da factual, que a escritura de rectificação daquela que inicialmente que constituiu o prédio em regime propriedade horizontal (na qual foram observados quer os requisitos previstos no artº 1415, quer no artº 1418), que a mesma foi outorgada, através de escritura pública, sob o acordo dos dois únicos condóminos daquele prédio, não se suscitando dúvidas quanto à observância do disposto no artº 1415 do CC.

Já vimos que os apelantes centram a defesa, para pedir a nulidade do título de constituição da propriedade horizontal, no facto de escritura lavrada em 31/10/1979, rectificativa da escritura de constituição da propriedade horizontal celebrada em 28/11/1977, ao modificar substancialmente a composição e a área das duas fracções autónomas, não ter feito reflectido também nele os correspondentes valores que passaram a ter as duas fracções (expressos nas correspectivas percentagens ou permilagens) que resultaram de tal alteração.

É sabido, que os valores das fracções constituídas em regime de propriedade são normalmente expressos em percentagens ou permilagens em função do valor total do prédio.

É sabido que esse valor, expresso em permilagem ou percentagem, ou seja, que a proporção do valor das fracções é essencial para determinar a influência do condómino na vida do condomínio. Com efeito, é através dele que se faz a repartição dos encargos de conservação e fruição (artº 1424, nºs 1 e 2); dos encargos com as obras de inovação (artº 1426, nº 1); a votação dos condóminos na assembleia, sobre os mais diversos aspectos da vida do condomínio (artº 1430), e bem assim em muitas outras matérias (cfr., por ex., artºs 1419, nº 1; 1422, nºs 2 al. d), 3 e 4; 1422- A, nº 3; 1425, nº 1; 1428, nº 2; 1432, nºs 3, 4 e 5, etc, etc.).

Já vimos, que a constituição do aludido prédio em regime de propriedade horizontal, teve como sua fonte um negócio jurídico (consubstanciado em duas declarações de vontade emanadas, com tal objectivo, pelos dois únicos donos do prédio de que foi submetido a tal regime de propriedade, dividindo-o em duas fracções autónomas, designadas por “A” e “B”, ficando cada uma delas a pertencer a cada um deles).

A tal propósito, escrevem os profs. Pires de Lima e A. Varela (in “Ob. cit., pág. 410, nota 4”), que “quando o valor relativo das fracções autónomas seja fixado por acordo dos condóminos, a nenhuma regra ou limitação tem de obedecer a avaliação a fazer por eles: os condóminos são livres de atribuir a cada fracção o valor que, segundo o seu arbítrio, consideram razoável”.

No mesmo sentido se pronunciou o saudoso cons. Aragão Seia (in “Propriedade Horizontal, 2ª edição, Almedina, pág. 44”), ao escrever que “o valor de cada fracção pode ser fixado por vontade de quem constituir a propriedade horizontal ou por avaliação. No primeiro caso, é fixado livremente, sem necessariamente atender à área, ao valor matricial ou a qualquer outro. O valor da fracção deve ser determinado atendendo condicionalismo de próprio de cada uma; a fracções exactamente iguais podem corresponder valores diferentes, caso se privilegie o fim a que se destina cada fracção, a sua localização no prédio, se tem vistas para o mar, se as tem para rua principal ou para o logradouro, se tem mais ou menos sol, etc.”.

Discorrendo também sobre a fixação do valor das fracções (incluindo mesmo nas situações de modificação do título) Rui Vieira Miller (in “Propriedade Horizontal no Código Civil, 3ª. ed., Almedina, pág. 134”) afirma que “a lei é apenas imperativa na exigência de fixação do valor relativo de cada fracção no título constitutivo, sendo soberana a vontade dos interessados quanto à determinação desse valor e da respectiva percentagem”.

Já agora, por último, e continuando a discorrer no mesmo sentido, Moitinho de Almeida (in “Propriedade Horizontal, 2ª ed., Almedina, pág. 16”) escreve que “quando o valor relativo das fracções autónomas seja fixado pelo sujeito ou sujeitos que intervêm no título constitutivo, tal fixação é livre, independentemente dos valores da matriz ou de quaisquer outros (…)”.

Ora, revertendo tais ensinamentos para o caso em apreço, verifica-se que aquando da constituição do referido prédio em propriedade horizontal o seus outorgantes atribuíram ao prédio objecto da mesma o valor total de quatrocentos e setenta e cinco mil e duzentos escudos, distribuído igualitariamente pelas duas fracções autónomas constituídas, atribuindo, assim, a cada uma dessas fracções o valor de duzentos e trinta e sete mil e seiscentos escudos e uma percentagem de cinquenta por cento do valor total do prédio.

Posteriormente, por escritura pública notarial lavrada em 31/10/1979, aqueles mesmos outorgantes (sendo que só mais tarde o proprietário da fracção “A” veio a vender a mesma aos autores) procederam à rectificação da daquela 1ª escritura nos termos que supra se deixaram expressos.

Todavia, não obstante de tal rectificação ter resultado uma modificação substancial no que concerne à composição e à área das duas fracções autónomas, os referidos outorgantes decidiram, assim o declarando, que mantinham os valores e as permilagens (que já constavam do título inicial).

Ora, já vimos que, nesse aspecto, a vontade dos outorgantes/interessados (desde que estejam de pleno acordo, como no caso estiveram) é soberana, não tendo sequer, na fixação desse valor, que atender às áreas das respectivas fracções ou a valores que resultem das matrizes ou de quaisquer outras situações.

E tal, que representa a consagração do princípio pleno da liberdade negocial, em nada interfere com as normas de carácter imperativo que se encontram plasmadas entre nós no regime da propriedade horizontal; pois o que a lei exige, a esse respeito, e de tal não abdica, é que, com a individualização das fracções, se fixe o valor de cada uma delas, expresso em percentagem ou em permilagem (do valor total do prédio) - com vista a permitir, assim, a regulação do exercício da vida do condomínio, nos termos que supra se deixaram assinados -, e isso, no caso, mostra-se observado.

Não alcançamos, assim, que tal interpretação possa colidir, ao contrário do que defendem os apelantes, com qualquer preceito ou princípio constitucional, e nomeadamente com o princípio da igualdade que foi convocado por aqueles.

Termos, pois, em que não se vislumbram razões para declarar a pedida nulidade do título que constitutivo da propriedade horizontal do prédio em questão (ou sequer mesmo do acordo que levou à rectificação/modificação da escritura pública que inicialmente o constituiu).

E daí que se julgue improcedente o recurso de apelação, confirmando-se a sentença da 1ª instância (da qual, repete-se, só os AA. recorreram, nos termos que supra se deixaram assinalados).

E sendo assim, e como acima se deixou antever, e à luz do disposto no artº 710, nº 1, do CPC, não se conhece do sobredito recurso de agravo que antes havia sido interposto pelos RR..


***

III- Decisão


Assim em face do exposto acorda-se:

a) Negar provimento ao recurso de apelação interposto pelos autores, confirmando-se a sentença da 1ª instância.

b) Não conhecer, em consequência, do recurso de agravo antes interposto pelos réus/apelados.

Custas (do recurso) pelos AA./apelantes.


Isaías Pádua (Relator)
Teles Pereira
Manuel Capelo