Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
39/14.9TBOLR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
COMPRA E VENDA
FACTORES DE ATRIBUIÇÃO DA COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 09/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 59, 62, 63, 71 CPC
Sumário: I – As regras de atribuição de competência visa aproximar a causa do tribunal que estiver em melhores condições para, mais justa e celeremente, a julgar.

II – Pelo menos por via de regra, e salvo circunstâncias excepcionais, a decisão sobre a competência afere-se pelo modo factual – rectius causa petendi – como o autor delineia o pleito.

III - As regras de atribuição de competência poderão, no limite, ser afastadas, mas apenas se se provar ou indiciar fortemente que da aplicação das mesmas resultará uma decisão intoleravelmente injusta ou morosa, e, assim, nociva – cfr. al. c) do artº 62º do CPC.

III - Alegado pela autora, sociedade portuguesa com sede em Portugal que a ré, sociedade Marroquina, não lhe solveu um fornecimento de madeira que devia ser pago na sua sede, impetrando este pagamento, e não dimanando dos autos o factor exceptivo referido em III, cobra competência internacional, independentemente da lei aplicável, o Tribunal Português – artºs 59º, 62º al. a) e 71º nº1 do CPC.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA  RELAÇÃO DE COIMBRA

1.


No autos em epígrafe, em que é autora  J (…), SA e ré M(…)SARL, findos os articulados, e em sede de despacho saneador, foi proferido a seguinte

  decisão


«…como é entendimento uniforme na jurisprudência e doutrina, como qualquer outro pressuposto processual, a competência afere-se pelo pedido formulado (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in “Competência Declarativa dos Tribunais Comuns”, pág. 36 e, para além  dos aí citados, os acórdãos do S.T.J. de 3.2.97 e de 2.7.96, respectivamente no BMJ n.º 364/591 e n.º 459/ 444.).

A determinação da competência do tribunal, tal como a decisão das excepções dilatórias de natureza processual, deve ser decidida face à petição inicial e tomando em conta, por um lado, a pretensão formulada ou a medida jurisdicional requerida e, por outro, a relação jurídica ou situação factual descrita nessa peça processual (cfr. Ac. do STJ de 12.10.82 e de 03.02.87, in BMJ, n.º 320, pág. 389 e BMJ, n.º 364, pág. 591). No mesmo sentido Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 90 e 91) que ensina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)…

Ainda, de acordo com o art.º 577.º, al. a) do Código de Processo Civil, constitui uma excepção dilatória a incompetência absoluta do Tribunal, o que determina a absolvição da instância (art.º 576.º, n.º 2).

Nos termos do art.º 59.º do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art.º 94.º. E, analisada a al. a) do art.º 62.º do CPC,  logo encontramos um factor de conexão que determina a nossa competência internacional, qual seja, “quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras da competência territorial estabelecidas na lei portuguesa”, o que, dada a causa de pedir e o pedido formulado (incumprimento do contrato de compra e venda celebrado entre A e Ré), resulta claramente do art.º 71.º do CPC.

Assim, julgo totalmente improcedente a excepção da incompetência absoluta deste Tribunal.»

2.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. O pressente recurso incide sobre o Despacho Saneador que julgou totalmente improcedente a exceção dilatória da incompetência absoluta, do presente douto Tribunal a quo, deduzida pela ora Recorrente, sendo que, salvo o devido respeito, a ora Recorrente não pode conformar-se com tal decisão, uma vez que entende que se verifica a mesma exceção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal a quo.

2. Nos termos do disposto na al. a) do artigo 62.º do C. P. Civil: “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; “

 3. Segundo o disposto no n.º1 artigo 71.º do C. P. Civil: - A ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa coletiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana.

4. O Tribunal a quo pronunciou-se sobras a aplicação e interpretação dos preceitos normativos, anteriormente referidos, mais especificamente acerca de como se afere a competência do Tribunal, designadamente nos seguintes termos: “A competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência. Assim, como é entendimento uniforme na jurisprudência e doutrina, como qualquer outro pressuposto processual, a competência afere-se pelo pedido formulado” (…)“A determinação da competência do tribunal, tal como a decisão das excepções dilatórias de natureza processual, deve ser decidida face à petição inicial e tomando em conta, por um lado, a pretensão formulada ou a medida jurisdicional requerida e, por outro, a relação jurídica ou situação factual descrita nessa peça processual”

5. Contudo, tem sido entendimento da Jurisprudência e Doutrina dominante que: “I – A competência internacional dos tribunais portugueses deve ser aferida em função do pedido e causa de pedir invocados pelo autor, importando, no entanto, distinguir, para a delimitação da causa de pedir, a indicação do título (facto jurídico) em que se baseia o direito do autor (art. 498.º, n.º 4, do CPC) do alcance jurídico do título indicado (art. 664.º do CPC). (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 30-01-2013, Processo 1705/08.3TBVNO.C1.S1, por Unanimidade.)

6. No mesmo acórdão, nos Pontos 12 e 13, também é referido o seguinte: “12. No entanto, isso não significa que, no plano de facto, deva aceitar-se o que foi alegado. Por isso, é que, no caso vertente, apesar de as AA terem indicado a ré como domiciliada em Portugal, o que levaria a considerar a competência internacional dos tribunais portugueses em razão do domicílio da ré em Portugal (artigo 65.º/1, alínea a) do C.P.C.), as instâncias, no exercício dos seus poderes de cognição, entenderam que a ré à data em que a ação foi instaurada tinha nos E.U.A. o seu domicílio habitual ou principal. 13. E se no plano dos factos que relevam para a determinação da competência, a alegação do autor pode ser posta em causa, no plano do direito também assim pode suceder visto que uma coisa é a indicação do título (facto jurídico) em que se baseia o direito do autor (artigo 498.º/4 do C.P.C.) e outra coisa é o alcance jurídico do título indicado, aspeto que envolve uma questão de mera qualificação (artigo 664.º do C.P.C.). 2 (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 30-01-2013, Processo 1705/08.3TBVNO.C1.S1, por Unanimidade.)

7. Ora, com o devido respeito, cremos que o Tribunal a quo interpretou e aplicou incorretamente os preceitos normativos previsto no art.º 62.º al. a) e art.º 71.º n.º 1 do C. P. Civil, visto que seguiu um entendimento demasiado rígido ao não considerar minimamente a versão dos factos em questão, expostos pela o Recorrente/Ré, na respetiva contestação, no que concerne ao lugar da celebração do contrato em apreço, que, nosso entendimento, ocorreu em Marrocos (Cfr. art.º 28.º a 31.º da contestação).

8. Face ao exposto, entendemos que é manifesto que foram violadas as normas jurídicas previstas nos art.º 62.º al. a) e art.º 71.º n.º 1 do C. P. Civil e no art.º 42.º do C. Civil.

 9. Por outro lado, o Tribunal a quo pronunciou-se também acerca da aplicação do art.º 71 do C.PC., ao caso em apreço, da seguinte forma: “Nos termos do art.º 59.º do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art.º 94.º. E, analisada a al. a) do art.º 62.º do CPC, logo encontramos um factor de conexão que determina a nossa competência internacional, qual seja, “quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras da competência territorial estabelecidas na lei portuguesa”, o que, dada a causa de pedir e o pedido formulado (incumprimento do contrato de compra e venda celebrado entre A e Ré), resulta claramente do art.º 71.º do CPC. Assim, julgo totalmente improcedente a excepção da incompetência absoluta deste Tribunal.”

10. Porém, tem sido entendimento Jurisprudência e Doutrina maioritária que: “Daí que haja quem sustente que a negação da competência internacional, indiciada a partir de fatores de conexão territorial de carácter interno, se justifique sempre que a sua atribuição aos tribunais portugueses configure um forum non conveniens e simultaneamente exista tribunal estrangeiro melhor colocado para julgar o litígio e que não decline a sua jurisdição.” (Cfr. Novo Código de Processo Civil Anotado, Abílio Neto, 2.ª Edição Revista e Ampliada, Janeiro 2014, p. 118. Ponto 4 último parágrafo).

11. Ora, nos termos do art.º 42.º do Código Civil, cremos que é manifesto que é aplicável o Direito Marroquino, no caso em apreço, visto que, a nosso ver, o negócio jurídico em apreço ocorreu em Marrocos, não há menção da Lei aplicável, nem as partes tinham residência comum - nem têm atualmente (cfr. art.º 28.º a 31.º da contestação).

 12. Por outro lado, conforme consta das faturas juntas com a petição inicial, embora as primeiras estão manifestamente pouco legíveis, é notório, designadamente na fatura EXP n.º 120062 e nas seguintes, na parte do segundo código( no lado esquerdo a meio da fatura), na respetiva “Designação”, a existência da seguinte expressão “Inclut Côut Marchandises et Transporte Maritime (Figueira da Foz Agadir)”, ou seja, “Inclui o custo das mercadorias e o transporte marítimo (Figueira da Foz Agadir)”, pelo que é iniludível que o lugar do cumprimento da obrigação de entrega dos bens vendidos, em apreço, era Agadir, Marrocos.

13. Acresce que, no que concerne à competência territorial dos Tribunais marroquinos, de acordo com o Código Processo Civil Marroquino Dahir portant loi n° 1-74-447 (28 septembre 1974) approuvant le texte du code de procédure civile, tel qu’il a été modifié et complété : « - en toute autre matière commerciale, le demandeur peut, au choix, porter son action, soit devant le tribunal du domicile du défendeur, soit devant celui dans le ressort duquel l'exécution devait être effectuée; », ou seja, em toda outra matéria comercial, o requerente pode, à escolha, instaurar a sua ação, seja no Tribunal do domicílio do réu, seja no Tribunal do lugar da execução do contrato.

14. Ora, a Ré tem sua sede em Casablanca, Marrocos, e o lugar da celebração e execução do contrato sub judice foi em Casablanca, sendo que o lugar do Porto onde foram entregues as mercadorias foi em Agadir, Marrocos.

15. Nesse sentido, de acordo com a legislação Marroquina, é o Tribunal de Comércio da Casablanca que é competente para julgar o caso em apreço.

16. Assim sendo, salvo o devido respeito, no nosso entendimento, faz todo o sentido que seja o Tribunal de Comércio de Casablanca a julgar o caso em apreço, dado que entendemos que o negócio jurídico foi celebrado em Marrocos, a mercadoria foi entregue em Marrocos - por sinal com defeitos verificados em Marrocos, identificados na contestação nos artigos 40.º a 205.º-, é aplicável o Direito Marroquino e, de acordo com o Código de Processo Civil Marroquino, é o Tribunal de Comércio de Casablanca que é competente.

17. Por outro lado, face ao exposto, entendemos que o Tribunal a quo não tem as melhores condições para julgar o caso sub judice, visto que, a nosso ver, é aplicável o Direito Marroquino e que os defeitos das respetivas mercadorias foram sinalizados em Marrocos e objeto de análise por parte das Autoridades marroquinas (Cfr. art. 39.º a 205, designadamente o art.º 76.º).

Contra alegou a recorrida pugnando pela manutenção da decisão com os seguintes argumentos finais:

A. O despacho saneador julgou corretamente as exceções invocadas pela Recorrente, designadamente a exceção da incompetência dos Tribunais Portugueses e, por isso, não é merecedor dos reparos e da censura que vai feita no presente recurso.

B. Factualmente importa notar que não é correto (e por isso não é verdade e é falso) a invocação da Recorrente que os negócios ou o negócio subjacente aos presentes autos tenha corrido em Marrocos; e, por isso, não é correto que deva ser considerado como “facto” (como pretende a Recorrente no seu recurso) que o lugar da celebração do negócio tenha sido outro que não Portugal.

C. O negócio entre a Recorrida e Recorrente - traduzido no fornecimento de madeira de pinho serrada, com medidas específicas - foi celebrado em Portugal; a madeira é produzida em Portugal, nas unidades fabris da Recorrida e é transportada por barco até Marrocos (em concreto até Casablanca); os pagamentos dos fornecimentos deveriam ter sido feitos em Portugal (como aliás o foram todos os pagamentos que a Recorrente fez à Recorrida)

D. As relações entre a Autora e a Ré foram relações de anos, que cessaram com a falta de pagamento dos fornecimentos que estão em apreço nos autos. E até esse momento, que conforme resulta dos autos, se situa em 2013, sempre os pagamentos de todos os fornecimentos foram efetuados em Portugal (como aliás acontece com diversos outros fornecedores Portugueses da Recorrente).

E. No mais, aceita a Recorrida que a questão que se coloca à consideração do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra é eminentemente jurídica e, como já oportunamente se referenciou em sede de resposta às exceções invocadas pela ora Recorrida na(s) sua(s) Contestações, não se desconhece que, juridicamente, a competência internacional dos Tribunais portugueses para julgarem ações, em face dos Tribunais estrangeiros, depende da verificação de algumas das circunstâncias discriminadas no antigo artigo 62.º do CPC:

F. E, conforme se defendeu naquela sede, na situação em apreço nos autos verificam-se quer a concorrência, quer dos princípios da coincidência, quer o da causalidade, quer, ainda, o da Reciprocidade e da necessidade.

 G. Verifica-se o Princípio da coincidência porque a ação pode ser proposta em Portugal quando os tribunais portugueses sejam territorialmente competentes para a apreciação da causa; aliás, analisado que seja o disposto no artigo 71.º do CPC, “A Autora pode optar pelo Tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida” e, na situação em apreço, tratando-se, como se trata de uma obrigação pecuniária, é certo que esse lugar do cumprimento da obrigação é o domicilio do credor, portanto o da Autora”

 H. Verifica-se, igualmente, o Princípio da Causalidade, porquanto em causa nos autos está uma transação comercial (venda de mercadoria, no caso madeira de pinho serrada, a partir de Portugal), portanto que tem a sua origem em território Português, importando a este respeito que o negócio foi feito em Portugal, segundo as regras de direito Portuguesas.

I. Por último, verifica-se o princípio da reciprocidade, atento a que é evidente (até em face do que resulta dos autos e da posição assumida pela própria Ré), que caso a Ré assim o entendesse poderia, sempre (caso houvesse razões para esse efeito, o que não é o caso) demandar a Autora nos Tribunais Marroquinos.

J. Além da verificação daqueles princípios não se pode deixar de referenciar que nos termos do artigo 71.º n. 1 do Código Processo Civil, a ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa coletiva.

 K. E se o réu tiver domicílio e residência em país estrangeiro e não se encontrar em território português, é territorialmente competente o Tribunal do domicílio do autor (art. 80º/3, 2ª parte CPC).

L. Implica o referido que, conforme notado na primeira das presentes conclusões, a M.ma Juiz a quo esteve bem a decidir da forma que decidiu e o despacho não merece a censura e os reparos que resultam do recurso.

 M. Aliás, relevante é que analisada que seja a(s) Contestação(ões) da Recorrente, verifica-se que esta invocou diversas exceções, que (na sua perspetiva) deveriam ter como consequência “não estar obrigada ao pagamento das obrigações pecuniárias que resultam da transação havida em Portugal, perante uma empresa Portuguesa” (sic)

N. As exceções foram, todas elas, consideradas improcedentes e, sem prejuízo da análise que seja feita no âmbito do presente recurso, destas contestações não pode deixar de se concluir, com relevância para a decisão da matéria de facto, que:

 i. A Recorrida não nega os fornecimentos invocados pela Autora em sede de Petição Inicial;

ii. Não contesta as quantidades dos produtos, nem o preço convencionado;

iii. Sequer, não nega que os pagamentos deveriam ter ocorrido em Portugal;

 iv. E, sobretudo, assume que não procedeu ao pagamento destes fornecimentos!

O. Pelo que, com o necessário e devido respeito que é muito e é devido, o único reparo e censura que pode ser feito ao despacho saneador é que este peca por defeito, porquanto se entende que dos autos resulta matéria suficiente para, desde já, condenar a Recorrida nos pedidos contra si formulados, designadamente:

(i) Atenta a inexistência de qualquer pedido, designadamente reconvencional, que tenha sido formulado pela Recorrente contra a Recorrida;,

(ii) Atento o julgamento das exceções invocadas pela Recorrente

(iii) E resultando dos autos a confissão inequívoca de que a Recorrente não procedeu ao pagamento da mercadorias que lhe foi fornecida pela Recorrida,

P. O “quid disputatum” e o “quid decidendum” subjacente aos presentes autos é unicamente o pagamento dos fornecimentos efetuados pela Recorrida e, bem assim as consequências desta falta de pagamento, traduzida no pedido de juros de mora e nada mais que isto (atento, até, a inexistência de qualquer pedido reconvencional da Recorrente contra a Recorrida);

Q. E estando convencionado - e resultando do quadro legal - que o lugar destes pagamentos é Portugal, os Tribunais Portugueses haverão, sempre, de ser considerados competentes e, de entre estes, o Tribunal do domicilio da Recorrida é o competente para apreciar as questões que resultam expostas nos autos.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

(In)competência  internacional do Tribunal Português.

4.

Os factos.

Releva o seguinte, sinóptico e essencial, acervo factual:

 A acção reporta-se e tem como causa de pedir um contrato de fornecimento de madeira da autora/recorrida, empresa portuguesa,  à ré/recorrente, empresa do Reino de Marrocos, na qual aquela alega o incumprimento do pagamento do preço de um fornecimento e pede a condenação desta em tal pagamento.

Para além do mais a autora alegou que o pagamento dos fornecimentos  deveriam ocorrer nas suas instalações/sede em Oleiros, para onde a  ré sempre enviou os pagamentos de anteriores fornecimentos.

5.

Apreciando.

5.1.

A questão de competência internacional surge quando no pleito se desenham elementos em conexão – as pessoas, os bens, o lugar do cumprimento da obrigação -  com outra ordem jurídica, para além da portuguesa – cfr. Alberto dos Reis, in Comentário, 1º, 105 e sgs.

Trata-se de saber se a questão submetida a tribunal deve ser  dilucidada e decidida pelos tribunais portugueses ou se  pelos tribunais estrangeiros.

Estatui o artº 59º do CPC:

«Competência internacional

Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º»

Deste preceito - e de outros que o sobrelevam: artigo 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, e 8º da Constituição - dimana que a competência internacional afere-se  em função de fontes internacionais – vg. convenções -, fontes  comunitárias – vg. regulamentos CE -  e fontes internas – vg- artº 62º do CPC.

Importando notar  que:

«a lei portuguesa dá prevalência às normas convencionais sobre tal matéria, pugnando o referido na Constituição da República Portuguesa, na media em que o seu art.º 8, em conjugação com outras normas, nomeadamente as constantes dos nºs 5 e 6 do art.º 7º, acolhe o princípio do primado do Direito Comunitário, e no seu nº 2 consagrou a doutrina da receção automática das normas do direito internacional particular, isto é, o direito convencional constante de tratados e acordos em que participe o Estado português, as quais são diretamente aplicáveis pelos tribunais, apenas condicionando a sua eficácia interna à publicação oficial no seguimento de ratificação ou aprovação» - Ac.  RC de  11.10.2017, p. 6484/16.8T8VIS.C1 ; Ac. Do STJ de 09.02.2017, p.1387/15.6T8PRT-B.L1.P1-A, in dgsi.pt. e REMÉDIO MARQUES, in Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, página 173.

No caso vertente, não se alcançam, nem as partes as invocam, fontes internacionais; e não pertencendo o Reino de Marrocos à UE, urge perspectivar as fontes internas.

Sendo de reter três aspetos essenciais.

Primeiro.

Nos termos do artº 38º da lei 62/2013 (LOSJ):

1 - A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.

Segundo.

Tal como é dito na decisão, a competência aprecia-se em função do modo como o autor delineia o pleito, rectius define a causa de pedir, sendo, em princípio, irrelevantes as razões aduzidas pelo réu.

Terceiro:

Sempre que, de acordo com as regras da competência traçadas na ordem interna, a ação possa ser instaurada em Portugal, os tribunais portugueses terão, em princípio, competência internacional para julgar, não obstante existirem elementos de conexão com outras ordens jurídicas estrangeiras.

Os elementos de conexão que atribuem a competência internacional aos tribunais portugueses são estabelecidos no artº 62º do CPC.

Estatui este preceito:

«Fatores de atribuição da competência internacional

Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.»

A alínea a)  consagra o designado  princípio da coincidência.

A alínea b) o princípio da causalidade.

A alínea c) o princípio da necessidade.

5.2.

O caso  sub judice.

A julgadora subsumiu  a situação na alínea a) do artº 62º.

E, de facto e de direito, assim é.

Prescreve o artº 71º do CPC, na parte aqui relevante:

Competência para o cumprimento da obrigação

1 - A ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva....

A acção destina-se ao cumprimento de uma obrigação contratual: pagamento do preço.

A ré é pessoa colectiva.

A autora alegou que o preço deveria ser pago na sua sede em Oleiros, como sempre foi.

Logo, poderia instaurar a acção no tribunal com competência territorial  para esta localidade, como instaurou.

Os argumentos invocados pela ré improcedem

O acórdão do STJ de 30-01-2013 por ela citado irreleva in casu.

Nele apenas  estava em causa a interpretação jurídica dos factos alegados pelo autor, não sendo, pois, estes factos postos em crise.

Na espécie, é precisamente o contrário: são os factos  que a recorrente entende relevantes para a questão que ela colocada sub sursis.

Mas nem tais factos são relevantes nem a sua versão pode prevalecer.

Efetivamente, e naquele aspeto, ela invoca que o contrato foi celebrado em Marrocos, mas o que interessa, como se viu, é o lugar do cumprimento da obrigação.

Quanto a este lugar alega ela que da expressão constante nas faturas: «Inclui o custo das mercadorias e o transporte marítimo (Figueira da Foz Agadir)»   resulta «iniludível que o lugar do cumprimento da obrigação de entrega dos bens vendidos, em apreço, era Agadir, Marrocos.».

Mas tal conclusão é inaceitável ou, ao menos, intolerávelmente arriscada.

Da mesma apenas emerge, numa interpretação razoável de um declaratário normal, quais os custos atendíveis e não, ou também, qual o lugar do seu pagamento.

Nesta perspetiva, e como outrossim supra se mencionou,  salvo casos excepcionais e pelo menos por via de regra, de que o presente caso não constitui exceção, a posição que deve prevalecer para apreciar esta questão é a do autor.

Por outro lado, certo é que um dos fitos da atribuição da competência  - vg. a internacional – é a de  conceder  a causa ao tribunal que -  vg. por virtude da  maior proximidade com o  circunstancialismo factual e melhor conhecimento da  legislação aplicável -, em  superiores condições esteja para,  mais conscienciosa  e rapidamente,  e, assim, mais justamente, decidir.

Pelo que, em circunstâncias extremas, ie. quando a aplicação, seca e formal, das regras da atribuição da competência possa levar a decisões iníquas ou intoleravelmente morosas,  estas regras possam ser postergadas.

Tal dimana dos instrumentos internacionais, como seja o Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,  no qual não obstante  se expender, no seu considerando (15) do preâmbulo, que as «regras de competência devem …fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido»,  outrossim se ressalva no seu  considerando (16)  que « o foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça».

(itálico nosso)

Mas nada disto está provado ou sequer indiciado nos presentes autos.

Versus o alegado pela ré, não é líquido, nem sequer se indicia, que o contrato tenha sido celebrado em Marrocos, pelo que, não é certo, ou sequer muito provável, que seja a lei Marroquina a ser aplicada ao abrigo da parte final do nº2 do artº 42º do CC.

E outrossim não é líquido, nem sequer se indicia, que mesmo  devendo ser esta a legislação a perspectivada pelo Tribunal Português, a causa seja por este julgada  injustamente ou menos justamente, ou, inclusive, com uma morosidade inaceitável, por reporte ao modo e tempo em que seria julgada pelo Tribunal Marroquino.

E se se concluir que a legislação aplicável é a portuguesa, o que, no limite, e à míngua da prova do lugar da celebração do contrato pode colher respaldo na prova do lugar do seu cumprimento, o qual, nos dizeres da autora é Portugal, então o argumento aduzido pela recorrente volta-se, aceitando-se a sua lógica, contra si própria.

Improcede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I – As regras de atribuição de competência visa aproximar a causa do tribunal que estiver em melhores condições para,  mais justa e céleremente, a julgar.

II – Pelo menos por via de regra, e salvo circunstâncias excepcionais, a decisão sobre a competência afere-se pelo modo factual – rectius causa petendi – como o autor  delineia o pleito.

III - As regras de atribuição de competência poderão, no limite, ser afastadas, mas apenas  se se provar ou indiciar fortemente que da aplicação das mesmas resultará uma decisão intoleravelmente injusta ou morosa, e, assim, nociva – cfr. al. c) do artº 62º do CPC.

III - Alegado pela autora, sociedade portuguesa com sede em Portugal que a ré, sociedade Marroquina, não lhe  solveu um fornecimento de madeira que devia ser pago na sua sede, impetrando este pagamento,  e não dimanando dos autos o factor exceptivo referido em III, cobra competência internacional, independentemente da lei aplicável, o Tribunal Português – artºs 59º, 62º al. a) e 71º nº1 do CPC.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2019.09.14.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos