Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
326/09.8TBGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
PARTILHA
DIVISÃO DE COISA COMUM
REGIME DE SEPARAÇÃO ABSOLUTA DE BENS
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Data do Acordão: 11/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 410º, Nº 2, 411º E 830º E 1403º DO C. CIVIL.
Sumário: I – O tribunal é livre na qualificação jurídica de um contrato como pertencente a esta ou àquela espécie contratual.

II - A alteração da qualificação jurídica que as partes atribuíram a um contrato não se resolve na sua conversão, dado que não há qualquer alteração dos efeitos do negócio, que continuam a assentar na vontade real e não na vontade conjectural dos contraentes.

III - É válido o contrato promessa, concluído na constância do casamento, celebrado sob o regime de separação de bens, pelos quais os cônjuges se vinculam a proceder à divisão, depois da extinção, por divórcio, da relação matrimonial, dos bens de que são comproprietários.

IV - Do contrato promessa emergem simples prestações de facto jurídico positivo: a obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido.

V - A execução específica do contrato promessa é compatível com o não cumprimento definitivo das obrigações de facto jurídico positivo que dele emergem, se o contrato prometido ainda for possível e a sua celebração continuar a interessar ao promitente fiel.

VI – Há compropriedade, ou propriedade comum, quando duas ou mais pessoas detêm simultaneamente o direito real de propriedade sobre a mesma coisa (artº 1403º do Código Civil).

A situação jurídica de cada um dos comproprietários ou consortes é qualitativamente igual, sendo indiferente que o seja ou não sob o ponto de vista quantitativo.

VII – Tratando-se de bem sobre que incida direito real de compropriedade, a divisão da coisa objecto mediato desse direito pode ser feita por duas formas: amigavelmente; ou nos termos da lei de processo (artº 1413º do Código Civil).

VIII - O processo disposto na lei para a divisão é o processo especial de divisão de coisa comum (artº 1052º do CPC).

IX – O regime de separação de bens – que pode vigorar como regime imperativo ou como regime convencional - caracteriza-se com facilidade: há uma separação absoluta e completa entre os bens dos cônjuges, conservando, cada um deles, o domínio e fruição de todos os seus bens presentes e futuros, de que pode dispor livremente (artºs 1720º, nº 1 e 1735º do Código Civil).

IX - A reponderação do julgamento da matéria de facto da 1ª instância só é admissível se a impugnação desse julgamento tiver por objecto factos com interesse para a decisão da causa.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

J… propôs contra B…, no Tribunal Judicial da Comarca de Gouveia, acção declarativa constitutivo-condenatória, com processo comum, ordinário pelo valor, pedindo que se profira sentença que suprindo a declaração negocial faltosa da R. no contrato promessa de partilha dos seus bens comuns, declare os prédios identificados adjudicados ao A., reconhecendo-se este como seu exclusivo dono, ou, em alternativa, e para o caso de a partilha não ser feita nos termos acordados no contrato promessa, a condenação da R. a pagar ao A., com base nas regras do enriquecimento sem causa, a quantia de 37.300,00, acrescida de juros à taxa de 4% desde 03/01/2007 até integral pagamento.

                Fundamentou estas pretensões no facto de na pendência do seu casamento com a ré, contraído no dia 11 de Setembro de 1982, no regime de separação de bens, e dissolvido, por divórcio, no dia 27 de Março de 2009, terem celebrado entre si, no dia 27 de Dezembro de 2006, um contrato promessa de partilha dos seus bens comuns – dois prédios rústicos e dois prédios urbanos a que atribuíram o valor de 100.000 dólares americanos – no qual acordaram que todos os imóveis lhe seriam adjudicados, ficando de pagar à ré o valor da sua meação de 50.000 dólares, através de depósito a efectuar na data da assinatura do contrato, e de aquela, apesar de ter recebido as tornas acordadas e de ter sido fixado um prazo certo de seis meses após a sentença de divórcio para a celebração da escritura e ter sido interpelada para a celebrar, se recusar a celebrá-la, alegando que a sua quota no valor dos bens ainda não se encontrar totalmente preenchida.

A ré defendeu-se afirmando que a escritura nunca esteve marcada, tendo-lhe o autor tão-somente comunicado a intenção de a marcar para um dia de Junho de 2009, que a obrigação não tinha prazo certo, que nunca incorreu em mora nem houve incumprimento definitivo, e que o contrato promessa é nulo por ter sido celebrado na pendência do casamento e violar a regra da metade, dado que o valor venal dos bens é superior ao que consta do contrato, que o dinheiro que recebeu era comum aos ex-cônjuges e que existem mais bens comuns.

Oferecido articulado de réplica, seleccionada a matéria de facto e decididas as reclamações deduzidas contra a que foi incluída na base instrutória, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento no terminus da qual se decidiu, sem reparo, a matéria de facto.

A sentença final da causa, com fundamento no facto de o casamento ter sido contraído sob o regime imperativo da separação de bens e de o contrato promessa afrontar esse regime de bens, declarou a nulidade do contrato promessa outorgado pelo autor e pela ré, no dia 27 de Dezembro de 2006, determinando, em consequência, a obrigação de a ré restituir ao autor a quantia de € 37.300,00, acrescida de juros, à taxa legal, a contar da data da citação, até efectivo e integral pagamento.

É esta sentença que o autor impugna no recurso ordinário de apelação, no qual pede que se profira acórdão que julgue totalmente procedente o pedido de execução específica formulado na petição inicial.

O recorrente extraiu da sua alegação estas conclusões:

...

Na resposta a recorrida concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2. Factos provados.

2.1. Para a base instrutória foi seleccionado, entre outros, este enunciado de facto:

                                                                              8º

Em 7 de Maio de 2009, o autor enviou à ré a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 60 a 61, cujo teor se dá por reproduzido?

2.2. O tribunal da audiência decidiu o ponto de facto referido em 2.1., nestes exactos termos: Não provado.

                2.3. O decisor de facto, adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.2., esta motivação: Apenas o autor afirmou ter enviado a carta, que não constitui meio de prova por não configurar uma confissão nos termos legais.

                2.4. O Tribunal de que provém o recurso julgou provada, no seu conjunto, a factualidade seguinte:

2.4.1. Autor e ré contraíram casamento um com o outro em 11 de Setembro de 1982, no regime imperativo da separação de bens [alínea A)].

2.4.2. Por sentença de 27 de Março de 2009, transitada em julgado em 14 de Maio de 2009, proferida no Processo nº … deste Tribunal, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento entre autor e ré [alínea B)].

2.4.3. No processo de divórcio, o autor, o seu ilustre mandatário e a ilustre mandatária da ré, declararam que o património comum do casal é constituído pelos bens correspondentes às verbas referidas em 4 e que mantinham divergência quanto à existência de outros bens e valores [alínea C)].

2.4.4. Autor e ré subscreveram o escrito junto a fls. 17 e 18, datado e celebrado em 27 de Dezembro de 2006, intitulado “promessa de partilha de bens do casal”, do qual consta, além do mais, que os promitentes, casados sob o regime imperativo da separação de bens, vão propor na Conservatória do Registo Civil de Gouveia, acção de divórcio por mútuo consentimento, e que do acervo de bens comuns a partilhar faziam parte, nessa data, os seguintes bens imóveis:

i. Verba nº 1: prédio rústico, composto de terra de cultura, sito ao …, na freguesia de …, concelho de Gouveia, a confrontar de …, com o artigo matricial …;

ii. Verba nº 2: prédio urbano, composto de casa térrea, em ruínas, sem telhado, sito ao …, na freguesia de …, concelho de Gouveia, a confrontar de …, com o artigo matricial …;

iii. Verba nº 3: prédio rústico, composto de terra de cultura, sito à …, na freguesia de …, concelho de Gouveia, a confrontar de …, com o artigo matricial …;

iv. Verba nº 4: prédio urbano, composto de casa de habitação de rés-do-chão e 1º andar, com a superfície coberta de 181 m2, sito à …, na freguesia de …, concelho de Gouveia, a confrontar do …, com o artigo matricial … [alínea D)].

2.4.5. Consta ainda desse escrito que os promitentes atribuíram ao conjunto das verbas 1 a 4 o valor global de cem mil dólares americanos, cabendo a cada um cinquenta mil dólares americanos e que acordaram em partilhar os bens adjudicando ao autor os bens imóveis relacionados sob as verbas um, dois, três e quatro e a ré receberia tornas do autor no valor de cinquenta mil dólares americanos que o mesmo depositaria na conta daquela, no dia 27 de Dezembro de 2006 [alínea E)].

2.4.6. Consta ainda daquele escrito que por ambos os promitentes foi dito que a promessa de partilha dos bens comuns do casal satisfaz e corresponde inteiramente à sua real vontade, “ficando a mesma subordinada a todos os efeitos legais, uma vez que o casamento se dissolva por sentença transitada em julgado” e que se obrigam a celebrar a escritura de partilha em Cartório Notarial, no prazo de seis meses a contar da sentença de divórcio [alínea F)].

2.4.7. Em 27 de Dezembro de 2006, o autor deu ordens de resgate de títulos de certificado de aforro, cujo numerário ficou disponível em 3 de Janeiro de 2007, data em que os CTT emitiram a favor da ré o cheque número …, no montante de € 37.300,00, que a ré recebeu, que correspondia ao câmbio para euros da importância de cinquenta mil dólares americanos [alínea G)].

2.4.8. Nessa mesma data, o autor recebeu, a título de resgate de títulos de certificados de aforro, a importância de € 45.418,74 [alínea H)].

2.4.9. As verbas nos 1 e 2 encontram-se descritas na Conservatória do Registo Predial de Gouveia como um prédio misto, sob o nº …, da freguesia de …, com a superfície coberta de 50 m2 e descoberta de 32.184 m2 e, pela apresentação 3 de 27/07/1995, foi inscrita a aquisição a favor de J…, casado com B… no regime da comunhão de adquiridos, por compra a N… [alínea I)].         

2.4.10. No dia 3 de Maio de 1995, no Cartório Notarial de Gouveia, foi celebrada escritura de compra e venda, na qual N… declarou perante notário, que consignou a escrito as suas declarações, que, pelo preço de cento e vinte mil escudos, vendia ao réu, identificado como casado com B…, sob o regime da comunhão de adquiridos, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Gouveia sob o número cento e dezassete, inscrito na matriz predial respectiva sob os artigos números … (rústico) e … (urbano), por sua vez, o réu declarou que aceitava o contrato na forma exarada, conforme documento junto a fls. 74 a 76 [alínea J)].

2.4.11. A verba nº 3 encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Gouveia, sob o nº …, da freguesia de …, e, pela inscrição G-2, foi inscrita a aquisição a favor de J… e mulher B…, na comunhão de adquiridos [alínea K)].

2.4.12. A verba nº 4 foi construída no artigo rústico mencionado na verba nº 3 [alínea L)].

2.4.13. No dia 28 de Fevereiro de 1986, no Cartório Notarial de Gouveia, foi celebrada escritura de compra e venda, na qual A…, por si e em representação de …, na qualidade de procurador de … declararam perante notário, que consignou a escrito as suas declarações, que pelo preço de dois milhões e cem mil escudos, vendiam a J… e mulher B…, casados sob o regime da comunhão de adquiridos, o prédio omisso na Conservatória do Registo Predial de Gouveia e inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o artigo número …, sendo que o outorgante …, na qualidade de procurador dos réus declarou aceitar para os mesmos o contrato na forma exarada, conforme documento junto a fls. 77 a 82 [alínea M)].

2.4.14. Autor e réu não outorgaram qualquer escritura que possibilitasse a transferência do direito de propriedade das verbas referidas em 4 exclusivamente para o autor [alínea N)].

2.4.15. Depois de ter sido decretado o divórcio e em data anterior ao dia 27 de Setembro de 2009, a ré recusou-se a celebrar a escritura alegando que a sua quota no valor global dos bens ainda não se encontra totalmente preenchida [alínea O)].

2.4.16. A ré recebeu a importância referida em 7 como pagamento das “tornas” mencionadas em 5 [resposta a 1º].

2.4.17. A 18 de Setembro de 2006, faleceu o filho da ré, de nome …, tendo a ré regressado a Portugal em data não apurada anterior a 27 de Dezembro de 2006 [resposta a 6º].

2.4.18. O autor só transmitiu à ré, quando esta se encontrava nos Estados Unidos da América, a intenção de marcar a escritura para um dia de Junho de 2009 [resposta a 7º].

2.4.19. Desde a data da assinatura do documento junto a fls. 17 a 18 até à propositura da acção de divórcio, autor e réu não desistiram de pôr termo à comunhão conjugal e de se divorciarem [resposta a 9º].

2.4.20. E deixaram de viver juntos a partir de Janeiro de 2007 [resposta a 10º].

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nestas condições, tendo em conta os parâmetros de cognição definidos pelo conteúdo da sentença impugnada e pelas alegações das partes, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se:

a) Ao declarar não provado do ponto de facto inserto na base instrutória sob o nº 8 o tribunal da audiência incorreu num error in iudicando, por erro na aferição ou valoração das provas e, correspondentemente, se esse julgamento deve ser reponderado e, eventualmente, modificado;

b) O contrato promessa de partilha concluído entre o recorrente e a recorrida se encontra ferido com o vício substancial da nulidade;

c) Deve ser proferido acórdão substitutivo da declaração negocial da recorrida, integrante do contrato definitivo prometido.

A resolução destes problemas vincula, naturalmente, ao exame, ainda que leve, dos poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1ª instância, da validade do contrato promessa concluído entre o recorrente e a recorrida, e dos pressupostos de que a lei faz depender a execução específica da obrigação de facto jurídico positivo que dele emerge.

Entre a matéria de direito e a matéria de facto existe uma interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência para a obtenção da decisão de um caso concreto.

Dado que a delimitação da matéria de facto é feita em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados e escolhidos segundo a sua relevância jurídica, i.e., segundo a sua importância para cada um das soluções plausíveis da questão de direito - justifica-se, metodologicamente, que a exposição subsequente se abra com a análise da validade do contrato promessa e dos pressupostos da emissão da sentença ex artº 830 do Código Civil.

                De resto, tal metodologia é tanto mais justificada quanto é certo que, dado o carácter nitidamente prejudicial da questão da validade do contrato promessa relativamente quer à da sua execução específica, quer à da impugnação da decisão da questão de facto: uma vez que a validade do contrato promessa constitui um pressuposto substancial implícito da execução específica, a conclusão pela invalidade do contrato deixa logicamente prejudicada a apreciação daquelas duas últimas questões (artº 660 nº 2 do CPC).

                3.2. Validade do contrato promessa.

                Contrato promessa é o contrato pelo qual as partes, ou uma delas, se obriga a celebrar novo contrato – o contrato definitivo (artº 410 nº 1 do Código Civil)[1].

Distinção relevante é a que separa o contrato promessa monovinculante e o contrato promessa bivinculante: no primeiro apenas uma das partes se encontra adstrita à obrigação de celebrar o contrato definitivo; no segundo essa obrigação vincula ambos os contraentes (artº 411 do Código Civil).

                Do contrato promessa emergem simples prestações de facto jurídico positivo: a obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido.

                Na espécie sujeita é irrecusável que o recorrente e a recorrida concluíram entre si, ainda no estado de casados, um contrato promessa bivinculante, dado que se vincularam ambos a concluir, no futuro, um outro contrato – o contrato definitivo – através do qual seriam transmitidos, por um valor convencionado, para o primeiro, a totalidade dos bens de ambos, inteirando-se a segunda em dinheiro.

                No escrito que documenta as declarações de vontade integrantes do apontado contrato promessa, pode ler-se, logo na epígrafe, promessa de partilha de bens do casal, e nas cláusulas, promessa de partilha dos bens comuns do casal. Mas também se lê, no mesmo documento, que os promitentes são casados entre si sob o regime imperativo de separação de bens.

                Pode ter-se por adquirido à certeza que a natureza de um contrato não é necessariamente a correspondente à designação que as partes lhe atribuíram e, portanto, à qualificação que dele fizeram. O nome atribuído pelas partes, sendo um indício relevante, nem sempre decide da índole jurídica do contrato, porque, por vezes, a designação serve justamente para ocultar a sua verdadeira natureza.

A qualificação que releva é que o intérprete venha a fazer, sobre que o tribunal se pode pronunciar livremente, sem estar vinculado à denominação que os contraentes tenham adoptado (artº 664, 1ª parte, do CPC).

Nada garante, portanto, que a interpretação a que se chegue seja conforme com o nomen usado pelas partes: muitas vezes sucede o contrário.

O que releva é a substância da regulamentação de interesses adoptada pelos contraentes, e exacto significado das respectivas declarações de vontade – e não a denominação utilizada.

A qualificação de um contrato como pertencendo a esta ou àquela espécie, a este ou aquele tipo, necessária para se determinar, pelo menos nos seus traços essenciais, o regime jurídico aplicável, é uma operação lógica subsequente à interpretação das declarações das partes e dela dependente. Interpretação – mais ou menos difícil conforme os casos - que tem forçosamente de preceder a qualificação, que não se pode fazer sem saber o que as partes efectivamente quiseram, qual o significado das suas palavras ou expressões.

                E para essa qualificação releva, enormemente, no caso, a distinção entre a comunhão conjugal e a compropriedade.

                O património comum dos cônjuges constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela[2].

                Os bens comuns dos cônjuges constituem objecto não duma relação de compropriedade - mas duma propriedade colectiva ou de mão comum[3].

                Cada um dos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum, posição que a lei tutela.

Cada um dos cônjuges tem, segundo a expressão da própria lei, um direito à meação, um verdadeiro direito de quota, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar[4].

                A natureza de propriedade colectiva da comunhão conjugal, moldada na antiga comunhão de tipo germânico, que a recorta nitidamente da comunhão de tipo romano, de tipo individualista, resulta de vários pontos do seu regime jurídico.

Aspecto mais significante desse regime é, porém, notoriamente este: antes de dissolvido o casamento ou de se decretar a separação judicial de pessoas e bens entre os cônjuges, nenhum deles pode dispor da sua meação nem lhes é permitido pedir a partilha dos bens que a compõem antes da dissolução do casamento.

                Já a compropriedade é inteiramente coisa diversa.

                Há compropriedade, ou propriedade comum, quando duas ou mais pessoas detêm simultaneamente o direito real de propriedade sobre a mesma coisa (artº 1403 do Código Civil).

                A situação jurídica de cada um dos comproprietários ou consortes é qualitativamente igual, sendo indiferente que o seja ou não sob o ponto de vista quantitativo.

Contudo, salvo indicação contrária do título constitutivo quanto à participação de cada um dos comproprietários na coisa comum, presume-se a igualdade (artº 1403 nºs 1 e 2 do Código Civil).

                Discute-se a natureza jurídica da compropriedade.

Segundo alguma doutrina, a compropriedade redundaria na titularidade de partes intelectuais da coisa comum[5]; outra defende que nela existe um único direito real, com dois ou mais titulares[6].

Finalmente sustenta-se – posição que corresponde à doutrina dominante entre nós – que na compropriedade existe um conjunto de direitos sobre a totalidade da coisa que reciprocamente se autolimitam[7].

E sendo esta a verdadeira natureza da compropriedade, facilmente se intui, com precisão, o que seja a quota.

Esta é a medida ideal de cada direito coexistente em determinada compropriedade (artº 1402 nº 2 do Código Civil).

Bastaria este aspecto para a distinguir da comunhão conjugal.

                E à diferença de natureza correspondem modos distintos de fazer cessar uma e outra situação jurídica.

                O divórcio dissolve o casamento (artº 1788 do Código Civil).

                As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento ou pela separação judicial de pessoas e bens (artºs 1688 e 1795-A do Código Civil).

                Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal (artº 1689 nº 1 do Código Civil).

                Cada cônjuge receberá na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a esse património (artº 1689 nº 1 do Código Civil).

                Caracterizada a natureza jurídica da comunhão conjugal, resta determinar a da partilha. Esta tem sido, em vários aspectos, objecto de divergências fundas[8].

                Alguma doutrina considera-a como um negócio jurídico meramente declaratório, que nada atribuiu aos partilhantes - nada lhes dá de novo, nem nada lhes tira - apenas esclarece o objecto concreto do seu direito.

                Outra qualifica-a como negócio verdadeiramente aquisitivo, translativo ou atributivo, por ser através da fixação ou concretização por ela operada que cada um dos partilhantes adquire o direito sobre uma parte determinada da coisa ou da universalidade.

                Finalmente, há quem a encare como um negócio modificativo - doutrina que se tem por preferível - visto ser a partilha que converte a posição de mero contitular de um único direito sobre toda a coisa ou universalidade na situação de titular único dum direito da mesma espécie sobre uma fracção determinada da coisa ou sobre algum ou alguns objectos concretos da universalidade[9]

                À semelhança do que sucede com a herança, a partilha dos bens comuns, consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges, pode ser feita de duas formas: extrajudicialmente, quando houver acordo de todos os interessados; por inventário, nos termos da lei adjectiva (artºs 2102 do Código Civil, 1326 nº 3 e 1404 nº 1 do CPC).

                Tratando-se de bem sobre que incida direito real de compropriedade, a divisão da coisa objecto mediato desse direito pode ser feita por duas formas: amigavelmente; ou nos termos da lei de processo (artº 1413 do Código Civil). O processo disposto na lei para a divisão é o processo especial de divisão de coisa comum (artº 1052 do CPC).

                O regime de separação de bens – que pode vigorar como regime imperativo ou como regime convencional - caracteriza-se com facilidade: há uma separação absoluta e completa entre os bens dos cônjuges, conservando, cada um deles, o domínio e fruição de todos os seus bens presentes e futuros, de que pode dispor livremente (artºs 1720 nº 1 e 1735 do Código Civil).

                Não há, portanto, bens comuns, mas é claro que pode haver - e normalmente haverá – bens que pertençam a ambos os cônjuges em compropriedade e em relação aos quais, portanto, cada um deles pode pedir a divisão a todo o tempo, através do processo de divisão de coisa comum (artº 1412 do Código Civil e 1052 do CPC). Note-se, de resto, que a lei presume a compropriedade dos móveis (artº 1736 nº 2 do Código Civil).

                Assim, relativamente aos bens de que os cônjuges sejam comproprietários valem, por inteiro, as regras de direito comum, maxime o direito – ditado pelos inconvenientes da propriedade em comum e no interesse público da cessação da compropriedade – de qualquer deles pedir, a todo o tempo, a divisão das coisas comuns.

                O direito – verdadeiramente potestativo – de exigir a divisão é, no fundo, um direito de dissolução da compropriedade, que tanto pode operar pela divisão em substância da coisa como através da repartição do seu valor. Não se trata, portanto, de concretizar a quota do requerente na coisa comum – mas de dissolver a relação de compropriedade existente entre os consortes.

                Divisão que – note-se – poderá limitar-se a uma ou algumas das coisas comuns se os comproprietários dispuseram de tantos direitos quantos sejam as coisas que integram o conjunto. Não assim, se os consortes tiverem um único direito sobre o conjunto – como sucede na comunhão de mão comum: a divisão tem de compreendê-las todas.

                No caso que constitui objecto do recurso, tendo o casamento do recorrente e da recorrida sido contraído sob o regime imperativo de separação de bens, é patente que não existe uma massa patrimonial comum, um património conjugal comum em sentido técnico – mas simplesmente bens em compropriedade.

E não havendo um património comum mas apenas bens em compropriedade, é claro que não há lugar, por impossibilidade, à partilha de bens comuns – mas à divisão das coisas comuns.

                Os promitentes, então cônjuges, tiveram o cuidado de especificar, no contrato, o regime de bens sob que foi contraído o respectivo casamento, e é à luz desse regime que deve interpretada e entendida a regulação de interesses que adoptaram e a finalidade ou escopo prosseguido com a sua conclusão.

Desde que se declara que o regime de bens é o de separação, por bens comuns deve entender-se as coisas comuns e por partilha deve entender-se a divisão desses bens; do mesmo modo, a finalidade da convenção não é a partilha de bens comuns – que declarada e comprovadamente, por força daquele regime de bens, logo se admite não existirem – mas divisão dos bens de que os contraentes são comproprietários.

                Desta constatação decorre, como corolário que não pode ser recusado, que, apesar das expressões utilizadas pelos contraentes no documento que cristaliza as respectivas declarações de vontade, o contrato promessa não é de partilha – mas de divisão das coisas comuns, dos bens em compropriedade.

                Note-se que esta conclusão é, de todo, estranha à conversão daquele negócio jurídico, rectius, contrato (artº 293 do Código Civil).

Realmente há que fazer um distinguo entre a verdadeira e própria conversão do negócio jurídico e a alteração da qualificação jurídica, do nomen iuris com que as partes crismaram esse mesmo negócio.

Se as partes, sendo casadas sob o regime de separação de bens, se vincularam a, no futuro, a adjudicar a um deles os bens de que são contitulares, o contrato promessa vale como promessa de divisão das coisas comuns e não como promessa de partilha de património conjugal comum, proprio sensu.

Não há, portanto, um fenómeno de conversão – mas antes a atribuição ao negócio jurídico do seu verdadeiro nomen iuris; não há qualquer alteração nos efeitos do negócio – dado que a qualificação não é um deles – assentando todos esses efeitos, na vontade real e não na vontade conjectural dos contraentes[10].

                A sentença impugnada foi terminante em concluir pela nulidade do contrato promessa, valor negativo que, no seu ver, radica nesta causa: a de vontade das partes em partilhar os bens adquiridos no decurso do matrimónio como se de bens comuns se tratasse afrontar o regime de bens do casamento imposto por lei a autor e ré.

                Mas há boas e múltiplas razões para não se ter este argumento por probante e por exacta a conclusão que dele faz derivar a sentença impugnada.

Como já se observou, as relações patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento ou pela separação judicial de pessoas e bens e uma vez cessadas essas relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se, nos regimes de comunhão, à partilha dos bens do casal (artºs 1688, 1689 nº 1 e 1795-A do Código Civil).

Cada um dos cônjuges receberá na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a esse património (artº 1689 nº 1 do Código Civil).

                Nos regimes de comunhão, a partilha dos bens comuns, em consequência da extinção, pelo divórcio ou pela separação judicial de pessoas e bens, da comunhão de bens entre os cônjuges, só pode ocorrer depois de terem cessado, por qualquer daqueles motivos, as relações patrimoniais entre os cônjuges.

                A proibição de partilha do património conjugal antes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges é directamente imposta pelas regras da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei e da livre revogabilidade das doações entre casados que, por sua vez, se fundam no princípio da equidade das relações patrimoniais entre os cônjuges (artºs 1714 nºs 1 e 2 e 1765 nº 1 do Código Civil).

                Tornaram-se, porém, vulgares, os contratos acessórios - embora não necessariamente - de processos de divórcio por mútuo consentimento ou de separação judicial de pessoas e bens, cujo escopo é a fixação antecipada das regras a que deve obedecer a liquidação do regime matrimonial após a extinção ou a modificação da relação jurídica matrimonial.

A estes contratos são atribuídos, pelos cônjuges, eficácia diferida para um momento posterior ao do trânsito em julgado da sentença que decreta o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens.

                Há, neste domínio, contudo, que separar duas figuras distintas: de um lado, o contrato promessa de partilha; do outro o contrato de partilha sob condição suspensiva[11].

                Discutia-se, vivamente, na jurisprudência, a validade do contrato promessa de partilha, celebrado na constância do casamento, regra geral, na pendência da acção de divórcio, para produzir efeitos depois do trânsito em julgado da sentença que o decrete, portanto, depois de cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges[12].

                Quesitava-se se a imutabilidade e a livre revogabilidade das doações entre casados impunham a proibição da partilha dos bens comuns antes da cessação das relações patrimoniais dos cônjuges se estende - por força do princípio do regime do definitivo ou da equiparação - ao contrato promessa de partilha (artº 410 nº 1 do Código Civil).

                Uma das justificações nas quais se faz assentar o princípio da imutabilidade é a da protecção dos direitos de terceiros. A modificação, quer do regime de bens quer da situação concreta de certo bem pode prejudicar gravemente as expectativas de terceiros.

É, de facto, possível que a modificação constitua um meio usado pelos cônjuges para transferir determinados bens do casal para a titularidade de um deles, evitando, desse modo, a agressão dos credores do outro[13].

                Um tal perigo não existe, porém, no caso de simples contrato promessa de partilha, dado que a alteração da situação dos bens só tem lugar depois de cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, momento em que os credores já não terão quaisquer expectativas e em que àqueles é lícito convencionar a partilha como bem entenderem.

Só assim não será se os cônjuges, mesmo antes da sentença que decretar o divórcio ou a separação e da celebração do contrato definitivo prometido, dêem cumprimento às respectivas prestações, v.g. começando a pagar as tornas acordadas.

                O princípio da imutabilidade - tal como o da livre revogabilidade das doações entre casados - funda-se no princípio da equidade das relações patrimoniais entre os cônjuges que impede a ocorrência de enriquecimento injustificado e definitivo de um deles à custa do outro.

                Porém, uma vez extinta ou modificada a relação patrimonial, a lei é menos sensível à possibilidade de ocorrência de enriquecimentos injustificados entre os cônjuges.

Isto explica, por exemplo, que o princípio da imutabilidade só abranja os contratos de compra e venda e os contratos de sociedade entre os cônjuges se estes não se encontrarem separados de pessoas e bens (artº 1714 nº 2 do Código Civil).

                A ratio de a proibição não atingir as vendas efectuadas entre cônjuges separados de pessoas e bens reside no facto de, uma vez cessadas as relações de convívio conjugal, se desvanecer a justificação que serve de fundamento à nulidade[14].

                A solução deveria valer, dada a razão que a sustenta, não apenas para a cessação formal das relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, mas também sempre que tenha cessado, de facto, a comunhão de vida entre os cônjuges, nomeadamente quando já tiverem proposto a acção de divórcio.

                Aliás, a lei faz retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da proposição da acção de divórcio ou mesmo à data da cessação da coabitação entre ambos, embora neste último caso, apenas a requerimento de qualquer dos cônjuges (artº 1789 nº 1 do Código Civil).

                Com a retroacção - que significa que a composição da comunhão se deve considerar fixada no dia da proposição da acção e não no dia do trânsito em julgado da decisão e que a partilha dever ser feita como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da instauração da acção ou na data em que cessou a coabitação - quer-se evitar o prejuízo de um dos cônjuges pelos actos de insensatez, prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar desde a propositura da acção sobre valores do património comum.

                Neste contexto, deixam de ter relevo as normas assentes na pressuposição de uma comunhão de vida, pessoal e patrimonial entre os cônjuges e, portanto, não deve ter-se por fundado o receio de através do contrato promessa de partilha, um cônjuge pretender propiciar ao outro uma vantagem patrimonial.

                O princípio da imutabilidade proíbe qualquer alteração ao regime de bens fixado no momento da celebração do casamento ou à situação concreta dos bens relativamente às diversas massas patrimoniais dos cônjuges.              

                Porém, do contrato promessa - que apenas obriga as partes a celebrar novo contrato, o contrato definitivo prometido - resultam apenas simples prestações de facto jurídico positivo: a obrigação de, no futuro, emitir as declarações de vontade integrantes do negócio jurídico modificativo em que a partilha se resolve e de proceder à imputação, na meação de cada um dos promitentes, nos termos acordados, dos bens comuns.

                O contrato promessa de partilha origina apenas prestações de facto jurídico - a celebração do contrato definitivo. São-lhe, por isso, inaplicáveis todas as proposições, que a nível do contrato definitivo, regulamentam prestações de facto material ou prestações de coisa.

                Deste modo, a simples celebração do contrato promessa não importa qualquer alteração das regras aplicáveis quer á comunhão quer à titularidade dos bens nem a modificação do estatuto de qualquer bem específico: nem a massa dos bens comuns nem a dos bens próprios de qualquer dos cônjuges sofrem a mínima alteração (artº 1714 nºs 1 e 2 do Código Civil).

                A promessa conjugal de partilha deixa, portanto, incólume o princípio da imutabilidade.

                Assim como há qualquer dano para os cônjuges, também não há qualquer prejuízo para terceiros.

Dado que as diversas massas patrimoniais - representadas pelos bens comuns e pelos bens próprios de qualquer dos cônjuges - continuam intactas, os credores pessoais dos cônjuges mantém, por inteiro, a garantia representada pelo património conjugal comum e o credor de apenas um deles conserva tal garantia, dado que encontrará na esfera jurídico-patrimonial do devedor o valor da quota deste naquele património.

                Objectava-se, porém, que o ascendente de um dos cônjuges sobre o outro poderá levar este a aceitar o preenchimento da sua quota com bens que não lhe interessam, com prejuízo, quer para este cônjuge quer para os seus credores, como sucederá no caso de o seu quinhão ser integrado por bens de execução mais difícil.

                Neste caso, contudo, não há motivo para que a protecção do cônjuge seja diversa da estabelecida para os contraentes e para os negócios jurídicos em geral.

                O único limite colocado à validade do contrato promessa é o representado pelo princípio estruturante da participação dos cônjuges no património comum: a regra da metade (artº 1730 nº 1 do Código Civil).

Quando a lei prescreve que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista - dada a natureza que deve assinalar-se ao património conjugal comum - não a definição do objecto do direito de cada cônjuge aquela massa patrimonial de afectação especial, mas fixar a quota-parte a que cada um tem direito no momento da dissolução e partilha do património comum.

                Dada a natureza claramente imperativa da regra - através da qual o legislador pretende, precisamente, evitar uma partilha desigual, obtida através do ascendente psicológico de um dos cônjuges sobre o outro - será nulo o contrato promessa de partilha, através do qual um cônjuge se vincula a partilhar o património comum, recebendo menos de metade do valor dele[15].

                Há, portanto, que concluir, prima facie, pela validade do contrato promessa de partilha, celebrado depois da instauração da acção de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, mas anterior ao trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio ou separação judicial de pessoas e bens[16].

                Nem, de resto, está excluída, na falta de convenção contrária, a possibilidade da obtenção da sua execução específica, dado que a isso não se opõe a natureza da obrigação assumida[17],[18] (artº 830 nº 1 do Código Civil).

                No estado actual do problema, a conclusão de que são válidos, nos regimes de comunhão, os contratos promessas de partilha – desde que respeitada a regra imperativa da metade – não oferece dúvida séria e corresponde mesmo a jurisprudência unânime do Supremo[19].

                No caso, não estamos face um regime de comunhão – mas perante o regime de separação.

Abstraindo da transponibilidade, para o nosso caso, de grande parte dos argumentam que sustentam a validade, no contexto dos regimes de comunhão, dos contratos cuja finalidade conspícua é a fixação antecipada das regras a que deve obedecer a liquidação do regime matrimonial após a extinção ou a modificação da relação jurídica matrimonial, há uma outra razão que inculca, no caso, a validade da promessa: o de ser lícito a qualquer dos cônjuges, mesmo na vigência do casamento, pedir a divisão dos bens de que são comproprietários.

Realmente – como já se sublinhou - no regime de separação de bens, cada um dos cônjuges pode, a todo o tempo, pedir a divisão das coisas comuns – de todos ou só de algumas delas - e, evidentemente, os cônjuges podem também a todo o tempo proceder, de forma contratualizada, a essa divisão (artº 1412 do Código Civil).

Então, por argumento a fortiori, na modalidade de argumento maiori ad minus, é também lícito aos cônjuges vincularem-se simplesmente a proceder a essa mesma divisão.

Quer dizer: partindo-se da estatuição da regra, se esta permite o mais então também permite o menos; doutro modo, estaríamos face a uma inconsistência valorativa: aos cônjuges, casados sob o regime de separação, seria lícito proceder, mesmo na constância do casamento, à divisão, amigável ou não, das coisas comuns – mas já não lhes seria lícito prometer reciprocamente proceder a essa divisão em momento posterior à extinção da relação matrimonial.

                Esta razão é suficiente – ainda que outras não pudessem ser convocadas – para concluir que, o contrato promessa de divisão das coisas comuns concluído entre o recorrente e a recorrida não viola, directa ou reflexamente, em caso algum, o regime de bens sob que foi contraído o seu casamento e, portanto, que é perfeitamente válido.

                De resto, tal como de decorre da matéria de facto, nas relações patrimoniais que estabeleceram no contexto do casamento os cônjuges parecem não ter-se apercebido do regime de bens sob que foi contraído, o que não é de todo estranho dado que esse regime lhes foi imposto imperativamente. Como quer que seja, esse erro sob o regime de bens já não esteve presente no momento da conclusão da promessa, dado que esta abre justamente com a cláusula na qual se declara abertamente que os promitentes são casados entre si sob o regime imperativo da separação de bens.

                Todavia, uma coisa é a validade desse contrato promessa, outra bem diferente è susceptibilidade da execução específica das prestações de facto jurídico positivo que dele emergem para cada uma das partes.

                A execução específica pressupõe, evidentemente, um contrato promessa válido[20].

Mas da validade desse contrato não decorre, inelutavelmente, a admissibilidade da sua execução específica.

               

3.3. Pressupostos da execução específica do contrato promessa.

                Como qualquer outro, o contrato promessa, apesar de o seu objecto ser constituído pela realização de um facto jurídico, deve ser pontualmente cumprido (artº 406 nº 1 do Código Civil).

                Cumprimento que, nos termos gerais, deve decorrer sob o signo estrito da boa fé, da correspondência e da concretização (artºs 762 nº 2 e 763 nºs 1 e 2 do Código Civil).

                Como já se observou, do contrato promessa emergem, tipicamente, prestações de facto jurídico positivo.

                Trata-se, caracteristicamente, de direitos de crédito.

Podem, por isso, ser violados por quaisquer perturbações provocadas pelo devedor, em especial, através do incumprimento.

                Face à situação patológica da prestação causada pelo devedor com a violação da obrigação correspondente, a ordem jurídica comina-lhe sanções que podem ser reconstitutivas – v.g. a resolução do contrato ou a execução específica das obrigações que dele emergem – ou compensatórias, como por exemplo, a indemnização por danos patrimoniais e, de harmonia com a doutrina que se tem por exacta, não patrimoniais.

                A nossa lei admite a execução específica do contrato promessa, embora rigorosamente não haja, neste domínio, a realização coactiva de qualquer prestação, que implica uma actuação exterior manu militaris, mas simplesmente o exercício de um direito potestativo do promitente credor (artº 830 do Código Civil).

                A execução específica está, porém, subordinada à verificação de três pressupostos: o incumprimento do contrato promessa; a falta de convenção contrária; a compatibilidade com a natureza da obrigação assumida (artº 830 do Código Civil).

                O primeiro problema que neste plano se suscita é o de saber se por incumprimento se deve entender a simples mora ou antes o não cumprimento definitivo.

                A doutrina a jurisprudência dominantes são acordes em concluir que é suficiente – mas necessário - para abrir ao promitente fiel as portas à execução específica a simples mora[21].

Problema conexo – e que tem releva para a economia do recurso - é o de saber se a execução específica pode ainda ter lugar perante o chamado incumprimento definitivo.

A solução que se tem por exacta obriga a um distinguo, consoante o interesse do credor subsista ou não para além do incumprimento definitivo: se o promitente fiel mantiver interesse na prestação, não há razão sólida que impeça o recurso à execução específica, dado que o incumprimento definitivo não determina, por si, ao menos nalguns casos, a extinção – designadamente por resolução – do contrato promessa.

Assim, se a conclusão do contrato prometido se tornar impossível, superveniente e definitivamente – v.g., por alienação a um terceiro da coisa objecto mediato dele – a execução específica não é evidentemente possível (artº 801 do Código Civil)[22]. Do mesmo modo, se, em consequência da mora, o promitente perdeu objectivamente o interesse na celebração do contrato definitivo prometido, a execução específica deve ter-se por excluída, sem prejuízo, evidentemente, da constituição do promitente faltoso no dever de indemnizar (artº 808 nº 1, 1ª parte, do Código Civil).

Todavia, se apesar de haver incumprimento definitivo - porque, por exemplo, o contrato definitivo prometido não foi concluído dentro do prazo admonitório assinado pelo promitente fiel ou porque o promitente faltoso declarou séria, firme, definitiva e injustificadamente que não cumpriria – o contrato prometido ainda é possível e a sua celebração continua a interessar ao promitente fiel, o recurso ao remédio da execução específica continua a ser admissível (artº 808, 2ª parte, do Código Civil)[23].

                Nestas condições, tudo está em saber se a recorrida se constituiu em mora ou mesmo numa situação de incumprimento definitivo no tocante à realização da prestação de facto jurídico positivo – emitir no futuro a declaração de vontade integrante do contrato definitivo prometido.

                E, para a resolução deste problema, é de todo inútil a reponderação do julgamento do ponto de facto inserto na base instrutória sob o nº 8.

               

3.4. Poderes de controlo da Relação no tocante à decisão da matéria de facto da 1ª instância.
                A apelação, dado o seu carácter de recurso global, destina-se também a facultar o controlo da decisão do tribunal de 1ª instância relativamente à matéria de facto e, pode, de resto, ter por único fundamento, um error in judicando dessa matéria.

                Um tal error in iudicando da matéria de facto pode, todavia, radicar em duas causas diversas: pode tratar-se de um erro na apreciação dessa prova ou mais simplesmente de um erro na selecção do objecto da prova.

                Um primeiro caso em que a Relação pode ser chamada a censurar o julgamento da matéria de facto realizado na 1ª instância respeita à violação dos critérios de aferição ou valoração da prova e, portanto, ao controlo da correcção do procedimento de apreciação da prova da matéria de facto.

                No entanto, deve ter-se presente que de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa[24].

Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância.

Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição ou, no caso de deficiência, com o suprimento da decisão daquela instância, a solução e o enquadramento jurídicos do objecto da causa permanecerem inalterados, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação.

                Há mora do devedor quando, por acto ilícito e culposo deste, se verifique um cumprimento retardado (artº 804 nº 2 do Código Civil). A mora é, portanto, o atraso ilícito e culposo no cumprimento da obrigação: existe mora do devedor, quando, continuando a prestação a ser possível, este não a realiza no tempo devido.

Para se concluir que há mora do devedor, não basta, portanto, dizer que, no momento do cumprimento, aquele não efectuou a prestação devida; é ainda necessário que sobre ele recaia um juízo de censura ou de reprovação.

Exige-se, portanto, a ilicitude e a culpa do devedor, embora, tratando-se de responsabilidade obrigacional, qualquer retardamento na efectivação da prestação seja, por presunção, atribuído a ilícito cometido com culpa pelo devedor (artº 799 nº 1 do Código Civil).

Da mora do devedor emerge, como primeira consequência, uma imputação dos danos, constituindo-se aquele no dever na obrigação de reparar todos os prejuízos que, com o atraso, tenha causado ao credor (artº 804 nº 1 do Código Civil).

                Apesar de se mostrar funcionalmente dirigido para a celebração de um outro contrato, o contrato promessa é, ele mesmo, um contrato a se e, portanto, deve ser pontualmente cumprido, só podendo modificar-se ou extinguir-se por consenso das partes ou nos casos admitidos na lei (artºs 405 nº 1 e 406 nº 1 do Código Civil).

                No contrato promessa é comum convencionar-se um prazo para a realização das prestações de facto jurídico positivo, emergentes do contrato promessa, o que significa que o cumprimento é temporalmente condicionado[25].

O prazo da prestação não é, em regra, um elemento essencial na economia do contrato, e, portanto, a simples mora no cumprimento, não faculta, por si só, a qualquer dos contraentes, a resolução do contrato.

                Há casos, porém, em que o desaparecimento, para o credor, do interesse da prestação fora do prazo, resulta da própria natureza da prestação ou da finalidade particular prosseguida pelo credor com o contrato.

Diz-se, nesse caso, que se trata de um termo essencial objectivo.

A essencialidade desse termo pode também resultar de convenção, expressa ou tácita das partes, caso em que se tratará de um termo essencial subjectivo[26]: quando isso ocorre, ao termo do vencimento liga-se, por acordo das partes, a presunção absoluta, no caso de não cumprimento pontual, de perda de interesse no credor na realização da prestação.

                Mas é claro que não basta a existência de um prazo certo para se concluir pela sua essencialidade subjectiva.

A estipulação de um prazo para execução de um contrato não tem em todos os casos o mesmo significado: há sempre que averiguar, através das regras de interpretação do negócio jurídico, a precisa intencionalidade da fixação desse prazo, o exacto alcance da convenção dele (artº 236 nº 1 do Código Civil).

                Se através dessa actividade interpretativa se apura que se trata de um prazo fatal ou de um prazo absolutamente fixo, a não realização da prestação no tempo devido, conduzirá, conforme o caso a uma resolução automática ou a uma caducidade contratual; concluindo-se, porém, que se trata de um prazo relativamente fixo, poderá fazer surgir para o credor o direito de resolver o contrato ou a exigência de um cumprimento tardio[27].

                Em regra, o prazo essencial, por não haver um interesse temporalmente delimitado não é absolutamente fixo – mas apenas relativamente fixo[28].

                Especiais dificuldades são as que resultam dos casos em que o prazo do cumprimento é convencionado no contexto de uma cláusula cum puerit, como são, por exemplo, as cláusulas em que convencione que o contrato definitivo será celebrado quando o promitente-comprador estiver em boa situação financeira ou quando o promitente-vendedor puder arranjar a documentação necessária.

                Todavia, mesmo em tal caso, sob pena de ficar definitivamente comprometida a eficácia vinculativa da promessa – e se dar cobertura à discricionariedade do promitente, que impediria, ad infinitum, através da sua inércia, o cumprimento - a convenção deve ser interpretada no sentido de uma simples cláusula que lhe outorga a iniciativa da fixação do prazo, tendo, porém, a contraparte, a possibilidade de promover a fixação do prazo para o cumprimento[29].

A mesma solução vale, de resto, pelas mesmas razões materiais, para o caso de à convenção ser atribuída a natureza de cláusula cum voluerit.
Uma coisa é exacta: cláusulas desta espécie resolvem-se na fixação de um prazo incerto, dado que não é antecipadamente seguro, i.e., ao tempo da celebração da promessa, o momento em que o contrato definitivo prometido deverá ser concluído.

                Discutível é, porém, a questão de saber se um dos contraentes pode lançar mão de uma interpelação extrajudicial do outro, fixando um prazo razoável para a celebração do contrato ou se apenas lhe resta a proposição de uma acção especial de fixação judicial do prazo.
                A doutrina que se tem por preferível é a de que, nesta conjuntura, ao contraente interessado assiste a faculdade de interpelar o outro – judicial ou extrajudicialmente - para a celebração do contrato definitivo prometido num prazo – necessariamente – razoável, não havendo razão material bastante para o recurso ao processo especial de fixação judicial do prazo[30]. O que é relevante é que o prazo assinado, mesmo extrajudicialmente, se mostre razoável.

                Na espécie do recurso, as partes convencionaram no contrato promessa que a escritura pública de divisão seria outorgada no prazo de 6 meses, a contar da sentença de divórcio – do proferimento desta sentença constitutiva e não do seu trânsito em julgado.

                No momento da conclusão do contrato promessa o prazo para a celebração do contrato prometido era, portanto, incerto, dado que não era seguro o momento do seu terminus a quo e, consequentemente, do seu terminus ad quem: dies incertus an incertus quando. Verdadeiramente, porém, apesar do tom de fixação no tempo e não de dúvida, o caso não é verdadeiramente de prazo incerto – mas de cláusula condicional de momento incerto (artº 270 do Código Civil).

                Todavia, uma vez verificada a condição – o proferimento da sentença de divórcio – ficou perfeitamente determinado o terminus a quo desse prazo – a data do proferimento daquela decisão do tribunal – e correspondentemente, o terminus ad quem – seis meses, contados daquela data: 27 de Setembro de 2009 (artº 279 c) do Código Civil).

Quer dizer, o prazo que, no momento em que foi convencionado, era incerto, tornou-se, posteriormente, certo.

Portanto, com o proferimento da sentença constitutiva de divórcio, tanto o recorrente como a recorrida ficaram inteiramente cientes que a escritura pública de documentação do contrato definitivo teria de ser celebrada no prazo de seis meses contado da prolacção daquele acto decisório.

                Tal prazo tem-se por estabelecido também a favor da recorrida (artº 779 do Código Civil).

                Nestas condições, ao recorrente não era lícito exigir à recorrida o cumprimento da obrigação em data anterior àquela que resulta da convenção contida no contrato promessa.

                Ora, o ponto de facto que o recorrente reputa de mal julgado, por erro na valoração da prova, inserto na base instrutória com o nº 8 tem justamente por objecto a questão se saber se aquele remeteu à recorrida a carta – inclusa a fls. 60 e 61 - datada de 7 de Maio de 2009, no qual lhe comunicava a intenção de marcar a escritura de partilhas para o dia 5 de Junho, às 10 00 horas, no Cartório de Gouveia.

                Nesse momento, nem o prazo era já incerto nem ao recorrente assistia o direito exigir o cumprimento antes da data convencionada para o vencimento da obrigação de concluir o contrato definitivo e, por isso, a recorrida só poderia constituir-se em mora na data convencionada no contrato promessa.

                Este facto não é, pois, relevante, segundo o único enquadramento jurídico possível do objecto da causa e, portanto, é de todo inútil, a reponderação do seu julgamento.    

                De resto, aquela irrelevância e, correspondentemente, esta inutilidade, são impostas por uma outra razão: a de na data convencionada para a celebração do contrato definitivo, a obrigação da recorrida de emitir a declaração de vontade integrante do contrato prometido se mostrar já definitivamente não cumprida.

                De harmonia com a decisão da matéria de facto – que neste ponto não é objecto de impugnação - depois de ter sido decretado o divórcio e em data anterior ao dia 27 de Setembro de 2009, a ré recusou-se a celebrar a escritura.

                Nos termos gerais, o incumprimento definitivo surge não apenas quando for força da não realização ou do atraso na prestação o credor perca o interesse objectivo nela ou quando, havendo mora, o devedor não cumpra no prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor – mas igualmente nos casos em que o devedor declara expressamente não pretender cumprir a prestação a que está adstrito[31].

                A recorrida deu para a sua recusa esta justificação: a minha quota no valor global dos bens ainda não se encontrava totalmente preenchida.

Mas esta justificação não colhe: a recorrida já se mostrava embolsada, desde Janeiro de 2007, da quantia correspondente a metade do valor convencionado das coisas comuns.

                Em face desta recusa, inequívoca e injustificada da recorrida – o contrato promessa deve considerar-se definitivamente não cumprido[32].

                Nesta conjuntura, é de todo irrelevante saber – como se quesitava no ponto de facto inserto na base instrutória com o nº 8 – se o recorrente enviou ou não à recorrida a carta apontada.

A reponderação do julgamento daquele enunciado de facto não tem, pois, qualquer utilidade.

                Note-se, enfim, que mesmo que o caso não fosse já, pela razão apontada, de não cumprimento definitivo, sempre a recorrida se deveria ter por constituída em mora na data convencionada na promessa para a conclusão do contrato definitivo, dado que, tal prazo foi ultrapassado sem que o contrato prometido tivesse sido celebrado.

E essa mora seria suficiente para facultar ao recorrente a execução específica da promessa.

                E o conjunto de razões até aqui alinhado é inteiramente suficiente para julgar o pedido que o recorrente formula no recurso.

               

3.5. Concretização.

                Deve ter-se por assente, de um aspecto, que o contrato promessa bivinculante de divisão dos bens comuns concluído entre o recorrente e a recorrida deve ter-se por válido, e de outro, que a última, com a recusa inequívoca e injustificada em outorgar a escritura pública, incumpriu, definitivamente, a obrigação de facto jurídico positivo que para ela emergia desse mesmo contrato.

                Todavia, apesar desse não cumprimento definitivo, o contrato promessa continua a ter interesse para o recorrente e o contrato prometido ainda se mostra possível: a execução específica é, por isso, inteiramente admissível.

                De outro aspecto, a execução específica não foi convencionalmente excluída e, patentemente, não é incompatível com a obrigação assumida, uma vez que o contrato definitivo não é impossível ou ilícito, e o recorrente não se propõe obter, com a decisão judicial, aquilo que seria impossível obter pelo simples cumprimento do contrato promessa.

                É exacto que, tendo a promessa também por objecto direito real referido a prédios urbanos, o documento – meramente particular – que a corporiza não contém o reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes nem a certificação da existência da licença de construção ou de utilização (artºs 362, 363 nºs 1 e 3, in fine, 373 e 410 nº 3 do Código Civil).

                Porém, de um aspecto, o facto de contrato constar de simples documento particular não obsta à execução específica, e, de outro, a omissão daquelas formalidades não é oficiosamente cognoscível - Assentos do STJ de 30 de Janeiro de 1985, DR. I Série, nº 53, de 3 de Maio de 1985 e nº 3/95, de 1 de Fevereiro de 1995, DR, nº 95, de 22 de Abril de 1995, respectivamente, agora com a autoridade diminuída de simples acórdãos de uniformização de jurisprudência (artºs 732-A e 732-B do CPC e 17 do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

                Por último, como a recorrida já recebeu o valor correspondente à sua quota e a obrigação tributária devida, pelo recorrente, pela transmissão deve ser satisfeita em momento ulterior, nada obsta à execução específica da promessa (artºs 1, 2 nº 1 4 a) e 36 do CIMTO).

                O recurso deve pois, proceder.

                As proposições mais salientes, que justificam a procedência do recurso são, em síntese apertada, as seguintes:

a) O tribunal é livre na qualificação jurídica de um contrato como pertencente a esta ou àquela espécie contratual;

                b) A alteração da qualificação jurídica que as partes atribuíram a um contrato não se resolve na sua conversão, dado que não há qualquer alteração dos efeitos do negócio, que continuam a assentar na vontade real e não na vontade conjectural dos contraentes;

                c) É válido o contrato promessa, concluído na constância do casamento, celebrado sob o regime de separação de bens, pelos quais os cônjuges se vinculam a proceder à divisão, depois da extinção, por divórcio, da relação matrimonial, dos bens de que são comproprietários;

                d) A execução específica do contrato promessa é compatível com o não cumprimento definitivo das obrigações de facto jurídico positivo que dele emergem, se o contrato prometido ainda for possível e a sua celebração continuar a interessar ao promitente fiel;

                e) A reponderação do julgamento da matéria de facto da 1ª instância só é admissível se a impugnação desse julgamento tiver por objecto factos com interesse para a decisão da causa.

               

As custas do recurso deverão ser satisfeitas pela parte que nele sucumbe: a recorrida (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2 deste diploma legal e 8 nº 1 e 9 nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro).

               

4. Decisão.

                Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e, consequentemente:

a) Declara-se válido o contrato promessa concluído entre o recorrente, J…, e a recorrida, B…, no dia 27 de Dezembro de 2006;

                b) Substitui-se a declaração de vontade da recorrida, B…, no contrato definitivo prometido, e, consequentemente, declara-se dissolvida a compropriedade no tocante aos bens identificados no contrato referido em a), adjudicam-se esse bens ao recorrente, J…, e declara-se este dono exclusivo deles.

                Custas pela recorrida, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B, integrante do RCP.

                                                                                                                            

                                                                                                                             Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                                             José Avelino Gonçalves

                                                                                                                             Regina Rosa


[1] Vaz Serra, Contrato-Promessa, BMJ nº 74, 1958, pág. 6.
[2] Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, Coimbra, 1965, pág. 397.
[3] Antunes Varela, Direito da Família, 1º Volume, 5ª edição, Lisboa, 1999, pág. 436.
[4] A comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade colectiva. Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade dela se distinguindo de forma clara e inequívoca. Essa distinção assenta, além do mais, no facto de os direito dos contitulares não incidir sobre cada um dos elementos que constituem o património - mas sobre todo ele, como um todo unitário. Aos titulares do património colectivo não pertencem direitos específicos - designadamente uma quota - sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente. Na partilha dos bens, destinada a por fim à comunhão, os respectivos titulares apenas têm direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objecto da partilha. O que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património. Cfr. Pires de Lima, Enciclopédia Verbo, comunhão e Ac. da RP de 19.04.83, CJ, VII, II, pág. 259.
[5] Mota Pinto, Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 1976, págs. 256 e 257; Manuel Rodrigues, A Compropriedade no Direito Civil Português, pág. 20.
[6] Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, 1977, pág. 246 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª edição, Coimbra, 1987, pág. 313.
[7] Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 4ª edição, Coimbra, 1983, pág. 246, António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lisboa, Lex, 1993, pág. 618 e, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2ª edição, Quid Iuris, Lisboa, págs. 322 e 323.
[8] Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, 2ª ed., Coimbra, 1986, nº 41, págs. 357 e ss.
[9] Antunes Varela, RLJ Ano 120, pág. 158 e Vaz Serra, RLJ Ano 105, pág. 204.
[10] João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, Lisboa, AAFDL, 1995, pág. 457.
[11] Para a distinção entre contrato promessa e contrato definitivo prometido sujeito a uma condição suspensiva, cfr. Vaz Serra, Contrato-Promessa, BMJ nº 76, pág. 35.
[12] No sentido da validade de tal contrato, cfr., v.g., os Acs. da RL de 30.06.88, CJ, III, 170, da RC 19.10.93, BMJ nº 430, pág. 525, da RP 14.01.94, CJ, I, 237. RE 21.1.88, CJ, I, pág. 260, da RC 28.11.95, RLJ, ano 129, pág. 274 e do STJ 23.03.99, CJ, II, pág. 30; em sentido inverso, v.g. Acs. RL de 24.02.87, CJ, I, pág. 143, da RL 21.3.96, CJ, II, pág. 89, da RC de 11.01.94, BMJ nº 433, pág. 627, da RL 09.12.93, CJ, V, pág. 141, da RL 09.12.93, BMJ nº 432, pág. 417, do STJ 26.05.93, CJ, II, pág. 143, do STJ 02.02.93, CJ, I, pág. 113, do STJ 27.04.89, BMJ nº 386, pág. 463, da RL 09.12.93, BMJ nº 432, pág. 417, da RL 05.03.98, CJ, II, pág. 83, da RC 11.01.94, BMJ nº 433, pág. 627, da RL 21.3.96, CJ, II, pág. 89, e da RC 28.11.95, CJ, V, pág. 49. O acórdão do STJ de 23.3.99, que optou pela solução da validade, esclarece que é a solução dominante na jurisprudência das Relações.
[13] Antunes Varela, Direito da Família, cit., págs. 432 e 433.
[14] Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume IV, 2ª edição, Coimbra, 1992, pág. 400.
[15] Esta solução vale, por inteiro, para a partilha subordinada à condição suspensiva do decretamento entre os cônjuges do divórcio. Também neste caso não ocorre qualquer modificação do regime de bens nem, muito menos, a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges. De igual modo, a partilha será nula se violar a regra da metade. Neste sentido, Albino de Matos, Partilha, Divórcio e Condição, Temas de Direito Notarial, I, págs. 467 a 475, Inocêncio Galvão Teles, págs. 157 a 160 e Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, 2ª Edição, vol. I, págs. 444 a 447; Contra, M. Rita Lobo Xavier, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os cônjuges, págs. 285 a 287.
[16] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, 2ª Edição, vol. I, págs. 444 a 447. M. Rita Lobo Xavier, Contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal celebrado na pendência da acção de divórcio. Comentário ao Ac. do STJ de 26 de Maio de 1963, RDES, 1994, págs. 137 e 172 e Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, págs. 264 a 276. Guilherme de Oliveira, Temas de Direito da Família, págs. 226 a 244. Admitindo, implicitamente a validade do contrato promessa de partilha - ao afirmar que os cônjuges, no divórcio por mútuo consentimento, podem ter um interesse atendível em sujeitar a homologação judicial semelhante acordo - cfr. Miguel Teixeira, O Regime Jurídico do Divórcio, 1991, pág. 25. Duvidando da validade do contrato, cfr. Nuno Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português.
[17] Rita Lobo Xavier, Limites, cit., págs. 282 a 284 e Ac. RC 8.10.91, CJ, IV, pág. 103.
[18] Seja qual for o conteúdo preciso que deva assinalar-se a esta expressão da lei. Cfr., entre outros, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pág. 532 e Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, volume I, Lisboa, AAFDL, 1980, pág. 470.
[19] Acs. do STJ de 15.12.11 e de 22.02.07.
[20] Acs. do STJ de 23.01.03 e de 26.03.08, www.dgsi.pt.
[21] Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, pág. 154, Henrique Mesquita, Obrigações e Ónus Reais, pág. 233, nota 160, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, pág. 227 e Fernando Gravato Morais, Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 109, e, v.g., Acs. do STJ de 04.03.08, 05.12.06 e da RP de 08.05.06. Diferente é a posição de António Menezes Cordeiro para quem a mora é um pretenso pressuposto da execução específica, sendo por isso admissível a execução específica antes de consumado o incumprimento: cfr. Direito das Obrigações, 1º Volume, Lisboa, AAFDL, 1980, pág. 467, e Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo II, 2010, Almedina, Coimbra, pág. 420.
[22] Ac. do STJ de 04.03.08, www.dgsi.pt.
[23] António Menezes Cordeiro Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo II, cit., pág. 422, Januário Gomes, Em Tema de Contrato Promessa, Lisboa, 1980, pág. 17 e Antunes Varela, RLJ, Ano 128, pág. 119, nota 1, e os Acs. da RP de 20.01.05, do STJ de 29.04.04, www.dgsi.pt., e de 03.10.95, CJ, STJ, III, pág. 45, da RP de 27.09.99, BMJ nº 489, pág. 403, e da RC de 04.10.05, CJ, XXX, IV, 25; em sentido contrário, Fernando de Gravato Morais, Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial, cit. pág. 109.
[24] Ac. da RE de 09.06.94, BMJ nº 438, pág. 571.
[25] Mas é claro que, quando isso não suceda – i.e., quando a promessa se mostre destituída de prazo de cumprimento – não há motivo para por em causa a sua validade e eficácia. Assim, para o direito anterior - o Assento do STJ de 4 de Março de 1966, que declarou que para a validade formal da promessa de venda de imóveis não era necessária a fixação de prazo – a doutrina citada por Vaz Serra, RLJ Ano 109, pág. 237. Em todo o caso, a natureza pura das obrigações instrumentais dos promitentes não poderá deixar de ter em conta que a interpelação judicial ou extrajudicial não poderá ser feita arbitrariamente ou com violação das regras da boa fé, impedindo o cumprimento da outra parte ou encobrindo mesmo um não cumprimento.
[26] João Batista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, vol I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, pág. 188.
[27] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 5ª edição, Almedina Coimbra, 1992, págs. 45 e 45, Vaz Serra, RLJ, Anos 104, pág. 302 e 110, pág. 326, e José Carlos Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra Editora, 2006, págs. 116 a 119 e notas (319) a (326) e Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral, A Dualidade Execução Específica-Resolução, Coimbra, 1996, págs. 110 a 115.
[28] Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, Coimbra, 1996, pág. 144. A jurisprudência dominante acompanha esta orientação – cfr., v.g., o Ac. do STJ de 29.04.08, www.dgsi.pt. Mas não faltam, no entanto, espécies jurisprudenciais que sustentam que, em caso de dúvida, deve ter-se como estabelecido um prazo absoluto, por ser de presumir que os outorgantes quiseram efectivamente vincular-se de harmonia com os termos do contrato: Acs. do STJ de 19.09.02 e 07.02.08, www.dgsi.pt.
[29] João Carlos Brandão Proença, Do Incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral, Coimbra, 1996, pág. 114 e nota 253, e Ac. da RP de 10.01.84, BMJ nº 333, pág. 518.

[30] Ana Prata, O Contrato Promessa e o Seu regime Civil, Coimbra, 2006, pág. 650 e Acs. do STJ de 07.02.08 e de 29.04.98 e da RP de 27.04.04, www.dgsi.pt; contra Fernando de Gravato Morais, Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 194.
[31] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol. AAFDL, 1980, pág. 457, Baptista Machado, RLJ Ano 118, pág. 275, Brandão Proença, Do Incumprimento do Contrato Promessa Bilateral, cit., pág. 87 e A Hipótese da Declaração (Lato Sensu) Antecipada de Incumprimento por parte do Devedor, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003, pág. 364, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, pág. e Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, AAFDL, pág. 296; Acs., v.g. da RC de 24.03.92 e 28.05.92, CJ, XVII, II, pág. 50 e XVIII, III, pág. 115, e do STJ de 07.03.91, BMJ nº 405, pág. 458.
[32] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 4ª edição, vol. II, pág. 88 António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol., pág. 457, Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, AAFDL, pág. 296, Baptista Machado, RLJ Ano 118, pág. 275, nota (2) e Brandão Proença, Do Incumprimento do Contrato Promessa Bilateral,           Coimbra, 1986, pág. 87, Brandão Proença, Do Incumprimento do Contrato Promessa Bilateral, cit., pág. 87 e A Hipótese da Declaração (Lato Sensu) Antecipada de Incumprimento por parte do Devedor, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003, pág. 364 e Calvão da Silva, A Declaração da Intenção de não Cumprir, Estudos de Direito Civil e Processo Civil (Pareceres), Coimbra, 1996, pág. 137; Acs. da RC de 24.03.92 e 28.05.92, CJ, XVII, II, pág. 50 e XVIII, III, pág. 115 e do STJ de 07.03.91, BMJ nº 405, pág. 458.