Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1614/17.5T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
ELEMENTOS A TER EM CONSIDERAÇÃO
DÉFICE FUNCIONAL DO SINISTRADO
QUANTUM INDEMNIZATÓRIO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 06/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 483º, 494º E 496º DO C. CIVIL.
Sumário: I - Para efeitos de indemnização a título do chamado dano biológico na sua vertente patrimonial só relevam as implicações de alcance económico.

Outras incidências na qualidade de vida do lesado, mas sem um alcance daquela natureza, devem ser ponderadas em sede de danos não patrimoniais.

II - Em caso de défice funcional permanente, que não seja impeditivo de exercício da atividade profissional do lesado, mas que implique, ainda assim, um maior esforço no desempenho dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual, não se mostra viável, em regra, estabelecer o quantum indemnizatório com base em cálculo aritmético de rendimentos específicos, devendo recorrer-se à equidade dentro dos padrões delineados pela jurisprudência em função do tipo de gravidade das sequelas sofridas.

III - A indemnização por danos não patrimoniais prevista no artigo 496.º, n.º 1 e 4, do Código Civil, e a fixar por equidade, tendo em atenção os fatores referidos no artigo 494.º do mesmo Código, visa não só compensar o dano sofrido, mas também reprovar, de algum modo, a conduta culposa do autor da lesão.

Decisão Texto Integral:





1614/17.5T8GRD.C1


Sumário:

I - A primeira questão a decidir é factual e passa por julgar a divergência quanto à valoração da prova, indagando sobre a dinâmica de certo acidente de viação, certos danos e sobre os rendimentos perdidos pelo Autor.

II - A manobra do segurado na Ré é violadora do previsto nos arts. 13.º, 18.º, nº 2 e 25.º, nº 1, h), do Código da Estrada, por não ajustar a velocidade ao entroncamento que se lhe depara e por invadir a faixa de rodagem de sentido contrário.

III - Para efeitos de indemnização a título do chamado dano biológico na sua vertente patrimonial só relevam as implicações de alcance económico.

Outras incidências na qualidade de vida do lesado, mas sem um alcance daquela natureza, devem ser ponderadas em sede de danos não patrimoniais.

IV - Em caso de défice funcional permanente, que não seja impeditivo de exercício da atividade profissional do lesado, mas que implique, ainda assim, um maior esforço no desempenho dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual, não se mostra viável, em regra, estabelecer o quantum indemnizatório com base em cálculo aritmético de rendimentos específicos, devendo recorrer-se à equidade dentro dos padrões delineados pela jurisprudência em função do tipo de gravidade das sequelas sofridas. 

V - A indemnização por danos não patrimoniais prevista no artigo 496.º, n.º 1 e 4, do Código Civil, e a fixar por equidade, tendo em atenção os fatores referidos no artigo 494.º do mesmo Código, visa não só compensar o dano sofrido, mas também reprovar, de algum modo, a conduta culposa do autor da lesão.


*

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Â... instaurou ação contra L..., S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 984.967,30€, a título de indemnização pelos danos sofridos e alegados na petição e a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, em função da incapacidade que for fixada ao autor, tratamentos, cirurgias que tiver de ser submetido, despesas a suportar com tratamentos médicos, medicamentosos, deslocações a efetuar para o efeito, consequências definitivas, nos termos do artigo 565º do Código Civil, com juros, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

Para tanto alega, em síntese:

Em 03.07.2016 sofreu um acidente de viação, que ocorreu por culpa do condutor do veículo seguro na ré, do qual resultaram lesões e danos que discrimina e que sofrerão agravamento futuro.

No decurso da audiência, o Autor requereu a ampliação do pedido em mais 112.000,00€ e a condenação da Ré a pagar os danos não determinados/quantificáveis que discrimina, a liquidar em execução de sentença.

Esta ampliação foi parcialmente admitida, não tendo sido admitida a ampliação relativa ao alegado prejuízo de afirmação sexual.

A Ré contestou, impugnando a dinâmica do acidente e os danos alegados.

Instruído o processo e realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente e, absolvendo a Ré do demais peticionado, a condena no seguinte:

a) A pagar ao Autor uma indemnização, a título de danos emergentes (despesas suportadas/realizadas), no valor global de 1.999,00€ (mil novecentos e noventa e nove euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data da citação e até integral pagamento;

b) A pagar ao Autor uma indemnização, a título de danos emergentes (perda de rendimentos entre o mês de julho de 2016 e o mês de fevereiro de 2020), no valor global de 28.232,96€ (vinte e oito mil duzentos e trinta e dois euros e noventa e seis cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, sendo relativamente às quantias vencidas antes da data da propositura da ação, desde a data da citação e até integral pagamento e, relativamente às quantias vencidas no decurso da ação, desde o dia 20/02/2020 até integral pagamento;

c) A pagar ao Autor uma indemnização, pelo dano biológico sofrido, no montante de 150.000,00€ (cento e cinquenta mil euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral pagamento;

d) A pagar ao Autor uma compensação, pelos danos de natureza não patrimonial sofridos, no montante de 100.000,00€ (cem mil euros), acrescida dos juros de mora vincendos, à taxa legal em vigor, até integral pagamento;

e) A pagar ao Autor a indemnização que se liquidar no incidente de execução de sentença (cfr. artigos 609º/2 e 358º/2 do Código de Processo Civil), relativamente aos danos futuros que previsivelmente ocorrerão, nomeadamente os decorrentes da realização de despesas com cirurgias, despesas médicas e medicamentosas, prótese(s) desportiva(s), fisioterapia, ajudas técnicas, perda de rendimentos decorrentes da(s) cirurgia(s) e eventual agravamento do défice funcional permanente (dano biológico).


*

Inconformada, a Ré Seguradora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

            ...

Também inconformado, o Autor recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

...

Cada uma das partes contra-alegou, defendendo a correção / incorreção do decidido, em função da posição que sempre assumiram, desde o início.

Questões a decidir:

A nulidade da decisão por contradição nos factos.

A reapreciação da matéria de facto.

A culpa no acidente.

Saber se as indemnizações fixadas foram objeto de um adequado juízo, nomeadamente de equidade.

Os juros devidos.


*

O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

...

            O Tribunal recorrido considerou como factos não provados:

...

A pretensa nulidade da decisão por contradição nos factos.

A Recorrente suscita a nulidade da sentença com fundamento na al. c) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

Porém, aquela não concretiza os fundamentos que estão em oposição com a decisão ou uma ambiguidade ou uma obscuridade que torne a decisão ininteligível. O que a Recorrente alega é que existe contradição entre dois factos provados (20 e 25) e entre estes e dois factos não provados (10 e 39).

Esta questão diz respeito à reapreciação da matéria de facto que apresentou, não sendo enquadrável na nulidade da sentença.

De qualquer maneira, podemos adiantar que entre os factos provados 20 e 25 não se vislumbra qualquer contradição, sendo compatíveis, traduzindo a dinâmica do veículo conduzido pelo Autor nos 50 metros que antecediam a pretendida mudança de direção para a esquerda, até ao momento do embate. E também não se vislumbra a contradição entre esses factos e os factos não provados 10 e 39, o primeiro retratando a alegação do Autor da sua perceção do acidente (considerada não provada) e o segundo que retrata a alegação da Ré (considerada não provada) de que o acidente ocorreu na faixa onde circulava o seu segurado.

Pelo exposto, sem prejuízo da reapreciação que se realizará a seguir, julga-se não verificada a arguida nulidade.

A  reapreciação da matéria de facto.

A Recorrente Seguradora questiona os factos relativos à dinâmica do acidente e os relativos a certas despesas (111 a 119).

...

Na reapreciação dos factos o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil (doravante CPC)).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados (A. Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.)

Lembremos que a aplicação do regime processual em sede de modificação da decisão da matéria de facto conta necessariamente com a circunstância de que existem fatores ligados aos depoimentos que, sendo passíveis de influir na formação da convicção, não passam nem para a gravação nem para a respectiva transcrição. É a imediação da prova que permite detetar diferenças entre os depoimentos, tornando possível perceber a sua maior ou menor credibilidade.

No caso, os elementos probatórios apresentados e disponíveis para a concreta reapreciação estão sujeitos à livre apreciação do julgador.

Reapreciadas as provas, nomeadamente a pessoal indicada pelos Recorrentes, a nossa convicção vai em sentido essencialmente idêntico ao formado pelo Tribunal recorrido, convencidos, porém, que o local do embate se situa na faixa de rodagem utilizada pelo Autor.

            Vejamos:

            Sobre a dinâmica do acidente:

            ...

            Assim, sem prejuízo do que está assente e não impugnado, os procedimentos do Autor são regulares (nada o infirma), julgando nós provado que o GS atingiu aquele, encontrando-se ele na sua faixa de rodagem, junto ao eixo da via.

            Sobre as despesas questionadas pela Seguradora (factos 111 a 119):

            Ao contrário do que a afirma a Recorrente, os factos que sustentam tais despesas não estão suportados apenas por prova testemunhal, mas sim e também por prova documental, assinalada pelo Julgador, toda ela permitindo dizer que o Autor efetuou dezenas de deslocações a médicos e a técnicos de saúde, sendo plausíveis as despesas com tais acessos a serviços de saúde, sendo certo que, na análise jurídica (ver infra), o Julgador inseriu um critério de valor para o Km.

            Sobre os rendimentos do Autor:

            A posição deste fica seriamente fragilizada quando se constata que o mesmo “escondeu” os seus rendimentos, não os declarando.

            Esta “clandestinidade” atinge a prova testemunhal pois que ela dependeria das informações prestadas pelo Autor, em tempos normais, no dia a dia; ora, aquele apresenta-se como pessoa que não quer dar a conhecer os seus rendimentos, por qualquer forma.

            Estando, à partida, especialmente fragilizada a prova testemunhal, torna-se então exigível que ela esteja apoiada numa qualquer outra prova indiciadora, v.g. de elementos bancários.

            A prova testemunhal é pontual e lacunosa, podendo estar a canalizar informações recentes e já interessadas do Autor.

...

No contexto, estando em causa factos cujo ónus da prova impendia sobre o autor, perante a impugnação assumida pela ré, e na ausência de qualquer documento que apoiasse os testemunhos, o tribunal não confere segurança à prova testemunhal, ficando na dúvida que é resolvida contra o Autor, daí resultando a factualidade não provada relativa aos rendimentos das atividades deste, sem prejuízo do que se dirá sobre o salário mínimo de referência.

Sobre a incapacidade do Autor:

Este é um trabalhador indiferenciado, trabalhava no Café e nas obras com o seu pai. O Autor estava para se juntar ao seu pai na gestão e condução dos trabalhos.

Embora as testemunhas refiram a sua incapacidade em trabalhar, as suas afirmações podem ser entendidas no plano subjetivo.

Objetivamente, com os cuidados que são impostos na verificação técnica da incapacidade, sob pena de cairmos na incerteza e subjetividade dos casos, a situação do Autor foi analisada por perito médico, atividade que pôde ser acompanhada por técnicos que podiam ser indicados pelas partes.

A prova assenta no relatório pericial, com os esclarecimentos prestados pelo senhor perito, também em audiência de julgamento, sem prejuízo da prova documental relativa à assistência médica prestada.

Daquela prova resulta que o Autor é capaz de um trabalho indiferenciado, ainda que com esforços suplementares e com necessidade de ser adaptado aos impedimentos assinalados (trabalhos em altura, em pisos instáveis e com carga excessiva). Também se prova que o Autor terá um previsível ganho de qualidade de vida após nova intervenção cirúrgica e colocação de nova prótese desportiva.

Não são apresentadas provas que infirmem seguramente o juízo médico, não existindo o facto notório (de conhecimento geral) invocado pelo Autor.

Não há contradição entre afirmar que o Autor é parcialmente capaz e não exercer, desde o acidente até hoje, qualquer atividade profissional ou não ter trabalho, sendo certo que já ajudou no Café. Não trabalhar é diferente de não estar disponível trabalho e diferente de estar o Autor absoluta e totalmente impossibilitado.

Pelo exposto, julgam-se improcedentes as impugnações dos factos apresentadas pelos Recorrentes, mas declara-se provado que o veículo GS atingiu o Autor, encontrando-se este na sua faixa de rodagem, junto ao eixo da via.


*

A culpa no acidente.

            Esta culpa deve ser atribuída ao condutor do veículo segurado na Ré, porquanto a sua manobra é violadora do previsto nos arts. 13.º, 18.º, nº 2 e 25.º, nº 1, h), do Código da Estrada, por não ajustar a sua velocidade ao entroncamento que se lhe depara e por invadir a faixa de rodagem de sentido contrário.

Importa considerar que não se provou a prática de qualquer infração rodoviária pelo Autor.

Com o esclarecimento factual admitido na reapreciação da matéria de facto, o juízo sobre a culpa do condutor do veículo segurado na Ré é diferente do emitido em 1ª instância, não assentando numa mera presunção decorrente do excesso de velocidade. A sua culpa não é presumida, mas direta e efetiva.

Sendo a culpa apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, impõe-se aqui a conclusão de que o homem medianamente diligente, nas circunstâncias do caso, teria conduzido o veículo afastado do eixo da via e da faixa de sentido contrário e abaixo dos 50 Km/h permitidos.

A invasão da faixa contrária é causal do embate apurado.


*

Apuremos agora se as indemnizações fixadas foram objeto de um adequado juízo, nomeadamente de equidade.

Segundo o artigo 562º do Código Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

Por sua vez, o artigo 564º do mesmo diploma, determina que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, devendo o tribunal atender aos danos futuros desde que sejam previsíveis.

A indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos.

E se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (Art.566º da referida lei.)

No que respeita aos critérios da Portaria nº 377/2008, com as alterações introduzidas pela Portaria nº 679/2009, assinalemos que constitui jurisprudência uniforme que aqueles são apenas orientadores de proposta razoável, para indemnização do dano corporal, a apresentar aos lesados pelas Seguradoras, não visando uma fixação definitiva dos valores indemnizatórios devidos, nem sendo sequer vinculantes para os Tribunais. Aqueles critérios apenas são aplicáveis na fase de negociação extrajudicial, não vinculando os tribunais no âmbito das acções de indemnização que venham a ser propostas. (Neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 3.11.2016 e de 15.9.2016, nos processos 197/12 e 492/10, respetivamente, em www.dgsi.pt.)

O recurso à equidade não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso” (art.8º, nº3, do Código Civil).

Avaliámos na jurisprudência do Supremo Tribunal os seguintes exemplos:

Num caso com uma IPP de 40 pontos e com uma vítima de 20 anos, podemos referir o acórdão do STJ de 26.1.2016 (todos os referidos, em www.dgsi.pt);

Num caso com uma IPP de 31,20 pontos e com uma vítima de 18 anos, podemos referir o acórdão do STJ de 10.11.2016;

Num caso, mais próximo do Autor, com uma IPP de 27 pontos e com uma vítima de 41 anos, embora com salário mais elevado, podemos referir o acórdão do STJ de 2.12.2013;

Seguindo de perto a jurisprudência do STJ em caso paralelo (acórdão de 13.7.2017, no processo 3214/11, publicado no sítio digital referido), no caso devemos começar por atentar que não está provado que as sequelas que diminuíram a integridade física ou psicológica do Autor impeçam este de continuar a exercer a sua atividade profissional (trabalhador indiferenciado), com limitações relevantes assinaladas.

Importa assinalar que o dano do Autor se manifesta em 3 planos:

Um futuro, previsível, por liquidar (o relativo à necessidade de reamputar e regularizar o coto, com eventual aplicação de prótese desportiva). Neste particular não vemos que a decisão recorrida mereça qualquer reparo, apesar da aparente condicionalidade invocada pela Ré;

O “dano biológico” na vertente patrimonial, mas sem a cumulação com os lucros cessantes profissionais pretendida pelo Autor;

O dano não patrimonial.

Aplicando todos os considerandos ao caso concreto e sem prejuízo do demais provado, importa ter em conta os pontos atribuídos à sua incapacidade permanente (32 pontos numa escala de 1 a 100), com possibilidade de agravamento, o período de tempo em que experimentará o aumento da penosidade (tinha 38 anos aquando da consolidação das lesões), o valor salarial de referência e a provada perda de qualidade de vida, afigura-se-nos equitativa a indemnização pelo “dano biológico” de cento e dez mil euros e não os cento e cinquenta mil fixados em 1ª instância.

Na ponderação deste valor, aceitamos válido e equilibrado o valor de referência salarial escolhido pelo Tribunal recorrido:

“Recorrendo à equidade, não existindo matéria indiciária que nos permita quantificar tais rendimentos e não havendo elementos seguros relativamente ao montante do vencimento mensal auferido pelo autor e não havendo como comprovar os concretos rendimentos auferidos mensalmente ao longo dos anos (por não existir qualquer elemento de prova documental que permita sustentar os depoimentos testemunhais), não descurando que está em causa um facto constitutivo de um direito do autor e que, de acordo com a regra prevista no artigo 342º/1 do Código Civil, era sobre ele que impendia o ónus da prova dos concretos rendimentos, ainda assim, cremos poder ter como seguro que o autor auferia da profissão de trolha, pelo menos, o montante equivalente ao valor liquido do salário mínimo nacional e que, da exploração do estabelecimento comercial, pelo trabalho aí desenvolvido no horário pós-laboral, auferia também um rendimento líquido mensal que podemos quantificar num valor não inferior a 250,00€, podendo, a este respeito e para simplificar os cálculos, considerar-se que o valor da pensão de invalidez atribuída pela segurança social (269,08€) corresponderá ao valor dos rendimentos mensais (resultado líquido) que o autor poderia retirar da atividade por si desenvolvida na exploração do estabelecimento comercial (entre as 18h00m e as 24h00m).” (Fim da citação.)

O dano não patrimonial.

No segmento do dano estético (ponto 5 em 7), da afirmação pessoal (4 em 7), das dores (5 em 7) e do desgosto sofridos, tendo em mente todos os factos provados e a jurisprudência assinalada, afigura-se-nos equitativo fixar a indemnização dos danos não patrimoniais em sessenta mil euros e não nos cem mil euros fixados em 1ª instância.


*

            Ainda sobre as indemnizações:

            O recurso da Seguradora, relativo às despesas do Autor, com deslocações, consultas e documentos, estava dependente da reapreciação dos respetivos factos. Como tais factos ficaram inalterados, não encontramos razões para questionar a equidade encontrada pelo Tribunal recorrido, na específica consideração do valor para cada Km. Lembremos o que disse aquele Tribunal, o que entendemos correto e válido:

“Assim, tendo o autor efetuado, pelo menos, 54 deslocações da sua localidade (Sargaçais) a Viseu, tendo percorrido em viatura própria 5 184 km, tendo efetuado, pelo menos, 18 viagens, em viatura própria, da sua localidade a Aguiar da Beira, tendo percorrido 360 km, tendo o autor peticionado o pagamento de 0,25€/km, tendo em consideração o Decreto-Lei n.º 137/2010, de 28/12 (aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas), fixa o valor do subsídio de transporte em automóvel próprio em 0,36€/km e que o Regulamento das Custas Processuais fixa o encargo das despesas de transporte em 0,20€/km, julga-se adequado o valor peticionado pelo quilómetro percorrido, de onde resulta que o autor suportou despesas, a este respeito, no valor global de 1 386,00€ (5544 km x 0,25€). A este valor acresce o valor da motorizada (450,00€), custo do certificado de incapacidade (50,00€), as despesas com taxas moderadoras (113,30€), o que perfaz o montante global de 1 999,00€.” (Fim da citação.)

O recurso do Autor, relativo ao período de incapacidade total temporária, estava também dependente da alteração dos factos respeitantes aos seus rendimentos. Como esta alteração não ocorreu, não encontramos razões para questionar o decidido pelo Tribunal recorrido, nomeadamente na já referida consideração do salário mínimo e do valor pago pela Segurança Social, sendo ainda certo que não colhe o argumento da Ré que assenta numa mera incapacidade parcial temporária, estando provado que ela foi ali total.


*

Os juros.

Entendemos ser de diferenciar dois planos de liquidação:

Os valores relativos a um tempo passado, como os indicados em a) e b) do dispositivo da sentença recorrida, para os quais, nos termos dos artigos 804º, 805º/2-b) e 3 e 806º/1 e 2 do Código Civil, acrescem os juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data da citação ou do vencimento no decurso da ação e até integral pagamento.

Os valores para os quais se considerou o momento da decisão, sendo os relativos aos segmentos c) e d) do dispositivo da sentença recorrida.

Sempre que se utilize um juízo de equidade, de que resulta o montante da indemnização, estamos a fazer um juízo atualista, pois esse valor é aquele que se considera como correto no momento em que a questão se decide. Para se formular esse juízo não se recua no tempo, procurando encontrar o montante que na data do acidente, na data da propositura da ação ou na data da citação do réu seria o adequado. Se no momento da decisão, o juiz atualiza um valor de referência e o montante do dano, os juros moratórios, a serem concedidos desde a citação, representariam uma duplicação de parte do ressarcimento.

            O acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2002 dispõe no sentido de afirmar que, existindo decisão atualizadora, os juros contam-se desde a data da decisão e não desde a data da citação.

            Assim, os juros de mora daquelas indemnizações c) e d), em que se fez uma utilização da equidade, e não de valores de um tempo passado, devem ser contados desde a data da sentença recorrida.

Decisão.

Julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pela Ré Seguradora e, em consequência, revoga-se parcialmente a decisão recorrida. Com referência às diferentes alíneas do dispositivo da sentença recorrida, declaramos:

a). Mantém-se o decidido (A pagar ao Autor uma indemnização, a título de danos emergentes (despesas suportadas/realizadas), no valor global de 1.999,00€ (mil novecentos e noventa e nove euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data da citação e até integral pagamento;

b). Mantém-se o decidido (A pagar ao Autor uma indemnização, a título de danos emergentes (perda de rendimentos entre o mês de julho de 2016 e o mês de fevereiro de 2020), no valor global de 28.232,96€ (vinte e oito mil duzentos e trinta e dois euros e noventa e seis cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, sendo relativamente às quantias vencidas antes da data da propositura da ação, desde a data da citação e até integral pagamento e, relativamente às quantias vencidas no decurso da ação, desde o dia 20/02/2020 até integral pagamento;

c). Altera-se o decidido, condenando-se a Ré a pagar ao Autor uma indemnização, pelo dano biológico sofrido, no montante de 110.000,00€ (cento e dez mil euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data da decisão em 1ª instância e até integral pagamento;

d). Altera-se o decidido, condenando-se a Ré a pagar ao Autor uma indemnização, pelos danos de natureza não patrimonial sofridos, no montante de 60.000,00€ (sessenta mil euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data da decisão em 1ª instância e até integral pagamento;

e). Mantém-se o decidido (A pagar ao Autor a indemnização que se liquidar no incidente de execução de sentença (cfr. artigos 609º/2 e 358º/2 do Código de Processo Civil), relativamente aos danos futuros que previsivelmente ocorrerão, nomeadamente os decorrentes da realização de despesas com cirurgias, despesas médicas e medicamentosas, prótese(s) desportiva(s), fisioterapia, ajudas técnicas, perda de rendimentos decorrentes da(s) cirurgia(s) e eventual agravamento do défice funcional permanente (dano biológico)).

Julga-se improcedente o recurso interposto pelo Autor.

As custas dos recursos (taxa de justiça e custas de parte, sem encargos) serão suportadas da seguinte forma:

No recurso do Autor, por este, vencido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

No recurso da Ré, por ambas as partes, na proporção de ¾ para a Ré e de ¼ para o Autor, sem prejuízo do apoio judiciário de que este beneficie.

Coimbra, 2021-06-01


(Fernando Monteiro)

(Ana Vieira)


                                               (António Carvalho Martins)