Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
148/12.9TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMIDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: COMODATO
RECUSA
RESTITUIÇÃO
FUNDAMENTO
ACÇÃO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 12/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PINHEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 580.º E 581.º DO NCPC
Sumário: I - Se o autor, proprietário de um determinado objecto, o tiver entregue ao réu, em execução de um contrato de comodato, no caso de o réu se recusar a restituir esse objecto, o autor tem a faculdade de pedir a condenação do réu na entrega desse objecto quer com fundamento no contrato de comodato quer com fundamento no direito de propriedade.

II - O trânsito em julgado da decisão que julgar improcedente o pedido fundado no contrato de comodato não impedirá o autor de instaurar nova acção, pedindo a entrega do objecto com fundamento no direito de propriedade.

III – Entre as duas acções não há identidade de causa de pedir.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A..., residente na rua ..., Trancoso, propôs, no tribunal judicial de Trancoso, a presente acção declarativa com processo sumário contra B..., residente em rua ..., Pinhel, pedindo:
1. Se declarasse que era dono e legítimo proprietário dos tractores descritos no artigo 2º da petição;
2. A condenação do réu a fazer a entrega desses tractores em bom estado de conservação e a funcionarem;
3. A condenação do réu no montante de 50 euros diários, desde a citação até à efectiva entrega dos 2 tractores.
Em abono das suas pretensões alegou, em síntese, que é legítimo proprietário do tractor modelo 1004, matrícula LE ...VE e do tractor marca Ursos, matrícula CZ ...; que adquiriu, por usucapião, a propriedade dos tractores; que os tractores foram-lhe atribuídos na partilha dos bens do casal constituído por ele e pela sua ex-mulher; que emprestou os tractores ao réu; que o réu não os devolveu; que a falta de restituição dos tractores está a causar-lhe um prejuízo de 50 euros por dia.
      O réu contestou. Na sua defesa, começou por invocar a incompetência territorial do tribunal onde a acção foi proposta; de seguida alegou que havia caso julgado, uma vez que a presente acção era uma repetição da que correu termos na comarca de Pinhel sob o n.º 184/10.0TBPNH e que o autor litigava de má fé. Para o caso de não ser atendida a excepção de caso julgado, impugnou os factos articulados pelo autor.
O autor respondeu. Em relação ao caso julgado, alegou que a causa de pedir da presente acção era diferente da causa de pedir do processo n.º 184/10.0TBPNH; quanto à litigância de má fé, alegou que quem litigava de má fé era o réu, devendo, por isso, ser condenado em multa não inferior a € 2 500,00.
Findos os articulados, o tribunal conheceu da excepção de incompetência territorial, julgando o tribunal de Trancoso incompetente em razão do território para conhecer da presente acção e determinando a remessa do processo ao tribunal de Pinhel, por ser o territorialmente competente.
Remetido o processo ao tribunal de Pinhel, aqui foi proferida decisão que:  
1. Julgou procedente a excepção dilatória de caso julgado e, em consequência, absolveu o réu da instância;
2. Condenou o autor, como litigante de má fé, no pagamento de multa, que fixou em 3 UC, e na indemnização a fixar após a audição das partes.
3. Absolveu o réu do pedido de condenação como litigante de má fé.
      O autor não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a substituição da decisão recorrida por outra que determinasse a continuação do processo até final.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. A causa de pedir da presente acção assenta na usucapião dos tractores;
2. A presente acção foi proposta em Trancoso porque o recorrente reside em Granja, freguesia pertencente à comarca e concelho de Trancoso;
3. A sentença de que se recorre violou os artigos 498º e 456ºdo CPC.
O réu respondeu, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.  
Como se vê da exposição acabada de efectuar, o recorrente pede a este tribunal que substitua a decisão recorrida por outra que determine a continuação do processo até final. Esta pretensão tem implícitos quer o pedido de revogação da decisão que julgou procedente a excepção do caso julgado quer o de revogação da decisão que o condenou como litigante de má fé.
Os factos relevantes para a decisão do recurso são os seguintes, discriminados na sentença recorrida:
1. No processo nº 184/10.0TBPNH, que correu termos neste Tribunal de Judicial de Pinhel, eram partes A ... e B ..., nas qualidades de, respectivamente, Autor e Réu.
2. No processo referido em 1), o Autor pediu que o Réu fosse condenado a restituir ao Autor, seu legítimo proprietário, dois veículos tractores, ambos de marca “URSOS”, respectivamente, um de modelo 1004, matrícula LE ...VE, e outro de matrícula CZ ....
3. Na acção referida em 1) e 2), o Autor invoca, para o efeito, que: Em data não concretamente apurada, mas que se presume em meados de 2007, o Autor entregou, a título de comodato, ao Réu, os referidos tractores; Ficou expressamente acordado que o Réu teria que devolver os tractores, quando terminasse de extrair umas macieiras da sua propriedade, actividade que perdurou cerca de uma semana; Apesar das diversas interpelações verbais, o Réu não devolveu os tractores ou os respectivos documentos; O Autor também interpelou o Réu por notificação judicial avulsa, tendo, no entanto, sido emitida certidão negativa.
4. Por sentença proferida em 15 de Setembro de 2011, transitada em julgado em 26-10-2011, a acção referida em 1) a 4) foi julgada totalmente improcedente, por não provada, a qual foi decretada com base nos seguintes fundamentos: “o autor intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumaríssimo, contra B ..., reclamando a restituição de dois tractores, de matrículas LE ...VE e CZ .... Atendendo a que nenhum facto resultou provado, é forçoso concluir pela improcedência desta pretensão. Na verdade, o autor, ao contrário do que lhe competia, não logrou provar os factos constitutivos do direito que invocou, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil”.
5. No presente processo, são partes A ... e B ..., nas qualidades de, respectivamente, Autor e Réu.
6. Nos presentes autos, é peticionado que: “o Autor seja declarado dono e legítimo proprietário dos tractores descritos no artigo 2.º desta petição inicial [tractor de marca URSOS, modelo 2004, matrícula LE ...VE; tractor marca URSOS, matrícula CZ ...]”; seja “o Réu condenado a fazer a entrega desses tractores em bom estado de conservação e a funcionarem”-, e seja “o réu condenado a fazer a indemnizar o Autor no montante de €50,00 diários, desde o dia da citação para esta acção até efectiva entrega dos dois tractores”.
7. O Autor A ..., na presente acção, para o efeito e em síntese, que o Autor é legítimo dono e proprietário dos referidos tractores, tendo adquirido, em 30-10-2004, o tractor de matrícula LE ...VE, ao Senhor C..., pelo valor de €7.500,00, e adquirido o tractor de matrícula CZ ..., pertença de D..., há cerca de 10 anos, tendo pago o preço de €2.5000,00, pagos com a entrega de uma carrinha Nissan e um cheque no montante de 200.000$00; Ambos tractores eram utilizados, pelo autor, na sua actividade de comércio de lenha a retalho; O autor, há mais de vinte anos, utilizava os referidos tractores à vista de toda a gente, sem embargo ou oposição de ninguém, convencido que exercia um direito próprio e não prejudicava direitos alheios; Por sentença transitada em julgado em 15-3-2010, o Autor divorciou-se de E..., tendo nas partilhas tais tractores sido adjudicados ao Autor; Em finais de 2009/princípios de 2010, o Réu pediu emprestado ao Autor os tractores referidos, para arrancar umas macieiras numa propriedade em Pala, com a promessa que os entregaria logo que o trabalho ficasse concluído; O Réu concluiu o trabalho, mas não entregou até hoje os tractores do Autor; O Autor notificou extra-judicialmente o Réu para fazer a entrega dos tractores, intentou acção sumaríssima e processo-crime, mas o Réu não devolveu os tractores.
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Expostos os factos, passemos à apreciação dos fundamentos do recurso. Comecemos pelos respeitantes ao recurso da decisão que julgou procedente a excepção dilatória do caso julgado e que, em consequência, absolveu o réu da instância.
O principal fundamento do recurso é constituído pela alegação de que, embora o efeito jurídico pretendido nesta acção seja o mesmo do pretendido na acção que correu termos sob o n.º 184/10.0TBPNH [efeito jurídico que consiste na condenação do réu a entregar os tractores], a causa de pedir das duas acções é diferente. Diz o recorrente que, ao passo que na acção que correu termos sob o n.º 184/10.0TBPNH a causa de pedir era constituída pela “escritura de partilhas ocorrida entre o recorrente e a ex-mulher”, na presente acção a causa de pedir é a aquisição dos tractores por usucapião. Acresce – diz o recorrente – que o recorrido não provou que os tractores fossem seus, pelo que continua na posse de um bem que não tem a titularidade. 
Com esta alegação o recorrente visa a parte da decisão que, justificando a procedência da excepção dilatória do caso julgado, afirmou o seguinte:
1. Que a presente acção, tal como a acção sumaríssima que correu termos sob o n.º 184/10.0TBPNH, era uma acção de reivindicação;
2. Que o autor assumiu na petição inicial que a causa de pedir numa e noutra acção é a mesma;
3. Que a sentença proferida no processo sumaríssimo n.º 184/10.0TBPNH definiu de modo irrefragável a relação jurídica sobre que recaiu: a entrega a título gratuito de dois tractores por parte do autor ao réu, com a obrigação de este os restituir; não obstante e apesar das devidas interpelações, o réu não entregou ao autor os ditos tractores e persiste em tal actuação”;
4. Que “a questão da aquisição da propriedade dos tractores (usucapião, compra e venda, adjudicação em processo de partilha de bens) não é o que define a relação material substantiva, pois o pedido de reconhecimento do direito de propriedade (implícito ou expresso) é apenas pressuposto do pedido de restituição dos veículos (este sim essencial, pois o que o autor pretende efectivamente é a entrega/devolução dos mesmos), não gozando de autonomia para definição, para os efeitos que agora importa, da causa de pedir. Efectivamente, discutir-se novamente se o Réu deve ou não proceder à entrega dos tractores de matrículas LE ...VE e CZ ... ao Autor seria dar-lhe uma segunda oportunidade para agora vir cumprir o ónus de prova que naquela acção não logrou cumprir, ou seja, seria dar-lhe a faculdade de o Autor vir alegar e provar, outra vez, que entregou ao Réu uns tractores, que eram seus, e que este, não obstante o acordado e concluído o trabalho, não os devolveu. E se situações há em que pode ser difícil resolver o problema de identidade de acções, elas assim se devem considerar se a decisão da segunda fizer correr ao tribunal o risco de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na primeira. De uma forma axiomática, podemos dizer que tal risco existiria se a presente acção prosseguisse os seus termos”;
5. Que “a história ou acontecimento da vida narrados nesta acção não diverge … da concreta factualidade (nuclear) descrita na anterior, não tendo, assim, projecção autónoma no direito capaz de conceder a tutela pretendida, verificando-se, então, a excepção de caso julgado”.
A alegação do recorrente remete-nos para os artigos 497º e 498º, ambos do Código de Processo Civil revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho [por ser o diploma que estava em vigor aquando da prolação da decisão recorrida], que dizem respeito, respectivamente, ao conceito de caso julgado e aos requisitos do caso julgado [o conceito e os requisitos do caso julgado não foram alterados pelo novo CPC como o atesta a redacção dos artigos 580º e 581º].
A excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário [n.º 1 do artigo 497º].
O fim da excepção é evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior [n.º 2 do artigo 497º]. 
A causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir [n.º 1 do artigo 498º].
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica [n.º 2 do artigo 498º do CPC].
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico [n.º 3 do artigo 498º].
Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico [primeira parte do n.º 4 do artigo 498º].
O recorrente contesta a decisão recorrida apenas na parte em que afirmou que a presente acção era idêntica à que correu termos sob o n.º 184/10 quanto à causa de pedir. O recorrente não questiona a decisão na parte em que afirmou que a presente acção era idêntica à anterior quanto aos sujeitos e ao pedido.   
Apesar de a não questionar neste segmento, não pode deixar de se registar que, quanto ao pedido, a presente acção não é totalmente idêntica à que correu termos sob o n.º 184/10. Com efeito, enquanto na acção que correu termos sob o n.º 184/10 o autor fez um único pedido, consistente na condenação do réu na restituição de dois tractores, na presente acção o autor fez 3 pedidos, a saber:
1. Se declarasse que era dono e legítimo proprietário dos tractores;
2. A condenação do réu a fazer entrega desses tractores em bom estado de conservação e a funcionarem;
3. A condenação do réu na indemnização no montante d4 50 euros diários desde o dia da citação até a efectiva entrega dos 2 tractores.
Vê-se, assim, que a identidade quanto aos pedidos entre as duas acções é meramente parcial. Dos 3 pedidos formulados na presente acção, só o segundo - condenação do réu a entregar os tractores – é repetido. Os outros são novos, no sentido de que foram deduzidos pela primeira vez na presente acção.
Assim sendo, a questão de saber se há identidade de causa de pedir entre as duas acções só se coloca em relação ao pedido de condenação do réu na entrega dos tractores. É em relação a esta pretensão que faz sentido perguntar se procede do mesmo facto jurídico.
Como se procurará demonstrar, a resposta é negativa. A justificação desta resposta não está, no entanto, no facto de a causa de pedir da acção que correu termos sob o n.º 184/10 ser constituída pela “escritura de partilha ocorrida entre o recorrente e a ex-mulher” enquanto a causa de pedir na presente acção ser constituída pela aquisição dos tractores por usucapião. A justificação é outra. Vejamos.
Como resultava da 1ª parte do n.º 4 do artigo 498º do CPC revogado e como resulta da 1ª parte do n.º 4 do artigo 581º do novo CPC, a causa de pedir é o facto jurídico concreto de onde emerge da pretensão do autor.   
Assim sendo, a resposta à questão de saber se há identidade de causa de pedir entre duas acções passa pela comparação dos factos que serviram de fundamento à pretensão deduzida nas duas acções. É o que iremos fazer de seguida.  
Comecemos pelos factos que serviram de fundamento à acção que correu termos sob o n.º 184/10.
Nessa acção, o autor começou por alegar que era dono e legítimo proprietário do tractor modelo 1004, matrícula LE ...VE e do tractor com a matrícula CZ ... [artigo 1º]; seguidamente alegou que, segundo presumia, em meados de 2007, entregou ao réu, a título de comodato, os dois tractores; que ficou acordado que o réu devolveria os tractores quando terminasse de extrair umas macieiras de uma sua propriedade, o que demorou cerca de uma semana; que decorrida esse semana o réu não devolveu os tractores, apesar de instado diversas vezes a fazê-lo [artigos 2º a 11º].
Na presente acção, depois de alegar a relação familiar que intercede entre ele e o réu [artigo 1º], o autor começou por afirmar que era dono e legítimo proprietário dos tractores [artigo 2º]. De seguida, sob os artigos 3º a 17º, descreveu os factos relativos à aquisição do direito de propriedade sobre os tractores. Depois desta descrição, alegou que emprestou os tractores ao réu e que este, contrariamente ao acordado, não lhe restituiu os tractores [artigos 18º a 22º].
Examinando os factos que servem de fundamento ao pedido de condenação do réu na restituição dos tractores vemos o seguinte.
Na acção que correu termos sob o n.º 184/10, o autor fez assentar a sua pretensão no acordo que celebrou com o réu, em meados de 2007. Acordo que qualificou como contrato de comodato e que submeteu ao regime jurídico deste contrato. Comprova-o a circunstância de ter transcrito, nos artigos 12º e 13º da petição, os artigos 1129º e 1137º, ambos do Código Civil, que dizem respeito, respectivamente, à noção de comodato e à obrigação que impende sobre o comodatário de restituir a coisa que lhe foi entregue no caso de os contraentes não convencionarem prazo certo para a restituição da coisa, mas ter sido esta emprestada para uso determinada [n.º 1 do artigo 1137º] e no caso de não ter sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa [n.º 2 do artigo 1137º].
Na presente acção, o autor pede a condenação do réu a entregar-lhe os tractores por ser titular do direito de propriedade sobre eles. É o que afirma no artigo 29º da petição ao alegar: “…e deverá igualmente ser condenado na entrega dos 2 tractores porque são propriedades do autor”. 
A primeira acção tem, assim, fundamento contratual; a presente acção tem fundamento real. Esta é uma típica acção de reivindicação, tal como é definida no n.º 1 do artigo 1311º do Código Civil.
Esta conclusão não é contrariada nem pelo facto de o autor ter começado por alegar na 1ª acção que era dono e legítimo proprietário dos tractores nem pelo facto de ter alegado na presente acção que havia emprestado os tractores ao réu e que este, contra o que fora acordado, não os devolveu [na presente acção, em vez de “comodato” o autor fala em “empréstimo”; quanto à data deste empréstimo, situa-a em finais de 2009, princípios de 2010].
O facto de o autor ter começado por alegar na 1ª acção que era dono e legítimo proprietário dos tractores não fez com que essa acção tenha sido uma acção de reivindicação, uma vez que o sentido desta alegação não foi o de fundar no direito de propriedade o pedido de condenação do réu a entregar os tractores. O sentido desta alegação foi o de indicar o direito com base no qual foi celebrado o alegado contrato de comodato, uma vez que, como é sabido, o contrato tanto pode basear-se no direito de propriedade como num direito temporário, como resulta do artigo 1130º, do Código Civil.
Por seu turno, o facto de ter voltado a alegar na presente acção que havia emprestado, ao réu, os tractores e que o réu, contra o que fora acordado, não os devolveu, não significa que o autor quis fundar no citado acordo o direito de exigir ao réu a entrega dos tractores. O sentido da alegação foi o de dizer que o réu não tinha título que justificasse a retenção dos tractores.
Concluímos, pois, que a causa de pedir da presente acção é diferente da causa de pedir da acção que correu termos sob o n.º184/10.
O caso dos autos constitui exemplo do que é designado na doutrina por concorrência de causas de pedir, para obtenção do mesmo efeito jurídico.
João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, página 179, escreve a este propósito o seguinte: “pode suceder que concorram causas para a produção do mesmo efeito, mas não por duas vezes, antes causas de actuação simultânea”. E dá o seguinte exemplo: “Suponhamos que A vende, simuladamente por acto verbal a R o prédio x que é de C; aqui cumulam-se três causae petendi da declaração de nulidade do contrato: simulação, vício de forma, ilegitimidade. A pode pedir contra R a declaração de nulidade do contrato pelas três causas referidas, alternativa ou mesmo cumulativamente, à sua vontade… Se optar por uma das causas, e perder, pode repetir a acção fundada noutra…”.
Era o que se passava no caso. O autor podia pedir a condenação do réu a entregar os tractores tanto ao abrigo do contrato de comodato como abrigo do direito de propriedade, sendo que o trânsito em julgado da decisão que julgasse improcedente o pedido fundado no contrato de comodato não impedia a propositura de nova acção, pedindo a entrega dos tractores com fundamento no direito de propriedade.
Só assim não seria se valesse no ordenamento jurídico português a regra segunda o qual o autor tem o ónus de alegar todos os factos ou fundamentos que sejam do seu conhecimento, sob pena de os não poder invocar num processo posterior, de forma a que, para efeitos de caso julgado, os factos alegados num processo consideram-se os mesmos que foram invocados num processo anterior se pudessem ter sido alegados neste.
Esta regra não vale, no entanto, no ordenamento jurídico português.
Como se afirmou no acórdão do STJ proferido em 19-02-2009, no processo n.º 09B0081 publicado no sítio www.dgsi.pr “…o caso julgado não preclude a possibilidade de invocar diferentes causas de pedir para o mesmo pedido, tal como não impede a formulação de outros pedidos, com relação à mesma causa de pedir”.
No mesmo sentido se pronunciam João de Castro Mendes, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora.
João Castro Mendes escreve na obra supra citada, página 179, a este propósito o seguinte “… é lícito ao autor em processo civil formular n vezes a mesma pretensão, desde que se baseie em n causas de pedir”.
Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, página 693, escrevem a propósito da acção de reivindicação fundada em diferentes causas de pedir o seguinte “…a importância da acção de reivindicação baseada na usucapião, por exemplo, não obsta à instauração de nova acção de reivindicação com fundamento noutro título (v.g. a compra e venda, a ocupação, a acessão, etc).
Na presente acção, o que está vedado ao julgador é condenar o réu a restituir os tractores com base no contrato de comodato. Este resultado é que iria contra o fim do caso julgado, evitar que o tribunal fosse colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior.
Ao invés, o conhecimento do mérito da presente acção não coloca o tribunal na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na acção anterior. Com efeito, a condenação do réu a entregar os autores, há-de resultar, por um lado, do reconhecimento do direito de propriedade a favor do autor e, por outro lado, da falta de prova, por parte do réu, de um título que justifique a retenção dos tractores.            
Assim, pese embora o respeito que nos merece a decisão recorrida, entendemos que a presente acção não constitui uma repetição da que correu termos sob o n.º 184/10. Falha a identidade da causa de pedir.
Assim, ao decidir que o pedido de condenação do réu na entrega dos tractores, deduzido na acção anterior e na presente acção, procedia do mesmo facto jurídico, a decisão recorrida violou o n.º 1 do artigo 497º e os n.ºs 1 e 4, do artigo 498º, ambos do CPC revogado – diploma vigente na altura da prolação da decisão. A decisão que no caso tem cobertura legal é a que julgue improcedente a excepção do caso julgado.
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Passemos, agora, ao conhecimento do recurso que tem por objecto a decisão que condenou o autor, ora recorrente, como litigante de má fé.
Segundo a sentença recorrida, o recorrente, ao propor a presente acção para obter um efeito contrário a uma decisão proferida em acção anterior, fez do processo um uso manifestamente reprovável.
O recorrente contesta a decisão com a alegação de que de que intentou nova acção no tribunal de Trancoso porque, após o divórcio, foi viver para a Granja, concelho de Trancoso, e pediu a condenação do réu a entregar-lhe os tractores por os haver adquirido por usucapião e ainda porque lhe tinham sido adjudicados na partilha com a sua ex-mulher.
Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, incorrer nalgum dos comportamentos descritos nas alíneas a), b), c) e d), do n.º 2 do artigo 456º do CPC.
A decisão condenou o recorrente como litigante de má fé dizendo que faz “uma utilização maliciosa e abusiva do processo”, uma vez que propôs a presente acção para obter um efeito contrário à decisão proferida no processo que correu termos sob o n.º 184/10.
É certo que, ao propor a presente acção, o autor visou ultrapassar a decisão de improcedência proferida no processo n.º184/10. Sucede que o fez no uso de um direito que lhe era reconhecido pela lei processual civil. Carece, assim, de fundamento a acusação de que o réu fez “uma utilização maliciosa e abusiva do processo”.
Daí que, ao condenar o autor como litigante de má fé, a decisão recorrida tenha violado o artigo 456º, n.º 1, e n.º 2 alínea d), do CPC. Impõe-se, pois, a revogação da decisão e a substituição dela por outra que absolva o autor do pedido de condenação como litigante de má fé.  
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Decisão:
Julga-se procedente o recurso e em consequência:
1. Revoga-se a decisão recorrida que julgou procedente a excepção de caso julgado e substitui-se esta decisão por outra a julgar improcedente a excepção de caso julgado.
2. Revoga-se a decisão recorrida que condenou o autor como litigante de má fé no pagamento de multa e, em consequência, absolve-se o réu do pedido de condenação como litigante de má fé no pagamento de multa.
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As custas serão suportadas pelo recorrido.
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Emídio Francisco Santos (Relator)
Maria Catarina Gonçalves
Maria Domingas Simôes