Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
602/13.5PBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
ENGENHO EXPLOSIVO OU INCENDIÁRIO IMPROVISADO
Data do Acordão: 07/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE CASTELO BRANCO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 2.º N.º 5, N), E 86.º N.º 1, AL. A), DO REGIME JURÍDICO DAS ARMAS E SUAS MUNIÇÕES (LEI N.º 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO)
Sumário: A detenção de uma “garrafa de plástico contendo gasolina e com um pano a arder no gargalo” não integra a prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º n.º 1, al. a), com referência ao artigo 2.º n.º 5, n), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, porquanto o referido combustível líquido não pode ser considerado “produto de fabrico artesanal não autorizado”.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum (Singular) nº 602/13.5PBCTB, da Comarca de Castelo Branco – Castelo Branco – Instância Local – Secção Criminal – J1, foram submetidos a julgamento os arguidos A... e B... (devidamente identificados nos autos), na sequência da acusação pública que lhes imputava a prática, em co-autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 2º nº 5 al. n) e 86.º, nº 1, alínea a) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (Regime Jurídico das Armas e Munições).

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença proferida em 11.02.2015, veio a acusação a ser julgada improcedente e, em consequência, ambos os arguidos absolvidos do imputado crime.

3. Inconformado com o, assim, decidido, recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. Por sentença proferida nos presentes autos e de agora se recorre, os arguidos A... e B... foram absolvidos da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2°, n.° 5, alínea n) e 86°, n.° 1, alínea a), ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (que aprovou o Regime Jurídico das Armas e Suas Munições).

2. O Tribunal a quo deu como provados todos os factos constantes da acusação pública, com excepção daquele em que se afirmava que o arguido A... atirou a garrafa contra a parede da discoteca.

3. Porém, considerou o Meritíssimo Juiz a quo que os factos supra referidos não integram a prática do crime de detenção de arma proibida punidos pelas disposições legais supra mencionadas.

4. Para tanto, entendeu o Meritíssimo Juiz a quo que a garrafa com gasolina no interior e um pavio a arder não configura qualquer engenho de fabrico artesanal não autorizado.

5. Quanto à definição de “engenho explosivo ou incendiário improvisado” prevê o artigo 2.°, n.º 5, alínea n) que serão “todos aqueles que utilizem substâncias ou produtos explosivos ou incendiários de fabrico artesanal não autorizado.

6. Não obstante ser referida na fundamentação da sentença, a tese defendida no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/03/2013, relativamente à utilização de garrafas de gás em certo tipo de assaltos a multibancos, entendemos nós que as situações descritas no aludido Acórdão e nos presentes autos não são comparáveis.

7. O engenho fabricado pelos arguidos nos autos tem como finalidade única e exclusiva a utilização como meio de agressão.

8. Acresce que o engenho foi construído de forma artesanal, ilicitamente, devendo ser visto como um todo e não apenas olhando às suas componentes individuais.

9. Por tal facto, a não integração dos seus componentes nos produtos previstos no anexo 1 do Decreto-Lei n.º 376/84, de 30 de Novembro não tem a virtualidade de afastar a ilicitude do engenho em si mesmo.

10. Ao não ter assim entendido, a sentença recorrida violou, por erro de interpretação, o disposto no artigo 2.°, n.º 5, alínea n) e 86°, alínea a), ambos da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.

11. Em consequência, deverá a sentença absolutória recorrida ser alterada e substituída por uma outra que condene os arguidos pela prática, como co-autores materiais, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p, pelo artigo 86°, alínea a), por referência ao artigo 2.°, n.° 5, alínea n), ambos da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.

12. Dos autos constam todos os elementos necessários à escolha e determinação da medida concreta da pena.

*

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, revogar-se a sentença absolutória recorrida, substituindo-se por outra que condene os arguidos pela prática, como coautores materiais, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p, pelo artigo 86°, alínea a), por referência ao artigo 2.°, n.° 5, alínea n), ambos da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, com o que Vossas Excelências farão a costumada

JUSTIÇA!”
                                                 

3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 143.

4. O arguido B... , a fls. 148 a 152, respondeu ao recurso concluindo do seguinte modo (transcrição):

“1. O arguido B... concorda integralmente com a Sentença recorrida.

II. O recurso interposto pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público, limita-se à impugnação da Sentença sobre a matéria de direito.

III. A questão que se coloca no recurso é saber se uma garrafa de plástico contendo no seu interior gasolina e, introduzido no gargalo da garrafa um pano a arder, se tal engenho se enquadra na noção (legal) de arma, constante no artigo 5° n°2 alínea n) da lei n° 5/2006, de 23-2.

IV. Para que a garrafa de plástico com gasolina, e com um pano se enquadrasse no tipo/definição legal, i.e., engenho explosivo ou incendiário improvisado, teria que utilizar substância ou produto explosivo ou incendiário de fabrico artesanal não autorizado.

V. Para a Lei, na interpretação efetuada pelo Tribunal recorrido, com a qual se concorda, o que caracteriza o engenho explosivo ou incendiário é a natureza do produto utilizado, ou seja, tem que ser um produto explosivo ou incendiário de fabrico artesanal não autorizado.

VI. E não, na interpretação do Recorrente que este engenho seja enquadrado como arma pelo engenho em si ou pela sua única aptidão de como o engenho pode de ser utilizado (uso) ou sequer a mera detenção.

VII. Os produtos utilizados (garrafa de plástico, gasolina, pano) não têm natureza artesanal não autorizada, independentemente de como os componentes desse engenho foram ligados entre si ou o seu uso.

VIII. O Recorrente, entende que o engenho em causa, é uma arma pelo critério do uso, pois o engenho em causa tem como única e exclusiva finalidade ser utilizada como meio de agressão, e que não tem qualquer outro tipo de aplicação.

 IX. A interpretação que o Recorrente tem da lei (critério de uso do engenho), não é suportado pela lei, que veio estabelecer uma uniformização conceptual e impor definições legais.

X. A lei opta claramente pelo critério da natureza do objeto, por uma definição/noção conceptual quanto à natureza dos objetos que se consideram armas.

XI. A Sentença recorrida é fundamentada, pelo menos invoca jurisprudência de Tribunais superiores, ao contrário do Recurso que não invoca sequer qualquer jurisprudência que fundamente a sua posição, quanto à interpretação da lei.

XII. Assim a interpretação sustentada pelo Recorrente de que o objeto dos autos se enquadra como produto explosivo ou incendiário improvisado, no sentido de que tem natureza artesanal e não autorizada, pelo critério do uso, vai muito além do previsto na lei... Viola o princípio da legalidade.

Termos em que a douta sentença recorrida deve ser mantida, fazendo-se assim a necessária justiça.”

5. Também o arguido A... , desta feita a fls. 162 a 165, respondeu ao recurso concluindo do seguinte modo (transcrição):

“1. O arguido A... concorda integralmente com o teor da douta sentença sob recurso.

2. Tal sentença decidiu segundo critérios da mais estrita legalidade, sem violação, assim, de qualquer normativo legal.

3. O douto recurso ora respondido limita-se a matéria de direito.

4. Colocando-se a questão de saber se uma garrafa de plástico contendo no interior gasolina e no gargalo, um pano a arder, se enquadra na noção legal de arma constante no art° 5° n°2 n) da Lei 5/2006, de 23.02.

5. Para que tal pudesse acontecer, teria ser utilizado substância ou produto explosivo ou incendiário, de fabrico artesanal não autorizado.

6. É entendimento do douto aresto “sub judice” com o qual se concorda, sendo este o que decorre da lei, caracterizar o engenho explosivo ou incendiário, a natureza do produto utilizado. Assim, explosivo ou incendiário de fabrico artesanal não autorizado.

7. Ao contrário, é entendimento do D.mo recorrente, com o qual se não concorda, que é  critério para classificação como arma, o próprio engenho em si mesmo, ou a sua aptidão  a ser usado como meio de agressão.

8. Todos os produtos utilizados no engenho dos autos, não têm natureza artesanal e são devidamente autorizados.

9. A interpretação do D.mo recorrente não tem suporte legal, porquanto a lei veio estabelecer uma uniformização conceptual e impor definições legais.

10. Porquanto a lei opta claramente por um critério de natureza do objecto, no que  concerne à sua classificação como arma.

11. Assim, a interpretação/critério do uso, pretendida pelo recorrente não tem suporte na lei, extravasa-a e é assim ilegal.

12. A douta sentença recorrida é bem fundamentada e fez um correcto uso do direito, decidindo nos limites da mais estrita legalidade.

Termos em que deverá o recurso ora respondido improceder por não provado e em conformidade, ser mantida, na íntegra, a douta decisão recorrida.

Para se fazer e por ser de inteira Justiça!”

6. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, sufragando a posição evidenciada pela magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente.

7. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.

8. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, vistas as conclusões do recurso e não se vislumbrando a ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, a única questão que importa decidir, apenas de direito, cinge-se apenas em saber se os factos dados como provados integram ou não o crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º nº 1 a), por referência ao artigo 2°, n° 5, alínea n), ambos da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro (no entender do recorrente sim, e no entender da decisão recorrida e dos arguidos não).
                                                  *

Vejamos, desde já, o que na sentença recorrida consta quanto aos factos dados como provados e quanto ao enquadramento jurídico de tais factos (transcrição):

“II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

“II.1. – Factos provados:

1. No dia 19 de Outubro de 2013, cerca das 3 horas e 5 minutos, os arguidos, após terem tido um desentendimento no interior da discoteca (...) , sita na (...) , nesta cidade, conduzindo o automóvel de marca Mercedes, sendo o arguido B... o condutor do mesmo, aproximaram-se da referida discoteca.

2. Então, o arguido A... , que seguia no automóvel no lugar da frente do lado direito, sai do mesmo com uma garrafa de plástico na mão, a qual continha no seu interior gasolina e, introduzido no gargalo da garrafa, um pano que se encontrava a arder.

3. Quando chegou a cerca de 20 metros de distância da discoteca arremessou a referida garrafa em direcção à porta de entrada imobilizando-se à frente daquela porta sem a alcançar, dirigindo-se de seguida a acorrer para o automóvel donde tinha vindo, saindo ambos os arguidos do local.

4. Os arguidos actuaram de forma livre, deliberada e consciente, de comum acordo e em conjugação de esforços, detendo e usando o engenho composto pela garrafa com gasolina no seu interior e um pano introduzido no gargalo, o qual pegaram fogo e atiraram contra a parede da discoteca, conhecendo as suas características incendiárias e que não o poderiam possuir e usar, e actuaram querendo isso mesmo.

5. Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida pela lei penal.

Mais se apurou que:

6. O arguido A... é motorista de profissão e estudou até à 4.ª classe, auferindo €668,00 por mês.

7. Habita com a companheira que se encontra desempregada, tem quatro filhos menores estando a seu cargo os com idade de 9 e 2 anos, pagando €200,00 de pensão de alimentos.

8. Habita em casa própria.

9. Não tem antecedentes criminais.

10. O arguido B... é mecânico de automóveis, estudou até ao 6.º ano e aufere cerca de €650,00 por mês.

11. Habita com uma companheira que não trabalha e têm um filho a cargo com 13 anos.

12. Habita em casa arrendada, pagando €300,00.

13. Por sentença proferida em 21/03/2012, transitada em julgado em 30/04/2012, no âmbito do processo n.º 205/12.1TACTB do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, foi o arguido condenado na pena de 130 dias de multa à taxa diária de €5,00 pela prática, em 8/03/2012 de um crime de detenção de arma proibida já declarada extinta.

14. Por sentença proferida em 4/10/2012, transitada em julgado em 19/04/2012, no âmbito do processo n.º 884/09.7PBCTB do 1.º Juízo deste Tribunal foi o arguido condenado na pena de 230 dias de multa à taxa diária de €6,00 pela prática, em 06/12/2009 de um crime de furto qualificado e outro de abate clandestino para consumo público.

(…)”

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.1. - DO CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA.

Estabelece o nº 1 do art. 86.º do Regime Jurídico das Armas e Munições (doravante designado por R.J.A.M.), e ao que aqui interessa, que: “Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo:

(…) a) (…) Equipamentos, meios militares e material de guerra, arma biológica, arma química, arma radioactiva ou suscetível de explosão nuclear, arma de fogo automática, arma longa semiautomática com a configuração de arma automática para uso militar ou das forças e serviços de segurança, explosivo civil, engenho explosivo civil, engenho explosivo ou incendiário improvisado, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos” sublinhado nosso.

Será, assim, punido, com pena de prisão até 8 anos quem, fabricar, detiver, transportar, usar ou trouxer consigo engenho explosivo ou incendiário improvisado entendido como “todos aqueles que utilizem substâncias ou produtos explosivos ou incendiários de fabrico artesanal não autorizado” (art. 2.º n.º 5 al. n).

Analisando o tipo em causa, facilmente concluímos que nos encontramos perante um crime de perigo comum abstracto, uma vez que as condutas descritas por este tipo legal não lesam de forma directa e imediata qualquer bem jurídico, apenas implicam a probabilidade de um dano contra um objecto indeterminado, dano esse que a verificar-se será não raras vezes gravíssimo. Trata-se de uma infracção de mera actividade, bastando-se para o seu preenchimento a verificação de uma das situações supra referidas.

O perigo não constitui ele próprio elemento do tipo mas “motivo da proibição”.

Como explica Paula Ribeiro de Faria in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 891 e ss., relativamente ao revogado art. 275º do referido código, cujos considerandos aqui merecem total acolhimento, com este tipo legal o legislador pretendeu evitar toda a actividade idónea a perturbar a convivência social pacífica e garantir através da punição destes comportamentos potencialmente perigosos, a defesa da ordem e segurança públicas contra o cometimento de crimes, em particular contra a vida e a integridade física.

O bem jurídico protegido é por conseguinte a segurança da comunidade face aos riscos (em última instância para bens jurídicos individuais), da livre circulação e detenção de armas proibidas, engenhos e matérias explosivas.

O legislador, ao encontro do que já sucedia com o revogado art. 275º do Código Penal, formulou esta norma como uma “norma penal em branco”, a preencher mediante o apelo a normas e disposições de carácter administrativo. Será preciso, por conseguinte, ter presente as disposições legais vigentes nesta matéria, sendo de considerar crime toda a conduta integrante de uma das formas de actuação descritas no tipo por referência às restantes normas daquela lei.

É necessário o dolo do agente em relação a todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, sendo suficiente o dolo eventual. O dolo é genérico, consistindo na consciência e vontade de deter (transportar, usar, etc.) a arma ilegalmente.

Tal como salientado pela supra referida Autora in op. cit., “mais discutível é a questão de saber se é indiferente para o preenchimento deste tipo legal a eficácia ou idoneidade da arma. Uma vez que estamos perante um crime de perigo abstracto, poder-se-ia dizer que a ausência de perigosidade afastaria o tipo, já que o que o legislador quis punir foi um perigo para bens jurídicos de certo modo indeterminados, mas que se funda numa qualidade específica da arma ou explosivo. Se essa qualidade, em concreto a sua perigosidade, não se verifica, porque o explosivo não podia detonar, ou porque o gás não se encontrava em condições de causar asfixia, não haveria lugar à punição. Até porque sempre se poderia dizer nesta hipótese, que nem sequer estaríamos perante um explosivo ou um gás asfixiante.

Pode, assim, questionar-se se (tal como na tentativa, e uma vez que, como vimos, não se encontrou ausente das preocupações do legislador penal, ao elaborar esta disposição, a protecção da tranquilidade pública dos cidadãos) apenas deverá ser de afastar a aplicação deste tipo legal quando seja manifesta a inidoneidade dos meios empregues, e isto porque se a arma ou a substância em causa têm aparência de eficazes, poderá a conduta de quem os emprega colocar em causa interesses determinantes da punição (será o caso do indivíduo que arma engenhos nucleares nas traseiras do seu quintal, mesmo que sem possibilidade de os fazer funcionar).”

Aqui chegados importa analisar com maior pormenor o tipo concreto de engenho que os arguidos tinham na posse.

Tendo em conta os factos provados tratava-se de um garrafa de plástico com gasolina e com um pavio a arder.

Conforme já referido, integra a noção de engenho explosivo ou incendiário improvisado todos aqueles que utilizem substâncias ou produtos explosivos ou incendiários de fabrico artesanal não autorizado” (art. 2.º n.º 5 al. n).

Será que uma garrafa de gasolina com um pavio integra a noção de produto de fabrico artesanal não autorizado?

A resposta é negativa. Com efeito há que ter presente o Decreto-Lei nº376/84 de 30 de Novembro que regulamenta sobre o Licenciamento dos estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos que no seu anexo I define «produtos explosivos», como: “a) substâncias explosivas: pólvoras (física e químicas), propergóis (sólidos e líquidos) e explosivos (simples e compostos). b) Objectos carregados de substâncias explosivas: munições, espoletas, detonadores, cápsulas, escorvas, estopins, mechas (rastilhos) cordões detonantes, cartuchos e outros de natureza ou uso equiparados. c) Composições pirotécnicas: luminosas, incendiárias, fumígenas sonoras e tóxicas. d) Objectos carregados de composições pirotécnicas: artifícios pirotécnicos (inflamadores, brinquedos pirotécnicos, fogos de artifício e artigos de sinalização) e munições químicas (incendiárias, fumígenas e tóxicas).” E nos termos da definição o que caracteriza o engenho é a natureza dos produtos utilizados – de fabrico artesanal não autorizado – e não o engenho em si, ou o modo como eles são utilizados. Neste quadro uma garrafa com gasolina e com um pavio não configura qualquer engenho de fabrico artesanal não autorizado tal como os previstos supra. Sobre esta matéria tem-se debruçado a jurisprudência, nomeadamente sobre o uso de garrafas de gás em certo tipo de assaltos, conforme se retira do Acórdão do T. R. do Porto datado de 06/03/2013, disponível em www.dgsi.pt. Pode-se então perguntar se a conduta dos arguidos ou de qualquer pessoa que as replicasse é legítima. A resposta encontra-se na virtualidade de se encontrar prevista a factualidade passível de fazer verificar o crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272.º do Código Penal onde se prevê que 1 - Quem: a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício, construção ou meio de transporte; b) Provocar explosão por qualquer forma, nomeadamente mediante utilização de explosivos;…e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.”

No caso dos autos nada se provando quanto à intencionalidade dos arguidos (para além do uso da garrafa com gasolina), perigo eventualmente causado, naturalmente que não pode o Tribunal pronunciar-se sobre essa matéria. Não integrando a conduta dos arguidos a posse de qualquer engenho de fabrico artesanal não autorizado, inevitavelmente se determina a sua absolvição da prática do crime de detenção de arma proibida.”


Passemos então à análise da questão em apreciação, a qual consiste em saber se os factos dados como provados integram ou não o crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º nº 1 a), por referência ao artigo 2°, n° 5, alínea n), ambos da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro (no entender do recorrente sim, e no entender da decisão recorrida e dos arguidos não).
Antecipando desde já a nossa posição, consideramos que não, tal como, quanto a nós, bem, ficou expresso na decisão recorrida.

Por isso, oferecendo-se como correcta a valoração jurídica dos factos feita pelo tribunal a quo, estando em causa decisão absolutória proferida em primeira instância que se confirma sem qualquer declaração de voto e oferecendo-se como manifesto que o recurso não tem uma base de sustentação que permita a sua procedência, basicamente nos limitaríamos a negar provimento ao recurso com os fundamentos constantes da decisão impugnada, nos termos previsto no art. 425º, nº 5, do Código de Processo Penal.

Não obstante o que acabamos de dizer, ainda poderemos acrescentar algo mais, perante a alegação conclusiva do recorrente no sentido de que o objecto em causa tem como finalidade única e exclusiva a utilização como meio de agressão. É que ao afirmar isto, e sem pôr em causa a factualidade dada como provada, até parece que o recorrente se está a esquecer que pretende a manutenção da incriminação da conduta dos arguidos pelo artigo 86º nº 1 a) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, com referência ao artigo 2º nº 5 n) da mesma Lei!.

Vejamos pois.

Dando aqui por reproduzida a materialidade fáctica apurada que já supra se deixou transcrita, vejamos o que estabelece o artigo 86º nº 1 a) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (já com as alterações entretanto introduzidas pelas Leis n.º 17/2009, de 06/05, n.º 12/2011, de 27/04 e n.º 50/2013, de 24/07, na redacção vigente quer à data dos factos quer actualmente) – doravante por nós designada também por Regime Jurídico das Armas e Munições ou pela sigla R.J.A.M.

Artigo 86.º

Detenção de arma proibida e crime cometido com arma

1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:

a) Equipamentos, meios militares e material de guerra, arma biológica, arma química, arma radioativa ou suscetível de explosão nuclear, arma de fogo automática, arma longa semiautomática com a configuração de arma automática para uso militar ou das forças e serviços de segurança, explosivo civil, engenho explosivo civil, engenho explosivo ou incendiário improvisado, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;

(…)”

Tal tipo legal de crime está construído como crime de perigo abstracto, em que a lei previne o risco de uma lesão que coincide com a própria actividade proibida.

Os crimes de perigo abstracto são crimes de mera actividade, em que esta traduz uma perigosidade geral de acção típica para determinados bens jurídicos; o perigo não pertence ao tipo, como no perigo concreto, mas o comportamento correspondente é tipicamente próprio da produção de um perigo concreto (H. H. Jescheck, cit., p. 282-283).

Nos crimes de perigo, a realização do tipo basta-se com a mera colocação em perigo de bens jurídicos e pode consistir simplesmente no motivo da proibição. Os comportamentos são tipificados em vista da perigosidade típica para um bem jurídico, sem que se mostre comprovada no caso concreto; há como que uma presunção inelidível de perigo, e por isso dispensa-se a criação de perigo efectivo (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., p. 308-309).

Nos crimes de perigo abstracto o perigo constitui o motivo da proibição, em função da perigosidade típica para um bem jurídico ou para uma série de bens jurídicos, independentemente de ser criado um perigo efectivo para o bem jurídico.

No crime de detenção de arma proibida, a justificação da tutela penal e a carência de pena estão, assim, ligadas à perigosidade típica para bens jurídico-penalmente tutelados que podem ser afectados pela simples detenção – os valores da ordem, segurança e tranquilidade pública. A justificação e a dimensão valorativa dos bens jurídicos protegidos identificam-se, mais remota ou difusamente, com a protecção de uma pluralidade de bens jurídicos, que a simples posse, ilegítima ou proibida, de um instrumento é susceptível de afectar, fazendo reverter para um campo de risco de afectação (cf., v. g., acórdãos do STJ, de 25/10/2006, proc. 3042/06 e de 14/12/2006, proc. 4344/06).

O bem jurídico, ainda numa projecção difusa de uma pluralidade de bens jurídicos e numa dimensão mais ampla, autonomiza-se de cada uma dos concretos bens jurídicos que possam vir a ser individualmente afectados na respectiva titularidade concreta, sendo, por si, autonomamente ex ante, considerado como relevante para justificar a definição de um crime de perigo.

Deste modo, a lesão do bem jurídico de perigo, assim compreendido, coincide logo no momento da detenção da arma proibida, independente da relação, específica e autónoma, de cada um dos valores individualizados que possam vir a ser concretamente afectados em crime posterior de resultado.

Assente, pois, tal como também referido na sentença, que o crime de detenção de arma proibida se trata de um crime de perigo abstracto, face à materialidade fáctica apurada, importa agora indagar se uma garrafa de plástico com gasolina e com um pano no gargalo a arder é susceptível de integrar o conceito de engenho explosivo ou incendiário improvisado, conforme entende e pretende o Ministério Público recorrente.

A definição legal do que se deve entender por “engenho explosivo ou incendiário improvisado” consta do artigo 2º nº 5 n) do Regime Jurídico das Armas e Munições como sendo “aqueles que utilizem substâncias ou produtos explosivos ou incendiários de fabrico artesanal não autorizado;”

Independentemente de saber se uma garrafa de plástico contendo gasolina e com um pano no gargalo a arder se tratará de um “engenho” (repare-se que a expressão engenho normalmente está associada a um objecto criado/decorrente da capacidade do homem, como “mecanismo”, “aparelho”, “máquina”), tal como resulta do próprio teor da definição legal atrás mencionada o critério fundamental para que se possa considerar engenho explosivo ou incendiário improvisado assenta em que no mesmo sejam utilizados substâncias ou produtos explosivos ou incendiários de fabrico artesanal não autorizado.

Ora, salvo o muito devido respeito por opinião contrária, a gasolina nem se trata de um produto artesanal nem de um produto não autorizado.

É por demais consabido que a gasolina é um líquido combustível e inflamável, produto derivado do pretróleo bruto e que se obtém através do refinamento deste. Esse refinamento efectuado em grandes refinarias assume elevados padrões de industrialização (quer em termos de técnicas de produção quer em termos de grandes quantidades dessa produção), sendo tal produto de venda livre no nosso país e até à escala mundial.

Por tudo o que vimos resumidamente/sinteticamente referindo, nem o contrário resulta da materialidade dada como provada, a gasolina jamais se pode considerar como produto de fabrico artesanal não autorizado (tal como também não o são quer uma garrafa de plástico quer um pano).

Ao contrário do sustentado pelo recorrente, consideramos que o releva para efeitos da definição conceptual a que se reporta o artigo 2º nº 5 al. n) do R.J.A.M. é o critério da natureza do produto utilizado, e não o critério da utilização dada ao produto. É essa a interpretação literal que se retira de tal normativo, sendo que qualquer interpretação extensiva com desvio direccionado para o pretendido (pelo recorrente) critério do uso dado ao produto seria violadora do princípio da legalidade plasmado no artigo 29º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 1º do Código Penal.

E no âmbito do, também por nós, considerado critério da natureza do produto utilizado, embora reportada a uma situação em que é usada uma garrafa de gás, uma bateria, uma extensão de dois fios eléctricos (usados para ignição) e um tubo de plástico (usado para a condução do gás da garrafa) para o rebentamento de caixas multibanco, através da explosão, sufragamos o que é dito no Ac. da Relação do Porto de 06.03.2013 (Proc. 1697/11.1JAPRT.P1, relatora Lígia Figueiredo, acessível in www.dgsi.pt/jtrp) quando a certa altura refere:

Na verdade, o que resulta da alínea n) do nº5 do artº 2º da Lei 5/2006, é sem margem para dúvidas que engenho explosivo ou incendiário improvisado são todos aqueles que utilizem substâncias ou produtos explosivos incendiários de fabrico artesanal não autorizado. Isto é, o que caracteriza o engenho é a natureza dos produtos utilizado – de fabrico artesanal não autorizado – e não o engenho em si, ou o modo como eles são utilizados.

E no caso dos autos como bem entendeu a decisão recorrida, nenhum dos produtos ou substância utilizados, pode ser considerado substância ou produto explosivo de fabrico artesanal não autorizado, independentemente do modo como foram ligados entre si ou da utilização que lhe veio a ser dada.

Outra interpretação que implique a alteração conceito de «produto explosivo ou incendiário improvisado», constante definição da alínea n) do nº5 do artº 2º, designadamente no sentido de que a natureza artesanal e não autorizada se refere à ligação dos produtos, isto é ao engenho, violaria em nosso entender o princípio da legalidade em matéria penal consagrado no artº 29º nº1 da CRC e artº 1º do CP e como tal não pode ser sufragada. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, deste princípio “deriva a proibição da analogia para qualificar factos como crimes (nullum crimen sine lege stricta) e a proibição da retroactividade de leis penais prejudiciais ao agente dos factos, pois que então o fundamento da medida da pena não se encontraria numa lei prévia (…)”

E já antes, a propósito do afastamento do critério do uso, escreveu-se no Ac da Relação de Évora de 13.11.2012 (Proc nº 42/09PFSTB.S.1.E1, relator Sénio Alves, acessível in www.dgsi.pt/jtre): ”Salvo o devido respeito por diversa opinião, não é o uso dado a determinado engenho que determina a sua classificação numa das 9 classes previstas no ADR.

Tão pouco é o uso que se lhe dá que determina a sua classificação como arma proibida.

Como, aliás, se refere no acórdão recorrido, o crime de detenção de arma proibida consuma-se a partir do momento em que o arguido detém (o) engenho em causa, fora das condições em que o seu uso ou detenção é autorizado, não relevando o ulterior uso que fez da mesma”.

Ou seja, na sequência do entendimento traçado por estes dois acórdãos, e regressando ao nosso caso, tendo em conta a materialidade fáctica apurada, a detenção por parte dos arguidos daquela garrafa de plástico (cuja concreta capacidade/volumetria até se desconhece, sendo que tal desconhecimento é irrelevante) contendo gasolina e com um pano a arder no gargalo não integra a prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º nº 1 a), com referência ao artigo 2º nº 5 n), ambos do R.J.A.M.

Seria até algo risível que fosse punida dentro da mesma moldura abstracta (de 2 a 8 anos de prisão) quer a simples detenção de uma mera garrafa de plástico contendo, mesmo que fosse, 1,5 litros de gasolina (repare-se que até existem garrafas com capacidade apenas para 2 decilitros) e com um pano no gargalo a arder, quer a detenção de uma arma química, ou de uma arma biológica ou uma arma radioactiva ou susceptível de explosão nuclear! A tão pretendida (pelo recorrente) equiparação, certamente, também não quis ir o legislador!

Coisa diversa, mas isso também nem sequer constava da factualidade inserta na acusação (nem consta da factualidade apurada que, como vimos, também não foi criticada pelo recorrente) era saber qual a intenção dos arguidos perante a objectiva materialidade fáctica consistente na detenção de garrafa de plástico contendo gasolina e com um pano a arder no gargalo e no arremesso da mesma na direcção da porta da discoteca.

A detenção e arremesso de tal objecto (que como vimos não se integra na legal definição de “engenho explosivo ou incendiário improvisado”) seriam um meio para atingir que finalidade? Seria com a intenção de causar incêndio, de causar dano, ameaçar alguém, ou assustar, gozar ou brincar com alguém ou simplesmente de mera diversão em ver gasolina a arder junto à porta da discoteca?

Enfim uma multiplicidade de questões cuja resposta nem se retira da materialidade dada como provada nem, muito menos, sequer, era objecto do presente recurso.

Em suma, para além do que já tinha sido exposto na sentença recorrida, face à apurada matéria de facto da mesma não resulta verificada, desde logo a nível objectivo (sendo que o elemento subjectivo do crime torna-se anódino quando falte, ou seja deficiente, o substrato fáctico material/objectivo integrador do tipo legal de crime), a imputada prática do crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º nº 1 a) do R.J.A.M., com referência ao artigo 2º nº 5 al. n) do mesmo diploma legal, conforme tinha sido preconizado pelo recorrente Ministério Público no presente recurso.
Não merece, pois, censura a decisão recorrida.
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III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o recorrente (artigo 522º do Código de Processo Penal).

                                                  *

(Elaborado em computador e revisto pelo relator, o primeiro signatário - art. 94º nº 2 do Código de Processo Penal)

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Coimbra, 8 de julho de 2015



(Luís Coimbra - relator)


(Alcina da Costa Ribeiro - adjunta)