Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1534/18.6T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
REQUERIMENTO
MATÉRIA DE FACTO
CONFISSÃO DE DÍVIDA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
CRÉDITO POR SUPRIMENTOS
Data do Acordão: 03/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.17, 20 CIRE, 458 CC, 245 CSC
Sumário: 1 - Numa declaração de insolvência em que se discute se o requerente é detentor (ou não) dos créditos que invoca, não se deve colocar no elenco dos factos a afirmação ou a negação disso mesmo, uma vez que tal é a axial questão de direito, que, a partir dos factos provados, não provados e acima de tudo do direito convocável e aplicável, o julgador, no momento seguinte e estritamente de direito, terá que apreciar e decidir.

2 - A promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida previstos no art. 458.º não constituem a fonte autónoma duma obrigação (não constituem uma excepção ao chamado “princípio do contrato” e um negócio abstracto); criam tão só a presunção de existência duma relação negocial/fundamental (a que o art. 458.º se refere explicitamente), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação, razão por que se inverte o ónus da prova, mas apenas o ónus da prova, ou seja, o art. 458º do C. Civil apenas dispensa o credor do ónus de provar a relação fundamental subjacente ao negócio unilateral aí previsto, mas já não do ónus de alegar tal relação (isto é, de alegar os factos constitutivos da relação fundamental e que constitui a verdadeira causa de pedir).

3 - Um crédito por suprimentos assim se mantém, como crédito por suprimentos, ainda que o crédito tenha sido cedido ou transmitida a participação social; e, sendo assim, como resulta do art. 245.º/2/1.ª parte do C. S. C., não se pode, com base em tal crédito, requerer a insolvência da sociedade a que, enquanto se foi sócio, se prestaram suprimentos (para alem dum crédito por suprimentos não poder ser exigido a qualquer momento e imediatamente da sociedade).

Decisão Texto Integral:



Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A (…), residente  (…) , intentou a presente acção especial de insolvência contra J (…) Lda., com sede (…) , pedindo que se decrete a sua insolvência.

Começou por alegar que é credor da requerida “pelo facto desta última ter assinado uma confissão de dívida a seu favor em 14/03/2017, seguida de um acordo de pagamento, sendo o valor confessado de € 480 000,00[1]; e que “ainda é credor da requerida pelo valor que consta do balancete de Outubro de 2016: € 22.045,51[2].

Mais alegou, de relevante, que o “acordo de pagamento estipulava que a 1.ª prestação da confissão de dívida deveria ser paga no prazo de 90 dias a contar da assinatura do referido acordo – 14 de Março de 2017 – e tal cláusula não foi cumprida[3]; e que a requerida não possui qualquer património, uma vez que vendeu (à E (…) S.A.), pelo preço de € 5.000,00, o único prédio (o rústico registado sob o nº (...) da Conservatória do Registo Predial de (...) e inscrito no artigo matricial (...) da Repartição de Finanças da (...) ) que possuía e que tinha um valor muito superior (em 2010, terá sido avaliado em € 1.400.500,00); encontrando-se impossibilitada de cumprir com as suas obrigações.

A requerida contestou.

Começou por alegar que, em 14 de Março de 2017, J (…) adquiriu, ao requerente, por € 5.000,00, a quota que este detinha na requerida; sociedade de cujo activo fazia parte o prédio rústico identificado na PI e de cujo passivo faziam parte um crédito detido pela sociedade de contabilidade (no montante de € 3.923,00), as coimas pela falta de pagamento ao Estado do Pagamento Especial por Contas e IRC (no montante global de € 480,91) e um crédito detido pelo próprio requerente, crédito de que o mesmo declarou prescindir no contrato de cessão.

Mais alegou que, em 14 de Março de 2017, além da cedência de quota da requerida, foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda (do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 1307 e descrito na Conservatória do Registo Predial das (...) sob o número (...) .), tendo como promitente-vendedor o requerente e como promitente-compradora a requerida, pelo valor de € 480.000,00 “e cujo pagamento seria a efectuar de acordo com o plano de pagamento que consta do acordo de pagamento a que o requerente alude na PI.[4]; tendo “nessa mesma data sido outorgada a “Confissão de Dívida” (documento n.º 1 Junto com a douta P.I.) para salvaguarda do promitente vendedor, ora requerente, no caso de a promitente compradora, ora requerida, pretender efectuar a escritura definitiva de compra e venda antes do pagamento do preço e, consequentemente, o prédio prometido deixar de estar na esfera jurídica do promitente vendedor e ora requerente[5]; não tendo, porém, ainda sido efectuado o contrato definitivo de compra e venda do referido terreno.

E concluiu que não é devedora de quaisquer montantes ao requerente, o qual não pode valer-se da “Confissão de Dívida” dado que “esta apenas foi efectuada para salvaguarda do promitente vendedor e ora requerente no caso de o contrato definitivo ser efectuado antes do pagamento total do preço[6]; e pede que a sua requerida insolvência seja julgada totalmente improcedente.

O requerente respondeu, alegando[7]:

“ (…) a motivação negocial para a venda da quota jamais foi a existência de supostas dívidas da empresa.”

“A questão era outra.”

“A requerida, mais uma vez na estratégia de se furtar ao cumprimento dos acordos negociados entre esta e o A. sempre sob a égide do Sr. F (…), pessoa com que o A. negociou tudo (o A. só conheceu o actual sócio-gerente da R. no dia das escrituras), directa ou indirectamente, através da sua ilustre mandatária nesta acção, omitem factos importantes.”

“O Sr. F (…) é sócio-gerente da empresa E (…) Lda., com que o A. teve litígio que terminou com uma transacção judicial nos termos da qual o A. se confessou devedor de € 350.000,00.”

“Para garantir esta dívida, foi constituída uma hipoteca voluntária sobre o terreno descrito na P.I e que era propriedade da requerida.”

“Mais tarde, a empresa veio instaurar uma acção executiva contra o ora A. e a sua sociedade unipessoal, ora requerida, reclamando o pagamento da quantia de € 430.000,00”

“Na pendência desta execução, o A. reuniu com o Sr. F (…) e logrou-se chegar a um entendimento quanto à dívida exequenda.”

“O aceitava transmitir a quota da sociedade, ora requerida, ao actual sócio-gerente pelo valor de € 5.000,00 (valor esse nunca recebido pelo A.) e a E (…) representada pelo Sr. F (…), desistia da execução e cancelava a hipoteca voluntária sobre o terreno.”

“Simultaneamente, seria assinada uma confissão de dívida com um acordo de pagamento no valor de € 480.000,00.”

“O interesse da cessão da quota para o A. era o de ficar com um título executivo que lhe garantisse o pagamento do terreno, o qual vendia através da cessão da quota, e não o de fazer face às dívidas fiscais, as quais eram diminutas à altura da cessão, ou à dívida do gabinete de contabilidade”

“E o interesse do Sr. F (…) era o de passar para a sua esfera de influência o referido terreno para poder pedir um financiamento bancário e, posteriormente, construir edifícios.

“Aliás, o Sr. F (…) vinha insistindo há vários anos com o A. no sentido de este passar o terreno para a sua esfera de influência porque receava que a CGD, credora em processos executivos contra a E(…), penhorasse o crédito desta empresa sobre o A. e a requerida”

(…)

“O A. foi iludido com esta proposta do Sr. F (…).”

“O A. exigiu ao Sr. F (…) uma garantia face a um eventual incumprimento, garantia essa que deveria consistir na constituição de uma hipoteca voluntária a favor do A. sobre o terreno.”

“O Sr. F (…) recusou porque, dizia ele, se houvesse um ónus sobre o terreno, jamais conseguiria o financiamento.”

“E sem o financiamento a dívida não poderia ser paga.”

“ Por tal motivo, ele mesmo sugeriu que fosse dada como garantia negocial um terreno que o A nem sabe exactamente onde fica, o qual estava em nome de uns primos ou amigos do Sr. F (…), mas, na realidade, estava na sua esfera de influência.”

“Ao que parece, o Sr. F (…) não pode ter bens em seu nome devido a questões judiciais resultantes da má situação financeira das empresas às quais tem estado ligado, segundo ele deu a entender”.

“Assim, no mesmo dia (14/03/2017) em que foi celebrada a confissão de dívida, o acordo de pagamento e o contrato-promessa junto com a contestação, foi igualmente feita a venda desse terreno ao A. pelo valor de € 5.000,00, valor este que o A. nunca recebeu[8]

“Deste modo, o pacote negocial acordado entre o A. e o Sr. F (…)sob a égide da sua ilustre mandatária, signatária da contestação, abrangia os seguintes negócios:

1.º - Desistência do pedido na acção executiva por parte da E (…) desistência dos embargos por parte da A. e cancelamento da hipoteca.

2.º - Cessão da quota do A. na empresa, que é ora requerida, ao actual sócio-gerente da mesma.

3.º - Confissão de dívida da requerida a favor do A. no montante de € 480.000,00 e acordo de pagamento.

4.º - Venda do terreno, que estava em nome dos familiares ou amigos do Sr. F (…) e situado na F(…) ao A..

5.º - Contrato-promessa de compra e venda do referido terreno celebrado entre o A. e a requerida.

6.º - Autorização do A. à requerida e às empresas às quais esta esteja ligada para continuarem a usar o referido terreno na Fanadia, onde supostamente está situado o estaleiro de construção civil das empresas do Sr. F (…)

7.º - Autorização da requerida ao A. para que este continue a utilizar a arrecadação sira no terreno propriedade daquela.

8.º - Declaração de quitação do Sr. F (…).”

“Assim o A. ficou proprietário do terreno onde o Sr. F (…) diz estar instalado o seu estaleiro de construção civil e, logo que a dívida estivesse paga, o referido terreno regressaria à esfera de influência do Sr. F (…) mediante o cumprimento do contrato-promessa.

Sucede, porém, que o referido terreno tem um valor comercial muito pouco significativo comparado com o valor da confissão de dívida

(…)

Na realidade, o móbil de todas estas negociações gira à volta do valor comercial do terreno que é agora propriedade da E(…), o qual já foi indicado pela A. na PI na sequência de uma avaliação efectuada no âmbito do litígio que opôs o A. e a E(…), da qual o Sr. F (…) é sócio-gerente.

Não era a quota do A. na requerida em si mesma que tinha valor ou interesse negocial.

O que realmente interessava era o terreno do qual esta empresa era proprietária até se desfazer dele para se por a salvo de uma execução, a qual seria mais do que certa perante o incumprimento premeditado do que ficou acordado na confissão de dívida e subsequente acordo de pagamento.

Ao aceitar este pacote negocial proposto pelo Sr. F (…), o A. não esperava que o terreno passasse depois para a esfera jurídica da E (…)

Na realidade, o Sr. F (…) sempre lhe tinha garantido que logo que a transmissão de propriedade se concretizasse, de imediato ele diligenciaria no sentido de pedir um financiamento bancário e com o capital mutuado pagaria o terreno do A. nos termos acordados.

O A. foi insistindo junto do Sr. F (…)durante os meses subsequentes ao termo do prazo para o pagamento da primeira tranche tentando telefonar-lhe para saber o andamento do pedido de financiamento.

Inicialmente, o Sr. F (…) apresentava-lhe as melhores perspectivas de obtenção do financiamento.

(…)

Em finais de 2017, o A. chegou à conclusão que tinha sido iludido e que todo este pacote negocial tinha tido como único objectivo o de retirar o terreno propriedade da requerida da esfera jurídica da A. de modo a passa-lo para a esfera de influência do Sr. F (…).

Foi designado dia para realização de audiência de discussão e julgamento, que se realizou com observância do legal formalismo, após o que o Exmo. Juiz proferiu sentença em que julgou a acção improcedente (não decretando a insolvência da requerida).

Inconformado com tal decisão, interpõe o requerente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue o pedido de insolvência procedente.

Não foi apresentada qualquer resposta.

Obtidos os vistos, mantendo-se a regularidade da instância, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de Facto:

Factos Provados

1. A requerida é uma sociedade que tem por objecto a promoção do planeamento, construção e comercialização de empreendimentos imobiliários. Comercialização de louças decorativas e utilitárias, artesanato, vidros e cristalaria, artefactos em cobre, estanho, ferro forjado ou outros metais.

2. O requerente entre o ano de 2007 e 14 de Março de 2017 foi o sócio gerente da requerida.

3. Em 14 de Março de 2017, o requerente declarou ceder a sua quota na sociedade requerida a J (…) pelo valor de € 5.000,00.

4. No documento intitulado “contrato de cessão de quota” o aqui requerente cedeu a sua quota na sociedade requerida a J (…) tendo ficado a constar que este “toma conhecimento que a sociedade é proprietária de um terreno (…) descrito na CRP de (...) com o n.º (...) (…) e da existência de dividas ao gabinete de contabilidade”, bem como dividas tributárias.

5. Por documento intitulado “Contrato promessa de compra e venda”, datado de 14 de Março de 2017, o aqui requerente declarou que prometia vender à aqui requerida, que declarou que prometia comprar, um prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (...) , pelo valor de € 480 000,00.

6. A requerida, em 14 de Março de 2017, subscreveu um documento intitulado “confissão de dívida” mediante o qual declarou que se confessava devedora ao requerente da quantia de € 480 000,00; tendo o requerente declarado que aceitava a confissão de dívida.

7. A requerida celebrou com o requerente, em 14 de Março de 2017, um documento intitulado “acordo de pagamento” mediante o qual as partes acordam na forma como seria paga a mencionada quantia de € 480 000,00.

8. Consta da cláusula 13.ª do documento referido em 6. que “no prazo de sessenta dias a contar da data do pagamento da última prestação, será celebrada a escritura de compra e venda do prédio rústico (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...) (…) em conformidade com o contrato promessa de compra e venda que nesta data foi assinado pelos ora outorgante, sendo a primeira outorgante promitente-compradora e o segundo outorgante promitente-vendedor.”

9. Por documento intitulado “Contrato de compra e venda”, datado de 30 de Maio de 2017 a J (…), Lda. declarou que vendia à E (…)S.A. o prédio rústico registado sob o nº (...) da Conservatória do Registo Predial de (...) e inscrito no artigo matricial (...) da Repartição de Finanças da (...) .

10. Em relatório de avaliação datado de 23 de Setembro de 2010 e junto a acção de processo ordinário n.º 530/08.6TBCLD é referido pelo perito que: “o prédio rústico (…) descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (...) (…) livre de qualquer ónus ou encargo e à data de 27 de Setembro de 2007 tinha o valor 1.400. 500,00”.

11. O requerente intentou contra a R. e a empresa E (…) uma ação judicial (Processo 77/18.2T8CLD, a qual foi distribuída ao Juízo Local Cível de Caldas da Rainha, Juiz 1) com dois pedidos: O pedido de ineficácia da transmissão do terreno propriedade da R. à E(…) (Impugnação pauliana) e a declaração de nulidade do negócio com base na simulação do negócio pelas partes contratantes.

12. O requerente intentou procedimento cautelar de arresto que correu os seus termos por apenso à ação nº 77/18.2T8CLD do Juízo Local Cível (Juiz 1) de Caldas da Rainha, tendo o mesmo, sem prévia audiência da requerida, sido declarado improcedente.

13. F (…) é sócio-gerente da empresa E (…) Lda., com o qual o requerente teve litígio que terminou com uma transacção judicial em que o requerente se confessou devedor de € 350.000,00.

14. Para garantir tal dívida, foi constituída uma hipoteca voluntária sobre o prédio referido no ponto 4 dos factos (descrito na CRP de (...) com o n.º (...) ).

15. Mais tarde, a E(…) veio instaurar acção executiva contra o requerente e a sua sociedade unipessoal, ora requerida, reclamando o pagamento da quantia de € 430.000,00

16 Na pendência de tal execução, o requerente reuniu com o F (…) e chegaram ao seguinte entendimento:

 - o requerente aceitava transmitir a quota da sociedade ora requerida;

 - a E (…) representada pelo Sr. F (…), desistia da execução e cancelava a hipoteca voluntária sobre o terreno;

 - era assinada uma confissão de dívida (com um acordo de pagamento) a favor do requerente, no valor de € 480.000,00.

17. O requerente vendeu o terreno (descrito na CRP de (...) com o n.º (...) ) através da cessão de quota referida em 3 e 4.

18. O motivo das negociações que conduziram ao referido no ponto 16 girou à volta do valor comercial do terreno (descrito na CRP de (...) com o n.º (...) ), que era o que efectivamente interessava ao F (…).

19 O requerente, ainda no âmbito de tais negociações, pediu ao F (…), para garantia dos € 480.000,00, que este constituísse hipoteca sobre tal terreno a seu favor.

20. O F (…) recusou, dizendo que, se houvesse um ónus sobre o terreno, jamais conseguiria financiamento e que sem o financiamento a dívida não poderia ser paga.

21 E sugeriu dar como garantia negocial um terreno que o requerente nem sabe exactamente onde fica, o qual estava em nome de uns primos ou amigos do F (…), mas que, na realidade, estava na sua esfera de influência.

22. Tendo, no mesmo dia (14/03/2017), tal terreno sido colocado em nome do A. e sido também outorgado o contrato-promessa referido no ponto 5; para que, logo que a dívida dos € 480.000,00 estivesse paga, tal terreno regressar à esfera de influência do F (…).

23 Tal terreno (o descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (...) ) tem um valor comercial muito inferior ao valor da confissão de dívida

24. O requerente, enquanto foi sócio da requerida, fez-lhe suprimentos no montante de € 22.041,51.


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Não se inclui pois o facto não provado constante da sentença recorrida – segundo qual não se provou “o alegado crédito do requerente sobre a requerida, ou seja, que seja titular de dois créditos sobre a requerida, respectivamente, no valor de € 480.000,00 e € 22.041,51” – uma vez que, além do que em sentido diverso infra se dirá, tal facto (não provado) é, no contexto dos autos, a conclusão jurídica a que, a partir de factos e do direito aplicável, se há-de (ou não) chegar.

Nem sempre é fácil (ou sequer possível) estabelecer uma cisão perfeita entre o que são questões de facto e questões de direito; suscitam-se não raras vezes dúvidas quanto ao estabelecimento da linha de demarcação entre os dois campos, sendo hoje corrente afirmar-se que não se pode estabelecer uma rígida delimitação entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito.

Mas isto vale fundamentalmente em abstracto e significa que as mesmas questões e expressões podem ser consideradas, em função do que se discute e do objecto de cada processo, nuns casos como matéria de direito e noutros como matéria de facto.

Ao invés, colocados perante um concreto processo, sem prejuízo das referidas dificuldades de demarcação e delimitação, “sente-se”, fora de toda a dúvida, na generalidade das questões, o que, claramente, naquele concreto processo, não pode ser considerado como matéria de facto e resolvido na decisão de facto; ou seja, a delimitação/distinção entre a questão de facto e de direito é bastante casuística, consoante as necessidades de resolução dos problemas que em concreto se suscitam no âmbito do processo.

Ora, numa declaração de insolvência pedida, como é o caso, por quem se arroga credor, a questão de saber se o requerente é detentor (ou não) dos créditos que invoca não é algo que, com todos os documentos que se encontram juntos, se resolva na decisão de facto, mas sim a axial questão de direito, que, a partir dos factos provados, dos não provados e acima de tudo do direito convocável e aplicável, o julgador, no momento seguinte e estritamente de direito, terá que apreciar e decidir.


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III – Fundamentação de Direito:

A propositura de um processo a pedir a insolvência[9] de alguém reveste indiscutível gravidade para o visado.

Daí que o legislador exija que o requerente seja uma das pessoas a que, de acordo com o art. 20.º/1 do CIRE, confere/reconhece legitimidade; e que, além disto, seja preenchida também necessariamente uma condição de recurso à acção e de prossecução dela, que a um tempo assegure seriedade, verosimilhança e viabilidade ao pedido de insolvência, ou seja, a pessoa que, de acordo com o art. 20.º/1 do CIRE, tem legitimidade para obter a insolvência de alguém está adstrita a alegar e provar a verificação de um dos factos enumerados nas alíneas do no art. 20.º/1 do CIRE, que são aquilo a que se pode chamar índices significantes da situação de insolvência.

Assim, antecipando desde já o desfecho dos autos/recurso, o que o requerente/apelante alegou – ser titular de dois créditos sobre a requerida, um no valor de € 480.000,00 e outro no valor de € 22.041,51 – parece/ia conferir-lhe tal legitimidade e preencher a alínea b) dos factos enumerados no art. 20.º/1 do CIRE, porém, bem vistas as coisas[10], não é/era assim.

Começando pelo pretenso crédito de € 480.000,00:

Baseia-se tal crédito numa confissão/reconhecimento de dívida de € 480.000,00 da requerida para com a requerente.

O que nos remete[11] para a temática dos negócios unilaterais – que é o que uma confissão/reconhecimento de dívida é – o que não apaga a regra/princípio de, quem se dirige ao tribunal, invocando um direito de crédito (e exigindo o cumprimento da correlativa obrigação), ter que expor a fonte de tal crédito/obrigação; não podendo limitar-se a dizer, em termos abstractos, genéricos e indefinidos, que é credor do R./requerido num concreto montante e pedir que o R./requerido seja condenado a pagar-lhe tal concreto montante ou, como é o caso, que seja declarado insolvente.

Regra/princípio este que, com todo o respeito, não está ponderado e reflectido em momento algum das peças produzidas nos autos: quer na PI, quer na contestação, quer na resposta, quer na sentença, quer na alegação recursiva.

Na alegação constante da PI, o requerente não diz uma única palavra sobre a causa/fonte do crédito/obrigação constante do documento que formaliza a confissão de dívida.

Na contestação, a requerida procura demonstrar a falta da possível (e não alegada pelo requerente) causa de tal obrigação, sem nunca dizer, porém, que o requerente não alegou, como devia, a causa/fonte da obrigação.

Na resposta, o requerente vem, perdoe-se-nos a expressão, “colocar tudo em pratos limpos”, vem alegar a origem/causa da obrigação constante da confissão de dívida (aquilo que devia ter alegado na PI), porém, o que alegou é, no contexto dos autos, uma verdadeira confissão, uma vez que significa, em termos jurídicos, que o seu crédito de € 480.000,00, a existir, não é válido (não estando também totalmente configurado em relação à requerida, como infra se explicará).

Na alegação recursiva, repete a alegação da resposta e continua a raciocinar como se a confissão de dívida fosse um negócio abstracto.

Expliquemo-nos:

O que se alega tem que encerrar a exposição/alegação factual de algo que permita afirmar, aplicando-se o direito (qualificando-se juridicamente a fonte da obrigação, via de regra, o contrato), ser o A./requerente titular dum direito de crédito sobre o R./requerido no montante que invoca/peticiona.

Estamos, repete-se, no domínio do princípio/regra, supra referido, segundo o qual, quem se dirige ao tribunal, a invocar/exigir o cumprimento dum direito de crédito, tem que expor a fonte/causa de tal crédito, ou seja, a confissão de dívida não dispensava o requerente/apelante de tal alegação na PI.

De acordo com o disposto no artigo 458º/1 do Código Civil, se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.

Mas não constando a causa de pedir (relação jurídica subjacente à declaração de dívida) da declaração/confissão de dívida, esta – a causa de pedir – tem que ser alegada na PI[12].

Já se sustentou que o artigo 458.º do Código Civil consagra a presunção de que a relação fundamental que subjaz à declaração unilateral de dívida existe e é válida, pelo que o credor se encontraria dispensado de alegar tanto na PI da acção como no requerimento executivo a causa de pedir ou a causa da obrigação.

Mas hoje não é esta a posição dominante.

Considera-se hoje que o art. 458.º do C. Civil consagra apenas uma regra de inversão do ónus da prova (competindo ao devedor ilidir a presunção que o mesmo consagra), mas que não exime o credor do ónus de alegação da causa debendi.

Entendemos que não pode deixar de ser assim.

Não consagrando o artigo 458º do C. Civil “um desvio ao princípio do contrato, nenhum dos actos a que nele se alude (promessa de uma prestação ou reconhecimento de uma dívida) constitui, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação; criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extranegocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação[13],[14].

Por outro lado, cabendo o ónus da prova da inexistência ou da invalidade da relação jurídica subjacente ao devedor e competindo à causa de pedir a individualização da obrigação, não se mostrando esta alegada, “impossível” se torna ao devedor cumprir tal ónus (da inexistência ou da invalidade) adequadamente[15].

A não se entender assim, impondo-se ao devedor (ou ao executado) o ónus de alegação e prova da inexistência de uma qualquer causa geradora de obrigações e da ocorrência de quaisquer vícios que a afectassem, prejudicado ficaria até o exercício cabal do seu direito ao contraditório.

Efectivamente, repete-se, o art. 458.º C. Civil apenas estabelece um regime de “abstracção processual”, ou seja, dispensava o requerente/apelante da prova da relação fundamental, mas não o dispensava de alegar os factos constitutivos da relação fundamental e que constitui a verdadeira causa de pedir (não o dispensava, no caso, de alegar a causa/fonte da obrigação de entrega do montante de € 480.000,00).

Como já se referiu, quem se dirige ao tribunal (a exigir o cumprimento dum direito de crédito) tem que expor a fonte/causa de tal crédito e os negócios unilaterais – que é o que a referida declaração é – não valem como fonte autónoma de obrigações, ou melhor, a declaração/negócio unilateral só é reconhecida como fonte autónoma de obrigações nos casos especialmente previstos na lei, como é o caso do testamento, dos títulos de crédito, da procuração e da promessa pública do art. 459.º do C. Civil[16].

Como regra, para que haja o dever de prestar e o correlativo poder de exigir a prestação, fora dos casos em que a obrigação nasce directamente da lei (gestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, etc.), é necessário o acordo (contrato) entre o devedor e o credor; é o chamado “princípio do contrato”, que significa que só a convenção bilateral, no domínio das obrigações assentes sobre a vontade das pessoas, pode (em regra e fora das situações excepcionais referidas) criar o vínculo obrigacional.

Princípio/regra este de que o art. 458.º não se desvia, isto é, a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida previstos no art. 458.º não constituem a fonte autónoma duma obrigação.

Criam, repete-se mais uma vez, tão só a presunção de existência duma relação negocial/fundamental (a que o art. 458.º se refere explicitamente), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação, razão por que se inverte o ónus da prova, mas apenas o ónus da prova, ou seja, o art. 458º do C. Civil apenas dispensa o credor do ónus de provar a relação fundamental subjacente ao negócio unilateral aí previsto, mas já não do ónus de alegar tal relação.

“Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa do ónus de alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir, o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458º, n.º 2, do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental – e daí que a prova da inexistência de relação causal válida, a cargo o devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor[17].

Significa isto[18] que, quem, como o requerente/apelante, demanda quem lhe prometeu unilateralmente uma prestação sem indicação da causa, não pode limitar-se a juntar aos autos o documento que corporiza a promessa de cumprimento, devendo também identificar a respectiva relação causal, alegando os seus factos essenciais e constitutivos; embora, por via da dispensa de prova, contida no art. 458º do CC, esteja dispensado de provar tal factualidade, cumprindo ao demandado demonstrar que essa concreta causa constitutiva, invocada pelo credor, afinal não existe em termos juridicamente válidos (se o demandado/declarante provar que tal relação não existe, a obrigação “dissipa-se”, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida)[19].

Ora, como se começou por referir, tal alegação não foi minimamente efectuada na PI dos autos; o requerente/apelante não alegou nada na PI quanto à relação causal, anteriormente existente entre ele e a requerida e subjacente à emissão da confissão de dívida em causa[20].

E, repete-se uma última vez, pela confissão/reconhecimento de dívida (art. 458.º/1 do C. Civil) o credor fica dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário, porém, não se está perante um negócio abstracto, mas apenas perante uma inversão do ónus da prova, o que significa que apenas cabe ao devedor provar a falta de causa (previamente alegada pelo credor) para tal reconhecimento/confissão de dívida[21].

Assim, concluindo o raciocínio – não tendo o requerente/apelante alegado, na PI, nada quanto à relação causal e não constando a causa ou fundamento da obrigação confessada do próprio documento de confissão – há ineptidão da PI quanto ao invocado crédito de € 480.000,00: o requerente não expôs, de acordo e nos termos do art. 552.º/1/d) do CPC (ex vi art. 17.º do CIRE), os factos essenciais que constituem a causa de pedir do invocado crédito de € 480.000,00.

Daí termos começado por referir que o requerente parecia ter legitimidade e preencher a alínea b) dos factos enumerados no art. 20.º/1 do CIRE, porém, bem vistas as coisas, não é/era assim.

Em síntese: em relação ao invocado crédito de € 480.000,00, o requerente não alegou, à luz do direito convocável e aplicável, a causa de pedir, sendo a PI nessa parte inepta e, por conseguinte, com base em tal invocado crédito, não tem/tinha o requerente legitimidade para pedir a insolvência, nem preenchia algum dos factos enumerados no art. 20.º/1 do CIRE.

Vício e respectivo sancionamento – ineptidão da PI e, agora, improcedência da apelação – que não são sequer excessivos, uma vez que, como já se referiu, é suposto a contestação ser a oposição à causa jurídica da obrigação invocada (pelo requerente, na PI) e não, como foi o caso dos autos, a oposição a possíveis/hipotéticas causas jurídicas[22].

O que vimos de dizer é suficiente para, quanto ao invocado crédito de € 480.000,00, traçar o desfecho da pretensão do requerente/apelante, porém, em face de tudo o que o requerente veio dizer na resposta (e que, supra, no relatório inicial, se transcreveu), entendemos não despiciendo (esquecendo um pouco as boas regras do processo e como que admitindo que o requerente veio “aperfeiçoar” a total omissão alegatória da causa de pedir na PI), acrescentar o seguinte:

Escrevemos atrás que o requerente, na resposta, veio “colocar tudo em pratos limpos” e acrescentámos que o ali alegado é, no contexto dos autos, uma verdadeira confissão, uma vez que significa, em termos jurídicos, que o seu crédito de € 480.000,00, a existir, não é válido (não estando também totalmente configurado em relação à requerida).

Expliquemo-nos:

O alegado na resposta – por ser, como iremos explicar, juridicamente desfavorável ao requerente (no contexto dos autos), por ter sido referido em termos suficientemente convincentes pelo próprio requerente (em audiência) e pelas testemunhas por ele indicadas na alegação recursiva, por estar fortemente retratado pela conjugação dos documentos juntos aos autos (e lavrados, todos eles, no mesmo dia 14/03/2017) e, acima de tudo, por ser o que resulta das mais elementares regras da experiência – corresponde, a nosso ver, à verdade dos factos (daí que tenhamos acrescentado os pontos 13 a 23 aos factos provados, ou seja, o que de relevante, em termos factuais, consta de tal resposta[23]).

Na alegação efectuada na PI – em que, repete-se, a quase totalidade do que se diz não tem relevo para a fase declarativa do processo de insolvência em que nos encontramos – o requerente omite toda e qualquer referência à circunstância de ele ter sido, exactamente até ao dia 14/03/2017, o sócio da sociedade unipessoal que a requerida é; e de, nesse dia 14/03/2017, ter outorgado contrato de cessão de quota, em que foi declarado que cedia a quota a J (…) pelo valor nominal da mesma, ou seja, por € 5.000,00.

Mas, passando à consulta dos inúmeros documentos que o requerente então juntou (muitos deles repetidos), chegados ao documento de fls. 143/4 (que é exactamente tal cessão de quotas), de imediato (isto é, sem ir além do momento processual da PI) se fica intrigado e com a clara noção de que alguma coisa – a verdade completa – estava a ser ocultada[24].

Segundo o requerente (como diz na PI), a requerida tinha um prédio que “em 2010, foi avaliado por um valor de € 1.400.500,00”, porém, com um bem de tal valor no seu activo, a quota da sociedade unipessoal (que a requerida é) teria sido cedida, no dia 14/03/2017, pelo requerente a J (…) pelo valor nominal da mesma, ou seja, por € 5.000,00.

Estranho, mesmo muito estranho.

Tanto mais que, ao mesmo tempo, no mesmo dia da cessão de quotas (14/03/2017), havia sido subscrita a confissão de dívida de que falámos atrás, confissão de dívida (feita pela requerida a favor do requerente e no montante de € 480.000,00) cuja causa jurídica, como supra analisámos, o requerente não revelava na PI[25].

Estranheza confirmada (e ao mesmo tempo dissipada) pelo que o requerente veio dizer na resposta (e que se transcreveu no relatório inicial), pelo que repetiu na alegação recursiva[26], pelo que é mister concluir (em termos factuais) da conjugação dos diversos documentos lavrados no dia 14/03/2017 e que, como já se referiu, está vertido nos pontos 13 a 23 dos factos deste acórdão.

Enfim, encurtando razões, saltando da “estranheza” inicial para a verdade dos factos, dada a conhecer pela resposta, o que temos, muito simplesmente, é que o preço constante do documento que formaliza a cessão de quotas será totalmente simulado: o preço real (em vez dos € 5.000,00 feitos constar) corresponde, como resulta dos factos 13 a 23, à soma da desistência da execução referida no ponto 16 dos factos (mais exactamente, da expressão monetária correspondente a tal desistência) com os € 480.000,00 da confissão de dívida, isto é, o preço real da cessão de quotas andará “à roda” de, pelo menos, € 900.000,00 (e não dos € 5.000,00 feitos constar do documento).

Fica assim desvendada/esclarecida a causa jurídica (remota) da confissão de dívida dos € 480.000,00, ou seja, a sua causa jurídica é o próprio negócio/contrato de cessão de quota, representando os € 480.000,00 parte do preço real de tal negócio; resultando também dos pontos 13 a 23 dos factos que, para além de tal simulação relativa (de preço), terá sido celebrado, para garantir o pagamento de tais € 480.000,00, um negócio fiduciário concretizado (nesse mesmo dia 14/03/2017) na compra e venda e na subsequente (e inversa) promessa de compra e venda (do mesmo prédio à requerida) referidas nos pontos 19 a 22[27].

Seja como for – sem aprofundar/desenvolver a correcta qualificação jurídica da globalidade do acordado em 14/03/2017 – o que aqui releva e interessa é a causa jurídica (remota) dos € 480.000,00, que, fora de qualquer dúvida, é o negócio/contrato de cessão de quota[28]; negócio que é sujeito a forma (deve ser reduzido a escrito, cfr. art. 228.º/1, ex vi 270.º-G, ambos do CSC) e em que terá havido, portanto, simulação relativa (quanto ao preço).

Teremos pois que o negócio simulado (dos € 5.000,00) será nulo (cfr. art. 240.º/2 do C. Civil), podendo o negócio dissimulado (dos, pelo menos, € 900.000,00) ser válido (de acordo com o art. 241.º/1 do CC, o negócio dissimulado fica preservado, aplicando-se-lhe o seu regime próprio, como se tivesse sido celebrado abertamente, de modo indisfarçado e sem dissimulação, sendo certo que a sua validade, ou não, depende precisamente do regime que a ele próprio respeita[29]).

Em todo o caso, seja (ou não) o negócio dissimulado (dos, pelo menos, € 900.000,00) declarado válido, o certo é que tal declaração não pode ser efectuada, incidentalmente, aqui e agora[30]; tem, isso sim, que acontecer e ser proferida na respectiva acção própria, com a intervenção de todas as partes do negócio, a correspondente causa de pedir alegada e o devido pedido formulado[31].

Mais ainda, uma futura e eventual declaração da validade do negócio dissimulado (dos, pelo menos, € 900.000,00) ainda continuará, só por si, a ser insuficiente, uma vez que só confere causa jurídica para o requerente exigir os € 480.000,00 do cessionário da quota (do J (…) ou, como refere, do F (…)) e não também para os exigir da requerida; ou seja, é apenas a causa jurídica (a que podemos chamar “remota”), tendo, além disto, o requerente também que alegar/provar a causa jurídica (a que chamaremos “próxima”) que levou a requerida a assumir/garantir uma obrigação alheia (do cessionário) e que fará (se for o caso) a requerida devedora de tal parte do preço da cessão de quota.

Enfim, encurtando razões, aqui e agora, continuamos a ter, em termos válidos, apenas o que consta do documento que formalizou a cessão de créditos, isto é, que o preço foi de € 5.000,00, valendo o percurso jurídico efectuado e a configuração jurídica traçada para o “plano negocial” (como lhe chama o requerente/apelante) estabelecido pelas partes tão só para mostrar que o que, manifestamente, parece ser a verdadeira causa jurídica da confissão de dívida não tem por ora (enquanto a simulação relativa não for declarada, o negócio dissimulado for julgado válido e, ademais, alegada a assunção/garantia da obrigação do cessionário por parte da requerida) qualquer consistência ou validade jurídicas.

Em síntese, voltando ao que supra se referiu (a propósito da confissão de dívida), o que o requerente alegou na resposta (e que está provado nos pontos 13 a 23 dos factos) é também a demostração de que a possível/verdadeira causa jurídica da confissão de dívida afinal não existe ainda em termos juridicamente válidos[32] e, como supra também se referiu, sendo assim (cfr. art. 458.º/1, in fine do C. Civil), a obrigação (decorrente da confissão de dívida) “dissipa-se”, não servindo a confissão de dívida de suporte bastante nem à promessa de cumprimento nem ao reconhecimento da dívida.

Concluindo pois, em relação ao invocado crédito de € 480.000,00, o que o requerente – além de não ter alegado, à luz do direito convocável e aplicável, a causa de pedir, sendo a PI nessa parte inepta – alegou, na resposta, não configura uma causa juridicamente válida para tal crédito de € 480.000,00 (ou sequer toda a causa jurídica) e, por conseguinte, a partir da confissão de dívida, não demonstra o requerente (mesmo com o alegado na resposta) que tenha legitimidade para pedir a insolvência, nem preenche algum dos factos enumerados no art. 20.º/1 do CIRE.

Passando ao crédito de € 22.041,50:

A partir do que consta dos documentos juntos e da posição assumida pela requerida, também aqui alterámos a decisão de facto.

O requerente diz que tal crédito é de suprimentos (vinha do tempo em que era o sócio da requerida) e a verdade é que tal crédito consta, entre outros documentos, do balanço analítico de fls. 54; por outro lado, a requerida, não nega que tal crédito existisse, dizendo, isso sim, que o requerente “declarou dele prescindir, como se verifica do contrato de cessão de quota e da acta n.º 22” (cfr. art. 12.º da contestação).

Assim sendo, não reflectindo a cessão de quota e a acta n.º 22 o que a requerida diz – isto é, que o requerente declarou prescindir de tal crédito – demos como provado, no ponto 24 dos factos, que o requerente, enquanto foi sócio da requerida, fez-lhe suprimentos no montante de € 22.041,51.

E justamente por tal crédito ser por suprimentos não tem o requerente, com base em tal crédito, legitimidade para pedir a insolvência da requerida.

É que um crédito por suprimentos assim se mantém, como crédito por suprimentos, ainda que o crédito tenha sido cedido ou transmitida a quota[33]; e, sendo assim, como cristalinamente resulta do art. 245.º/2/1.ª parte do C. S. Comerciais, não pode, com base em tal crédito, ser requerida a insolvência da sociedade.

Mas, mais ainda, um crédito por suprimentos não é um crédito que possa ser exigido a qualquer momento e imediatamente da sociedade, ou seja, em face do alegado pelo requerente, tal crédito, por ser de suprimentos, não é ainda sequer exigível da requerida.

Considera-se contrato de suprimento[34] – assim o diz o art. 243.º/1 do CSC – “o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, a crédito fique tendo carácter de permanência[35].

A sua característica decisiva e essencial é o carácter de permanência do crédito do sócio relativamente à sociedade.

É dos suprimentos – e não do capital próprio – que provêm, em muitos dos casos (maxime, nas sociedade por quotas), em face da subcapitalização das sociedades, os meios financeiros de actuação destas.

Os sócios, as mais das vezes, fundam a sociedade com o capital mínimo legal, com o qual, sabem, não ser possível realizar o objecto da sociedade, sendo, depois, por meio dos suprimentos, que vão contribuir para a execução do objecto social sem correr os riscos inerentes à associação à empresa social, a não ser o risco geral de quem, a qualquer título, se torna credor duma sociedade[36].

O que – não se podendo exigir que todos os investimentos das empresas organizadas se faça por meio da contribuição dos sócios sob o regime de capital[37] – não significa que se possa perder de vista a função/papel que os suprimentos desempenham, ou seja, o facto (objectivo) dos suprimentos satisfazerem necessidades de capital da sociedade não pode deixar de projectar-se no regime legal dos suprimentos, na medida em que tal for considerado necessário para a protecção de interesses da própria sociedade ou de terceiros estranhos a ela.

Daí que – cumprindo materialmente o suprimento uma função (de entrada) de capital, sendo substitutivo da entrada de capital – a nota/característica da “permanência” imposta pela lei, “permanência” que exprime a ideia da disponibilidade dos bens prestados pelo sócio, disponibilidade que não é “eterna”, mas que se opõe a transitoriedade, uma vez que os bens postos à disposição da sociedade, para ser utilizados na generalidade dos fins sociais, preenchem as finalidades próprias de uma entrada de capital (suprem insuficiências, não momentâneas ou passageiras de capital social, substituem novas entradas de capital[38]).

Daí também que tal “permanência” e a inerente função substitutiva de capital se projecte no regime legal do seu regime de reembolso (que é a questão dos autos/recurso)[39].

O sócio, credor por suprimentos, tem evidentemente direito a ser reembolsado; todavia, porque os suprimentos são substitutivos de entradas de capital, a restituição é em certos casos condicionada pelos interesses da sociedade e dos credores sociais.

Dispõe-se a tal propósito no art. 245.º/1 do CSC que “não tendo sido estipulado prazo para o reembolso dos suprimentos, é aplicável o disposto no n.º 2 do art. 777.º do C. Civil; na fixação do prazo, o tribunal terá, porém, em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja fraccionado em certo número de prestações.”

Antes da autonomização (no CSC) do contrato de suprimento, entendia-se que a sociedade dispunha de 30 dias para realizar o reembolso dos suprimentos, após a sua exigência, no mútuo gratuito, ou após a denúncia do contrato, no mútuo oneroso (artigos 777.°/1 e 1148.°/1 e 2 do Código Civil); o que causava graves dificuldades às sociedades que, contando com aquelas verbas para a sua actividade, se viam de repente obrigadas a realizar a sua restituição.

Foi justamente para fazer face a tais dificuldades que o legislador prescreveu no transcrito art. 245.°/1 do CSC a fixação dum prazo pelo tribunal[40], para o cumprimento da obrigação de reembolso, nos termos do artigo 777.º/2.

Constitui pois o art. 245.º/1 do CSC uma disposição especial da lei que afasta a aplicação dos art. 777.º/1 do CSC e 1148.º/1 do C. Civil[41]; uma disposição especial cujo sentido é afastar o regime do mútuo, impossibilitando que o sócio credor possa, a todo o tempo, exigir o imediato reembolso dos suprimentos, e, desta forma, acautela os interesses da sociedade numa certa estabilidade dos seus meios de financiamento.

Temos pois, não sendo estipulado prazo de restituição – se foi acordado um prazo de reembolso dos suprimentos, não é afectada a estabilidade do financiamento da sociedade, que sabe quando terá de devolver o capital alheio aos sócios – e não podendo ou não querendo a sociedade cumprir, de imediato, nem chegar a acordo com o sócio, que cabe ao tribunal, no âmbito do meio processual em que nos encontramos, a fixação do prazo.

Tendo o legislador determinado, através de um conceito indeterminado, que na fixação do prazo o juiz deverá ter “em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja fraccionado em certo número de prestações” (artigo 245.°/1).

Enfim, em face do (não) alegado pelo requerente – não tendo alegado que havia sido estipulado prazo para o reembolso do suprimento – e não querendo a requerida reembolsá-lo, tinha o requerente, para poder exigir o reembolso do seu crédito por suprimentos, que começar por pedir ao tribunal que fixasse o seu prazo de reembolso; razão pela qual, com as “coisas estão”, não seja ainda sequer tal crédito exigível da requerida.


*

Em conclusão final:

A tese factual do requerente/apelante merece o acolhimento do tribunal[42], porém, a sua leitura jurídica é bem diversa da pretendida.

Uma confissão de dívida não é um negócio abstracto e não funciona como uma espécie de “cortina de fumo” que impeça o tribunal de penetrar na sua causa jurídica e de apreciar tudo o que está subjacente à concreta confissão de dívida[43]; bem ao invés, a sua causa jurídica começa por ter que ser revelada e o tribunal tem que escrutinar a sua existência e a sua validade jurídicas, sendo que só assim – revelada e escrutinada a causa jurídica – não se dissipará a obrigação decorrente da confissão de dívida[44].


*

Improcede pois “in totum” o que o requerente/apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva – mostrando-se, em face de tudo o que se expendeu, prejudicados todos os argumentos não directamente enfrentados – o que determina o naufrágio da apelação e a confirmação, embora por diferentes razões/fundamentos, do sentenciado na 1ª instância.

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IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação e confirma-se, embora por razões diferentes, a sentença recorrida.

Custas, em ambas as instâncias, pela requerente/apelante.


*

Envie-se, para os fins tidos por convenientes, certidão (contendo este presente acórdão e fls. 5 a 164, 227 a 266, 270 a 307, 384 a 467 e 514 a 585 dos autos) à Direcção Distrital de Finanças de (...) ; mencionando-se que, em face do que é narrado nos presentes autos (pelo requerente) a cessão de quotas de fls. 143 dos autos (em que é cedente o requerido e cessionário J (…)) não terá sido pelo valor feito constar, de € 5.000,00, mas sim, como resulta dos pontos 13 a 23 dos factos deste acórdão (e do por diversas vezes referido pelo aqui requerente/cedente), pela soma da desistência da execução referida no ponto 16 dos factos (mais exactamente, da expressão monetária correspondente a tal desistência) com os € 480.000,00 da confissão de dívida junta, isto é, o preço real da cessão de quotas andará “à roda” de, pelo menos, € 900.000,00 (e não dos € 5.000,00 feitos constar do documento que formalizou a cessão).

Coimbra, 26/03/2019

Barateiro Martins ( Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Art. 1.º da PI.
[2] Art. 2.º da PI.
[3] Art. 18.º da PI.
[4] Art. 25.º da contestação.
[5] Art. 26.º da contestação.
[6] Art. 31.º da contestação.
[7] Passa a transcrever-se o que o requerente alegou nos art. 13.º a 61.º da resposta (sendo os sublinhados nossos).
[8] Trata-se certamente lapso de escrita; queria por certo dizer-se: “valor que o R. nunca pagou”.
[9] E é disto e apenas disto que tratam os autos, embora as partes, que já litigam entre si numa outra acção (pauliana e de declaração de nulidade), reproduzam/decalquem grande parte do que referiram nas peças de tal acção, dizendo coisas que para os autos não têm interesse (assim como não tem interesse o que o requerente diz sobre a resolução em benefício da massa insolvente, questão que a seu tempo, se houver/houvesse insolvência, se colocava/ria).

[10] Ou seja, à luz do direito aplicável; de facto, num processo, importa nunca esquecer, tudo, mesmo tudo, é comandado pelo direito, o que significa, entre muitas outras coisas, que, quando uma parte expõe os factos, tem que estar sempre atenta ao direito – tem que, mentalmente, estar a ver os possíveis e plausíveis alicerces jurídicos da sua pretensão e, designadamente, se o que está a expor factualmente serve de alicerce à sua pretensão – uma vez que será este a apontar-lhe o caminho que tem que seguir na alegação factual; outro tando sucedendo com o juiz/tribunal que, quando selecciona factos e os inclui no elenco da sentença, tem que estar sempre atento ao direito, uma vez que será este que, conferindo ou não relevo (jurídico) às concretas alegações das partes, irá validar/permitir a sua inclusão na sentença.
[11] Seguimos de perto o que já escrevemos noutros acórdãos sobre o tema, designadamente no proferido (e disponível na base de dados do ITIJ) na apelação n.º 2.912/13.2TBLRA-B.C1.

[12] E, se a confissão de dívida for título executivo, tal título dado à execução só ficará completo com a alegação da causa no requerimento executivo.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, Coimbra Editora, 1987, p. 440.

[14] E as coisas não mudam de figura quando se está numa execução, uma vez que nas acções executivas a causa de pedir não é constituída pelo título executivo, mas pelo “facto jurídico nuclear de determinada obrigação”; é a factualidade obrigacional e não o título executivo, “embora reflectida indispensavelmente neste”, que constitui a causa de pedir neste tipo de acções.

[15] Nos termos do artigo 458º do C. Civil, “presume-se, simplesmente, que houve um facto jurídico idóneo”, que originou a emissão da declaração recognitiva da dívida (“ninguém se obriga por nada e sem causa”); todavia, não estando esse facto jurídico concretizado, impedido fica o devedor de alegar e provar a sua inexistência ou a sua invalidade.

[16] Atendendo à publicidade que a declaração reveste, às justificadas expectativas que a prestação publicamente prometida cria em torno dela, aos fins de interesse social que frequentes vezes estão na base de semelhantes iniciativas, ao caracter vinculativo que as leis tendem a atribuir a este tipo de declarações, compreende-se e justifica-se a excepção aberta ao princípio do contrato.
[17] Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, pág. 390.

[18] Defendido, entre outros nos seguintes Acórdãos do STJ: de 07/07/2010, proferido pelo STJ no P. 373/08.7TBOAZ-A.P1.S1; de 15/09/2011 (relator Granja da Fonseca); e de 07/05/2014 (Relator Lopes do Rego)

[19] Orientação esta que parece a mais proporcional e equilibrada; uma vez que admitir que o credor nada precisa de alegar como modo de identificar a relação causal subjacente é fazer impender sobre os ombros do demandado um ónus desproporcionado, traduzido em ter de ser ele a afastar a relevância de qualquer possível facto constitutivo dessa relação, ou seja, teria que ser ele a ter de identificar qual era, afinal, essa relação subjacente ao acto unilateral de reconhecimento, indicando a causa concreta dessa obrigação e questionando a sua existência ou validade jurídica, bastando ao A. (o que também seria desproporcionado) impugnar a individualização da causa pelo devedor para que pudesse subsistir a eficácia da declaração recognitiva.

[20] Quando se fala em “causa jurídica”, fala-se e alude-se à relação fundamental, ao concreto contrato (ou outra qualquer fonte obrigacional, como é o caso da responsabilidade civil), donde procede o reconhecimento da dívida, pelo que invocar um “pacote negocial” como causa dum reconhecimento de dívida é o mesmo que nada; e, na PI, o requerente limitou-se a juntar o documento, sendo a generalidade das suas alegações, como já se referiu, um decalque do que havia dito na anterior acção pauliana/nulidade.
[21] Neste sentido, também Castro Mendes (in Direito Processual Civil, Vol. III, pág. 273) defendia que o credor que disponha de uma confissão de dívida não pode remeter apenas para esse título mas deve indicar a causa concreta.

[22] Se nada se invoca na PI, não sabe sequer o R/requerido do que deve defender-se, sendo até, como também já se referiu, o seu cabal direito de defesa que fica prejudicado.
[23] Aspecto em que alterámos/ampliámos a decisão de facto da sentença recorrida (com o que ficam respondidas muitas das dúvidas e antinomias que a sentença recorrida exprime sobre os factos).

[24] E que a não revelação da causa jurídica (da confissão de dívida) talvez não fosse um mero lapso.

[25] Ademais do decalque da acção pauliana/nulidade (pendente entre as partes) efectuado na PI resulta que o requerente chama repetidamente a atenção para o facto do acto ali “atacado” (venda do imóvel descrito na CRP sob o n.º 2.148) ter sido por um preço (€ 5.000,00) “simbólico” e “incomparavelmente” inferior ao seu valor mercado (invocando-se para tal a avaliação de 1.400.500,00), o que, claro está, chama imediatamente a atenção para o facto de ter sido pelos mesmos € 5.000,00 – “simbólicos” e “incomparavelmente” inferiores ao valor de mercado, como refere a propósito do negócio que “ataca” na outra acção – que cedeu a quota da sociedade/requerida que tinha no seu activo o imóvel descrito na CRP sob o n.º 2.148.
[26] Por várias vezes e de várias maneiras e que, não fosse o tribunal não perceber, sintetizou nos arts. 167.º a 182.º.

[27] Negócio fiduciário que é uma figura afim e próxima da simulação, mas que não assenta numa divergência entre a vontade manifestada e a vontade real; que se caracteriza pela assunção, por parte do titular dum direito, da obrigação de actuar, no âmbito de determinada posição jurídica, no interesse e em benefício de um terceiro identificado (beneficiário); é o caso, por ex., daquele (fiduciário) que se compromete a transmitir para outrem (beneficiário) um bem que lhe foi transmitido em fidúcia.

 “A peculiaridade do negócio fiduciário consiste no facto dos efeitos reais e os efeitos obrigacionais produzidos terem, digamos, um mesmo objecto: a coisa que constitui objecto da transferência. Com o negócio fiduciário, na verdade, uma parte (o fiduciante) transfere à outra parte (o fiduciário) a propriedade de uma coisa, e o fiduciário assume contextualmente a obrigação, perante o fiduciante, de retransmitir-lhe aquela mesma coisa depois de um certo tempo, ou de retransferi-la a terceiros, ou então de fazer um uso determinado dela” (Enzo Roppo, O contrato, pág. 217).

O negócio fiduciário integra normalmente uma atribuição real ou patrimonial ao fiduciário; “o fiduciante confia ao fiduciário certo bem ou direito, investindo-o na titularidade desse bem ou direito; ficando o fiduciário titular do bem ou direito ou, mais exactamente, da posição jurídica fiduciada e estando vinculado, pelo pacto fiduciário, a agir sobre o bem fiduciado do modo e com fim próprio da fidúcia (a sua posição jurídica está funcionalmente vinculada pela fidúcia)” (Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 548 e ss.).
[28] O que, insiste-se, é muito claramente “confessado” pelo requerente na resposta, no seu depoimento de parte e na sua alegação recursiva, ou seja, em temos factuais, dá-se razão ao requerente/apelante, só que – é o ponto – tais factos têm uma configuração/subsunção jurídicas bem diversa da que ele lhes dá, desde logo por raciocinar como se a confissão de dívida fosse um negócio abstracto (de que não tinha que indicar a causa jurídica e, mais do que isso, de que não se podia discutir a existência e a validade da causa jurídica).

[29] E sem prejuízo do disposto no art. 241.º/2 do CC, segundo o qual “se o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei”; preceito em cuja interpretação há duas posições doutrinárias e jurisprudenciais opostas, parecendo, todavia, hoje desenhar-se a tendência (jurisprudencial) para defender a validade formal do negócio dissimulado.
[30] Até por que uma das partes de tal negócio – o J (…) – não é sequer parte nos autos; para além de, rigorosamente, não estarmos sequer apenas perante uma simulação relativa quanto ao preço, havendo também, segundo o requerente refere, uma simulação quanto aos sujeitos do negócio (segundo o requerente refere, o cessionário real é o F (…)).
[31] Era/é exactamente por aqui, com todo o respeito por opinião diversa, que o requerente/apelante devia começar; uma vez que a existência e validade do seu crédito de € 480.000,00 é um pressuposto essencial quer desta acção quer da acção pauliana e de nulidade que intentou.
[32] Em termos “inválidos” está retratada a causa jurídica contra o J (…), porém, não está sequer “alinhavada” a causa jurídica contra a requerida.
[33] Cfr, neste sentido, Raul Ventura, Sociedade por quota, Vol II, pag. 135.
[34] Seguimos de perto que já escrevemos em acórdãos sobre o tema.

[35] Embora com larga tradição na praxis societária, foi tal contrato previsto pela 1.ª vez no CSC como contrato nominado e típico, sendo – é hoje pacífico na doutrina e jurisprudência – um contrato distinto do contrato de mútuo e não uma espécie deste.

[36] Diz-se, um pouco caricaturalmente, que querem ser sócios nos direitos, mas estranhos nos deveres; que querem ser empresários e evitar o risco empresarial; que querem ser sócios (ter a responsabilidade limitada, os direitos correspondentes à administração e aos lucros) e credores da sociedade (aparecer perante a sociedade como um credor estranho).

[37] Não há meio de forçar os sócios a assim proceder, nem parece que seja conveniente encontrá-lo sem causar repercussões num sistema económico baseado em sociedades.

[38] São assim suprimentos os empréstimos à sociedade em situação de crise financeira ou que tenham em vista ampliar a actividade ou os investimentos, assim se satisfazendo, em vez de ser por novas entradas de capital, as necessidades sociais. Não são suprimentos os empréstimos para debelar défices momentâneos de tesouraria.
[39] Assim como se projecta na situação de crise da sociedade – cfr. 245.º/2 a 5 do CSC.

[40] Tendo ambas as partes – sociedade e sócio – legitimidade para requerer a fixação do prazo.

[41] O facto do art. 245.º/ do CSC mandar aplicar o art. 777.º/2 do C. Civil tem o alcance de tornar inaplicável o n.º 1 do mesmo artigo, impossibilitando o sócio de, a todo o tempo, exigir a restituição imediata do suprimento.
[42] Ao contrário da explicação/justificação que a requerida deu na contestação – quer para a confissão de dívida quer para a extinção do crédito por suprimentos – ao arrepio do que resulta, segundo as mais elementares regras da experiência, da conjugação dos diversos documentos elaborados no referido dia 17/03/2017.

[43] Nem isto sequer acontece nas obrigações cambiárias – quer consideremos, com a doutrina tradicional, que as obrigações cambiárias resultantes das letras/livranças se caracterizam pela abstracção, quer consideremos, com a doutrina mais recente (Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, pág. 59 e ss.), que o que caracteriza os negócios jurídicos cambiários é tão só a sua natureza constitutiva, incondicionabilidade e não-indicação da causa – em que o devedor cambiário, encontrando-se ligado por relações pessoais ao credor cambiário (isto é, se estiverem nas relações imediatas, com o sentido de participarem numa mesma convenção executiva), pode invocar/provar a “falta de causa” da obrigação cambiária (fazendo a vicissitude da relação subjacente repercutir-se na subsistência da obrigação cambiária).

[44] Uma confissão de dívida não é um manto que sirva para cobrir, de modo inacessível ao tribunal, toda e qualquer invalidade, irregularidade ou ilicitude; vem isto a propósito do que se refere no art. 228.º e ss da alegação recursiva, em que o requerente, para o caso de não ser já por demais evidente, “confessa” as irregularidades fiscais do “plano negocial” (como se o tribunal não tivesse o dever de denunciar/comunicar às autoridades competentes as irregularidades que as partes fazem questão de lhe expor repetida e detalhada e ostensivamente), embora só “confesse” as da contraparte (como se ceder/transmitir uma quota por não menos de € 900.000,00 seja o mesmo, em termos de IRS/mais valias, que ceder/transmitir essa mesma quota por € 5.000,00).