Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2925/06.0TBACB-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: TERCEIROS
REGISTO PREDIAL
EMBARGOS DE TERCEIRO
PENHORA
HIPOTECA
Data do Acordão: 12/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 408, 691, 879, 939 CC, 56, 351 CPC, 5, 6 CRP
Sumário: 1.-São terceiros para efeitos de registo, na definição do acórdão uniformizador n.º 3/99 (plasmada no art.º 5º, n.º 4, do Código do Registo Predial/CRP), o embargante que opõe embargos de terceiro invocando ter adquirido a propriedade de determinadas fracções autónomas (penhoradas) por escritura de permuta anterior - pela qual o embargante, dono de um terreno, cedeu esse terreno à empresa construtora (executada) em troca de diversas fracções autónomas do prédio a nele edificar, livres de ónus ou encargos -, não inscrita no registo, e o embargado/exequente, titular de hipoteca registada, constituída pela executada posteriormente àquela permuta e que incidiu sobre a parcela de terreno onde veio a construir o respectivo edifício habitacional.

2. Nesse circunstancialismo, a transferência da propriedade das fracções autónomas verifica-se quando construídas ou entregues (art.ºs 408º, n.º 2, 879º e 939º, do Código Civil) e os dois direitos em confronto, adquiridos do mesmo titular (executada), ainda que não sendo da mesma natureza, são incompatíveis entre si.

3. Ainda que a hipoteca voluntária constituída pela executada a favor de Banco (exequente/embargado), em garantia de empréstimo para a construção desse edifício e anterior à constituição da propriedade horizontal e registo da aquisição daquelas fracções autónomas a favor do embargante, com a extensão decorrente do art.º 691º, do Código Civil, se afigure válida e prevalecente sobre os registos posteriores (art.º 6°, n.º 1, do CRP), pretendendo o exequente fazer valer essa garantia, sempre a execução deverá seguir contra o embargante/terceiro (art.º 56º, n.º 2, do CPC de 1961, após a reforma de 1995/96 – art.º 54º, n.º 2, do CPC de 2013).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            I. Em 05.4.2013, J (…)  deduziu embargos de terceiro à execução movida por C (…), S. A., contra C (…), Lda., visando o levantamento da penhora que incide sobre as fracções autónomas mencionadas nos art.ºs 12º e 27º da petição inicial (p. i.), inscritas na matriz predial urbana do concelho de Alcobaça sob o art.º 5860 e descritas na Conservatória do Registo Predial sob o art.º 4102.

            Alegou, em síntese: teve conhecimento da penhora no dia 01.4.2013; tais fracções pertencem-lhe, pois, em 30.6.1999, foi celebrada escritura de permuta no Cartório Notarial da Marinha Grande entre o embargante e o legal representante da executada, tendo a executada cedido ao embargante as mencionadas fracções autónomas, livres de ónus ou encargos; entrou na posse e propriedade das ditas fracções autónomas e paga os impostos correspondentes e devidos de quem é titular de um direito próprio e o exercita na sua plenitude; em 24.7.2007 deu entrada na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça a requisição para registo das fracções, que ficou provisório por dúvidas; as penhoras efectuadas sobre as referidas fracções, datadas de 03.10.2008, ofendem a posse e o direito de propriedade do embargante.

            Recebidos os embargos, ordenada a suspensão da execução quanto aos bens em causa e notificadas as partes primitivas, a exequente veio contestar, tendo impugnado a factualidade alegada e concluído pela improcedência dos embargos (e consequente venda das fracções penhoradas nos autos), aduzindo, designadamente, que o embargante não é possuidor das fracções, no registo predial não se encontra registada a aquisição das aludidas fracções autónomas pelo embargante, sequer com a menção de “provisória”, e os créditos peticionados pela embargada na execução emergem de contrato de abertura de crédito com hipoteca, devidamente registada, sendo que a penhora incide sobre as fracções autónomas abrangidas por este direito real de garantia.

            Findos os articulados, a Mm.ª Juíza a quo, por decisão de 11.11.2013, considerou que o processo reunia os elementos para uma decisão conscienciosa e julgou os embargos totalmente improcedentes.

Inconformado, o embargante interpôs a presente apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

            (…)

            A exequente/embargada respondeu, concluindo como na contestação.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa verificar e decidir, principalmente, se o embargante e a exequente são terceiros para efeitos de registo predial e, em tal enquadramento, as consequências decorrentes do registo da hipoteca (e sua extensão) no confronto com uma transmissão/permuta anterior (não registada), e, ainda, se podem ser penhoradas as fracções autónomas adquiridas pelo embargante, sem que este seja parte no processo.

*         

            II. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) No dia 30.7.1999, entre embargante e executada foi celebrado o contrato de permuta no qual o embargante cedeu à executada uma parcela de terreno para construção, sita na (...), Alcobaça, inscrita na respectiva matriz sob o art.º 5055, descrita na Conservatória do Registo Predial (CRP) de Alcobaça, sob o n.º 4102/ (...), declarando a executada que cede ao embargante as 13 fracções autónomas: a designar pela letra “E”, correspondente ao primeiro andar esquerdo para habitação e garagem do bloco A; a designar pela letra “F”, correspondente ao primeiro andar direito para habitação e garagem do bloco A; a designar pela letra “K”, correspondente ao segundo andar esquerdo para habitação e garagem do bloco A; a designar pela letra “H”, correspondente ao rés-do-chão direito para habitação e garagem do bloco B; a designar pela letra “AD”, correspondente ao terceiro andar direito para habitação e garagem do bloco B; a designar pela letra “AA”, correspondente ao segundo andar esquerdo para habitação e garagem do bloco B; a designar pela letra “AB” correspondente ao segundo andar direito para habitação e garagem do bloco B; a designar pela letra “AG” correspondente garagem do bloco A; a designar pela letra “AH” correspondente garagem do bloco A; a designar pela letra “AM” correspondente arrecadação do bloco A; a designar pela letra “AQ” correspondente arrecadação do bloco A; a designar pela letra “AX” correspondente arrecadação do bloco B; a designar pela letra “AZ” correspondente a uma arrecadação do bloco B; todas situadas no prédio urbano a construir em propriedade horizontal, na parcela cedida pelo embargante à executada, sendo o prazo de conclusão de dois anos e os bens permutados livres de ónus ou encargos.[1]

            b) No dia 02.02.2000, exequente e executada celebraram o contrato de abertura de crédito com hipoteca, mediante o qual a primeira concedeu à segunda um empréstimo sob a forma de abertura de crédito até ao montante de 250 000 000$00, de que a executada se confessou devedora.[2]

            c) Em garantia do capital mutuado e juros, à taxa anual de 11,45 % acrescida, em caso de mora, de uma sobretaxa até 4 % ao ano a título de cláusula penal e despesas emergente do contrato, que para efeitos de registo se fixam em 10 000 000$00, a executada constituiu hipoteca sobre o prédio composto de uma parcela de terreno para construção sito na (...), concelho de Alcobaça, descrito na CRP de Alcobaça sob o n.º 04102/150197, da referida freguesia e inscrito na matriz sob o n.º 5055.[3]

            d) Encontra-se descrito na CRP de Alcobaça, sob o n.º 04102/150197 da freguesia de (...), concelho de Alcobaça, o prédio urbano sito na (...), composto de parcela de terreno para construção com a área de 2 855 m2, que confronta a Norte com (...), de Sul com (...), de Nascente com (...) e Poente com (...), omisso na matriz predial.[4]

            e) Pela Ap. 13/220989 mostra-se inscrita a aquisição de tal prédio a favor de J (…) e  mulher, M (…), por usucapião.[5]

            f) Pela Ap. 22/150197 mostra-se inscrita a aquisição de tal prédio a favor da executada.[6]

            g) Pela Ap. 46/2000.01.10 mostra-se inscrita a hipoteca voluntária, provisória por natureza, a favor da exequente, para garantia de empréstimo com o valor de capital de 250 000 000$00, juro anual de 11,45 %, acrescida, em 4 %, em caso de mora e despesas de 10 000 000$00, no montante máximo de 375 875 000$00, convertida em definitiva pela Ap. 04/2000.02.22.

            h) Pela Ap. 08/2002.07.06 foi inscrita a constituição de propriedade horizontal.[7]

            i) Pela Ap. 09/20070524 foi inscrita, provisória por dúvidas,[8] a propriedade das “fracções E, F, K, AG, AH, AM e AQ”, todas do bloco A e das “fracções H, AD, AA, AB, AX e AZ”, todas do bloco B, do prédio descrito na CRP de Alcobaça, sob o n.º 04102/150197 da freguesia de (...), concelho de Alcobaça, a favor do embargante e mulher.

            j) Na matriz predial urbana, a titularidade das “fracções E, F, K, AG, AH, AM e AQ”, todas do bloco A e das “fracções H, AD, AA, AB, AX e AZ”, todas do bloco B, do prédio descrito na CRP de Alcobaça, sob o n.º 04102/150197 da freguesia de (...), concelho de Alcobaça encontra-se inscrita em nome do embargante.[9]

            2. Decorre ainda dos documentos juntos aos autos:

            a) A penhora das referidas fracções autónomas, efectuada na execução dos autos principais, foi registada em 03.10.2008 (cf. os documentos de fls. 120 e seguintes/257 e seguintes).
            b) O embargante veio a efectuar o registo da mencionada aquisição, por permuta, das fracções “E, F, K, R, AH, AM, AQ, AX, AZ” - realizado, em 24.01.2014 (“AP. 2362 de 2014/01/24”), (novo) registo “Provisório por Dúvidas”, em 05.6.2014, pelo AVERB. – AP. 2613 de 2014/06/05, ocorreu a “Conversão em Definitiva” DA APRESENT. 2362 de 2014/01/24 (cf. os documentos de fls. 257 a 274).
            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro (art.º 351º, n.º 1, do Código de Processo Civil/CPC de 1961, na redacção conferida pelo DL n.º 38/2003, de 08.3, aplicável à situação em análise[10]).

            Os bens de terceiro (relativamente à execução), i. é, de pessoa que não seja exequente nem executado, não são penhoráveis – esta a regra que decorre da aludida estatuição.[11]

            Actualmente e desde a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12.12), os embargos de terceiro visam defender não apenas a posse (como acontecia na anterior versão do CPC de 1961) mas também qualquer outro direito que se mostre incompatível com a realização ou âmbito da diligência de que seja titular quem não é parte na causa - permite-se que o embargante possa invocar e defender qualquer direito que esteja a ser atingido ilegalmente pela penhora ou outro acto de apreensão judicial de bens.  

            4. O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art.º 1º do Código do Registo Predial, aprovado pelo DL n.º 224/84, de 06.7[12]).

            Entre outros factos, estão sujeitos a registo os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão (art.º 2º, n.º 1, alínea a)) e a hipoteca, a sua cessão ou modificação (alínea f) do mesmo n.º).

            Os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros. Exceptuam-se os factos constitutivos de hipoteca cuja eficácia, entre as próprias partes, depende da realização do registo (art.º 4º).

            Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo (art.º 5º, n.º 1). Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si (n.º 4, do mesmo art.º, na redacção introduzida pelo DL n.º 533/99, de 11.12).

            O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos (…). O registo convertido em definitivo conserva a prioridade que tinha como provisório (art.º 6º, n.ºs 1 e 3, na redacção conferida pelo DL n.º 116/2008, de 04.7).

            O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (art.º 7º, na redacção introduzida pelo DL n.º 533/99, de 11.12).

            5. Só quem tiver a qualidade de terceiro é que beneficia da presunção e prioridade decorrentes do registo.

            O registo não tem natureza constitutiva mas apenas valor declarativo (excepto no caso da hipoteca – cf. art.º 4º, e bem assim o disposto no art.º 687º, do Código Civil/CC). Os actos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, por princípio, quaisquer direitos (art.º 4º).

            O conceito de terceiros deve, por isso, reflectir e ser entendido de acordo com essa função declarativa do registo e a sua natureza publicitária (art.º 1º).

            Apesar das divergências doutrinais e jurisprudenciais sobre o conceito de terceiros para efeitos de registo, o acórdão uniformizador n.º 3/99, de 18.5.1999, revendo anterior jurisprudência, veio consagrar o conceito tradicional de terceiro, considerando que terceiros, para efeitos do art.º 5° do Código do Registo Predial, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.[13]

            Em consonância com a doutrina emergente deste acórdão, foi aditado o citado n.º 4 ao art.º 5º C. R. Predial.

            6. Terceiros para efeitos de registo predial são as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiram direitos incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio. Assim, se A vendeu certo prédio a B e depois a C, estes dois adquirentes são terceiros entre si, e portanto prevalece a venda que primeiro for registada, e que pode ser a 2ª não obstante dar-se o caso de já nessa altura não ser A mas B o verdadeiro proprietário do prédio. O mesmo sucede, mutatis mutandis, se A vendeu o prédio a B e depois constituiu uma servidão ou outro direito real (usufruto, hipoteca, etc.) ou vice-versa, sem ter ressalvado, nesta hipótese, o direito real anteriormente constituído. Mas não assim se, em tal hipótese, A fez a ressalva indicada. Nem ainda se o mesmo prédio foi vendido por A a B e por C a D. Neste caso B e D não serão terceiros entre si, prevalecendo, das duas vendas, aquela que tenha sido feita (se alguma o foi) pelo verdadeiro proprietário. Só neste último sentido é que pode dizer-se, como usualmente se diz, que o registo não dá direitos, mas apenas os conserva.[14]

            Terceiros são apenas os que estão em conflito entre si, o que só se verifica quando o direito de um é posto em causa pelo outro. Pressupõe isto que o transmitente ou causante é o mesmo, pois, não o sendo, só um dos adquirentes é a domino e o direito do outro, mais do que afectado pelo direito daquele, é afectado pelo não direito do seu tradens - terceiros para efeitos de registo são os que do mesmo autor recebem sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente conflituantes.[15]

            7. A hipoteca, direito real de garantia, confere ao credor o direito de ser pago (do seu crédito) pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art.º 686°, n.° 1, do CC).

            A hipoteca abrange as coisas imóveis referidas nas alíneas c) a e) do n.º 1 do art.º 204º [nomeadamente, os direitos inerentes aos prédios rústicos e urbanos e as partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos], as acessões naturais e as benfeitorias, salvo o direito de terceiros (art.º 691º, do CC).

            O credor tem o direito de executar o património do devedor, sendo-lhe inoponíveis, sem prejuízo das regras do registo, os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados (art.ºs 817° e 819°, do CC).

            8. No tocante às adições resultantes de novas construções feitas no imóvel hipotecado, deve entender-se que a hipoteca só as não abrange quando possam ser juridicamente autonomizadas sem diminuição do valor que o prédio tinha antes delas.

            Assim, se o proprietário de um terreno aí levantar um edifício, a hipoteca deverá abrangê-lo, pois a autonomização da nova construção faria diminuir o valor que o terreno tinha anteriormente e prejudicaria, por conseguinte, o credor hipotecário.[16]

            9. No caso vertente releva o seguinte quadro fáctico:

            - Em 30.7.1999, o embargante e a executada, por escritura pública, celebraram um contrato de permuta no qual o primeiro cedeu à segunda uma parcela de terreno para construção, declarando a segunda que cede ao primeiro 13 fracções autónomas situadas no prédio urbano a construir em propriedade horizontal, naquela parcela, sendo que os bens permutados seriam entregues livres de ónus ou encargos.

            - No dia 02.02.2000, exequente e executada celebraram um contrato de abertura de crédito com hipoteca, mediante o qual a primeira concedeu à segunda um empréstimo sob a forma de abertura de crédito; em garantia do capital mutuado e juros, a executada constituiu hipoteca sobre o prédio que havia recebido na aludida permuta.

            - Pela Ap. 22/150197 mostra-se inscrita a aquisição de tal prédio a favor da executada.

            - Pela Ap. 46/2000.01.10 mostra-se inscrita a mencionada hipoteca voluntária, provisória por natureza, a favor da exequente, para garantia do referido empréstimo, convertida em definitiva pela Ap. 04/2000.02.22; a subsequente penhora foi registada em 03.10.2008.

            - Pela Ap. 08/2002.07.06 foi inscrita a constituição de propriedade horizontal.

            - Pela Ap. 09/20070524 foi inscrita, provisória por dúvidas, a propriedade das aludidas “fracções” objecto da permuta, dos blocos A e B, do prédio descrito na CRP de Alcobaça, sob o n.º 04102/150197 da freguesia de (...), concelho de Alcobaça, a favor do embargante e mulher.

            - A penhora das referidas fracções autónomas, efectuada na execução dos autos principais, foi registada em 03.10.2008.
            - O embargante veio a efectuar o registo da mencionada aquisição, por permuta, das fracções “E, F, K, R, AH, AM, AQ, AX, AZ”.

            10. Ante a descrita factualidade, o confronto existente é entre um direito real de garantia (hipoteca e sua conversão em penhora) e um direito real de propriedade decorrente de um contrato de permuta, resultantes de actos sucessivos da executada.

            11. Dúvidas não restam de que o embargante e a executada celebraram entre si o contrato de permuta mencionado em II. 1. a), supra - figura contratual que não tem regulamentação específica (contrato atípico) mas permitida pelo princípio da liberdade contratual (art.º 405º, do CC) -, mediante o qual trocaram, reciprocamente, a sua posição de proprietários sobre bens imóveis, aplicando-se o regime do contrato de compra e venda, com as necessárias adaptações (art.º 939º, do CC/"as normas da compra e venda são aplicáveis aos outros contratos onerosos pelos quais se alienam bens ou se estabeleçam encargos sobre eles, na medida em que sejam conformes com a sua natureza e não estejam em contradição com as disposições legais respectivas").

            Assim, mediante a permuta, o proprietário do terreno (embargante) vende o terreno onde vai ser implantado um edifício e adquire as fracções autónomas a construir, enquanto o construtor (executada) adquire a propriedade do terreno e vende as referidas fracções, pelo que, existindo e estando determinadas as coisas a permutar, cada uma das partes/permutadores transmite ao outro a propriedade da coisa permutada e assume a obrigação de a entregar imediatamente ou no prazo estipulado [art.º 879º, alíneas a) e b), do CC], e a transferência do direito de propriedade dá-se imediatamente, por mero efeito do contrato (art.º 408º, n.º 1, do CC).[17]

            Porém, como também aqui sucede, quando a permuta incide sobre prédio urbano ou fracções autónomas de prédio urbano a construir, a prestação incide sobre bens futuros (art.º 211º, do CC), havendo que recorrer ao regime estabelecido nos art.ºs 408º, n.º 2, e 880º, do CC - o direito transfere-se quando a coisa for adquirida pelo alienante ou determinada com conhecimento de ambas as partes, ficando o alienante obrigado a exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos, segundo o que for estipulado ou resultar das circunstâncias do contrato.

             12. No caso vertente, os bens permutados eram constituídos por um terreno, que existia na titularidade do embargante e este transferiu para a executada, e por treze fracções autónomas, identificadas e descritas no contrato, de um edifício a construir pela executada no dito terreno.

            Por conseguinte, a referida permuta incidiu, em parte, sobre um bem concreto e determinado (o terreno) que existia na titularidade e na disponibilidade do embargante e, noutra parte, sobre bens futuros, constituídos pelas fracções autónomas do edifício a construir nesse terreno, pelo que, enquanto o direito de propriedade do terreno transferiu-se imediatamente para a executada (adquirente desse direito) por efeito do contrato de permuta [art.ºs 408º, n.º 1, 879, alínea a), e 939º, do CC], já a transferência do direito de propriedade relativo às fracções autónomas do edifício a construir (bens futuros) para o embargante/adquirente também se operou por efeito directo do mesmo contrato de permuta, mas esse efeito apenas se produziu em momento posterior à celebração da permuta [art.ºs 408º, n.º 2, 879º, al. a), e 939º, do CC].

            Estando em causa a transmissão de fracções autónomas de um edifício, em que cada uma delas deverá formar uma unidade predial juridicamente independente e autónoma em relação ao edifício e às demais fracções, o momento que releva para a transferência do direito de propriedade há-de ser o da individualização e autonomização jurídica das fracções, através da constituição do regime da propriedade horizontal (cf. os art.ºs 1414º e seguintes, do CC).

            13. No tocante ao direito de garantia do credor hipotecário a sua constituição deu-se por efeito da celebração do contrato e ocorreu imediatamente na parte em que incidiu sobre o bem aí especificado e já existente na titularidade do devedor hipotecário [art.ºs 408º, n.º 1, e 879º, alínea a), do CC], estendendo-se às benfeitorias à medida que estas foram construídas [art.ºs 408º, n.º 2; 691º e 879º, al. a), do CC], sendo que, pelas mesmas razões já indicadas, a extensão da hipoteca às fracções autónomas do edifício construído de novo também só ocorreu aquando da individualização e autonomização jurídica das fracções através da constituição da propriedade horizontal.

            14. Saber se embargante e exequente podem ser considerados terceiros para efeitos de registo deve ser resolvido à luz da definição acolhida no acórdão uniformizador n.° 3/99 e da norma do n.° 4 do art.º 5°.

            A eficácia do registo aparece aqui intimamente conexionada com a boa fé de quem regista.

            Se a aludida parcela de terreno já estava inscrita no registo em nome da executada, sem que houvesse qualquer menção ao aludido contrato de permuta, e, assim, não traduzindo a nova realidade - ou seja, a transferência do direito de propriedade sobre determinadas fracções do prédio urbano, ali construído ou a construir, para a esfera jurídica do embargante -, é legítimo dar protecção à embargada/exequente que, desconhecedora (até prova em contrário) daquela titularidade sobre tais fracções, negociou, apenas, com o titular inscrito do direito.

            Estes dois direitos em confronto, ainda que não sendo da mesma natureza, enquanto um é um direito real de propriedade, o outro é um direito real mas só de garantia, são incompatíveis entre si, já que, conferindo a hipoteca ao seu beneficiário o direito de se fazer pagar pelo valor do respectivo bem, isso vai conflituar com o conteúdo pleno do direito de propriedade radicado noutra pessoa.[18]

            Se é certo que, em abstracto, possam coexistir sobre a mesma coisa um direito de propriedade e uma hipoteca, e que a hipoteca tanto pode garantir uma dívida do proprietário como de um terceiro, essa evidência, obviamente, não leva a considerar compatíveis os concretos direitos de propriedade e do credor hipotecário.

            Assim, embargante e embargada/exequente, porque adquirentes de direitos incompatíveis entre si de um autor comum, são terceiros para efeitos de registo, na definição acolhida no acórdão uniformizador n.° 3/99 e plasmada no art.º 5º, n.º 4, e, nesta medida, a prioridade derivada do registo prevista no n.° 1 do art.º 6° determinará, em princípio, a prevalência do direito da segunda e, consequentemente, a inoponibilidade do direito do embargante - o embargante e a exequente são adquirentes do mesmo autor comum de direitos incompatíveis entre si (o direito de propriedade e a hipoteca), e, como tal, são entre si terceiros para efeitos de registo (art.º 5º, n.º 1), pelo que a exequente poderá opor ao embargante a prevalência do seu direito por ter sido inscrito em primeiro lugar (art.º 6º, n.º 1)[19], sendo que a referida hipoteca incidiu, inicialmente, sobre o prédio composto por uma parcela de terreno para construção e onde veio a ser edificado o prédio em que se integram as fracções penhoradas, as quais, face aos elementos disponíveis e atento o referido enquadramento jurídico, integrarão, agora, o “licere” do mesmo direito real de garantia (art.º 691º, do CC).

            15. Coloca-se, contudo, a questão de saber se podem ser penhoradas as fracções autónomas adquiridas pelo embargante, sem que este seja parte no processo.

            Em regra, a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor (art.º 55º, n.º 1, do CPC), regra que tem, nomeadamente, os seguintes desvios: tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda (art.º 56º, n.º 1, do CPC); a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro seguirá directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor (n.º 2 do mesmo art.º).

            Assim, na previsão do referido n.º 2 do art.º 56º [reproduzido no n.º 2 do art.º 54º, do CPC de 2013], seria necessário incluir no requerimento executivo o titular da posse ou propriedade do bem onerado com a garantia real, pelo que, omitida tal inclusão, não pode – pelo menos enquanto tal falha não for suprida (fazendo intervir na execução o embargante) – ser atingido esse bem, ou seja, para ser penhorado, tem o seu titular de ser parte passiva na execução; antes de ser parte no processo, não pode ser levada a cabo a penhora do bem a ele pertencente (cf., ainda, o art.º 821º, n.º 2, do CPC[20]).[21]

            16. Por conseguinte, considerando o descrito regime jurídico e o mencionado “direito de propriedade do embargante sobre as fracções” (à data da penhora) e não deixando os elementos disponíveis de apontar para a necessidade ou conveniência em efectivar o direito da exequente no confronto com os aludidos interessados passivos (executada e embargante), e, assim, também, com a demanda do terceiro proprietário (com a consequente e necessária regularização da instância), importa dar sem efeito a penhora supra referida, com os efeitos legais daí decorrentes (inclusive, o cancelamento do respectivo registo).

            Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.   

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             III. Face ao exposto, revogando a decisão recorrida, julgam-se os embargos procedentes, ordenando-se o levantamento da penhora que incide sobre as fracções autónomas mencionadas em II. 1. a) e II. 2. a).

            Custas pela embargada/exequente.

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02.12.2014

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernando Monteiro


[1] Cf. o documento de fls. 19.
[2] Cf. o documento de fls. 157.
[3] Rectificou-se atento o teor do mesmo documento.
  Cf., ainda, os documentos de fls. 117 a 156.
[4] Cf. o documento de fls. 36/41.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] Idem.
[8] Primeiro, por existir “divergência quanto à composição das fracções autónomas e localização das mesmas no edifício construído, entre as respectivas descrições [na Conservatória] e o título apresentado a registo, e sem que o requerente do registo preste quaisquer declarações complementares esclarecedoras da situação”; segundo, “não é feita prova de a Câmara Municipal de Alcobaça haver emitido licença de utilização para as fracções autónomas objecto de permuta” – cf. o documento de fls. 35/36.
   Cf., ainda, os documentos de fls. 44 a 55 e 59 a 72.
[9] Cf. os documentos de fls. 76 a 94.
[10] Cf., designadamente, II. 2., alínea a), supra.
[11] Vide, entre outros, J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4ª edição, Coimbra Editora, 2004, pág. 282.
[12] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[13] Publicado no DR, 1ª Série-A, de 10.7.1999, revendo a anterior jurisprudência do acórdão uniformizador n.º 15/97, de 20.5.1997 (publicado no DR, 1ª Série-A, de 04.7.1997 e que fixara o seguinte entendimento: "terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente").
[14] Vide Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II (4ª reimpressão), 1974, págs. 19 e seguinte.
[15] Vide Orlando de Carvalho, Terceiros para efeitos de registo, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, ano LXX, págs. 97 e seguintes.
[16] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 683.
[17] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 09.10.2007-processo 07A2761 e da RP de 07.9.2009-processo 2813/08.6TBPRD-A.P1, publicados no “site” da dgsi.
[18] Cf. o acórdão do STJ de 30.6.2011-processo 91-G/1990.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[19] Cf., ainda, entre outros, o acórdão da RP de 19.11.2002-processo 0121542, publicado no “site” da dgsi.
[20] Preceitua o referido normativo: “Nos casos especialmente previstos na lei, podem ser penhorados bens de terceiro, desde que a execução tenha sido movida contra ele.”
[21] Vide, entre outros, J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4ª edição, cit., págs. 125 e seguintes; J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, págs. 114 e seguinte, e Carlos Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª edição, 2004, Almedina, págs. 92 e seguintes, bem como os acórdãos do STJ de 14.11.2013-processo 1041/06.0TBVRL-C.P1.S1, da RE de 03.11.1994 e da RG de 11.7.2012-processo 1622/11.0TBFAF-A.G1 e 21.5.2013-processo 1626/11.2TBFAF-A.G, publicados, o segundo, na CJ, XIX, 5, 278 e, os restantes, no “site” da dgsi.
   A propósito da estatuição do n.º 2 do art.º 56º, do CPC, na redacção anterior à reforma de 1995/96, vide E. Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, Edição da INCM, 1987, págs. 121 e seguintes.
   Dando-nos conta da evolução da problemática da legitimidade passiva na execução por dívidas providas de garantia real, desde o Código de 1876, e da perspectiva defendida na Comissão Revisora presidida pelo Prof. Antunes Varela, diversa da que viria a ser consagrada pela Reforma de 1995/96, cf. o estudo “A Reforma do Processo Civil”, in RLJ, 124º, págs. 166 e seguinte.
   Destacando e decidindo, em processo de embargos de terceiro, que a hipoteca prevalece sobre o direito de propriedade da embargante e que a execução deve prosseguir, sendo que o referido direito real de garantia não provoca a saída do direito de propriedade da esfera jurídica da embargante, cf. o cit. acórdão do STJ de 30.6.2011-processo 91-G/1990.P1.S1.