Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1597/19.7T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
COLIGAÇÃO PASSIVA ILEGAL
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
Data do Acordão: 09/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 3, 17, 27, 264 CIRE, 36, 38, 577 F) CPC
Sumário: 1- Num mesmo processo, com exceção da hipótese expressamente prevista no art. 264.º do CIRE, não pode ser pedida a insolvência de duas entidades jurídicas diferentes.

2 - Caso tal aconteça, está-se perante uma coligação passiva ilegal – exceção dilatória prevista no art. 577.º/f) do CPC – devendo seguir-se o cumprimento do art. 38.º do CPC (ex vi art. 17.º do CIRE) e sendo o autor notificado para indicar qual o pedido de insolvência que pretende ver apreciado, sob a cominação de, não o fazendo, se decretar a absolvição total da instância.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

H (…) e T (…), ambas residentes em (...) , intentaram a presente ação especial de insolvência contra G (…) – Unipessoal, Lda. e G (…) Industria, SA, ambas com os sinais dos autos, pedindo que se decrete a insolvência de ambas.

Invocaram, em resumo, a sua qualidade de credoras das requeridas, enquanto trabalhadora e ex-trabalhadora das mesmas, e estarem as requeridas impossibilitadas de pagar as suas dívidas vencidas, muito superiores ao valor do seu património conhecido; acrescentando, para justificar a demanda em conjunto de ambas as sociedades, que as duas sociedades/requeridas se encontram em situação de grupo, na medida em que servem os interesses das mesmas pessoas numa organização conjunta.

Citada a G (…) – Unipessoal, Lda. ofereceu contestação, suscitando, entre outras questões/exceções, a inadmissibilidade legal da coligação passiva.

Antes de se lograr a citação da G (…) Industria, SA, soube-se nos autos que esta havia sido declarada insolvente por sentença proferida no dia 13/02/2020, no processo de insolvência n.º 24267/19.1T8LSB, a correr termos no Tribunal de Comércio de Lisboa – Juiz 1; razão pela qual foi proferido despacho a declarar suspensa a instância em relação à requerida G (…) Industria, SA, nos termos do art. 8.º/4 do CIRE.

As requerentes responderam à exceção da coligação ilegal de rés, defendendo que a comandita de interesses entre as duas requeridas justifica serem ambas demandadas no mesmo processo de insolvência, acrescentando que, atenta a suspensão da instância quanto à requerida G (…)Industria, SA, a questão suscitada perdeu relevância.

Conclusos os autos, foi pelo Exmo. Juiz proferida decisão a indeferir liminarmente a petição inicial, ao abrigo do art. 27.º/1/a) do CIRE, por ocorrer coligação ilegal passiva.

Decisão em que se expendeu o seguinte:

(…)

Apreciando, diremos que da análise do requerimento inicial, é manifesto que estamos perante um caso de coligação (ao invés de uma cumulação de pedidos) na medida em que na presente ação são demandadas duas sociedades comerciais distintas, sendo dirigido contra cada uma delas um pedido de declaração de insolvência.

(…)

Sucede, porém, que, no âmbito do CIRE em que nos movemos, não se encontra expressamente previsto qualquer caso de coligação com exceção da coligação dos cônjuges (arts. 264º a 266º do CIRE), sem prejuízo da aplicação subsidiárias das disposições previstas na lei processual civil, nos termos do art. 17.º do mesmo diploma legal.

Todavia, há razões para crer que a exclusão, do âmbito do CIRE, de quaisquer outros casos de coligação (ativa ou passiva) corresponde a uma opção deliberada do legislador, que pretendeu afastar, de forma expressa, a eventualidade de se cumular, num único processo, as situações de insolvência de duas ou mais pessoas individuais ou coletivas (com exceção do caso de coligação de cônjuges supra referido), tudo em função da própria natureza processo de insolvência, ou não estivéssemos a falar, nos termos do art. 1.º do CIRE, de um «processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores».

Assim sendo, afigura-se manifestamente desajustada e inviável, porque contrário aos princípios e especificidades que norteiam o processo de insolvência, a possibilidade de, fora dos casos previstos, se assistir a uma coligação passiva de rés, deduzindo contra cada uma delas um pedido distinto de declaração de insolvência, com os riscos/ vicissitudes associadas de numa única ação ser declarada a insolvência de um devedor e não do outro; ou de haver aprovação de um plano de insolvência em relação a uma requerida, seguindo-se, quanto à outra, para a liquidação do ativo (ou mesmo para o encerramento do processo por insuficiência da massa); ou mesmo de se proceder à liquidação de dois patrimónios autónomos, com diferentes créditos, com todos os inconvenientes relacionados com a fixação da sede/ domicílio do devedor, apreensão de bens, realização de audiência de credores, elaboração do mapa de rateio, prestação de contas pelo administrador de insolvência, incidente de reclamação de créditos, qualificação da insolvência, ou afins.

Em suma, é manifesto que a demanda das requeridas na presente ação, em coligação passiva, é destituída de qualquer fundamento legal, e não deve ser admitida (…).

Ora, a coligação fora dos casos legalmente admissíveis constitui uma situação de ilegitimidade processual, a qual, por seu turno, consubstancia uma exceção dilatória (in casu, insuprível, porque insuscetível de ser sanada) e de conhecimento oficioso, que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, e que determina a absolvição da instância quanto ao mesmo – arts. 576.º, 577.º, al. e), 578.º e 278.º, n.º 1, al. d), todos do CPC.

Pelo exposto, a circunstância de, já na pendência da ação, se ter apurado que uma das requeridas foi declarada insolvente num outro processo distinto em nada invalida as conclusões acima referidas, porquanto os pressupostos da legitimidade são aferidos à data da interposição da ação.

Segundo o art. 27.º, n.º 1 a) do CIRE, o juiz, aquando da apreciação liminar «indefere liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente, ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente».

Tudo conjugado, decide-se indeferir liminarmente a petição inicial, com as legais consequências, em observância do disposto no art. 27.º, n.º 1 a) do diploma legal supra requerido.

(…)”

Inconformadas com tal decisão, interpõem as requerentes recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que “ordene o prosseguimento da instância, com a sua extinção, por inutilidade superveniente, quanto à requerida G (…) Indústria, SA.”

Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

“ (…)

1. Apenas são insupríveis as exceções que não são possíveis, materialmente, de suprir;

2. As exceções dilatórias são por sua própria natureza passíveis de ser supridas;

3. A coligação passiva ilegal não é insanável, uma vez que basta ao autor desistir da instância ou do pedido quanto a uma das rés para a instância ficar regularizada;

4. No caso dos autos, tendo uma das requeridas sido declarada insolvente noutro processo na pendência da ação, em lugar dessa desistência, deveria a instância ser declarada extinta quanto a ela, por inutilidade superveniente;

5. Deveria por isso o MM. Juiz ter ou notificado as autoras para escolherem contra quem deveria prosseguir a ação, ou ter declarado extinta a instância, por inutilidade, quanto à requerida G (…)r Indústria, SA.

6. Violou a douta sentença recorrida o disposto nos artigos 6.º e 590.º do Código de Processo Civil. (…)”

A requerida G (…) Unipessoal, Lda. respondeu, sustentando, em síntese, que não violou a decisão recorrida as normas processuais referidas pelas recorrentes, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“ (…)

A) Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis.

B) A demanda de duas sociedades comerciais distintas em coligação passiva, deduzindo-se contra cada uma um pedido de declaração de insolvência no âmbito do mesmo processo é claramente incompatível com a função e natureza do processo de insolvência, pelo que é destituída de qualquer fundamento legal e não deve ser admitida.

C) A impossibilidade de coligação no caso em apreço, isto é, situação de coligação ilegal passiva, consubstancia a falta de legitimidade processual.

D) A legitimidade processual, constituindo um pressuposto processual relativo às partes, afere-se, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo Autor e a falta de legitimidade determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância.

E) A exceção dilatória em apreço é insuscetível de ser sanada conforme disposto decorre dos artigos 17.º n.º1 do CIRE e 278.º, n.º 1, al.d), 576.º, n.º 1, 577.º, alínea e) e 578.º do CPC.

F) Sendo insuscetível de ser sanada, nos termos do disposto nos artigos 17.º e 27.º, n.º1, al. a) do CIRE e 590.º, n.º 1 do CPC, deve a petição inicial ser liminarmente indeferida por se verificar a existência de exceção dilatória insuprível.

G) Os deveres elencados no artigo 6.º do CPC deverão ser satisfeitos no contexto do rito processual legal preexistente (na forma legal) e o apelo à cooperação previsto no artigo 7.º do CPC e à gestão processual não obnubilam a existência de normas expressas, algumas preclusivas, que visam salvaguardar práticas processuais consolidadas.

H) A douta sentença judicial recorrida comprovadamente não viola o disposto nos artigos 6.º e 590.º do CPC.

I) Em suma, em face do exposto, não assiste qualquer razão às Recorrentes, pelo que deve a douta sentença recorrida manter-se integramente.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve a apresente apelação ser julgada totalmente improcedente, por não provada. (…)”

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação

A – Os factos pertinentes são os que já emergem do relatório precedente.

B – Quanto ao direito:

A decisão recorrida pode ser dividida em dois segmentos:

Um primeiro, em que se considerou que pedir a insolvência de ambas as requeridas neste mesmo processo configura uma coligação passiva ilegal; e

Um segundo, em que se entendeu que à verificação de tal exceção dilatória cabe, como consequência, o indeferimento liminar da PI.

Sendo apenas contra este segundo segmento que se dirige a divergência recursiva.

Era/é de facto evidente a ilegalidade, em relação ao lado passivo, da cumulação de ações (que é o que uma coligação é) pelos presentes autos intentada.

Face às dificuldades que a tramitação unitária/simultânea de várias ações coloca, a coligação apenas é permitida quando a causa de pedir é a mesma (art. 36.º/1 do CPC) ou quando, apesar da diversidade de causas de pedir, a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos (art. 36.º/2 do CPC).

O que significa que nunca[1] se pode pedir num mesmo processo a insolvência de duas entidades jurídicas diferentes[2], uma vez que a causa de pedir do pedido (declarativo) de insolvência duma pessoa jurídica são os factos concretos que integram a sua situação de insolvência – os factos concretos que revelam estar aquela requerida impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas (cfr. art. 3.º/1 do CIRE)[3] – ou seja, a cada entidade jurídica corresponde, em termos de pedido de insolvência, uma causa de pedir exclusiva e singular, que nunca é a mesma causa de pedir do pedido declarativo de insolvência duma qualquer outra pessoa jurídica; sendo que na hipótese de se pedir a insolvência de mais do que uma pessoa jurídica também acaba por não estar em causa (por se tratar de pessoas jurídicas diferentes) a apreciação dos mesmos factos concretos (não se verificando assim também a previsão do art. 36.º/2 do CIRE).

Mas já não haverá obstáculo processual (sendo permitido pelo art. 36.º/2 do CPC) se vários credores colocarem sob apreciação os mesmos factos (os vários créditos que cada um deles tem sobre uma única requerida e a mesma concreta situação de insolvência dessa mesma única requerida) e pedirem, num mesmo processo, em coligação, a insolvência duma mesma e única entidade jurídica.

E é justamente por isto que as requerentes/apelantes podem estar ambas, do lado ativo, a pedir que seja declarada uma insolvência, porém, em cada processo, só podem fazê-lo em relação a uma única entidade jurídica[4].

Era/é pois evidente a verificação da exceção dilatória da coligação passiva ilegal; que, chama-se a atenção, não corresponde a uma situação de ilegitimidade, como se raciocina, mas sim à situação prevista no art. 577.º/f) do CPC, que classifica como exceção dilatória típica “a coligação de autores ou réus, quando entre os pedidos não exista a conexão exigida no art. 36.º”.

Mas verificada tal exceção não se segue, no caso[5], ao contrário do que foi decidido, o imediato indeferimento liminar da PI.

O que se segue, como também é evidente, é o cumprimento do art. 38.º do CPC (ex vi art. 17.º do CIRE) que, em lugar da absolvição da instância, manda notificar o autor[6] para indicar qual o pedido que pretende ver apreciado, agora, sim, sob a cominação de, não o fazendo, se decretar a absolvição total da instância[7].

E é isto que tem que ser feito, em substituição do despacho de indeferimento liminar proferido.

É certo que há notícia nos autos da segunda requerida (G (…) Industria, SA) haver sido declarada insolvente, porém, não foi ainda obtida e/ou junta informação sobre o trânsito em julgado da respetiva sentença, pelo que seria precipitado – uma vez que só tendo o trânsito como certo e seguro a instância pode/deve ser extinta em relação à segunda requerida (cfr. art. 8.º/4 do CIRE) – considerar como certa uma extinção que depende de algo que não foi (e tem que ser) devidamente documentado nos autos[8].

Procede pois parcialmente a apelação (que é apenas dirigida, repete-se, contra a consequência processual que se retirou da verificação de exceção dilatória da coligação ilegal passiva; e em que se pede, a final, como supra se transcreveu, que se “ordene o prosseguimento da instância, com a sua extinção, por inutilidade superveniente, quanto à requerida G (...) Indústria, SA.”).


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III - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a parte da decisão recorrida que decretou o indeferimento liminar da PI, devendo, em sua substituição, ser proferido despacho a mandar notificar as requerentes para indicar qual o pedido de insolvência que pretendem ver apreciado, sob a cominação de, não o fazendo, se decretar a absolvição total da instância.

Custas em partes iguais pelas requerentes e pela requerida/apelada G (…) – Unipessoal. Lda.


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Coimbra, 21/09/2020

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Com exceção, claro, da hipótese expressamente prevista no art. 264.º do CIRE; efetivamente, hoje, o CIRE não tem uma disposição como a que o DL 315/98 introduziu no art. 1.ª/3 do CPEREF (segundo a qual, “sem prejuízo dos efeitos patrimoniais da existência de personalidade jurídica distinta, é permitida a coligação ativa ou passiva de sociedades que se encontrem em relação de domínio ou de grupo, nos termos do Código das Sociedades Comerciais, ou que tenham os seus balanços e contas aprovados consolidadamente”), sendo que a apensação permitida no art. 86.º do atual CIRE tem como pressuposto que em cada um dos processos haja sido previamente declarada a insolvência.

[2] Estejam ou não numa relação de grupo, como se invocou ser a situação das requeridas, sendo que a “relação de grupo” é algo cujos termos constitutivos estão definidos nos artigos 488.º e ss. CSC, ou seja, não se trata de alegação “trivial”.
[3] Ou também, no caso das pessoas coletivas, os concretos factos que consubstanciam os factos integradores da situação de insolvência referida no art. 3.º/2 do CIRE.

[4] Não concordamos pois com a observação, constante da decisão recorrida, do CIRE excluir coligações do lado ativo: as requerentes/apelantes não são titulares duma mesma relação jurídica (ou seja, não são litisconsortes), não havendo, por deverem ser consideradas como partes coligadas do lado ativo, alguma irregularidade na pluralidade do lado ativo.

[5] Dizemos “no caso” porque há imensos casos em que se está perante exceções dilatórias insupríveis (quando, v. g., alguém não tem, sozinho ou acompanhado, legitimidade para intentar uma concreta ação, tal não é suprível), não sendo nada exato o que as requerentes/apelantes dizem nas duas primeiras conclusões (cfr., entre outros, CPC Anotado, Vol 1, Abrantes Geraldes, pág. 324, ponto 13), designadamente sobre “as exceções dilatórias serem por sua própria natureza passíveis de ser supridas”.
[6] Se forem vários os autores coligados, como é o caso, a notificação será feita a todos eles, dependendo o aproveitamento do processado de manifestarem acordo quanto ao pedido/ação que deve prosseguir.

[7] Não é muito relevante – uma vez que a solução seria sempre a mesma – mas o despacho recorrido não é sequer, como se invoca, o despacho liminar do art. 27.º do CIRE, que, como consta dos autos, havia sido proferido cerca de 8 meses antes.

[8] E assim como o tribunal podia ter obtido tal informação também as apelantes podiam ter feito prova de tal trânsito em julgado.